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Escrito: Escrito por Engels entre 15 e 22 de Novembro de 1894.
Primeira
Edição: Publicado na revista Die Neue Zeit, Bd. 1. n.° 10, 1894-1895.
Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!" - Edição dirigida por um colectivo composto por: José BARATA-MOURA,
Eduardo CHITAS, Francisco MELO e Álvaro PINA, tomo III, pág: 62-70.
Tradução: José BARATA-MOURA. Publicado segundo o texto da revista. Traduzido do alemão. Excepto as citações de proveniência francesa que traduzimos segundo o texto publicado em K. Marx-F. Engels, Oeuvres choisies en trois volumes, Editions du Progrès, Moscou, t. III, 1976.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial
"Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982.
Os partidos burgueses e reaccionários admiram-se extraordinariamente de que agora, de repente e por toda a parte, entre os socialistas a questão camponesa venha para a ordem do dia. De direito, deviam era admirar-se de que isso não tenha acontecido há mais tempo. Da Irlanda à Sicília, da Andaluzia à Rússia e à Bulgária, o camponês é um factor muito essencial da população, da produção e do poder político. Duas regiões oeste-ocidentais apenas formam urna excepção. Na Grã-Bretanha propriamente dita, a grande posse fundiária e a grande agricultura deslocaram totalmente o camponês auto-subsístente [selbstwirtschaftend]; na Prússia a leste do Elba, desde há séculos, que o mesmo processo está em curso, e também aí o camponês cada vez mais ou é «expulso»(1*) ou, então, é económica e politicamente empurrado para segundo plano.
Até aqui o camponês tem-se conservado como factor de poder político apenas, na maioria dos casos, através da sua apatia fundada no isolamento da vida rural. Esta apatia da grande massa da população é o mais forte apoio não só da corrupção parlamentar em Paris e Roma, mas também do despotismo russo. Mas ela não é de modo nenhum invencível. Desde o surgimento do movimento operário, na Europa Ocidental, particularmente lá onde a propriedade camponesa de parcelas predomina, não tem sido, precisamente, difícil ao burguês tornar os operários socialistas suspeitos e odiosos à fantasia dos camponeses como partageux(2*), como «partilhistas», como citadinos mandriões, cúpidos, que especulam com a propriedade camponesa. As obscuras aspirações socialistas da revolução de Fevereiro de 1848 foram rapidamente afastadas pelos boletins de voto reaccionários dos camponeses franceses; o camponês, que queria que o deixassem descansado, tirou então do tesouro das suas recordações a lenda do Napoleão imperador dos camponeses e criou o Segundo Império. Todos nós sabemos o que este feito camponês, apenas, custou ao povo francês; ainda hoje sofre as suas consequências.
Desde esse tempo, porém, muita coisa mudou. O desenvolvimento da forma de produção [Produktionsform] capitalista cortou o nervo vital à pequena exploração na agricultura [Landwirtschaft]; ela decai e afunda-se irremediavelmente. A concorrência da América do Norte e do Sul e da Índia inundou o mercado europeu de cereal barato, tão barato que nenhum produtor do país pode concorrer com ela. O grande possuidor fundiário e o pequeno camponês têm ambos igualmente a decadência diante dos olhos. E como ambos são possuidores fundiários e gente do campo, o grande possuidor fundiário erige-se em campeão dos interesses do pequeno camponês, e o pequeno camponês — grosso modo — aceita esse campeão.
Entretanto, porém, cresceu, no Ocidente, um poderoso partido operário socialista. As obscuras aspirações e sentimentos do tempo da revolução de Fevereiro clarificaram-se, alargaram-se, aprofunda-ram-se num programa respondendo a todas as exigências científicas com reivindicações palpáveis determinadas; estas reivindicações foram representadas no parlamento alemão, no francês, no belga, por um número sempre crescente de deputados socialistas. A conquista do poder político pelo partido socialista aproxima-se visivelmente. Porém, para conquistar o poder político, este partido tem, primeiro, que ir da cidade para o campo, tem que se tornar um poder no campo. Ele, que tem sobre todos os outros partidos a vantagem da penetração clara na conexão das causas económicas com as sequências políticas, que, portanto, de há muito também, topou a figura de lobo sob a pele de cordeiro do pressuroso amigo dos camponeses grande senhor fundiário — deverá ele deixar calmamente o camponês votado à decadência nas mãos dos seus falsos protectores até que ele seja transformado de adversário passivo em adversário activo do operário industrial? E, com isto, estamos no meio da questão camponesa.
A população do campo, para que nos podemos voltar, consiste em componentes muito diversas que, uma vez mais, consoante as regiões singulares, são de espécie muito diversa.
Na Alemanha Ocidental, assim como em França e na Bélgica, predomina a pequena cultura de camponeses de parcelas que na maioria são proprietários — na minoria, rendeiros — dos seus pedaços de terra.
No Noroeste [da Alemanha] — Baixa-Saxónia e Schleswig-Holstein — há predominantemente grandes e médios camponeses, que não podem passar sem criados e criadas e mesmo sem jornaleiros. [Acontece] o mesmo numa parte da Baviera.
Na Prússia a leste do Elba e em Mecklenburg temos a região da grande posse fundiária e da grande cultura, com criados de quinta [Hofgesinde], caseiros [Instleuten] e jornaleiros, no meio de pequenos e médios camponeses numa proporção relativamente fraca e sempre decrescente.
Na Alemanha Central, encontram-se todas estas formas de exploração e de posse misturadas, segundo os locais, em diversas proporções, sem um predomínio determinado de uma ou de outra sobre uma grande superfície.
Além disso, há regiões de extensão diversa onde a terra arável, própria ou arrendada, não chega para sustentar a família, mas apenas serve de base para a exploração de uma indústria doméstica e que assegura a esta última salários baixos, sem isso inconcebíveis, que asseguram aos produtos um escoamento constante, apesar de toda a concorrência estrangeira.
Quais de entre estas subdivisões da população do campo podem ser ganhas para o partido social-democrata? Investigamos esta questão, evidentemente, apenas nas suas grandes linhas; tomamos apenas as formas agudamente pronunciadas; para uma consideração dos estádios intermédios e das populações do campo mistas falta-nos o espaço.
Comecemos pelo pequeno camponês. Para a Europa Ocidental, em geral, ele é não só o mais importante de todos os camponeses, como também nos proporciona para toda a questão o caso crítico.
Se virmos claro acerca da nossa posição para com os pequenos camponeses, teremos todos os pontos de referência para a determinação da nossa atitude face às outras componentes do povo do campo.
Por pequeno camponês entendemos aqui o proprietário ou rendeiro — nomeadamente, o primeiro — de um bocadinho de terra, não maior do que aquele que, em regra, ele pode cultivar com a sua própria família, e não mais pequeno do que aquele que sustenta a família. Este pequeno camponês, tal como o pequeno artesão, é também um operário que se diferencia do proletário moderno por estar ainda na posse do seu meio de trabalho; [é], portanto, uma sobrevivência de um modo de produção passado. Diferencia-se tri-plamente do seu antepassado, do camponês servo, adscrito ou muito excepcionalmente também livre [mas] obrigado a renda [Zins] e a corveia. Em primeiro lugar, por a Revolução Francesa o ter libertado dos encargos e serviços feudais que ele devia ao senhor da terra e, na maioria dos casos, pelo menos, na margem esquerda do Reno, lhe ter entregue a sua terra camponesa [Bauerngut] como propriedade [Eigen] livre. — Em segundo lugar, por ter perdido a protecção e a participação na associação de marca auto-administrada [selbstverwaltende Markgenossenschaft] e, com isso, a sua parte no usufruto da marca, anteriormente comum. A marca comum foi escamoteada, em parte pelo senhor feudal de outrora, em parte, por legislação ilustrado-burocrático-ao-modo-do-direito-romano, e, com isso, foi retirada ao pequeno camponês moderno a possibilidade de sustentar o seu gado de trabalho sem forragem comprada. Economicamente, porém, a perda do usufruto da marca compensa sobreabundantemente a supressão dos encargos feudais; o número dos camponeses que não pode manter qualquer gado de trabalho próprio cresce continuamente. — Em terceiro lugar, o camponês hodierno diferencia-se pela perda de metade da sua anterior actividade produtiva. Anteriormente, com a sua família, ele produzia, a partir de matéria-pri-ma autoproduzida, a maior parte dos produtos industriais de que ele precisava; o que ainda fosse preciso forneciam-no os vizinhos da aldeia que, além do cultivo do campo, exploravam também um ofício, e [isso] era pago, na maior parte das vezes, em artigos de troca ou em serviços recíprocos. A família, e mais ainda a aldeia, bas-tava-se a si própria, produzia quase tudo aquilo de que necessitava. Era quase uma economia puramente natural, quase que não era preciso dinheiro. A produção capitalista pôs fim a isto, por intermédio da economia monetária e da grande indústria. Se, porém, a utilização da rnarca era uma condição fundamental da sua existência, a exploração industrial paralela era a outra. E, assim, o camponês afunda-se cada vez mais. Impostos, más colheitas, partilhas, processos, levam um camponês após outro ao usurário, o endividamento torna-se cada vez mais geral e, para cada indivíduo, cada vez mais profundo — em suma, o nosso pequeno camponês, como toda a sobrevivência de um modo de produção passado, está irremediavelmente condenado à decadência. É um futuro proletário.
Como tal, ele deveria ser todo ouvidos para a propaganda socialista. Porém, de momento, o seu arreigado sentido de propriedade [Eigentumssinn] impede-o ainda disso. Quanto mais difícil se lhe tornar a luta pelo seu bocadinho de terra ameaçado, tanto mais poderosamente o desespero o fará aferrar-se a ele, tanto mais ele verá no social-democrata, que fala da transferência da propriedade fundiária para a colectividade [Gesamtheit], um inimigo tão perigoso como o usurário e o advogado. Como deverá a social-democracia vencer este preconceito? Que pode ela oferecer ao pequeno camponês em decadência, sem se tornar infiel a si própria?
Aqui, encontramos um ponto de referência prático no programa agrário dos socialistas franceses de orientação marxista, que é tanto mais digno de atenção quanto provém do país clássico da economia pequeno-camponesa.
No Congresso de Marselha de 1892, foi adoptado o primeiro programa agrário do partido.(3*) Para os operários rurais sem propriedade (portanto, jornaleiros e criados de quinta) reclamava: salário mínimo, fixado por associações profissionais [Fachvereine] e conselhos comunais; tribunais de trabalho [Gewerbegerichte] rurais, compostos na metade por operários; proibição da venda de terra comunal, e arrendamento dos domínios do Estado às comunas, que deverão alugar essa terra toda, própria e arrendada, a associações de famílias operárias rurais sem propriedade para cultivo em comum, com proibição de emprego de operários assalariados e sob o controlo das comunas; pensões de velhice e invalidez, custeadas por um imposto especial sobre a grande propriedade fundiária.
Para os pequenos camponeses, referindo-se aqui ainda especialmente os rendeiros, exige-se: compra de máquinas agrícolas pelas comunas para aluguer a preço de custo aos camponeses; formação de cooperativas [Genossenschaften] camponesas para a compra de adubos, tubos de drenagem, sementes, etc, e para a venda dos produtos; supressão do imposto sobre a mudança de propriedade da posse fundiária, se o valor não se elevar acima de 5000 francos; comissões arbitrais segundo o modelo irlandês para a redução de preços de arrendamento excessivos e para indemnização dos rendeiros e parceiros (métayers(4*)) que deixam de o ser pelo aumento de valor [Vertsteigerung] do pedaço de terra, por eles operado; abolição do art. 2102 do Code civil(5*), que dá aos proprietários fundiários um direito de penhora [Pfandrecht] sobre as colheitas, e abolição do direito dos credores a penhorarem a colheita que está a crescer; estabelecimento de um efectivo impenhorável de alfaias, colheitas, sementes, adubos, gado de trabalho, em suma, de tudo o que é indispensável ao camponês para a exploração do seu negócio; revisão do cadastro geral da terra, há muito envelhecido, e até lá revisão local em cada comuna; finalmente, instrução de aperfeiçoamento agrícola gratuita e estações experimentais agrícolas.
Vê-se que as reivindicações no interesse dos camponeses — as a favor dos operários, de momento, não nos concernem aqui — não vão muito longe. Uma parte delas foi já realizada alhures. Os tribunais arbitrais de rendeiros reclamam-se expressamente do modelo irlandês. As cooperativas camponesas existem já nas terras do Reno. A revisão dos cadastros é, em toda a Europa Ocidental, um persistente desejo pio de todos os liberais e mesmo dos burocratas. Os restantes pontos podiam também ser realizados sem que se prejudicasse essencialmente a ordem capitalista existente. Isto simplesmente quanto à caracterização do programa; não reside aqui uma censura, pelo contrário.
Com este programa, o partido fez um negócio tão bom com os camponeses das mais diversas regiões de França que — o apetite vem com o comer — se sentiu obrigado a adaptá-lo ainda mais ao gosto dos camponeses. Sentia-se, no entanto, que se se metia por terreno perigoso. Como é que se devia poder ajudar o camponês — não o camponês como futuro proletário, mas como presente camponês possidente — sem violar os princípios fundamentais do programa socialista geral? Para obviar a esta objecção, introduziram-se as novas propostas práticas [precedidas] de uma exposição de motivos [Motivierung] teórica que procurava demonstrar que fazia parte do princípio do socialismo proteger a propriedade pequeno-camponesa contra a decadência [causada] pelo modo de produção capitalista, apesar de se ver perfeitamente que essa decadência é inevitável. Vejamos agora mais de perto essa exposição de motivos, assim como as próprias reivindicações que, em Setembro deste ano, foram adoptadas no Congresso de Nantes.
A exposição de motivos começa [assim]:
«Considerando que, nos termos mesmos do programa geral do Partido, os produtores não poderiam ser livres senão na medida em queestiverem na posse dos meios de produção;
«Considerando que se, no domínio industrial, esses meios de produção atingiram já um grau de centralização capitalista tal que não podem ser restituídos aos produtores senão sob a forma colectiva ou social, não se passa o mesmo actualmente, pelo menos em França, no domínio agrícola ou fundiário [terrien], uma vez que o meio de produção, que o solo é, se encontra ainda em muitos pontos possuído, a título individual, pelos próprios produtores;
«Considerando que se este estado de coisas, caracterizado pela propriedade camponesa, está fatalmente chamado a desaparecer(6*), o socialismo não tem que precipitar essa desaparição, uma vez que o seu papel não é separar a propriedade e o trabalho, mas, pelo contrário, reunir nas mesmas mãos estes dois factores de toda a produção, cuja divisão arrasta consigo a servidão e a miséria dos trabalhadores caídos no estado de proletários;
«Considerando que se, por meio dos grandes domínios retomados aos seus detentores ociosos, ao mesmo título que os caminhos-de-ferro, minas, fábricas, etc, o dever do socialismo é de repor na posse, sob forma colectiva ou social, os proletários agrícolas, seu dever não menos imperioso é manter na posse dos seus pedaços de terra — contra o fisco, a usura e as usurpações dos novos senhores do solo — os proprietários que cultivam eles próprios;
«Considerando que há lugar para estender esta protecção aos produtores que, sob o nome de rendeiros e de parceiros(7*), cultivam [font valoir] as terras dos outros e que, se eles exploram jornaleiros, a isso são de certo modo constrangidos pela exploração de que eles próprios são vítimas:
«o Partido operário que, ao inverso dos anarquistas, não espera da miséria alargada e intensificada a transformação da ordem social e não vê libertação para o trabalho e para a sociedade senão na organização e nos esforços combinados dos trabalhadores dos campos e das cidades, apoderando-se do governo e fazendo a lei, adoptou o programa agrícola seguinte, destinado a coalizar na mesma luta contra o inimigo comum — a feudalidade fundiária — todos os elementos da produção agrícola, todas as actividades que, a diversos títulos, aproveitam [mettent en va-leur] o solo nacional.»(8*)
Vejamos agora algo mais de perto estes «considerandos».
Antes do mais, a proposição do programa francês segundo a qual a liberdade dos produtores pressupõe a posse dos meios de produção-tem que ser completada pelas que dela igualmente se seguem: que a posse dos meios de produção só é possível em duas formas: ou como posse individual [Einzelbesitz], forma que nunca e em parte nenhuma existiu em geral para os produtores e que é diariamente tornada mais impossível pelo progresso industrial; ou, então, como posse comum [Gemeinbesitz], uma forma cujos pressupostos materiais e intelectuais foram já estabelecidos pelo desenvolvimento da própria sociedade capitalista; que, portanto, há que lutar pelo apossamento [Besitzergreifung] comunitário [gemeinschaftlich] dos meios de produção com todos os meios que estejam ao dispor do proletariado.
A posse comum dos meios de produção é, portanto, apresentada aqui como o único objectivo principal por que há que esforçar-se. Não apenas para a indústria, onde o terreno já está preparado, mas em geral, portanto, também para a agricultura. A posse individual, segundo o programa, nunca nem em parte alguma vigorou em geral para todos os produtores; precisamente por isso, e porque o progresso industrial de qualquer modo a elimina, o socialismo não tem interesse nenhum na sua manutenção, mas tão-só na sua eliminação; pois, onde e na medida em que exista, torna a posse comum impossível. Uma vez que nos reclamamos do programa, [reclamemo-nos] então também do programa todo, que modifica muito significativamente a proposição citada em Nantes, ao apreender a verdade geral histórica aí expressa apenas nas condições sob as quais ela hoje pode permanecer uma verdade na Europa Ocidental e na América do Norte.
A posse dos meios de produção pelos produtores individuais, hoje em dia, já não concede a esses produtores qualquer liberdade real. O artesanato, nas cidades, já está arruinado; em grandes cidades, como Londres, desapareceu mesmo totalmente, substituído pela grande indústria, pelo sistema do fazer-suar [Schwitzsystem](9*) e pelos miseráveis sucateiros que vivem da bancarrota. O pequeno camponês auto-subsistente nem está na posse segura do seu bocadinho de terra, nem é livre. Ele, assim como a sua casa, o seu pátio [Hof], os seus campitos, pertencem ao usurário; a sua existência é mais insegura que a do proletário que, pelo menos, uma vez por outra vive dias tranquilos, o que nunca acontece ao atormentado escravo das dívidas. Riscai o artigo 2102 do Código Civil, assegurai por lei ao camponês um efectivo impenhorável de alfaias, gado, etc; mas não podereis assegurá-lo contra um caso de força maior [Zwangslage] ém que ele terá de vender o seu gado mesmo «de livre vontade» [freiwillig], se terá de entregar de corpo e alma ao usurário e ficará contente por comprar um curto adiamento. A vossa tentativa de proteger os pequenos camponeses na sua propriedade, não protege a liberdade deles, mas apenas a forma particular da sua servidão; prolonga uma situação em que ele não pode nem viver nem morrer; o apelo ao primeiro parágrafo do vosso programa está, portanto, aqui completamente deslocado.
A exposição dos motivos diz que na França hodierna os meios de produção, nomeadamente, o solo, ainda em muitos lugares se encontram, como posse individual, nas mãos dos produtores individuais; que a tarefa do socialismo não seria, porém, separar a propriedade do trabalho, mas, pelo contrário, unificar estes dois factores de toda a produção nas mesmas mãos. — Como já foi indicado, nesta generalidade, o ultimamente referido de modo nenhum é tarefa do socialismo; a sua tarefa é, antes, apenas a transferência dos meios de produção para os produtores como posse comm [Gemeinbesitz]. Logo que percamos isto de vista, a proposição de acima leva-nos directamente ao erro, nomeadamente o de que o socialismo é chamado a transformar a actual propriedade aparente [Scheineigentum] do pequeno camponês sobre os seus campos numa [propriedade] real, e, portanto, o pequeno rendeiro em proprietário e o proprietário endividado num [proprietário] livre de dívidas. O socialismo tem, sem dúvida, interesse em que esta falsa aparência [Schein] da propriedade camponesa desapareça; mas não desta maneira.
Em todo o caso, chegámos tão longe que a exposição de motivos pode declarar rotundamente como dever [Pflicht] do socialismo, e mesmo como seu dever imperioso
«manter na posse dos seus pedaços de terra — contra o fisco, a usura e as usurpações dos novos senhores do solo — os proprietários que cultivam eles próprios».
A exposição de motivos impõe, assim, ao socialismo o dever imperioso de realizar algo que, no parágrafo anterior, tinha declarado impossível. Dá-lhe como tarefa «manter» a propriedade de parcelas [Parzelleneigentum] dos camponeses, apesar de ela própria dizer que essa propriedade está «fatalmente chamada a desaparecer».(10*) O fisco, a usura, os recém-surgidos grandes senhores da terra, que são eles se não os instrumentos por meio dos quais a produção capitalista completa essa decadência [Untergang] inevitável? Com que meios «o socialismo» deve proteger o camponês contra esta trindade, veremos adiante.
Mas, não só o pequeno camponês deve ser protegido na sua propriedade. Do mesmo modo
«há lugar para estender esta protecção aos produtores que, sob o nome de rendeiros e de parceiros(11*), cultivam as terras dos outros e que, se eles exploram jornaleiros, a isso são de certo modo constrangidos pela exploração de que eles próprios são vítimas».
Aqui já chegamos a um terreno inteiramente singular. O socialismo dirige-se muito especialmente contra a exploração do trabalho assalariado. E aqui é declarado dever imperioso do socialismo proteger os rendeiros franceses quando eles «exploram jornaleiros» — assim se diz literalmente! E precisamente assim, porque, em certa medida, eles são compelidos a isso «pela exploração de que eles próprios são vítimas»!(12*)
Como é fácil e agradável escorregar ainda mais para baixo, depois de se estar no plano inclinado! Se, agora, o grande e o médio camponês da Alemanha viessem e pedissem aos socialistas franceses que intercedessem junto da direcção [Vorstand] do partido alemão para que o partido social-democrata alemão os protegesse na exploração dos seus criados e criadas, apelando, para isso, para a «exploração de que eles próprios são vítimas» por usurários, colectores de impostos, especuladores de cereais e negociantes de gado — que responderiam eles? E quem lhes garante que os nossos grandes possuidores fundiários agrários lhes não enviam também o conde Kanitz (o qual, aliás, também apresentou uma proposta semelhante à deles de estatização [Verstaatlichung] da importação de cereais) e de igual modo lhes pedem protecção socialista para a sua exploração dos operários do campo, apelando para a «exploração de que eles próprios são vítimas» por usurários da Bolsa, da renda e dos cereais?
Digamos aqui também que os nossos amigos franceses não têm tão más intenções quanto aqui deixam parecer. O parágrafo acima deve aplicar-se apenas a um caso inteiramente especial, nomeadamente a este: No Norte da França, tal como nas nossas regiões de açúcar de beterraba, aluga-se terra aos camponeses com a obrigação [Verpflichtung] de cultivar beterraba em condições extremamente onerosas; têm que vender a beterraba a uma fábrica determinada ao preço por ela fixado, têm que comprar determinadas sementes, têm de aplicar uma quantidade fixada de adubo prescrito e, ainda por cima, na entrega são vergonhosamente intrujados. Tudo isto, aliás, também nós conhecemos na Alemanha. Mas, uma vez que se quer tomar sob protecção esta espécie de camponeses, tem que se dizer isso directa e expressamente. Tal como a proposição está, na sua generalidade não-limitada, é uma violação directa, não só do programa francês, mas do princípio fundamental do socialismo em geral, e os seus autores não se poderão queixar se essa redacção descuidada for explorada, dos mais diversos lados, contra a sua intenção.
Prestam-se à mesma má-interpretação as palavras finais da exposição de motivos, segundo as quais o partido operário socialista tem a tarefa de
«coalizar na mesma luta contra o inimigo comum — a feudalidade fundiária — todos os elementos da produção agrícola, todas as actividades que, a diversos títulos, aproveitam o solo nacional».
Nego terminantemente que o partido operário socialista de qualquer país tenha a tarefa de recolher no seu seio, além dos proletários do campo e dos pequenos camponeses, também os médios e grandes camponeses ou ainda os rendeiros de grandes bens [territoriais], os criadores de gado capitalistas e os outros aproveitadores capitalistas do solo nacional. A feudalidade da posse fundiária pode aparecer-lhes a todos como inimiga comum. Podemos, em certas questões, juntar-nos a eles, podemos lutar ao lado deles por determinados objectivos, durante um lapso de tempo. Ora, no nosso partido podemos por certo admitir indivíduos de todas as classes da sociedade, mas de modo nenhum podemos admitir quaisquer grupos de interesses capitalistas, médio-burgueses ou médio-camponeses. Também aqui a intenção não é tão má quanto parece; os autores manifestamente que não pensaram em nenhuma destas coisas; infelizmente, porém, o ímpeto de generalização venceu-os, e não deve espantá-los se precisamente alguém os tomar à letra.
Após a exposição de motivos vêm agora os recém-decididos aditamentos ao próprio programa. Traem a mesma falta de atenção na redacção do que aquela.
O artigo segundo o qual as comunas devem comprar máquinas agrícolas e as devem alugar aos camponeses ao preço de custo é alterado para que as comunas, em primeiro lugar, devem receber ajudas do Estado para esse objectivo, e, em segundo lugar, devem pôr as máquinas à disposição dos pequenos camponeses grátis. Esta ulterior concessão seguramente que não ajudará os pequenos camponeses, cujos campos e modo de exploração [Betriebsweise] apenas permite pouco emprego de máquinas, a fazerem fortuna.
Em seguida:
«Abolição de todos impostos indirectos e transformação dos impostos directos em imposto progressivo sobre os rendimentos que ultrapassem 3000 francos.»
Uma reivindicação semelhante encontra-se desde há anos em quase todos os programas sociais-democratas. Que, porém, ela seja apresentada especialmente no interesse dos pequenos camponeses é [algo de] novo e prova apenas quão pouco se contou com o seu alcance. Tomemos a Inglaterra. Lá o orçamento do Estado eleva-se a 90 milhões de libras esterlinas. Deles, 13 1/2 a 14 milhões são fornecidos pelos impostos sobre os rendimentos, os restantes 76 milhões, na parte mais pequena, por taxação de empresas [Geschäften] (Correios, Telégrafos, selo), mas de longe, na maior parte, por cargas sobre o consumo de massa, pelo depenar sempre repetido, em montantes pequenos, imperceptíveis, mas que ascendem a muitos milhões, do rendimento de todos os habitantes, mas sobretudo dos mais pobres. E, na sociedade hodierna, mal é possível cobrir as despesas do Estado de outra maneira. Suponhamos que, em Inglaterra, todos os 90 milhões eram suportados pelos rendimentos de 120 libras esterlinas = 3000 francos, e mais, com impostos directos progressivos. A acumulação anual média, o aumento anual da riqueza nacional total [gesamt] elevou-se em 1865-1875, segundo Giffen, a 240 milhões de libras esterlinas. Digamos que é agora igual a 300 milhões anuais; uma carga fiscal de 90 milhões consumiria quase um terço da acumulação total. Por outras palavras, nenhum governo — a não ser um socialista — pode empreender uma coisa dessas; quando os socialistas estiverem ao leme terão de executar coisas ao lado das quais aquela reforma de impostos figurará apenas como um pagamento por conta momentâneo, inteiramente insignificante, e, nessa ocasião, perspectivas inteiramente diferentes serão abertas aos pequenos camponeses.
Parece também que se reconhece que os camponeses teriam que esperar bastante tempo por essa reforma de impostos e, portanto, «entretanto» (en attendant)(13*) deixa-se-lhes entrever:
«a supressão do imposto fundiário para todos os proprietários que cultivem eles próprios e diminuição desse imposto para aqueles cuja terra esteja onerada com dívidas hipotecárias».
A segunda metade desta reivindicação só se pode referir a bens [territoriais] camponeses [Bauerngüter] maiores do que aqueles que a própria família pode cultivar; é, portanto, de novo, um favor àqueles camponeses que «exploram jornaleiros».
Em seguida:
«Liberdade de caça [chasse] e de pesca, sem outros limites que não sejam as medidas necessitadas pela conservação da caça [gibier] e do peixe e a preservação das colheitas.»
Isto soa muito popular, mas a segunda parte da frase suprime a primeira. Quantas lebres, perdizes, lúcios e carpas há então, mesmo hoje, na área toda da aldeia [Dorfflur], por família camponesa? Por ventura mais do que [o necessário] para se poder ceder a cada camponês um dia de caça e de pesca no ano?
«Redução da taxa legal e convencional do juro do dinheiro» —
portanto, leis da usura renovadas, tentativa renovada de executar uma medida de polícia que, desde há dois mil anos, sempre e por toda a parte tem fracassado. Se um pequeno camponês cair numa situação em que, para ele, o mal menor é ir ao usurário, o usurário encontra sempre meios de o sugar sem cair sob a alçada da lei da usura. Esta medida poderia quando muito servir para tranquilização do pequeno camponês, mas não lhe traria vantagem; pelo contrário, dificulta-lhe o crédito, precisamente, quando ele dele mais precisa.
«Organização de um serviço gratuito de medicina e de um serviço de farmácia a preço de custo» —
em todo o caso, isto não é nenhuma medida de protecção especial do camponês; o programa alemão vai mais longe e exige também medicamentos gratuitos.
«Indemnização, durante o tempo de serviço [appel], às famílias dos reservistas» —
existe já, ainda que sob uma figura extremamente insuficiente, na Alemanha e na Áustria, e, igualmente, não é uma reivindicação especialmente camponesa.
«Abaixamento das tarifas de transporte para os adubos, as máquinas e os produtos agrícolas» —
no essencial, na Alemanha, está realizado e, com efeito, principalmente no interesse do — grande possuidor fundiário.
«Estudo [mise à l'étude] imediato de um plano de trabalhos públicos tendo por objecto o melhoramento do solo e o desenvolvimento da produção agrícola» —
deixa tudo no vasto campo da indeterminação e das belas promessas e é igualmente no interesse, antes de tudo, da grande posse fundiária.
Em suma, depois de todo o poderoso ímpeto teórico da exposição de motivos, as propostas práticas do novo programa agrário menos ainda nos dão qualquer explicação de como o partido operário francês quer chegar a manter os pequenos camponeses na posse de uma propriedade de parcelas que, segundo as suas próprias palavras [Aussage], está irremediavelmente condenada à decadência.
Num ponto têm os nossos camaradas franceses incondicionalmente razão: contra o pequeno camponês não é possível em França qualquer revolucionamento duradouro. Só que me parece que, para chegar ao camponês, não aplicaram a alavanca no ponto correcto.
Vão, parece, ganhar o pequeno camponês de um dia para o outro, se possível, já para a próxima eleição geral. Só podem ter esperança de o alcançar através de garantias gerais muito ousadas, para defesa das quais eles são obrigados a lançar considerações teóricas ainda mais ousadas. Se se vir as coisas mais de perto, descobre-se que as garantias gerais se contradizem a si próprias (promessa de querer manter um estado, que se declara irremediavelmente condenado à decadência) e que as medidas singulares ou são de nenhum efeito (leis da usura) ou então são reivindicações operárias gerais ou são tais que também são a favor da grande posse fundiária, ou, finalmente, são tais que o seu alcance no interesse do pequeno camponês de modo algum é muito significativo; de tal modo que a parte directamente prática do programa por si só corrige o primeiro ímpeto erróneo e reduz as grandes palavras da exposição de motivos, que tinham um aspecto perigoso, a uma medida efectivamente inocente.
Digamo-lo francamente: pelos seus preconceitos resultantes de toda a sua situação económica, da sua educação, da sua maneira de viver isolada, e alimentados pela imprensa burguesa e pelos grandes possuidores fundiários, só podemos ganhar a massa dos pequenos camponeses de um dia para o outro se lhes prometermos algo que nós próprios sabemos que não poderemos manter. Teríamos, precisamente, que lhes prometer proteger a posse deles, não só contra todos os poderes económicos que a assaltam, em todas as circunstâncias, como também libertá-la de todos os encargos que agora já a oprimem: transformar o rendeiro num proprietário livre, pagar ao proprietário que sucumbe à hipoteca as dívidas dele. Se o pudéssemos fazer, voltaríamos ao ponto a partir do qual a situação hodierna de novo se desenvolveria com necessidade. Não teríamos libertado os camponeses, ter-lhes-íamos proporcionado um curto adiamento.
Mas não é interesse nosso ganhar o camponês de um dia para o outro, para ele, quando nós não pudéssemos manter a promessa, de um dia para o outro nos voltar a faltar. Não podemos admitir como camarada de partido o camponês que espera de nós que lhe eternizemos a sua propriedade de parcelas, tão pouco quanto o pequeno mestre-artesão que se quer eternizar como mestre. Gente desta pertence aos anti-semitas. Eles que vão ter com eles, eles que os façam prometer a salvação da sua pequena exploração; depois de terem experimentado lá a importância que têm essas frases brilhantes e quais as melodias que os violinos, de que o céu anti-semita está carregadinho, tocam, então, verão, numa medida sempre crescente, que nós, que prometemos pouco e que procuramos a salvação numa direcção inteiramente diferente, que nós ainda somos a gente mais segura. Se os franceses tivessem, como nós, uma ruidosa demagogia anti-semita, dificilmente teriam cometido os erros de Nantes.
Qual é, então, a nossa posição para com o pequeno campesinato? E como teremos de nos comportar para com eles no dia em que nos couber o poder do Estado?
Em primeiro lugar, a proposição do programa francês está incondicionalmente correcta: antevemos a decadência inevitável do pequeno camponês, mas, de modo nenhum, somos chamados a acelerá-la através de ataques da nossa parte.
E, em segundo lugar, é igualmente palpável que, quando estivermos de posse do poder do Estado, não poderemos pensar em expropriar pela força os pequenos camponeses (tanto faz que com ou sem indemnização), como seremos obrigados a fazer com os grandes possuidores fundiários. A nossa tarefa face ao pequeno camponês consiste, antes do mais, em fazer transitar a sua exploração privada e a sua posse privada para uma [exploração e posse] cooperativas, não pela força, mas através do exemplo e da oferta de ajuda social para esse objectivo. E aqui temos, sem dúvida, meios suficientes para fazer entrever ao pequeno camponês vantagens que já agora lhe terão de saltar à vista.
Há já quase vinte anos, os socialistas dinamarqueses, que no seu país só possuem propriamente uma cidade — Kopenhagen —, e que, portanto, fora dela, quase que estão remetidos só à propaganda camponesa, projectaram planos semelhantes. Os camponeses de uma aldeia ou paróquia [Kirchspiel] — há, na Dinamarca, muitos casais [Höfe] singulares grandes — deviam juntar a sua terra num grande domínio [Gut], cultivá-lo por conta comum, e partilhar o rendimento [Ertrag] na proporção dos pedaços de terra, adiantamentos em dinheiro e prestações de trabalho implicados. Na Dinamarca, a pequena posse desempenha apenas um papel secundário. Mas, se aplicarmos a ideia a uma região de parcelas [Parzellengebiet], veremos que pela junção das parcelas e pela cultura em grande [Grosskultur] da sua superfície total, uma parte das forças de trabalho até aqui empregues se tornaria supérflua; nesta poupança de trabalho reside, precisamente, uma das principais vantagens da cultura em grande. Para estas forças de trabalho pode ser encontrada ocupação por duas vias. Ou se põe à disposição da cooperativa camponesa outras extensões de terra de grandes domínios [Guter] vizinhos; ou, então, se lhes proporcionam os meios e a oportunidade para trabalho industrial paralelo, o mais possível e preponderantemente para uso próprio. Em ambos os casos, colocam-se [essas forças de trabalho] numa situação económica melhor e assegura-se, simultaneamente, à direcção social geral a necessária influência para gradualmente fazer passar a cooperativa camponesa a uma forma superior e para igualizar os direitos e os deveres tanto da cooperativa no seu conjunto como dos seus membros singulares com os dos restantes ramos da grande comunidade. Como é que isto se fará em pormenor em cada caso especial dependerá das circunstâncias do caso e das circunstâncias em que nos apossarmos do poder público. Assim, estaremos possivelmente em condições de fornecer a estas cooperativas ainda outras vantagens: assunção da sua dívida hipotecária total [Gesamthypothekenschuld] pelo banco nacional com forte redução dos juros, adiantamentos de meios públicos para estabelecimento da exploração em grande [Grossbetrieb] (adiantamentos não necessariamente ou não de preferência em dinheiro, mas nos próprios produtos necessários: máquinas, adubos artificiais, etc.) e ainda outras vantagens.
O principal em tudo isto é e continua a ser tornar compreensível aos camponeses que nós só lhes podemos salvar a posse da casa e do campo deles, só a podemos manter, pela transformação em posse e exploração cooperativas. É, precisamente, o cultivo individual [Einzelwirtschaft] condicionado pela posse individual que empurra os camponeses para a decadência. Se eles insistirem na exploração individual [Einzelbetrieb], serão inevitavelmente expulsos da casa e da quinta [Hof], o seu modo de produção antiquado será suplantado pela grande exploração capitalista. As coisas estão assim; e vimos nós e oferecemos aos camponeses a possibilidade de introduzirem a própria exploração em grande, não por conta capitalista, mas por conta própria comum deles. Que isto é do próprio interesse deles, que isto é o único meio de salvação deles, não deveria isto ser feito compreender aos camponeses?
Nem agora nem nunca mais podemos prometer aos camponeses das parcelas a manutenção da propriedade individual e da exploração individual contra o poder superior [Übermacht] da produção capitalista. Nós só lhes podemos prometer que não inteferiremos nas suas relações de propriedade, contra a vontade deles, pela força. Podemos, além disso, ser a favor de que a luta dos capitalistas e grandes possuidores fundiários contra os pequenos camponeses seja já hoje travada com o menos possível de meios ilícitos e que roubo directo ou intrujice, tal como demasiado frequentemente ocorrem, sejam o mais possível impedidos. Isso só excepcionalmente será conseguido. No modo de produção capitalista desenvolvido, pessoa nenhuma sabe onde acaba a honradez e onde começa a intrujice. Mas fará sempre uma diferença significativa que o poder público esteja do lado do intrujador ou do intrujado. E claro que nós estamos decididamente do lado do pequeno camponês; faremos tudo aquilo que for admissível para tornar a sua sorte mais suportável, para lhe facilitar a transição para a cooperativa, no caso de ele a isso se decidir, e mesmo para, no caso de ele ainda não poder tomar essa decisão, lhe possibilitar um tempo de reflexão alongado acerca das suas parcelas. Fazemos isto, não só por considerarmos o pequeno camponês que trabalha para si [selbstarbeitend] como sendo virtualmente dos nossos, mas também no interesse directo do Partido. Quanto maior for o número dos camponeses a que pouparmos a queda real no proletariado, que pudermos ganhar para nós ainda como camponeses, tanto mais rápida e facilmente se completará a reorganização [Umgestaltung] social. Não nos pode servir ter de esperar por essa reorganização até que a produção capitalista se tenha desenvolvido por toda a parte até às suas últimas consequências, até que também o último pequeno artesão e o último pequeno camponês tenham sido sacrificados à grande exploração capitalista. Os sacrifícios materiais de meios públicos que, neste sentido, no interesse dos camponeses, há que fazer, do ponto de vista da economia capitalista, não podem aparecer senão como dinheiro deitado à rua, mas apesar disso eles são um excelente investimento, pois poupam, talvez, dez vezes o montante dos custos da reorganização [Reorganisation] social, em geral. Neste sentido, podemos, portanto, comportar-nos muito liberalmente para com os camponeses. Não é aqui o lugar para entrar em pormenores, para fazer propostas determinadas nessa direcção; aqui, pode tratar-se apenas das linhas gerais fundamentais.
Segundo isto, portanto, não podemos prestar pior serviço, não só ao Partido, como também aos pequenos camponeses, do que [fazer] promessas que mesmo apenas suscitem a ilusão de que nós encaramos a manutenção duradoura da propriedade de parcelas. Isso significaria barrar directamente aos camponeses o caminho da sua libertação e rebaixar o Partido ao nível do anti-semitismo barulhento. Pelo contrário. É dever do nosso Partido tornar sempre repetidamente clara para os camponeses a absoluta irremediabilidade [Rettungslosigkeit] da sua situação, enquanto o capitalismo dominar, a impossibilidade absoluta de manterem a sua propriedade de parcelas como tal, a certeza absoluta de que a grande produção capitalista passará por cima da sua impotente e antiquada pequena exploração, como um comboio por cima de um carrinho de mão. Se fizermos isto, agiremos no sentido do inevitável desenvolvimento económico, e este não deixará de abrir as cabeças dos pequenos camponeses para as nossas palavras.
De resto, não posso abandonar este assunto sem exprimir a convicção de que, no essencial, também os autores do programa de Nantes são do mesmo parecer que eu. Eles são inteligentes de mais para não saberem que também o território rural que se encontra agora em propriedade de parcelas está determinado a transitar para posse comum. Eles próprios admitem que a propriedade de parcelas está chamada a desaparecer. O Relatório do Conselho Nacional ao Congresso de Nantes, da autoria de Lafargue, corrobora também completamente este parecer. Foi publicado em alemão no Sozialdemokrat de Berlin, de 18 de Outubro deste ano[N290]. O que há de contraditório no modo de expressão do Programa de Nantes trai já que aquilo que os autores realmente dizem não é aquilo que eles tinham a intenção de dizer. Se não forem entendidos e se as suas expressões foram mal utilizadas, como de facto já aconteceu, sem dúvida que isso é culpa deles. Em todo o caso, terão de explicar melhor o seu programa e o próximo congresso francês terá de o rever profundamente.
Chegamos agora aos camponeses maiores. Encontram-se aqui, na sequência, principalmente, de heranças, mas também de endividamento e de vendas forçadas de terra, toda uma amostra de estádios intermédios do camponês das parcelas até ao grande camponês, que possui o seu antigo Hufe(14*) todo e mesmo mais. Onde o camponês médio vive entre camponeses de parcelas, nos seus interesses e perspectivas não se diferenciará essencialmente deles; a sua própria experiência dir-lhe-á, contudo, obrigatoriamente quantos dos seus iguais não desceram já a pequenos camponeses. Porém, onde predominam camponeses médios e grandes e a exploração económica requer generalizadamente a ajuda de criados e criadas, a coisa põe-se de um modo inteiramente diferente. Um Partido operário tem, naturalmente, em primeira linha, que ser a favor dos operários assalariados, portanto, dos criados, criadas e jornaleiros; está-lhe evidentemente vedado fazer aos camponeses quaisquer promessas que incluam a continuação da servidão assalariada dos operários. Mas, enquanto os grandes e médios camponeses continuarem a existir como tais, não poderão safar-se sem operários assalariados. Se, portanto, do nosso lado, é um simples disparate dar aos camponeses das parcelas a perspectiva da continuação duradoura da sua existência como camponeses de parcelas, tocaria directamente as raias da traição querermos prometer o mesmo aos grandes e médios camponeses.
Temos aqui de novo o paralelo com os artesãos das cidades. Sem dúvida que já caíram mais na ruína do que os camponeses, mas também ainda há alguns que, além dos aprendizes [Lehrlingen], empregam ainda oficiais [Gesellen] ou para quem os aprendizes fazem trabalho de oficial. Aqueles destes mestres artesãos que se querem eternizar como tal podem ir para os anti-semitas até ficarem convencidos que por lá também não serão ajudados. Os restantes, que percebem a inevitabilidade da decadência do seu modo de produção e vêm até nós, estão, porém, preparados também para partilharem no futuro o destino que se anuncia para todos os outros operários. Não se passa de outro modo com os grandes e médios camponeses. Os seus criados, criadas e jornaleiros interessam-nos, e, evidentemente, [interessam-nos] mais do que eles. Se esses camponeses querem a garantia da continuação da sua exploração, nós não podemos absolutamente dar-lha. O seu lugar está, então, entre os anti-semitas, membros de ligas de camponeses e partidos semelhantes, que têm prazer em prometer tudo e em nada cumprir. Nós temos a certeza económica de que também o grande e o médio camponês têm infalivelmente que sucumbir ante a concorrência da exploração capitalista e da produção ultramarina mais barata de cereais, como o crescente endividamento e o declínio desses camponeses, visível por toda a parte, também demonstram. Contra esse declínio não podemos fazer nada, a não ser recomendar aqui a reunião dos bens [territoriais, Güter] em explorações cooperativas, pelo que a exploração do trabalho assalariado pode ser cada vez mais eliminada e a gradual transformação em ramos — com iguais direitos e iguais deveres — da grande cooperativa nacional de produção pode ser introduzida. Se os camponeses virem a inevitabilidade da decadência do seu modo de produção actual e tirarem daí as necessárias consequências, virão até nós e será nossa função facili-tar-lhes, na medida das nossas forças, a transição para o modo de produção transformado. Noutro caso, teremos de os abandonar ao seu destino e virar-nos para os seus operários assalariados, entre os quais já encontraremos eco. Também aqui, verosimilmente, nos absteremos de uma expropriação pela força e, quanto ao resto, poderemos contar com que o desenvolvimento económico fará estes crânios duros escutar a razão.
A coisa só é inteiramente simples com a grande posse fundiária. Temos aqui uma exploração capitalista indisfarçada e para ela não valem nenhuns escrúpulos de qualquer espécie. Temos aqui perante nós proletários rurais em massa e a nossa tarefa é clara. Assim que o nosso Partido estiver de posse do poder do Estado terá simplesmente que expropriar os grandes possuidores fundiários, inteiramente como os fabricantes industriais. Se essa expropriação sucederá com ou sem indemnização, não dependerá em grande parte de nós, mas das circunstâncias em que chegarmos à posse do poder e, nomeadamente, também da postura dos senhores grandes possuidores fundiários. De modo nenhum vemos em todas as circunstâncias uma indemnização como inadmissível; Marx exprimiu-me — e quantas vezes! — como sendo o parecer dele que nós nos safaríamos da maneira mais barata possível se pudéssemos comprar esse bando todo. No entanto, não é isso que aqui nos ocupa. Os grandes bens [territoriais] assim devolvidos à colectividade, teríamos de os entregar, para utilização sob o controlo da colectividade, aos operários do campo que já agora os cultivam e que haveria que organizar em cooperativas. Em que modalidades, não tem agora ainda que ser fixado. Em todo o caso, a transformação da exploração capitalista em [exploração] social está já aqui plenamente preparada e pode ser completada de um dia para o outro, inteiramente como, por exemplo, na fábrica do senhor Krupp ou do senhor von Stumm. E o exemplo destas cooperativas agrícolas convenceria também os últimos camponeses de parcelas ainda algo renitentes, e provavelmente também muitos grandes camponeses, das vantagens da grande exploração cooperativa.
Podemos, portanto, abrir aqui aos proletários do campo uma perspectiva tão brilhante como aquela que se oferece aos operários da indústria. E, assim, conquistar os operários do campo da Prússia a leste do Elba não pode ser, para nós, senão uma questão de tempo e mesmo do mais curto. Mas, se tivermos os operários do campo a leste do Elba, logo soprará na Alemanha toda um vento diferente. A efectiva semi-servidão [Leibeigenschaft] dos operários do campo a leste do Elba é a base principal da dominação dos Junker na Prússia e por isso da hegemonia [Oberherrschaft] especificamente prussiana na Alemanha. São os Junker a leste do Elba — cada vez mais a cair no endividamento, no empobrecimento, no parasitismo à custa do Estado e de privados, e que, por isso mesmo, se agarram com tanto mais força à sua dominação — que criaram e mantêm o carácter especificamente prussiano da burocracia assim como do corpo de oficiais do exército; foi a altivez, a tacanhez e a arrogância [desses Junker] que, no país [Inland], tornou tão odiado o império alemão da nação prussiana[N291] — apesar de toda a compreensão [Einsicht] da sua momentânea inevitabilidade como a única forma actualmente alcançável de unidade nacional — e, no estrangeiro, apesar de todas as brilhantes vitórias, o tornou tão pouco respeitado. O poder destes Junker repousa em que, no território fechado das sete províncias da velha Prússia — portanto, algo como um terço de todo o território do império — eles dispõem da posse fundiária, que lá traz consigo o poder social e político; e não [dispõem] apenas da posse fundiária, mas também, por intermédio das fábricas de açúcar de beterraba e das destilarias de aguardente, das indústrias mais significativas desse território. Nem os grandes possuidores fundiários do resto da Alemanha nem os grandes industriais estão numa situação favorável semelhante; nem estes nem aqueles dispõem de um reino fechado. Uns e outros estão dispersos por vastos espaços e em concorrência, tanto entre si como com outros elementos sociais que os rodeiam, pela predominância [Vormacht] económica e política. Mas esta posição de poder [Machtstellung] dos Junker prussianos perde cada vez mais o seu suporte [Unterlage] económico. O endividamento e o empobrecimento estendem-se também aí imparavelmente entre eles, apesar de toda a ajuda do Estado (e, desde Frederido II, esta [ajuda] consta de cada orçamento em regra dos Junker): só a semi-servidão efectiva, sancionada por lei e pelo hábito, e a exploração sem limites dos operários do campo por ela possibilitada ainda mantêm ao de cima da água a comunidade dos Junker [Junkerschaft] que se está a afundar. Lance-se a semente da social-democracia entre esses operários, dê-se-lhes coragem e coesão para perseverarem nos seus direitos, e acabar-se-á com o esplendor [Herrlichkeit] dos Junker. O grande poder reaccionário — que para a Alemanha representa o mesmo elemento bárbaro, conquistador, que o tsarismo russo para a Europa inteira — despejar-se-á como uma bexiga furada. Tornem-se os «regimentos de elite» do exército prussiano so-ciais-democratas, e com isso se completará um deslocamento do poder que traz no seu seio um inteiro revolucionamento. Mas, para isso, ganhar os proletários do campo a leste do Elba é de longe de maior importância do que [ganhar] os pequenos camponeses oeste-alemães ou mesmo os médios camponeses do Sul da Alemanha. Aqui, na Prússia a leste do Elba, reside o nosso campo de batalha decisivo e, por isso, governo e comunidade dos Junker farão apelo a tudo para nos fechar aqui o acesso. E se — como nos ameaçam — houverem de vir novas medidas violentas para impedir o alargamento do nosso Partido, isso acontecerá, antes do mais, para proteger o proletariado do campo a leste do Elba da nossa propaganda. Para nós tanto nos faz. Apesar disso, conquistá-lo-emos.
Assinado: Friedrich Engels.
Notas de rodapé:
(1*) Wird «gelegt». Bauernlegen [é «expulso». Expulsão de camponeses] — termo técnico da expulsão, expropriação, dos camponeses na história da Alemanha (Nota de Lenine à sua tradução do começo da obra de Engels.) (retornar ao texto)
(2*) Em francês no texto. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(3*) Tratou-se do X Congresso do Partido Operário Francês, que se realizou 24 a 28 de Setembro. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(4*) Em francês no texto. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(5*) Em francês no texto: Código Civil 88. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(6*) Na sua tradução para alemão desta passagem Engels transcreve entre parêntesis em francês a frase: (est fatalement appelé à disparaítre). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(7*) Na sua tradução para alemão Engels transcreve entre parêntesis o termo francês: (metayers). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(8*) Engels traduziu as passagens citadas directamente do francês. Por isso estas citações não coincidem literalmente com a tradução alemã do programa publicada em Der Sozialdemokrat [O Social-Democrata], suplemento n.° 38, de 18 de Outubro de 1894. Na presente edição traduzimos a partir do texto francês publicado em K. Marx-F. Engels, Oeuvres choisies en trois volumes, Editions du Progrès, t. III, Moscou, 1976, pp. 483-484. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(9*) Trata-se daquilo a que, em Inglaterra, significativamente se chamava sweating-system, e que Marx, em Das Kapital (cf. MEW, Bd. 23, S. 577), também traduz por Ausschweissungssystem: o produtor, pago em geral à peça ou por empreitada, era explorado — feito «suar» — não apenas pelo capitalista, mas também pelo intermediário, pelo «empreiteiro», que sublocava o trabalho (subletting of labour, sublocação de trabalho). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(10*) Reproduzimos na nossa tradução a expressão francesa que Engels referia acima. A tradução alemã que ele próprio dá neste passoa significaria mais literalmente em português: «está irremediavelmente votada à decadência». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(11*) Na sua tradução para alemão Engels transcreve entre parêntesis o termo francês: (metayers). (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(12*) Traduzimos do texto francês do programa. Traduzindo a versão alemã de Engels, seria antes: «pela exploração que sobre eles próprios é cometida». (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(13*) Em francês no texto. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
(14*) Propriedade cujo nome provém de uma antiga medida alemã de superfície, variável de região para região, entre 7 e 15 hectares. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N289] O trabalho Die Bauernfrage in Frankreich und Deutschland (A Questão Camponesa em França e na Alemanha) é um importantíssimo documento do marxismo sobre a questão agrária. O motivo directo que levou Engels a escrever este trabalho foi a tentativa de Vollmar e de outros oportunistas de se aproveitarem da discussão do projecto de programa agrário no Congresso de Frankfurt (1894) do Partido Sociai-Democrata da Alemanha para impor as teorias antimarxistas da integração gradual dos elementos burgueses rurais no socialismo, etc. Engels interveio sobre este problema na imprensa também com o objectivo de corrigir os erros dos socialistas franceses, que se tinham afastado do marxismo e tinham feito concessões ao oportunismo no seu programa agrário aprovado no congresso de Marselha em 1892 e completado no congresso de Nantes de 1894. (retornar ao texto)
[N290] Der Sozialdemokrat (O Social-Democrata): semanário do Partido Social-Democrata da Alemanha, publicou-se em Berlim em 1894-1895.
O relatório de Lafargue A Propriedade Camponesa e o Desenvolvimento Econômico, a que Engels se refere, foi publicado no suplemento do jornal de 18 de Outubro de 1894. (retornar ao texto)
[N291] Paráfrase do nome do Sacro Império Romano-Germânico (ver nota 186), sublinhando que a unificação da Alemanha se verificou sob a hegemonia da Prússia e era acompanhada da prussificação das terras alemãs. [Nota 186 = Referência ao chamado Sacro Império Romano-Germânico, império medieval, fundado em 962, que abrangia o território da Alemanha e, em parte, da Itália. Mais tarde passaram também a fazer parte do império algumas terras de França, Boémia, Áustria, Países Baixos, Suíça e outros países. O império não foi um Estado centralizado e representava uma união pouco sólida de principados feudais e cidades livres, que reconheciam o poder supremo do imperador. O império deixou de existir em 1806, quando, em consequência da derrota na guerra contra a França, os Habsburgos se viram obrigados a renunciar ao título de imperadores do Sacro Império Romano.] (retornar ao texto)
Inclusão | 10/10/2013 |