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Londres, 20 de outubro de 1861
Há meses que a imprensa londrina — os semanários e diários —, a mesma que determina o tom da mídia restante, repete a mesma litania sobre a Guerra Civil Americana. Enquanto insulta os estados livres do Norte, defende-se com inquietação da suspeita de simpatizar com os estados escravistas do Sul. De fato, ela está a todo momento escrevendo os dois mesmos artigos: um artigo atacando o Norte, e outro artigo se desculpando de seus ataques ao Norte. Qui s’excuse s’accuse.(1)
Seus paliativos soam, em essência, da seguinte forma: ‘A guerra entre o Norte e o Sul é uma guerra fiscal. É uma guerra sem quaisquer princípios, que não trata da questão escravista mas, na verdade, serve à sede de poder dos nortistas. Por fim, mesmo se a razão estivesse com o Norte, continuaria sendo vã a tentativa de lançar 8 milhões de anglo-saxões ao jugo da violência! Afinal, a separação entre Sul e Norte não livraria o último de toda a relação com a escravidão negra, assegurando assim seu esperado desenvolvimento, levando-se em conta seus 20 milhões de habitantes e enorme território? Desse modo, o Norte não deveria estar saudando a possibilidade da secessão como um evento venturoso, ao invés de querer contê-lo por meio de uma guerra civil sangrenta e vã?’
Examinemos o discurso da imprensa inglesa ponto por ponto. A guerra entre Norte e Sul, assim diz a primeira desculpa, é uma mera guerra tarifária, uma guerra entre um sistema protecionista e um sistema de livre-comércio, e a Inglaterra naturalmente está do lado do livre-comércio. Será que o escravocrata deveria gozar dos frutos do trabalho escravo ou ser parcialmente dele despojado pelos protecionistas do Norte? Esta é a questão com que lida a presente guerra. Ficou reservado ao Times fazer tal descoberta brilhante.
O Economist, o Examiner, o Saturday Review e tutti quanti levaram o tema mais longe. É característico de tal descoberta o fato de ela não ter sido feita em Charleston/Carolina do Sul, mas em Londres. Nos Estados Unidos da América, é claro, todo mundo já sabia que a tarifa de livre-comércio imperou de 1846 a 1861, e que, só depois de a rebelião ter se instalado, o representante Morrill passou no congresso sua tarifa de proteção aduaneira. Portanto, a secessão não ocorreu porque a Tarifa Morrill passou no congresso, mas no melhor dos casos a Tarifa Morrill passou no congresso porque a secessão ocorreu. Quando a Carolina do Sul sucumbiu a sua primeira crise secessionista, contudo, as tarifas protecionistas de 1828 lhe serviram de pretexto (mas só de pretexto), como a explicação do general Jackson revela. Porém, na presente ocasião, o velho pretexto não foi reinstaurado de verdade. No Congresso de Secessão em Montgomery, evitou-se qualquer alusão à questão das tarifas, já que o cultivo açucareiro da Louisiana, um dos mais influentes nos Estados Unidos, depende por completo da proteção aduaneira.
‘Contudo’ — assim continua a defender a imprensa londrina — ‘a guerra dos Estados Unidos não é nada além de uma guerra de manutenção da União. Os ianques não são capazes de abrir mão de 15 estrelas em sua bandeira. Eles querem figurar na cena internacional como uma personagem colossal.’ Ah sim, seria bem diferente se a guerra fosse conduzida em prol da abolição da escravatura! ‘A questão da escravatura, contudo’, como o Saturday Review (entre outros) esclarece categoricamente, ‘não tem absolutamente nada a ver com essa guerra.’
Antes de tudo, há de se lembrar que a guerra não teve sua origem no Norte, mas no Sul. O Norte se encontra em posição defensiva. Por meses ele observou tranquilamente como os secessionistas se apoderavam de fortes, arsenais bélicos, instalações portuárias, edifícios aduaneiros, tesourarias, navios e depósitos de armas da União, insultando suas bandeiras e tomando regimentos inteiros seus como prisioneiros. Os secessionistas por fim decidiram forçar o governo da União a sair de sua passividade via um ruidoso ato de guerra e, unicamente por esse motivo, tocaram a bombardear o Forte Sumter em Charleston.(2) Em 11 de abril de 1861, o general [confederado] Beauregard descobriu em uma entrevista com o major Anderson — então comandante do Forte Sumter — que o lugar só dispunha de víveres para os próximos três dias, e que, passado esse prazo, deveria se render pacificamente. A fim de desacelerar a tal rendição pacífica, os secessionistas começaram a bombardear logo cedo na manhã seguinte (12 de abril), o que, supostamente, levaria aquela praça à derrocada dentro de poucas horas. Essa notícia havia sido telegrafada até Montgomery, a sede do Congresso da Secessão, quando o Ministro da Guerra Walker declarou publicamente, em nome da nova Confederação: “Ninguém é capaz de dizer quando a guerra que inicia hoje acabará”.
Ao mesmo tempo ele profetizou “que, ainda antes do dia primeiro de maio, a bandeira da Confederação estará içada no topo do velho Capitólio em Washington e, sem dúvida, logo estará no Faneuil Hall de Boston”.(3) Só então seguiu-se a proclamação em que Lincoln convoca 75.000 homens para proteger a União. O bombardeio ao Forte Sumter gorou a única saída constitucional possível para a crise: a saber, a de uma convocatória para uma convenção geral de todo o povo americano, como Lincoln propôs em seu discurso inaugural. A Lincoln só restava a opção de fugir de Washington, evacuando Maryland e Delaware, e abandonando Kentucky, Missouri e Virgínia, ou então rebater guerra com guerra.
Temos nossa resposta acerca do princípio da Guerra Civil Americana no slogan de batalha com que o Sul rompeu a paz. Stephens, o vice-presidente da Confederação sulista, declarou no Congresso de Secessão que o que diferenciava essencialmente a recém-lavrada constituição de Montgomery daquela constituição de Washington e Jefferson era: na primeira delas, a escravidão, antes de tudo, foi reconhecida como uma boa instituição, como fundamento de todo edifício estatal, enquanto os Pais da Revolução — vítimas dos preconceitos do século XVIII como eram — teriam tratado a escravidão como um mal herdado da Inglaterra, o qual deveriam eliminar com o passar do tempo. Um outro matador do Sul, o Sr. Spratt, vociferou: “Trata-se para nós da fundação de uma grande República Escravista (a great slave republic)”. — E não foi o mesmo caso quando, assim que o Norte sacou a espada em prol da defesa da União, o Sul imediatamente declarou que a manutenção da escravidão não era compatível com a existência da União?
Da mesma forma que o bombardeio do Forte Sumter foi o sinal de largada para a guerra, a vitória do Partido Republicano no Norte, com a eleição do presidente Lincoln, serviu como sinal de largada para a secessão. Lincoln foi eleito em 6 de novembro de 1860. No dia 8 de novembro de 1860 recebeu um telegrama da Carolina do Sul: “A secessão passa a ser, a partir de agora, um fato consumado”; em 10 de novembro, a Assembleia Legislativa da Geórgia se ocupava com os planos separatistas, e em 13 de novembro convocava uma assembleia extraordinária do Legislativo do Mississippi para debater a secessão. A eleição de Lincoln, porém, foi ela própria resultado de uma cisão na ala democrata. Durante a batalha eleitoral, os democratas do Norte concentraram seus votos em [Stephen A.] Douglas, enquanto os democratas do Sul, em [John C.] Breckinridge; graças à tamanha dispersão de votos deu-se a vitória do Partido Republicano. De onde vem, então, a superioridade do Partido Republicano no Norte? De onde vem, por outro lado, a desavença dentro do Partido Democrata, cujos membros, no Norte e no Sul, operaram em conjunto há meio século?
Sob a presidência de [James] Buchanan, o comando do Estado atingiu seu ponto mais alto; mesmo comando que o Sul tinha acabado de usurpar graças à aliança com os democratas do Norte. O último Congresso Continental de 1787 e o primeiro Congresso Constitucional de 1789/90 proibiram por lei a escravidão de todos os territórios da República desde o noroeste do Ohio. (“Territórios” aqui significa as colônias situadas no interior dos Estados Unidos que não alcançaram o nível populacional constitucionalmente prescrito para a formação de estados autônomos). O Compromisso do Missouri (1820), a partir do qual o Missouri juntou-se às filas de estados escravistas da Federação, excluiu a escravidão dos territórios ao norte do paralelo 36°30' e a oeste do Missouri. Este acordo fez com que o território escravista aumentasse consideravelmente, em muitos graus de longitude, ao passo que pareceu estabelecer uma limitação geográfica bem definida para uma propagação futura. Tal barreira geográfica foi derrubada em 1854 pelo chamado Ato de Kansas-Nebraska, cujo autor foi Stephen A. Douglas, então líder dos democratas do Norte. O Ato, adotado por ambas as câmaras do Congresso, cancelou [hob auf](4) o Compromisso do Missouri, colocou escravidão e liberdade em pé de igualdade, ordenou o governo da União a tratá-los com indiferença, e passou para a soberania popular (isto é, a maioria dos colonos) a tarefa de decidir se a escravidão deveria ou não ser introduzida a suas terras. Assim, pela primeira vez na história dos Estados Unidos da América, toda limitação geográfica e legislativa foi abolida em prol da expansão da escravidão adentro dos territórios. Sob essa nova legislação, o então território livre do Novo México — cinco vezes maior do que o estado de Nova Iorque — transformou-se em um território escravista, e a zona escravista se expandiu da fronteira com o México até a latitude de 38° ao Norte. No ano de 1859, o Novo México criou um Código legislativo escravista rivalizando em termos de barbarismo com os livros da lei do Texas e do Alabama. Apesar disso, como o censo de 1860 mostra, o Novo México conta com não mais de meia centena de escravos para uma população de 100.000 habitantes. Assim, bastou que o Sul enviasse ao outro lado da fronteira um punhado de aventureiros com uns tantos escravos para que obtivesse uma aparência de representação popular(5) — e isso com ajuda do governo central de Washington, seus funcionários públicos e mercadores do Novo México —; assim foi imposta a escravidão no território, e com ela, a hegemonia dos escravistas.
Não obstante, esse método tão cômodo não surtiu efeito em demais territórios. O Sul então deu um passo à frente e apelou via Congresso ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos. O tribunal, que contava com nove juízes — cinco deles pertencentes ao Sul — era havia muito tempo o instrumento cabal dos escravistas. Foi ele que sentenciou em 1857, na ocasião do notável Caso Dred Scott, que cada um dos cidadãos americanos tinha direito de levar consigo, não importasse aonde, toda peça de propriedade reconhecida pela Constituição. A Constituição reconheceu escravos como propriedade e ordenou ao governo da União que protegesse essa propriedade.
Consequentemente, com base na constituição, escravos poderiam ser coagidos por seus donos a trabalhar em todos os territórios; assim ficou reservada a todos os escravistas a permissão de introduzir a escravidão em todos os territórios (até então) livres, contra a vontade da maioria de seus colonos. Dessa forma, negava-se às assembleias legislativas locais os direito de proibir a escravidão, e se impunha ao Congresso e ao governo da União o dever de favorecer os desbravadores do sistema escravista. Se o Compromisso do Missouri de 1820 empurrou a fronteira geográfica da escravidão para dentro dos territórios — e o Ato Kansas-Nebraska de 1854 apagou todas as fronteiras geográficas, colocando no lugar da vontade majoritária dos colonos certas barreiras políticas —, da mesma forma, a Suprema Corte dos Estados Unidos, por decisão de 1857, também demoliu essa barreira política e transformou todos os territórios da república, presentes e futuros, de lavouras de estados livres em lavouras da escravidão.
Ao mesmo tempo, em 1850, sob o governo de Buchanan, endureceram-se as leis de extradição de escravos fugidos, as quais passaram a ser aplicadas arbitrariamente nos estados do Norte. Como se a vocação constitucional do Norte consistisse em capturar escravos para os proprietários do Sul. De outra parte, a fim de frear a colonização dos territórios por colonos livres o máximo que pudesse, o partido dos escravistas pôs em xeque toda a legislação acerca da liberdade do solo, isto é, as disposições que asseguravam aos colonos uma certa quantidade de terras do estado, livres de taxas.
Assim como ocorria na política interna, na política externa os Estados Unidos tinham o interesse de proprietários de escravos como sua estrela-guia. Buchanan, de fato, alcançou a dignidade do cargo de presidente graças ao Manifesto de Ostend: neste a aquisição de Cuba, por compra ou violência armada, foi proclamada como a grande tarefa da política nacional. Sob seu governo, o norte do México foi partilhado entre os especuladores de terra americanos, os quais apenas esperavam impacientemente por um sinal para poderem invadir Chihuahua, Coahuila e Sonora. As incansáveis expedições piratas desses criminosos contra as nações da América Central foram, na mesma medida, coordenadas pela Casa Branca em Washington. Em ligação íntima com tal política exterior, que explicitamente se propunha a conquistar territórios novos a fim de introduzir ali a escravidão e o domínio escravista, estava a reabertura do comércio escravista [ultramarino], apoiada em segredo pelo governo da União. O próprio [Stephen] A. Douglas declarou em 20 de agosto de 1859 no Senado americano: “No último ano importamos mais negros da África do que jamais se fez em um único ano, mesmo na época em que o comércio escravocrata ainda vigorava.” O número de escravizados importados no último ano supostamente subiu para 15.000.
A propagação armada da escravidão para o exterior foi uma meta confessa da política nacional. De fato, a União tornara-se cativa de 300.000 escravagistas que governavam no Sul. Daí se desencadeou uma série de compromissos que o Sul devia à ala democrata do Norte. Todas as tentativas de resistência às crescentes usurpações dos escravistas, renovadas periodicamente desde 1817, terminaram por fracassar. Por fim, chegou um momento de virada.
Mal foi aprovado o Ato de Kansas-Nebraska — que apagava a fronteira geográfica da escravidão e dava aval à maioria dos colonos para aplicá-la conforme o bel-prazer —, os emissários armados dos escravistas (habitantes da zona limítrofe do Missouri e Arkansas) foram para cima do Kansas com a faca de caça em uma mão e o revólver na outra, perpetuando atos da mais indizível crueldade a fim de expulsar os colonos. Essas incursões dignas de bandoleiros foram apoiadas pelo governo central de Washington. Daí desencadeou-se uma reação monstruosa. Em todo o Norte, e especialmente no Noroeste, formou-se uma organização de auxílio que proveu ao Kansas homens, armas e dinheiro. Dessa organização de auxílio saiu o Partido Republicano, cuja origem se deve, portanto, à batalha pelo Kansas. Após a tentativa de transformar o Kansas em território escravocrata mediante violência armada, o Sul tentou obter o mesmíssimo resultado mediante intrigas políticas. Refiro-me à tentativa do governo Buchanan, em particular, de fazer todo o possível para elencar o Kansas no rol de estados escravistas, impondo-lhe uma constituição escravista. Daí veio uma nova luta, dessa vez desencadeada, sobretudo, dentro do Congresso Americano.
O próprio [Stephen] A. Douglas, líder dos democratas no Norte, interviu (em 1857-1858) contra o governo e seus aliados do Sul, uma vez que outorgar uma constituição escravista era uma afronta ao princípio de soberania dos colonos, garantida pelo Ato de Kansas-Nebraska de 1854. Douglas, como senador de Illinois, um estado do Norte, teria claramente perdido toda a sua influência caso houvesse tentado conceder ao Sul o direito de despojar, mediante uso de armas e atos de congresso, os territórios colonizados pelo Norte. Assim como a luta pelo Kansas levou à criação do Partido Republicano, ela agora provocava a primeira divisão dentro do próprio Partido Democrata.
Em 1856 o Partido Republicano instituiu seu primeiro programa de governo, na ocasião das eleições presidenciais. Embora seu candidato John Frémont não tenha vencido, o enorme número de votos que obteve provava o crescimento desenfreado de seu partido, sobretudo na região Noroeste. Em sua segunda Convenção Nacional para as eleições presidenciais (17 de maio de 1860), os republicanos voltaram a usar o programa de 1856, desta vez enriquecendo-o com certos adendos. Seu conteúdo era, em resumo, o seguinte: ‘Não cederemos à Escravidão um único centímetro de terra dos novos territórios. A política internacional criminosa deve acabar. A reabertura do comércio escravo [exterior] será estigmatizada. Por fim, serão estabelecidas as leis de livre-território com o objetivo de promover a colonização livre.’
O aspecto de importância decisiva no programa foi o de não ceder nenhum centímetro de terra à Escravidão; pelo contrário, ela haveria de ser banida para dentro dos estados onde já existia legalmente. Assim, a escravidão seria formalmente confinada. A ampliação contínua do território e expansão contínua para além de seus antigos limites, porém, era uma lei vital para os estados escravocratas da União.
O cultivo de artigos de exportação do Sul (algodão, tabaco, açúcar etc.) só pode ser levado a cabo por um grande número de escravos; ele é rentável somente na medida em que se efetuarem uma sucessão em massa de escravos rumo a imensas extensões de terras naturalmente férteis, que não exijam nada além de um trabalho primitivo. O cultivo intensivo, que não depende tanto da fertilidade do solo e mais de investimentos de capital [Kapitalanlagen], da inteligência e da energia do trabalhador, contradiz a essência da escravidão. Daí a rápida transformação de estados como Maryland e Virgínia — que antigamente utilizavam escravos para a manufatura de bens de exportação — em estados que procriam escravos para exportá-los para terras longínquas, situadas mais ao Sul. Mesmo na Carolina do Sul, onde escravos constituem 4/7 da população, a produção algodoeira se encontra inteiramente estacionária há anos em decorrência do esgotamento do solo. Sim, a Carolina do Sul, por força das circunstâncias, já se tornou em partes um estado de procriação de escravos; a cada ano vende-se ali quatro milhões de dólares em escravos para os estados do Sul Profundo — o Deep South — e do Sudoeste. Assim que se chegou a tal ponto, tornou-se necessário adquirir novos territórios para que parte dos proprietários de escravos pudessem se ocupar de novos lotes de terreno fértil, transformando as áreas abandonadas em territórios de procriação de escravos destinados à venda nos leilões. Não resta dúvida, portanto, que, sem o advento da anexação da Louisiana, Missouri e Arkansas aos Estados Unidos, a escravidão na Virgínia e Maryland já teria sido extinguida. No Congresso Secessionista em Montgomery, um dos porta-vozes do Sul, o senador Toombs, formulou claramente a lei econômica que rege a expansão contínua dos territórios escravistas.
Ele disse: “se não houver um crescimento significativo do território escravista nos próximos quinze anos, teremos que permitir que os escravos fujam dos brancos. Isso se os brancos não tiverem de fugir antes dos escravos”.
Como é sabido, a representação dos estados na Câmara de Representantes do Congresso depende do número de habitantes de sua respectiva população. Como a população dos estados livres cresce muito mais depressa que a dos estados escravistas, o número de representantes do Norte logo ultrapassaria o de representantes do Sul. A verdadeira sede de poder político do Sul, assim, vem sendo progressivamente retraída para o Senado americano, onde cada um dos estados, seja sua população grande ou pequena, é representado por dois senadores. A fim de manter a influência no Senado e por meio deste afirmar sua soberania, o Sul precisou que surgisse, um após o outro, um novo estado escravista. Isso, porém, só seria possível por meio da conquista de terras estrangeiras (como foi o caso do Texas) ou da transformação de territórios pertencentes aos Estados Unidos em territórios de escravos, e mais tarde em estados escravistas propriamente ditos (como no caso do Missouri, Arkansas etc). John Calhoun — paparicado pelos escravistas como seu estadista par excellence — declarou no Senado em 19 de fevereiro de 1847 que somente ele, o Senado, dava chance ao Sul de gozar de um equilíbrio de poder; que a expansão do território escravista era indispensável para a preservação do dito equilíbrio entre Sul e Norte, e que as tentativas de criação de novos estados escravistas se justificava por isso.
Por fim, o número de escravocratas de verdade no Sul não ultrapassa 300.000; eles formam uma oligarquia exígua, à qual se opõem quatro milhões dos chamados “brancos pobres”, massa que cresce sem parar em virtude da concentração de propriedade de terra, e cujas condições só podem ser comparadas à dos plebeus romanos na época do declínio iminente de Roma. Somente mediante a aquisição e a perspectiva de aquisição de novos territórios, assim como por meio de expedições criminosas, é possível balancear os interesses desses “brancos pobres” com os dos escravistas, dando à sanha turbulenta dos primeiros um direcionamento inofensivo para os últimos: a de que todos eles, quiçá, poderão um dia se tornar proprietários de escravos.
Portanto, um confinamento da escravidão dentro de seus antigos domínios poderia — em função das próprias leis econômicas do escravismo — levar à sua extinção progressiva e, politicamente, dizimar a hegemonia exercida por estados do Sul, expondo, por fim, a oligarquia escravista no próprio interior de seus estados como um perigo cada vez mais ameaçador para o lado dos “brancos pobres”. Sob o princípio de que a expansão dos territórios escravistas deve ser proibida por lei, os republicanos atacam a raiz mesma da hegemonia escravocrata. Assim, a vitória eleitoral republicana tinha que acabar em uma luta aberta entre Norte e Sul. Não obstante, a mesma vitória eleitoral foi condicionada pela divisão dentro da ala democrata, como mencionado.
A batalha pelo Kansas já havia evocado uma divisão entre o partido escravista e seus aliados nortistas. A mesma luta foi retomada, então, com a eleição presidencial de 1860. Os democratas do Norte, com [Stephen A.] Douglas como candidato, introduziriam a escravidão nos territórios com base no desejo da maioria de seus colonizadores. O partido escravocrata, com Breckinridge como seu candidato, afirmou em declaração no Supremo Tribunal que a Constituição dos Estados Unidos dava aval à escravidão; a escravidão em si e por si era legal em todo o território, e não exigia qualquer naturalização particular. Enquanto, portanto, os republicanos proibiam qualquer crescimento de territórios escravos, o partido do Sul pretendia transformar todos os territórios da República em seus domínios privados. O que, por exemplo, tentaram no Kansas — impor a escravidão à força — seria imposto agora por lei a todos os territórios da União contra a vontade de seus colonos. Tal concessão estava além do poder dos líderes dos democratas, e só ajudou a ocasionar a deserção de seu exército para o campo republicano. Por outro lado, a “soberania dos colonos” de Douglas não foi capaz de satisfazer o partido dos escravistas. O que eles queriam fazer deveria se realizar dentro dos quatro anos seguintes por um novo presidente e por intermédio do governo central: não era possível esperar mais. Os escravistas não ignoravam que uma nova potência então surgia: a do Noroeste, cuja população praticamente dobrou de 1850 a 1860 e então se equiparava à população branca dos estados sulistas. Aquela era uma potência que não estava inclinada, por força de suas tradições, temperamento e modo de vida, a se deixar enrolar por compromissos e mais compromissos, como ocorrera com os velhos estados do Nordeste. A União era de interesse para o Sul só enquanto lhe entregasse o poder federal para a realização de sua política escravista. Não fosse este o caso, melhor seria romper naquele momento do que esperar para ver mais quatro anos de desenvolvimento do Partido Republicano e o apogeu do Noroeste, o que levaria a uma luta sob condições desfavoráveis. O partido escravocrata, portanto, estava dizendo: va banque!(6) Quando os democratas do Norte se negaram a continuar fazendo o papel de “pobres brancos” do Sul, este dispersou seus votos e deu a vitória a Lincoln. Isso, então, serviu de pretexto para desembainharem suas espadas.
Todo o movimento residia e reside, como vimos, na questão escravista. A questão não é se vão emancipar diretamente ou não os escravos nos estados atualmente escravistas, mas sim, se vinte milhões de homens livres do Norte vão se deixar dominar por mais tempo por uma oligarquia de trezentos mil escravocratas; se os vastos territórios da República servirão de estufa para estados livres ou para a Escravidão; e se, por fim, a política nacional da União tomará por slogan a proliferação armada da escravidão pelo México, América Central e América do Sul.
Em um artigo posterior examinaremos a afirmação da imprensa londrina de que o Norte deveria aprovar a secessão como a solução mais favorável e única solução possível dessa luta.
Notas:
(1) ] “Quem se desculpa, se acusa”. Em francês no original. (Nota da tradução) (retornar ao texto)
(2) Palco da primeira batalha da Guerra Civil Americana. Resultou na vitória dos Estados Confederados. (Nota da tradução) (retornar ao texto)
(3) Ambos são locais simbólicos da causa da liberdade da opressão britânica. O Faneuil Hall, um prédio localizado na praça do mercado central de Boston, foi utilizado pela ala mais radical dos revolucionários americanos, encabeçada por Samuel Adams e James Otis, como ponto de encontro e discussão de estratégias anticoloniais. (Nota da tradução) (retornar ao texto)
(4) Termo técnico na filosofia de extração hegeliana, conjugado a partir do verbo aufheben. (Nota da tradução) (retornar ao texto)
(5) De fato, escravistas de estados vizinhos viajavam em massa para territórios recém-adquiridos como o Kansas e, fingindo ser habitantes locais, votavam em prol da causa escravista. Essa medida foi um dos estopins para a organização de uma resistência violenta por parte de John Brown contra os escravistas, iniciando a chamada Guerra do Kansas. (Nota da tradução) (retornar ao texto)
(6) Interjeição utilizada em um jogo de cartas famoso na época, que precedeu nosso truco. O que Marx está dizendo: o partido escravocrata estava jogando todas as suas cartas, pondo tudo a perder. (Nota da tradução) (retornar ao texto)
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