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Primeira Edição: Neue Rheinische Zeitung Politisch-ökonomische Revue No. 4, April, 1850. Escrito em abril de 1850 em Paris, a seguinte resenha por Karl Marx (inédita em português) oferece uma implacável crítica do socialismo burguês e suas características reformas tributárias.
Fonte: LavraPalavra
Tradução: Mario Godoy e Gabriel Landi Fazzio
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Existem dois tipos distintos de socialismo, o “bom” socialismo e o “mal” socialismo.
O mal socialismo é o da “guerra do trabalho contra o capital”. Todo tipo de terror está à sua porta: igual repartição de terras, abolição dos laços familiares, pilhagens organizadas, etc.
O bom socialismo é a “harmonia entre trabalho e capital”. Ele leva consigo a abolição da ignorância, a eliminação das causas da pobreza, o estabelecimento do crédito, a multiplicação da propriedade, a reforma tributária, em uma palavra:
“é o sistema que mais aproxima-se à concepção humana do reino de Deus na Terra”. [p. 9]
Esse socialismo bom deve ser usado para suprimir o da má variedade.
“O socialismo é possuidor de uma alavanca; esta alavanca era o orçamento. Mas ele precisava de um ponto de apoio se fosse para virar o mundo de ponta-cabeça. Esse ponto de apoio foi providenciado pela Revolução de 24 de fevereiro: o sufrágio universal”. [p. 12]
A fonte do orçamento é a tributação. Logo, a repercussão do sufrágio universal no orçamento deve ser a repercussão daquele na tributação. É pela repercussão do sufrágio na tributação que o socialismo “bom” se concretiza.
“A França não pode pagar mais do que 1.2 bilhões de francos em impostos anualmente. Como vocês reduziriam as despesas a essa quantia:”
“Vocês escreveram em duas Cartas e uma Constituição, nos últimos trinta e cinco anos, que todo francês deve contribuir nas proporções de suas riquezas para a manutenção do estado. Nos últimos trinta e cinco anos, essa taxação proporcional mostrou-se um mito… Examinemos o sistema tributário francês” [págs. 14-15, 17].
I. Imposto sobre terras. O imposto sobre terras não recai sobre todos os proprietários de forma igualitária:
“Se a dois lotes vizinhos é dada a mesma avaliação ao serem registrados, os dois proprietários pagarão o mesmo imposto, sem nenhuma distinção entre os proprietários aparentes e reais” [pág. 22]
Isto é, entre o proprietário que está sendo onerado com hipotecas e outro que não está.
Ainda, o imposto sobre terra não guarda qualquer relação com os impostos que oneram outras formas de propriedade. Quando a Assembleia Nacional o introduziu em 1790, houve influência da escola fisiocrata, que concebia a terra como única fonte de receita líquida e, portanto, a que mais seria taxada. Logo, o imposto sobre terra é baseado num erro econômico. Se a tributação fosse recolhida de maneira proporcional, o proprietário seria onerado em 20% de sua renda enquanto, agora, paga 53%.
Finalmente, de acordo com seu propósito original, o imposto sobre terras deveria apenas ser recolhido do proprietário, e nunca do arrendatário da terra agrícola. De acordo com M. Girardin, muito pelo contrário, o imposto é sempre recolhido do arrendatário terra agrícola.
Nisso M. Girardin equivoca-se em termos econômicos. Ou o arrendatário rural é de fato um arrendatário rural, e nesse caso não é sobre ele mas sobre o proprietário ou sobre o consumidor que o imposto recai; ou então, apesar da aparência de arrendamento, ele está simplesmente sob o emprego do proprietário, como é na Irlanda e frequentemente na França, e, neste caso, os tributos impostos sobre o proprietário recairão sempre sobre nele, seja lá qual for sua denominação.
II. Imposto sobre pessoas e bens móveis. Este imposto, também decretado pela Assembleia Nacional em 1790, tinha o propósito de recair sobre ativos líquidos. O montante pago no aluguel de moradia foi tomado para indicar o valor dos ativos. Este imposto na realidade recaia sobre os proprietários de terras, os camponeses e os industriais, enquanto representava um fardo insignificante ou nulo para os rentistas. É, portanto, o completo oposto do que os legisladores pretendiam. Além do mais, um milionário pode viver num sótão com algumas cadeiras velhas, etc.
III. Imposto sobre portas e janelas. Um atentado à saúde da população. Um mecanismo tributário contrário ao ar puro e à luz do dia,
“Quase metade das habitações na França tem ou apenas uma porta e janela alguma, ou no máximo uma porta e uma janela”. [p. 38]
Este imposto foi adotado no 24 Vendemiaire do ano VII (14 de outubro, 1799) por necessidade urgente de dinheiro como uma medida temporária, extraordinária, mas em princípio rejeitada.
IV. Imposto sobre licença. Um imposto não sobre o lucro, mas sobre o exercício industrial. Uma penalidade ao trabalho. Elaborada para recair sobre o fabricante, incide majoritariamente sobre o consumidor. Em todo caso, quando este imposto foi adotado em 1791, também tratou-se da questão de satisfazer uma necessidade momentânea de dinheiro.
V. Impostos de registro e selo. O droit d’enregistrement (direito de registro) criado pelo Rei Francisco I, não tinha, originalmente, propósito tributário. Em 1790 o registro obrigatório de contratos relativos a propriedade foi ampliada, e a taxa aumentou. Este imposto opera de tal forma que é mais oneroso comprar e vender bens do que doá-los ou herdá-los. Imposto sobre selos é um instrumento puramente fiscal aplicado de maneira equânime a lucros desiguais.
VI. Imposto sobre bebidas. A quintessência da injustiça, um obstáculo vexatório à produção, o mais custoso de coletar. (Vide a Edição III: 1848-1849, Consequências de 13 de junho.).
VII. Impostos aduaneiros. Um caótico acúmulo histórico de taxas contraditórias e sem sentido, onerosas à indústria. Por exemplo, algodão bruto é taxado a 22 francos e 50 centavos por 100 quilos na França. Passons outre. [Vamos em frente]
VIII. Octroi. Carece inclusive do álibi da proteção da indústria nacional. Aduanas no interior do país. Originalmente um tributo local e mísero, mas agora um fardo pressionando principalmente sobre as classes mais pobres, que resulta na adulteração de seus alimentos. Põe tantos obstáculos à indústria nacional quanto existem cidades.
Eis o quanto Girardin tem a dizer sobre impostos individuais. O leitor já deve ter percebido que a crítica dele é tão rasa quanto correta. Ela é redutível a três argumentos:
1. que nenhuma tributação recai sobre a classe almejada por aqueles que impuserem este imposto, mas se transferiram para outra classe;
2. que toda tributação temporária enraíza-se e torna-se permanente;
3. que nenhuma tributação é proporcional, equitativa, justa ou equânime à riqueza. Estas objeções econômicas genéricas à tributação são repetidas em todos os países. Entretanto, o sistema tributário francês tem uma peculiaridade característica. Assim como os ingleses são a nação histórica por excelência no tocante ao direito público e privado; os franceses o são em relação ao sistema tributário, apesar de em todos os outros aspectos eles tenham codificado, simplificado e rompido com a tradição fundamentada nos princípios universais. Girardin neste ponto:
“Na França, nós vivemos sob quase todas as regras do ancient regime sobre procedimentos fiscais. Talha, capitação, aides, aduanas, imposto sobre o sal, taxas de registro, o ‘Contrôle’, a “Insinuation”, Greffe, monopólio do tabaco, lucros excessivos nos serviços postais e na venda de pólvora, loteria, corveia estadual ou municipal, aquartelamento, octrois, pedágios de rio e rodovia, impostos extraordinários, todas essas coisas podem ter mudado de nome, mas todas mantêm sua essência e tem sido não menos do que um fardo para todo o povo e nem mais produtivo para o Tesouro. A base do nosso sistema financeiro [N.T. sic] é completamente não-científica. Ela reflete nada mais do que as tradições da Idade Média, que por sua vez nada mais são do que o legado das ignorantes e predatórias práticas fiscais dos romanos.” [p. 102]
Não obstante, à época da Assembleia Nacional da primeira revolução, nossos pais clamavam:
“Nós fizemos a revolução somente para que pudéssemos tomar os impostos em nossas próprias mãos.”
Mas no entanto este estado de coisas logrou persistir sob o Império, a Restauração e a monarquia de julho, e sua hora chegou:
“A abolição do privilégio eleitoral necessariamente deve implicar a abolição da iniquidade tributária. […]. Não há, portanto, mais tempo a ser perdido no enfrentamento da reforma tributária, se a ciência não deve ser superada pela violência… A tributação é virtualmente a única fundação sobre a qual repousa a nossa sociedade… As reformas sociais e políticas são encontradas nos mais remotos e elevados patamares; a mais importante é a tributária. Buscais aqui, e achareis” [p. 103, 105, 108]
E o que é que encontramos?
“Como compreendemos a tributação, ela deveria ser um prêmio de seguro pago por aqueles que detém propriedade, para assegurarem-se contra todos os riscos que podem perturbá-los em seu exercício e no gozo de suas posses… Este prêmio deve ser proporcional e rigoroso em sua exatidão. Todo imposto que não é uma garantia contra o risco, o preço de uma mercadoria ou o equivalente por um serviço, deve ser abandonado – permitem-se apenas duas exceções: impostos sobre países estrangeiros (aduana) e sobre a morte (enregistrement)… O contribuinte é, então substituído pelo segurado…. Todos que têm interesse de pagar, pagam e pagam na extensão de seu interesse…. Vamos além e dizemos: todo imposto é condenável pelo simples fato de que carrega em si o nome de imposição. Todo imposto deve ser abolido […] pela característica peculiar do imposto que é a obrigatoriedade, enquanto a natureza do seguro é de ser voluntário”. [p. 120, 122, 127-128]
Este prêmio de seguro não deve ser confundido com um imposto sobre o rendimento; está mais para um imposto sobre o capital, da mesma forma que um prêmio de seguro não garante o rendimento, mas sim os bens de capital como um todo. O Estado age da mesma forma que uma seguradora, buscando saber não a receita gerada pelo bem assegurado, mas o que ele vale.
“A riqueza nacional da França é estimada em 134 bilhões, dos quais subtraem-se passivos de 28 bilhões. Se o gasto orçamentário for reduzido a 1,200 milhões, somente 1% do capital precisaria ser taxado para elevar o Estado ao nível de uma colossal companhia de seguros”. [p. 130]
E deste momento em diante – “chega de revoluções! ” [p. 131]
“A palavra solidariedade vai substituir a palavra autoridade, interesses comunais serão o laço atando os membros da sociedade”. [p. 133]
M. Girardin não se satisfaz com essa sugestão genérica, mas, ao mesmo tempo, nos dá a forma para uma apólice ou registro de seguro que todo cidadão poderá portar.
Todo ano o antigo fisco dará aos segurados uma apólice de “quatro páginas do tamanho de um passaporte”. Na primeira página estaria o nome do segurado com seu número de registro, bem como a forma dos pagamentos dos prêmios. Na segunda página, estariam todas as particularidades do segurado e de sua família, juntamente com uma estimativa detalhada do valor de seus ativos totais, certificado como devido; na terceira página, o orçamento do Estado junto com o balanço geral da França; e na quarta, todos os tipos de informações estatísticas mais ou menos úteis. Esta apólice serve de passaporte, título de eleitor e registro de viagens dos trabalhadores, etc. Os registros destas apólices permitem ao Estado que prepare os quatro Grandes Livros: o Grande Livro da População, o Grande Livro da Propriedade, O Grande Livro da Dívida Pública e o Grande Livro das Dívidas Hipotecárias, que juntos vão conter todas as estatísticas dos ativos na França.
A tributação é meramente o prêmio pago pelo segurado para possibilitar que ele goze dos seguintes benefícios: 1. o direito de proteção pública, um serviço legal gratuito, liberdade de prática religiosa, educação gratuita, seguridade social e pensão; 2. a dispensa de serviços militares em tempos de paz; 3. a proteção contra a pobreza; 4. a compensação por perdas decorrentes de incêndios, enchentes, granizo, doenças do gado e naufrágio.
Nós observamos que M. Girardin pretende aumentar a compensação total que o estado tem que pagar, no caso de perda pelos segurados, na forma de diversas multas, etc., dos produtos dos empreendimentos de propriedade nacional [estatal] e das taxas de registro e alfândega, que terão de ser mantidas, bem como dos monopólios do Estado.
A reforma tributária é a menina dos olhos de todo burguês radical, o elemento específico de todas as reformas econômicas burguesas. Desde os tempos remotos de filisteus medievais, até os modernos livre-cambistas ingleses, a luta maior gira em torno da tributação.
A reforma tributária mira ou na abolição de tributos tradicionais, que impedem o progresso industrial, ou na menor extravagância do orçamento do Estado, ou em uma distribuição mais proporcional. Quanto mais distante isso fica do alcance burguês, mais intensamente o burguês almeja o ideal quimérico da distribuição proporcional de tributação.
As relações de distribuição, que repousam diretamente sobre a produção burguesa, as relações entre salários e lucro, lucro e juros, renda e lucro, podem no máximo ser modificadas naquilo que não lhes é essencial, pela tributação, mas esta jamais poderá ameaçar suas fundações. Todas as investigações e discussões acerca da tributação pressupõe as eternas continuidades das relações burguesas. Até mesmo a abolição dos impostos poderia apenas acelerar o desenvolvimento da propriedade burguesa e suas contradições.
A tributação pode beneficiar algumas classes e oprimir intensamente outras, como é visto, por exemplo, sob o domínio da aristocracia financeira. Ela é causa de ruína apenas para aquelas seções intermediárias da sociedade entre a burguesia e o proletariado, que não conseguem deslocar o fardo da tributação para outra classe.
Todo novo imposto deprime o proletariado um passo mais a fundo; a abolição de um velho imposto proporciona não maiores salários, mas mais lucro. Na revolução, a tributação inflamada às proporções mais colossais poderá ser usada para atacar a propriedade privada; mas até mesmo aí ela terá de ser usada para incentivar novas medidas revolucionárias, ou então eventualmente provocará uma reversão às velhas relações burguesas.
A redução dos impostos, sua distribuição mais equitativa, etc., etc., é uma reforma burguesa banal. A abolição dos impostos é socialismo burguês. Este socialismo burguês apela especialmente às frações industriais e comerciais, e aos camponeses. A grande burguesia, que já vive no melhor dos mundos para si, naturalmente despreza a utopia do melhor dos mundos.
M. Girardin abole os impostos transformando-os em prêmios de seguro. Por pagar uma certa porcentagem, os membros da sociedade asseguram uns aos outros seus bens contra o fogo e a enchente, granizo e falência, e todo risco possível à paz do gozo burguês. A contribuição anual não é meramente definida pela coletividade dos indivíduos, mas por cada indivíduo. Este avalia seu próprio patrimônio. As crises do comércio e da agricultura, a torrente de perdas e falências, todas as flutuações e vicissitudes do modo burguês de viver, que têm sido epidemias desde a introdução da indústria moderna, toda a poesia da sociedade burguesa vai desaparecer. Segurança e seguridade universais serão uma realidade. O burguês tem garantido por escrito pelo Estado que ele não poderá de maneira alguma arruinar-se. Todos os lados sombrios terão sumido do mundo presente, e seus lados luminosos viverão, o brilho aumentará, em suma, este sistema de governo tornou-se a realidade “que mais aproxima-se da concepção burguesa de reino de Deus na terra”. No lugar de autoridade, solidariedade; invés de coação, liberdade; ao contrário de Estado, um comitê de administradores – e o quebra-cabeça do ovo de Colombo estará resolvido, as precisas contribuições matemáticas de cada assegurado, conforme seu patrimônio. Cada assegurado carregará um Estado completamente constitucional, um sistema bicameral, em seu seio. O medo de pagar demais ao Estado, a oposição burguesa na Câmara dos Deputados, o impele a subestimar seu patrimônio. Seu interesse em preservar seu patrimônio, o elemento conservador da Câmara dos Nobres, o inclina a superestimá-lo. A interação constitucional destas tendências opositoras necessariamente engendra a verdadeira balança de poderes, a avaliação correta do patrimônio, a exata proporção da contribuição.
Um certo romano desejava que sua casa fosse feita de vidro, para que todas suas ações fossem visíveis à vizinhança. A burguesia deseja que, não a sua casa, mas a da vizinhança toda seja feita de vidro. Este desejo é também realizado. Por exemplo: um cidadão me pede por um adiantamento, ou para que formemos uma associação. Eu lhe peço a apólice, e nela eu tenho uma confissão, na íntegra e em detalhe, de todas as suas circunstâncias civis, garantidas por ele e certificadas pelo conselho de seguros. Um pedinte bate à minha porta e pede por esmola. Verei a sua apólice. O burguês deve ter certeza de que sua esmola está indo para o homem certo. Eu contrato um criado, levo-o a minha casa, confio nele por bem ou por mal: deixe-me ver a apólice dele!
“Quantos casamentos são terminados sem que os cônjuges tenham certeza do que confiar no tocante à realidade dos seus dotes ou de suas expectativas mútuas exageradas”. [p. 178]
Deixai-nos ver suas apólices!
No futuro, a troca de corações apaixonados será reduzida à troca de apólices de duas partes. Então a fraude desaparecerá, que hoje providencia a doçura e o amargor da vida, e o Reino da Verdade no estrito senso da palavra, se tornará realidade. Isso não é tudo:
“Sob a égide do presente sistema, os tribunais custam ao Estado algo em torno de 7 milhões e meio, sob nosso sistema, os crimes trarão lucro e não despesa, pois serão traduzidos em multas e compensações – que ideia!” [p. 190-191]
Tudo neste melhor dos mundos possíveis traz lucro: crimes desaparecem e contravenções tornam-se receita. Finalmente, como sob este sistema a propriedade é protegida contra todos os riscos e o Estado nada mais é do que uma seguradora universal de todos os interesses, os trabalhadores estarão sempre empregados: “Chega de revoluções!”
“Se não é isso que a burguesia deseja,
Então não sei mais o que deseja! ”
O Estado burguês nada mais é do que um seguro mútuo da classe burguesa contra seus membros individuais, bem como contra a classe expropriada, seguro este que tornar-se-á necessariamente cada vez mais caro e, aparentemente, mais independente da sociedade burguesa, porque a opressão da classe expropriada tornar-se-á cada vez mais difícil. A troca de nomes nada troca da natureza deste seguro. O próprio M. Girardin é imediatamente obrigado a abandonar a aparente independência do seguro de que ele momentaneamente permite os indivíduos aproveitarem. Qualquer um que avalie seu patrimônio muito abaixo é passível de punição: a seguradora compra sua propriedade ao preço que avaliou e até encoraja informantes com regalias. Isto nem é o pior: qualquer um que preferir não assegurar seu patrimônio é declarado completamente fora da sociedade e é ilegalizado. A sociedade, por óbvio, não pode tolerar a formação de uma classe em seu seio que se rebele contra sua própria condição de existência. Coação, autoridade, interferência burocrática, precisamente aquilo que Girardin quer eliminar, ressurgem na sociedade. Se por um momento ele fez uma abstração das condições da sociedade burguesa, ele o fez somente para devolvê-la por outro curso.
Por detrás da abolição da tributação paira a abolição do Estado. A abolição do Estado significa para os comunistas tão somente o resultado necessário da abolição das classes, com a qual a necessidade do poder organizado de uma classe para submeter outras automaticamente desaparece. Nos países burgueses a abolição do Estado significa que o poder do Estado é reduzido ao nível encontrado na América do Norte. Lá, os antagonismos de classe estão escondidos pelo êxodo de um excedente de proletários a oeste; a intervenção do poder Estatal, reduzida ao mínimo no leste, sequer existe no oeste. Nos países feudais, a abolição do estado significa a abolição do feudalismo e a criação de um estado burguês ordinário. Na Alemanha, [essa palavra de ordem] esconde ou um refúgio covarde das lutas que estão imediatamente adiante, ou uma espúria inflação da liberdade burguesa à absoluta independência e autonomia do indivíduo, ou, finalmente, a indiferença da burguesia perante todas as formas de Estado, contanto que o desenvolvimento dos interesses burgueses permaneça sem obstrução. E é claro que não é culpa dos berlinenses Stirner e Fauchers que essa abolição do Estado, no “alto sentido”, está sendo pregada arrogantemente. La plus belle filles de la France ne peut donner que ce qu’elle a”. [A mulher mais bonita da França só pode dar o que ela tem].
O que resta da companhia de seguros de M. Girardin é o imposto sobre capital, em oposição ao imposto sobre renda, e em lugar de todos os outros. Capital para M. Girardin não está restrito ao capital a ser investido na produção, mas abarca todos os bens móveis e imóveis. A respeito deste imposto sobre capital, ele se vangloria:
“é como o ovo de Colombo, é uma pirâmide que deve firmar-se sob sua base e não sob seu cume. […] é um riacho cortando seu próprio curso, a revolução sem revolucionários, progresso que nunca regride, um movimento sem recipiente nem tranco, finalmente, é a Ideia em toda sua simplicidade e a verdadeira Lei”. [p. 135-136]
Não há como negar que de todos os anúncios de vendilhão que M. Girardin já produziu – e eles, como sabemos, são uma legião – esse prospecto pelo imposto sobre o capital representa a obra-prima.
Incidentalmente, o imposto sobre capital como a única forma de tributação tem seus méritos. Todos os economistas, e Ricardo em particular, tem demonstrado as vantagens de uma única forma de tributação. O imposto sobre capital como única forma de taxação elimina de um só golpe as despesas de uma equipe [de coletores de impostos] que antes precisaria ser numerosa, interfere menos com o processo regular de produção, circulação e consumo, e é o único imposto que recai sobre o capital suntuário.
Porém, o imposto sobre capital de M. Girardin não se limita a isso. Seus efeitos incluem ainda outras bençãos bastante especiais.
Ativos de capital de mesmo tamanho serão obrigados a pagar as mesmas proporções de impostos ao Estado, independente de se rendem 6%, 3%, ou nada. As consequências disso são que o capital ocioso será posto para funcionar e incrementar-se-á o volume de capital produtivo, e o capital que já é produtivo será posto para produzir ainda mais, isto é, produzirá mais em menos tempo. A consequência de ambos fenômenos será uma queda no lucro e nos juros. M. Girardin, contudo, afirma que o lucro e o juros irão então aumentar – um verdadeiro milagre econômico. A transformação de capital não-produtivo em capital produtivo e o aumento de produtividade de capital, no geral, terão intensificado e agravado o desenvolvimento da crise industrial e deprimido o lucro e o juros. O imposto sobre capital pode apenas acelerar este processo, exacerbando a crise e, portanto, amplificando o crescimento dos elementos revolucionários – “chega de revoluções!”
Um segundo efeito milagroso do imposto sobre capital, de acordo com M. Girardin, é que se atrairia o capital da terra, que rende pouco, à indústria, que rende mais, abaixando assim os preços da terra e levando a França à concentração fundiária, a agricultura de larga escala da Inglaterra e, com isto, toda sua indústria avançada. Um tanto quanto a parte do fato de que isto requereria uma transposição à França de diversas condições da indústria Inglesa, M. Girardin figura como culpado por uma série de erros peculiares. A agricultura na França está sofrendo não de um excedente, mas de uma falta de capital. Não foi a retirada de capital da agricultura, mas sim a entrada que levaram à concentração fundiária inglesa. Na estimativa de Girardin, o preço da terra na Inglaterra está muito mais alto do que na França, o valor total da terra na Inglaterra é quase tão grande quanto a riqueza nacional da França. A concentração na França iria, portanto, não só deixar de causar a queda do preço da terra, como faria aumentar. A concentração da propriedade fundiária na Inglaterra, ainda mais, já devastou gerações inteiras de pessoas. A mesma concentração, para a qual o imposto sobre o capital contribuiria, sem dúvida, através de arrastar à ruína os camponeses, iria, na França, levar a grande massa camponesa em direção às cidades e tornar a revolução ainda mais inevitável. E, finalmente, se na França a maré já começou a virar da fragmentação para a concentração, na Inglaterra as grandes porções de terra já estão guinando para uma fragmentação renovada, conclusivamente comprovando que a agricultura procede em um incessante ciclo de concentração e fragmentação da terra, conquanto as condições burguesas permaneçam existindo.
Basta destes milagres. Vejamos a provisão de crédito para depósitos hipotecários.
O crédito para os depósitos hipotecários, inicialmente, estará disponível somente aos proprietários de terras. O Estado vai emitir notas hipotecárias, similares a notas bancárias em todos os aspectos, exceto que a terra é a sua garantia, em vez de dinheiro ou ouro. Estes recibos hipotecários serão adiantados pelo Estado a 4% para camponeses endividados, e serão usados para satisfazer os seus credores hipotecários; no lugar do credor privado, o Estado agora tem a hipoteca da terra, e consolida a dívida para que o ressarcimento não possa nunca ser demandado. O total de dívidas hipotecárias na França totaliza 14 bilhões. É verdade que Girardin somente concebe a emissão de 5 bilhões de recibos hipotecários, mas o aumento de papel-moeda por uma tal quantia teria o efeito não de baratear o capital, mas de desvalorizar inteiramente o papel-moeda. Ademais, falta a Girardin a coragem de impor uma taxa fixa por esse novo papel. Para evitar a desvalorização ele propõe que os possuidores desses recibos deveriam trocá-los a igual valor por 3% de certificados de débito nacional. O resultado da transação é o seguinte: o camponês, que antes pagava 5% de juros e 1% de manutenção, e renovação e outros impostos, agora paga somente 4% e ganha 1%; o antigo credor hipotecário, que antes recebia 5%, é forçado, pela ameaçadora desvalorização de recibos hipotecários, a aceitar com gratidão os 3% oferecidos pelo Estado, portanto perdendo 2%. Outrossim, o camponês não precisa pagar sua dívida e o credor nunca receberá o que o Estado lhe deve. O que estas negociatas acumulam, portanto, por detrás da camuflagem fina de recibos hipotecários, é o roubo direto de 2 dos 5% dos credores hipotecários. Na única ocasião, excetuada a tributação, em que M. Girardin é, portanto, forçado a atacar diretamente a propriedade privada, ele tem de tornar-se um revolucionário e desistir de toda a sua utopia. E este ataque não é nem invenção dele. Ele o emprestou dos comunistas alemães, que após a Revolução de Fevereiro foram os primeiros a exigirem que dívidas hipotecárias fossem transformadas em dívidas do Estado, num tom assumidamente diverso do que o de M. Girardin, que até mesmo se opôs publicamente a isto. É característico que na única ocasião em que Girardin propôs uma medida com algo de revolucionário, ele não teve a coragem de sugerir nada mais do que o paliativo, que só poderia desenvolver cronicamente a fragmentação da propriedade na França, e girar o relógio para trás algumas décadas, até que a presente estado de coisas fosse alcançado novamente.
A única coisa que o leitor terá perdido pela exposição de Girardin são os trabalhadores. Mas é claro que o socialismo burguês sempre pressuporá que a sociedade é exclusivamente composta por capitalistas, para assim ser possível resolver a contradição entre capital e trabalho assalariado de acordo com esse ponto de vista.
Também sobre este tema:
Karl Marx: “Contra os Impostos“.
Lenin: “Capitalismo e Tributação“.
Kim Il Sung: “Sobre a abolição do sistema de impostos”.
Flávia Benetti Castro e Gabriel Landi Fazzio: “O “Socialismo Tributário”: Imposto sobre Grandes Fortunas e a falácia de um sistema igualitário“.
Inclusão | 13/03/2019 |