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O Capital
Crítica da Economia Política
Karl Marx

Livro Primeiro: O processo de produção do capital

Primeira Seção: Mercadoria e dinheiro

Primeiro capítulo. A mercadoria


2. Carácter duplo do trabalho exposto nas mercadorias


capa

Originariamente, a mercadoria surgiu-nos como algo biface: valor de uso e valor de troca. Verificou-se mais tarde que também o trabalho, na medida em que está expresso no valor, já não possuía as mesmas características que lhe cabiam como gerador de valores de uso. Esta natureza biface do trabalho contido na mercadoria foi em primeiro lugar apontada criticamente por mim(1*). Como este ponto é o fulcro em volta do qual gira a compreensão da economia política, temos agora de o esclarecer mais de perto.

Tomemos duas mercadorias, p. ex., um casaco e 10 côvados de tecido de linho. Digamos que a primeira tem o dobro do valor da segunda, de tal modo que, se 10 côvados de tecido de linho = V, o casaco = 2 V.

O casaco é um valor de uso que satisfaz uma necessidade particular. Para o produzir é necessário um determinado tipo de actividade produtiva. Ela é determinada pela sua finalidade, modo de operação, objecto, meios e resultado. Ao trabalho cuja utilidade assim se manifesta [darstellt] no valor de uso do seu produto ou que se manifesta no facto de o seu produto ser um valor de uso chamamos, resumidamente, trabalho útil. Deste ponto de vista, ele é sempre considerado em relação com o seu efeito útil.

Do mesmo modo que o casaco e o tecido de linho são valores de uso qualitativamente diferentes, assim também são qualitativamente diferentes os trabalhos mediadores da sua existência — costura e tecelagem. Se essas coisas não fossem valores de uso qualitativamente diferentes e, portanto, produtos de trabalhos úteis qualitativamente diferentes, elas de forma nenhuma poderiam estar frente a frente como mercadorias. Um casaco não se troca por um casaco, um valor de uso não se troca por esse mesmo valor de uso.

No conjunto dos diversos valores de uso ou corpos das mercadorias aparece um conjunto de trabalhos úteis igualmente variados, diferentes em género, espécie, família, subespécie, variedade — uma divisão social do trabalho. Ela é condição de existência da produção de mercadorias, embora, inversamente, a produção de mercadorias não seja condição de existência de divisão social do trabalho. Na comuna da Índia antiga, o trabalho está dividido socialmente sem que os produtos se tornem mercadorias. Ou, dando um exemplo mais próximo, em cada fábrica o trabalho está sistematicamente dividido, mas essa divisão não é mediada pelo facto de os operários trocarem os seus produtos individuais. Só produtos de trabalhos privados autónomos e independentes uns dos outros estão frente a frente como mercadorias.

Viu-se, portanto, que no valor de uso de cada mercadoria está metida uma determinada actividade produtiva conforme a um fim, ou trabalho útil. Valores de uso não podem estar frente a frente como mercadorias se neles não estiverem metidos trabalhos úteis qualitativamente diferentes. Numa sociedade cujos produtos tomam em geral a forma da mercadoria, i. é, numa sociedade de produtores de mercadorias, esta diferença qualitativa entre trabalhos úteis — que se exercem independentemente uns dos outros, como negócios privados de produtores autónomos — desenvolve-se num sistema de múltiplos membros, numa divisão social do trabalho.

De resto, para o casaco é indiferente ser vestido pelo alfaiate ou pelo cliente do alfaiate. Ele actua, em ambos os casos, como valor de uso. Também a relação entre o casaco e o trabalho que o produz não é, em si, minimamente alterada pelo facto da costura se tornar uma profissão particular, um membro autónomo da divisão social do trabalho. Aí onde a necessidade de vestuário a isso o obrigou, o homem fez roupas ao longo de milénios antes de qualquer homem se tornar alfaiate. Mas a existência do casaco, do tecido de linho, de qualquer elemento da riqueza material não proporcionada pela Natureza, teve sempre que ser mediada por uma especial actividade conforme a um fim, que adequa matérias naturais particulares a necessidades humanas particulares. Como formador de valores de uso, como trabalho útil, o trabalho é, assim, uma condição de existência do homem, condição independente de todas as formas de sociedade, uma eterna necessidade natural para mediar a troca material entre o homem e a Natureza e, portanto, a vida humana.

Os valores de uso casaco, tecido de linho, etc, em suma, os corpos das mercadorias, são combinações de dois elementos — matéria natural e trabalho. Se retirarmos a soma total dos diferentes trabalhos úteis que estão metidos no casaco, no tecido de linho, etc, resta sempre um substrato material, que existe pela Natureza, sem a intervenção do homem. Na sua produção o homem apenas pode actuar como a própria Natureza, i. é, apenas pode alterar as formas das matérias(2*). Mais ainda. Neste trabalho da própria enformação [Formung], ele é constantemente apoiado por forças naturais. O trabalho não é, portanto, a única fonte dos valores de uso por ele produzidos, da riqueza material. O trabalho é o pai dela, como diz William Petty, e a terra é a mãe[N26].

Passemos agora da mercadoria enquanto objecto de uso às mercadorias-valor [Waren-Wert].

De acordo com a nossa suposição, o casaco tem o dobro do valor do tecido de linho. Porém, esta é apenas uma diferença quantitativa, que de momento ainda não nos interessa. Recordamos, por isso, que, se o valor de um casaco é o dobro do de 10 côvados de tecido de linho, então 20 côvados de tecido de linho têm a mesma magnitude de valor que um casaco. Como valores, o casaco e o tecido de linho são coisas de igual substância, expressões objectivas de trabalho de igual espécie. Mas, costura e tecelagem são trabalhos qualitativamente diferentes. Há, no entanto, situações sociais em que a mesma pessoa faz alternadamente costura e tecelagem e, assim, estes dois modos diferentes de trabalho são apenas modificações do trabalho do mesmo indivíduo e não ainda funções fixas particulares de indivíduos diferentes, tal como o casaco que o nosso alfaiate faz hoje e as calças que faz amanhã apenas pressupõem variações do mesmo trabalho individual. A simples observação ensina além disso que, na nossa sociedade capitalista, consoante a mudança de direcção da procura de trabalho, uma dada porção de trabalho humano é alternadamente fornecida sob a forma de costura ou sob a forma de tecelagem. Pode ser que esta mudança de forma do trabalho não ocorra sem fricção, mas tem de dar-se. Se abstrairmos da determinidade da actividade produtiva e, portanto, do carácter útil do trabalho, o que nele permanece é o facto de ser dispêndio de força de trabalho humana. Costura e tecelagem, embora actividades produtivas qualitativamente diferentes, são ambas dispêndio produtivo de cérebro, músculos, nervos e mãos humanos, etc, e, neste sentido, são ambas trabalho humano. São apenas duas formas diferentes de despender força de trabalho humana. Sem dúvida que a própria força de trabalho humana para ser despendida desta ou daquela forma tem de estar mais ou menos desenvolvida. Mas o valor da mercadoria manifesta pura e simplesmente trabalho humano, dispêndio de trabalho humano em geral. E assim como na sociedade burguesa um general ou um banqueiro desempenham um grande papel enquanto pelo contrário o homem puro e simples desempenha um papel mesquinho(4*), o mesmo se passa aqui com o trabalho humano. Ele é dispêndio de força de trabalho simples que, em média, todo o homem comum, sem particular desenvolvimento, possui no seu organismo físico. O próprio trabalho médio simples muda, por certo, o seu carácter em diferentes países e épocas da civilização [Kulturepochen] mas dá-se [sempre] numa sociedade existente. O trabalho mais complexo conta apenas como trabalho simples potenciado, ou antes, multiplicado, de tal forma que um menor quantum de trabalho complexo é igual a um quantum maior de trabalho simples. A experiência mostra que esta redução se processa constantemente. Pode uma mercadoria ser produto de trabalho mais complexo, mas o seu valor torna-a igual ao produto de trabalho simples e, assim, ela própria apenas representa um determinado quantum de trabalho simples(5*). As diferentes proporções em que diferentes espécies de trabalho se reduzem a trabalho simples como sua unidade de medida são fixadas por meio de um processo social nas costas dos produtores e parecem-lhes, portanto, dadas pela tradição. Para simplificar, no que se segue cada espécie de força de trabalho contará para nós imediatamente como força de trabalho simples, com o que apenas se poupa o incómodo da redução.

Portanto, tal como nos valores casaco e tecido de linho se abstraiu da diferença entre os seus valores de uso, assim também nos trabalhos que se manifestam nesses valores se abstrai da diferença entre as suas formas úteis, costura e tecelagem. Tal como os valores de uso casaco e tecido de linho são combinações de actividades produtivas com pano e fio, com um fim determinado, e os valores casaco e tecido de linho, em contrapartida, são meras gelatinas de trabalho de igual espécie, assim também os trabalhos contidos nesses valores não contam pelo seu comportamento produtivo em relação ao pano e ao fio, mas apenas como dispêndios de força de trabalho humana. Costura e tecelagem são elementos de formação dos valores de uso casaco e tecido de linho precisamente pelas suas qualidades diversas; só são substância do valor casaco e do valor tecido de linho na medida em que se abstrair da sua qualidade particular e possuírem ambas qualidade igual, a qualidade de trabalho humano.

Casaco e tecido de linho, porém, não são apenas valores em geral, mas valores de determinada magnitude, e, segundo a nossa suposição, o casaco tem o dobro do valor de 10 côvados de tecido de linho. De onde vem esta diversidade das suas magnitudes de valor? Do facto de o tecido de linho conter metade do trabalho do casaco, de tal modo que, para a produção do último, a força de trabalho tem de ser despendida durante o dobro do tempo necessário para a produção do primeiro.

Portanto, se, no que se refere ao valor de uso, o trabalho contido na mercadoria apenas conta qualitativamente, no que se refere à magnitude de valor ele apenas conta quantitativamente, depois de já estar reduzido a trabalho humano sem outra qualidade. No primeiro caso trata-se do como e do o quê, no segundo caso do seu quanto, da sua duração no tempo. Como a magnitude do valor de uma mercadoria apenas manifesta o quantum de trabalho nela contido, as mercadorias, em certa proporção, têm de ser sempre valores iguais.

Se a força produtiva, digamos, de todos os trabalhos úteis requeridos para a produção de um casaco permanecer inalterada, a magnitude de valor dos casacos aumenta com a sua própria quantidade. Se um casaco representa x dias de trabalho, 2 casacos representam 2x, etc. Admitamos, porém, que o trabalho necessário para a produção de um casaco aumentava para o dobro ou caía para metade. No primeiro caso, um casaco tem tanto valor como anteriormente dois casacos; no segundo caso, dois casacos têm apenas tanto valor como anteriormente um, embora, em ambos os casos, um casaco continue a prestar os mesmo serviços que antes e o trabalho útil nele contido continue a ser, tal como antes, da mesma boa qualidade. Mas modificou-se o quantum de trabalho despendido na sua produção.

Um maior quantum de valor de uso constitui, em si, maior riqueza material, sendo dois casacos mais riqueza do que um. Com dois casacos pode-se vestir dois homens, com um casaco apenas um homem, etc. No entanto, à massa crescente de riqueza material pode corresponder uma queda simultânea da sua magnitude de valor. Este movimento opositivo resulta do carácter biface do trabalho. A força produtiva é sempre, naturalmente, força produtiva de trabalho útil, concreto e determina apenas de facto o grau de eficácia de uma actividade produtiva conforme a um fim em dado espaço de tempo. O trabalho útil torna-se, por isso, uma fonte de produtos mais rica ou mais pobre em relação directa com a subida ou a queda da sua força produtiva. Em contrapartida, uma mudança da força produtiva em si e por si não atinge em nada o trabalho exposto no valor. Como a força produtiva pertence à forma útil concreta do trabalho, ela deixa naturalmente de poder afectar o trabalho a partir do momento em que se abstraia da forma útil concreta deste. O mesmo trabalho produz, assim, nos mesmos espaços de tempo, sempre a mesma magnitude de valor, mude como mudar a força produtiva. Mas, num mesmo espaço de tempo, ele fornece diferentes quanta de valores de uso: mais, quando a força produtiva aumenta; menos, quando ela diminui. A mesma mudança da força produtiva que aumenta a fecundidade do trabalho — e, portanto, a massa de valores de uso por ele fornecidos — diminui assim a magnitude de valor dessa massa total aumentada se essa mudança encurtar a soma do tempo de trabalho necessário à sua produção. E o mesmo se inversamente.

Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho humana no sentido fisiológico, e nesta qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano em abstracto ele forma o valor das mercadorias. Todo o trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho humana de uma forma particular e com um fim determinado, e nesta qualidade de trabalho útil concreto produz valores de uso(6*).


Notas de rodapé:

(1*) L. c, pp. 12, 13 passim. (retornar ao texto)

(2*) «Todos os fenómenos do universo, sejam eles produzidos pela mão do homem ou pelas leis universais da física, não nos dão ideia de efectiva criação, mas unicamente de uma modificação da matéria. Juntar e separar são os únicos elementos que o engenho humano encontra ao analisar a ideia da reprodução; e tanto é reprodução de valor» (valor de uso, embora aqui o próprio Verri, na sua polémica com os fisiocratas, não saiba ao certo de que espécie de valor está a falar) «e de riqueza se a terra, o ar e água nos campos se transformarem em cereal, como se, com a mão do homem, a baba de um insecto se transformar em seda ou se alguns pedacinhos de metal se organizarem de modo a formar um relógio de repetição.» (Pietro Verri, Meditazioni sulla economia politica — primeira impressão em 1771(3*) — na edição dos economistas italianos de Custodi, Parte Moderna, t. XV, pp. 21, 22.) (retornar ao texto)

(3*) Nas edições italiana, francesa e inglesa: 1773. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(4*) Cf. Hegel, Philosophie des Rechts, Berlin, 1840, p. 250, § 190. (retornar ao texto)

(5*) O leitor tem de reparar que não nos referimos aqui ao salário ou valor que o operário recebe, digamos, por um dia de trabalho, mas ao valor da mercadoria em que se objectiva o seu dia de trabalho. Neste estádio da nossa exposição, a categoria de salário não existe ainda de forma alguma. (retornar ao texto)

(6*) Nota à 2.a ed. Para provar «que só o trabalho [...] é a medida unicamente suficiente e real pela qual em todos os tempos o valor de todas as mercadorias pode ser estimado e comparado», diz A. Smith: «Iguais quantidades de trabalho têm de ter em todos os tempos e em todos os lugares igual valor para o trabalhador. No seu estado normal de saúde, força e actividade e com o grau médio de destreza que possa possuir, ele tem sempre de desistir da mesma porção do seu descanso, da sua liberdade e da sua felicidade.» (Wealth of Nations, 1. I, cap. V, [pp. 104-105].) Por um lado, A. Smith confunde aqui (mas não em toda a parte) a determinação do valor pelo quantum de trabalho despendido na produção da mercadoria com a determinação dos valores das mercadorias pelo valor do trabalho, e procura, por isso, demonstrar que iguais quantidades de trabalho têm sempre o mesmo valor. Por outro lado, ele pressente que o trabalho, na medida em que se manifesta no valor das mercadorias, apenas conta como dispêndio de força de trabalho, mas mais uma vez apreende esse dispêndio meramente como sacrifício de descanso, liberdade e felicidade, e não como exercício normal da vida. Sem dúvida que ele tem diante dos olhos o assalariado moderno. — Muito mais acertadamente, o anónimo predecessor de A. Smith citado na nota 9 diz: «Um homem empregou-se uma semana para arranjar os seus meios de vida... e aquele que lhe der outros em troca não pode fazer melhor estimativa de qual é o equivalente adequado do que calculando o que é que lhe custa exactamente o mesmo labour(10*) e tempo: o que, com efeito, não é mais do que trocar o labour de um homem numa coisa durante um certo tempo pelo labour de outro homem noutra coisa durante o mesmo tempo.» (Some Thoughts on the Interest of Money in General etc., p. 39.) — {Nota à 4.ª edição: A língua inglesa tem a vantagem de ter duas palavras diferentes para estes dois diferentes aspectos do trabalho. O trabalho que cria valores de uso e está determinado qualitativamente chama-se work, em oposição a labour; o trabalho que cria valor e apenas se mede quantitativamente chama-se labour, em oposição a work. Ver nota à tradução ingl., p. 14. — F. E.} (retornar ao texto)

(7*) Nota 9: Nota à 2.ª ed.: «The value of them (the necessaries of life), when they are exchanged the one for another, is regulated by the quantity of labour necessarily required, and commonly taken in producing them.»(8*) «O valor dos objectos de uso, logo que sejam trocados uns pelos outros, é determinado pelo quantum de trabalho necessariamente requerido e habitualmente aplicado na sua produção.» (Some Thoughts on the Interest of Money in General, and Particularly in the Public Funds, etc, London, pp. 36, 37(9*).) Este curioso escrito anónimo do século passado não traz data. Depreende-se, no entanto, do seu conteúdo que apareceu no reinado de Jorge II, cerca de 1739 ou 1740. (retornar ao texto)

(8*) Em inglês no texto: «O valor deles (os meios de vida), quando são trocados um pelo outro, é regulado pela quantidade de trabalho necessariamente requerido e comummente exigido para os produzir.» (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(9*) Nas edições inglesa e francesa: p. 36. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

(10*) Em inglês no texto: trabalho. (Nota da edição portuguesa.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

[N26] [William Petty,] A Treatise of Taxes and Contributions, London, 1667, p. 47. (retornar ao texto)

Incluído 24/11/2011