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Primeira Edição: Escrito por volta de 16 de agosto de 1852. Publicado pela primeira vez no New York Daily Tribune, no 3552, de 4 de setembro de 1852
Fonte: Crítica Marxista, n.47, p.145-150, 2018
Tradução: Muniz Ferreira
HTML: Fernando Araújo.
Observação: Leia Apresentação de Muniz Ferreira a este texto.
Londres, 20 de agosto de 1852
Pouco antes de se encerrarem os mandatos da última legislatura da Câmara dos Comuns, ela resolveu criar quantas dificuldades fossem possíveis para os seus sucessores, em suas chegadas ao Parlamento. Votou uma lei draconiana contra o suborno, a corrupção, a intimidação e outras práticas eleitorais astutas em geral.
Uma longa lista de perguntas está sendo elaborada, a qual, se aprovada, pode colocar os requerentes ou os membros com assento no Parlamento diante das mais severas e minuciosas indagações que se possa imaginar. Eles poderão ser obrigados a declarar, sob juramento, quem eram seus apoiadores e que tipos de comunicação mantiveram com eles. Ou ser interrogados e compelidos a declarar não apenas o que sabem, mas também o que “acreditam, supõem e suspeitam” a respeito do dinheiro despendido por eles próprios ou por quaisquer outras pessoas atuando - de forma autorizada ou não - em nome deles. Em poucas palavras, nenhum membro passará pela estranha provação sem risco de perjúrio se tiver a menor ideia de que é possível ou provável que alguém tenha ultrapassado em seu nome os limites da lei.
Agora, mesmo supondo que essa lei dê por certo que os novos legisladores usarão a mesma liberdade que o clero — que só acredita em alguns dos 39 artigos,(1) mas é constrangido a assinar todos eles -, haverá cláusulas suficientes para tomar o novo Parlamento a assembleia mais virgem que já fez discursos e aprovou leis para os três reinos. E em justaposição com a eleição geral que se seguirá imediatamente, essa lei garantirá aos Tories a glória de que, sob a sua administração, a mais pura de todas as eleições terá sido proclamada em teoria e o maior montante de corrupção eleitoral, posto em prática.
Uma nova eleição transcorreu apresentando um cenário de suborno, corrupção, violência, embriaguez e assassinato incomparável desde os tempos em que o antigo monopólio Tory reinava supremo. Nós efetivamente ouvimos falar de soldados, com armas carregadas e baionetas fixas, tomando eleitores liberais pela força, arrastando-os sob os olhares dos senhores de terras para votar contra suas consciências, atirando deliberadamente contra as pessoas que se atreveram a simpatizar com os eleitores detidos e assassinando de modo indiscriminado uma população que nem sequer opôs resistência! [Alusão aos acontecimentos em Six Mile Bridge, Limerick, County Clare.]
Pode-se dizer: mas isso foi na Irlanda! Sim, na Inglaterra, no entanto, usaram a polícia para quebrar as bancas daqueles que se opunham a eles; enviaram suas gangues organizadas de arruaceiros noturnos a perambular pelas ruas visando interceptar e intimidar os eleitores liberais, abriram as latrinas da embriaguez, despejaram o ouro da corrupção em locais como Derby e, em praticamente todos os lugares onde houve disputa, eles exerceram intimidação sistemática.(2)
Até então, era o People S Paper de Ernest Jones. Agora, após a manifestação desse semanário cartista, ouçam o que diz o jornal semanal do partido opositor, o mais sóbrio, o mais racional, o mais moderado órgão da burguesia industrial, The London Economist:
Acreditamos ser possível afirmar que, nesta eleição geral, ouve mais coerção, mais corrupção, mais intimidação, mais fanatismo e mais dissolução do que em todas as ocasiões anteriores... Tem-se registrado que, nessa eleição, o suborno foi empregado muito mais extensivamente do que nos muitos anos anteriores... É provavelmente impossível superestimar o nível de intimidação e de toda a sorte de influência indevida praticados nessa última eleição... E quando calculamos o total dessas coisas - a embriaguez brutal, as intrigas baixas, a corrupção indiscriminada, a integridade dos candidatos distorcida e manchada, a ruína dos eleitores honestos, a fraqueza dos que foram subornados e desonrados, as mentiras, os estratagemas, as calúnias disseminadas por toda parte, em plena luz do dia, de maneira desavergonhada e sem disfarces - a profanação das palavras sagradas, a poluição dos nomes nobres -, ficamos horrorizados com o holocausto de vítimas, de corpos destroçados e de almas perdidas sobre cuja pira funerária um novo Parlamento será erigido.(3)
Os meios de intimidação e corrupção são os mesmos de sempre: a influência direta do governo. Assim, com um cabo eleitoral preso em Derby, em flagrante delito de suborno, foi encontrada uma carta do secretário da Guerra, o major Beresford, na qual o dito major abria uma linha de crédito junto a uma firma comercial para a obtenção de fundos de campanha. The Poole Herald publicou uma circular do almirantado para os oficiais da reserva, assinado pelo comandante em chefe de uma guarnição naval, requisitando seus votos para os candidatos ministeriais. A força das armas também foi empregada diretamente em lugares como Cork, Belfast, Limerick (onde oito pessoas foram mortas). Agricultores foram ameaçados de despejo pelos senhorios de suas terras caso não votassem com eles. Aqui, os administradores das propriedades rurais de Lord Derby ofereceram seu exemplo aos demais. Ameaças de negociação exclusiva feitas a comerciantes, de demissão feita a trabalhadores, de intoxicação etc. etc. A esses meios profanos de corrupção, os Tories acrescentaram meios espirituais. Uma proclamação real contra as procissões da Igreja Católica foi emitida com o objetivo de inflamar a intolerância e o ódio religioso; o grito de não ao papado foi erguido em todo lugar. Um dos resultados dessa proclamação foram os distúrbios de Stockport. Os padres irlandeses, naturalmente, retaliaram com armas similares.
A eleição mal terminou e já um conselheiro da rainha recebeu instruções para invalidar o retorno ao Parlamento de 25 representantes sob a acusação de suborno e intimidação. Tais petições contra membros eleitos foram assinadas e as despesas (custas) do processo obtidas em Derby, Cockermouth, Barnstaple, Harwich, Canterbury, Yarmouth, Wakefield, Boston, Huddersfield, Windsor e em muitos outros lugares. Os principais cenários de suborno, corrupção e intimidações foram, naturalmente, os municípios agrícolas e os distritos aristocráticos; para a conservação do maior número possível destes últimos, os Whigs empregaram toda a sua perspicácia no projeto de reforma de 1831. Os eleitorados das grandes cidades e das municipalidades manufatureiras densamente povoadas foram, por sua condição peculiar, lugares bastante desfavoráveis para esse tipo de manobras.
Os dias de eleição geral na Grã-Bretanha são tradicionalmente a bacanal da devassidão bêbada, de oferecimento de vantagens para a compra das consciências, as épocas de maior abundância para as colheitas dos publicanos. Como disse um jornal britânico, “essas recorrentes saturnálias nunca deixam de legar vestígios duradouros de sua presença pestilenta”.(4) Tudo muito natural. Fala-se aqui em saturnália no sentido que os antigos romanos atribuíam a tal celebração. Nela, os senhores se tornavam serviçais, enquanto os serviçais se tornavam senhores. Se os serviçais se tornavam senhores por um dia, nesse dia a brutalidade reinava de forma suprema. Os senhores eram os grandes dignitários das classes dominantes, ou seções de classes, e os serviçais formavam a massa dessas mesmas classes, os eleitores privilegiados cercados pela massa de não eleitores, daqueles milhares que não tinham outra vocação que não fosse a de ser meros parasitas (hangers-on M.F.), e cujo apoio, verbal ou manual, sempre se mostrava desejável, ainda que apenas para exercer um feito teatral.
Se acompanharmos a história das eleições britânicas ao longo do último século ou mais, nos sentiremos tentados a indagar não a razão de serem os parlamentares britânicos tão ruins, mas, pelo contrário, como conseguiram ser tão bons quanto têm sido e representar como têm representado, ainda que em uma fraca refração, o movimento real da sociedade britânica. Da mesma forma, os opositores do sistema representativo devem se sentir surpresos ao descobrir que os órgãos legislativos em que a maioria abstrata, o acidente do mero número é decisivo, ainda assim decidem e resolvem de acordo com as necessidades da situação - pelo menos durante o período de sua plena vitalidade. Será impossível, mesmo com o máximo esforço de deduções lógicas, derivar das relações de simples números a necessidade de um voto de acordo com o estado real das coisas; mas, a partir de um determinado estado de coisas, a necessidade de certas relações entre membros sempre seguirá o seu próprio rumo. As práticas tradicionais de suborno nas eleições britânicas, a um só tempo populares e brutais, podem ser consideradas algo além do que a forma por meio da qual a força relativa dos partidos em contenda consegue se manifestar? Seus respectivos meios de influência e de dominação, que em outras ocasiões são usados de maneira normal, recebem aqui autorização para ser utilizados de maneira anormal e mais ou menos burlesca. Porém, preservava-se a premissa segundo a qual os candidatos dos partidos em disputa representavam os interesses da massa dos eleitores, assim como a de que aqueles que tinham o privilégio de serem eleitores representavam os interesses da massa de não votantes, ou melhor, a de que essa massa destituída de voto não possuía nenhuma espécie de interesse próprio. As sacerdotisas de Delfos precisavam ser intoxicadas pelos vapores para poder proferir seus oráculos; a população britânica necessitava se intoxicar com gim e cerveja preta tipo porter para poder encontrar seus caçadores de oráculos, os legisladores. E onde esses caçadores de oráculos deveriam ser procurados era uma questão de ocasião.
Essa posição relativa de classes e partidos conheceu uma modificação radical quando as classes médias comercial e industrial, a burguesia, assumiu seu lugar como um partido oficial ao lado dos Whigs e dos Tories, especialmente após a aprovação do projeto de reforma de 1831. Esses burgueses não se entusiasmavam nem um pouco com custosas manobras eleitorais ou com gastos artificiais de campanha. Consideravam menos dispendioso competir com a aristocracia territorial pela moralidade geral do que por meio de recursos pecuniários pessoais. Por outro lado, eles estavam conscientes de representar o interesse universalmente predominante da sociedade moderna. Encontravam-se, então, em condições de exigir que os eleitores fossem comandados pelos interesses nacionais comuns em vez de motivações pessoais e locais. No entanto, quanto mais recorriam a esse postulado, mais os eleitorados influenciados por essas últimas motivações - pelo fato de se situarem em lugares em que predominava a aristocracia territorial - se furtavam à influência das classes médias. Então, a burguesia se bateu pelo princípio da moralidade eleitoral e conquistou a aprovação de leis com tal finalidade, cada uma delas destinada a salvaguardar os processos eleitorais da influência local da aristocracia fundiária; de fato, a partir de 1831, o suborno adotou uma forma mais civilizada, mais encoberta, e as eleições adquiriram um aspecto bem mais sóbrio do que antes.
Quando por fim as massas da população deixaram de ser meras coadjuvantes representando um papel mais ou menos apaixonado na contenda entre os heróis oficiais, dividindo-os em grupos, tumultuando, entregando-se a orgias bacantes na criação de divindades parlamentares, como os Curetes cretenses quando do nascimento de Júpiter, e recebendo pagamento e tratamento por essa participação em sua glória - quando os Cartistas envolveram com massas ameaçadoras todo o círculo no interior do qual a eleição oficial deveria se realizar e observaram com o escrutínio da desconfiança tudo o que acontecia em seu curso -, então uma eleição como a de 1852 não poderia deixar de exigir indignação universal e provocar até mesmo o conservador Times a proferir, pela primeira vez, algumas palavras a favor do sufrágio geral, fazendo toda a massa do proletariado britânico gritar como uma só voz. Os inimigos da reforma concederam aos reformadores os melhores argumentos; é assim uma eleição sob o sistema de classes; é assim uma Câmara dos Comuns com esse sistema eleitoral.
Para se compreender a natureza do suborno, da corrupção e da intimidação praticados na última eleição é necessário atentar para um fato que operou em uma direção paralela.
Se nos remetermos às eleições gerais que ocorreram a partir de 1831, constataremos que, na mesma medida em que a pressão da maioria não votante do país foi aumentando, uma demanda foi sendo apresentada com maior ênfase por parte das classes médias: a extensão do número de circunscrições eleitorais. Já a classe operária se posicionava no sentido da eliminação de todo o tipo de privilégio eleitoral - nesse mesmo período, o número de eleitores que efetivamente votavam cresceu cada vez menos e as circunscrições eleitorais se contraíram cada vez mais. Esse fato nunca se mostrara tão impactante quanto na última eleição.
Consideremos Londres, por exemplo. Na City, de um eleitorado de 26.728, somente 10 mil votaram. Em Tower Hamlets, de 23.534 eleitores registrados apenas 12 mil votaram. Em Finsbury, de 20.025 eleitores, nem a metade votou. Em Liverpool, cenário de uma das disputas mais acirradas, só 13 mil foram às urnas, de 17.433 eleitores registrados.
Notas de rodapé:
(1) Os 39 artigos que enunciavam os artigos de fé compulsórios da Igreja da Inglaterra foram promulgados em 1571. (retornar ao texto)
(2) Ernest Jones, "The Reign of the Tories". People's Paper, n.15, 14 ago. 1852. (retornar ao texto)
(3)"The Cost of a New Parliament". The Economist, n.467, 7 ago. 1852. (retornar ao texto)
(4) "The Cost of a New Parliament". The Economist, n.467, 7 ago. 1852. (retornar ao texto)