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Primeira edição: La Gauche, no 6, 18.03.1992
Fonte: https://teoriamarxista.wixsite.com/blog-mri/post/o-que-e-o-fascismo-ernest-mandel
Tradução: Luiza de Sá - da versão disponível em https://www.contretemps.eu/mandel-fascisme-trotsky-democratie-socialisme/
Transcrição: Pedro Barbosa
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Estamos em 27 de fevereiro de 1933. O rumor se espalha como rastilho de pólvora por toda a Alemanha: o Reichstag [parlamento alemão] está em chamas. Uma parte da população não preocupada com a política cuida dos seus afazeres habituais como se nada estivesse acontecendo. Mas a política se preocupa muito com ela. Em um intervalo de algumas horas, o regime político e a situação social vão mudar profundamente.
Goering, um viciado em morfina corrupto até os ossos, que acumularia uma enorme fortuna pessoal durante o Terceiro Reich graças ao roubo e a pilhagem, chefia a polícia, já que é Primeiro Ministro e Ministro do Interior do Estado da Prússia. É o braço direito de Hitler. Ele dá à polícia imediatamente o sinal para agir.
Mas não somente à polícia. As formações paramilitares dos nazistas, as SA [Sturmabteilung, “tropas de assalto”] e as SS [Schutzstaffel, “tropas de proteção”], adquirem o status oficial de auxiliares da polícia. Milhares de militantes de organizações operárias, antimilitaristas, antifascistas, humanistas – inclusive inúmeros deputados – são presos, internados em campos de concentração, torturados e assassinados. As liberdades democráticas são suspensas. Os partidos políticos e os sindicatos são interditados, suas sedes ocupadas, seus bens retidos. Os nazistas aterrorizam os subúrbios da classe trabalhadora.
Milhões de trabalhadores tentam, por sua vez, reagir. Apesar do terror, uma série de cidades alemãs conhece as maiores mobilizações operárias de sua história, maiores até que as da revolução de 1918-1919. As delegações se aglomeram nas sedes do partido social-democrata e dos sindicatos, no dia seguinte ao 27 de fevereiro, para reivindicar a greve geral ou mesmo a greve geral insurrecional. Os líderes social-democratas recusam dizendo não querer derramar sangue de operários. Raramente se viu uma atitude mais irresponsável. Permitir que Hitler tomasse e conservasse o poder às custas das vidas de milhões de trabalhadores.
A ditadura política dos assassinos nazistas, uma vez consolidada, não significou, no entanto, sua dominação econômica. Ela serviu para consolidar o poder econômico do Grande Capital. Este é, a partir de então, o único mestre nas fábricas. Os fatos atestam isso de maneira incontestável. Entre 1928 (último ano antes da crise econômica) e 1938 (ano que antecedeu a guerra), a folha de pagamento se manteve exatamente igual. Mas os lucros dos capitalistas triplicaram. A taxa de exploração da classe operária, portanto, aumentou em 300%.
A função histórica da ditadura fascista emerge a partir desses dados. Essa ditadura tem como função essencial atomizar a classe trabalhadora, destruir o movimento operário como um todo, impedir qualquer defesa organizada dos assalariados e suprimir a venda coletiva da força de trabalho. Isso não quer dizer que a resistência operária se tornou impossível. Mas reduziu-se essa resistência a ações pontuais e fragmentadas.
Não é por cegueira política ou por medo da revolução que o Grande Capital aceita a transferência do exercício do poder para os assassinos fascistas. Ele é forçado a fazê-lo pela crise econômica extremamente profunda que está enfrentando.
A maioria dos grandes magnatas da indústria e das finanças desconfiou, no início, do aventureiro que arriscava tudo, do demagogo niilista sem lei que era Adolf Hitler. Apenas alguns deles – entre eles, estrangeiros como Henry Ford – o apoiaram financeiramente no final dos anos 1920. A burguesia geralmente prefere um regime de democracia parlamentar em lenta decomposição, que evolui em direção a um Estado forte, do que o reino totalitário de um partido fascista que ela não pode controlar completamente.
Mas a manutenção de um regime parlamentar mesmo progressivamente esvaziado de grande parte da sua substância implica um custo econômico e social. O movimento operário conserva as instituições de defesa coletiva de seus interesses e pode até mesmo negociar as suas capitulações sucessivas no quadro de uma política de colaboração de classes.
Quando os lucros caem catastroficamente, essa margem de manobra da burguesia diminui e depois desaparece. A retomada dos lucros tem como pré-condição a destruição do movimento operário organizado.
Mas o movimento operário é muito forte, bem estruturado e bem implantado na sociedade para que o aparato repressivo do Estado burguês possa derrotá-lo. Falta o aporte de uma força organizada muito mais ampla, massiva e implantada em todos os setores da sociedade. O partido fascista de massa e suas formações terroristas paramilitares permitem cumprir essa função.
A ditadura fascista é, então, a utilização de um movimento de massa amplo e bem organizado para destruir o movimento operário, aterrorizar e atomizar a classe trabalhadora e outras camadas potencialmente antifascistas.
Essa definição da ditadura fascista sublinha a diferença fundamental entre um regime político no qual a classe operária mantém suas organizações e sua capacidade de resistência coletiva e um regime no qual tudo isso desaparece.
Ela se opõe, portanto, a toda tentativa de minimizar ou mesmo de negar essa diferença fundamental. É o conjunto das organizações operárias que o fascismo destrói e suprime, mesmo as mais moderadas. Para esse fim, ele usa a frustração e o desespero das classes médias empobrecidas e de camadas rebaixadas de outras classes sociais. O fascismo é a transformação dessa massa outrora politicamente e socialmente impotente em uma força de ataque furiosa contra o movimento dos trabalhadores.
A tomada do poder pelos nazistas e a posterior consolidação desse poder foi um desastre para a classe trabalhadora alemã e europeia, para a União Soviética, para todos os povos da Europa e para a civilização humana. A segunda potência industrial do mundo sucumbiu ao golpe de um regime semi-bárbaro.
O povo que havia dado à humanidade Bach e Beethoven, Hegel e Kant, Goethe e Schiller, Marx e Engels, deu também os torturadores da Gestapo [polícia secreta nazista], a legislação racista de Nuremberg, os campos de concentração e de extermínio, o Plano Geral do Leste que previa o extermínio de centenas de milhões de seres humanos na Europa Central e Oriental.
O movimento de massa fascista, assim como a tomada do poder fascista, são o produto de uma crise social profunda. A baixa burguesia é habitualmente conservadora. Mas na Alemanha pós-1914, ela foi empobrecida pela inflação e pela ruína dos pequenos negócios. Ela não tinha a quem recorrer e foi ideologicamente corrompida em seu nacionalismo primário pela derrota militar e pelas cláusulas draconianas do Tratado de Versalhes.
A crise econômica agravou todo esse cenário a partir de 1930. A República de Weimar em decomposição progressiva não a oferecia nenhuma perspectiva. A baixa burguesia se entregou então, de corpo e alma, a um aventureiro inescrupuloso que, sendo um bom tático, prometeu satisfazer todos os seus desejos, mesmo os mais contraditórios.
O Grande Capital e o exército, de início reticentes, foram conquistados quando Hitler prometeu ao primeiro ser o único mestre nas empresas e, ao segundo, promover o rearmamento da Alemanha à força.
Ao mesmo tempo, o flagelo do desemprego seria eliminado, ainda que às custas de uma ameaçada falência do Estado. Mas isso seria absorvido pelo saque à Europa e à União Soviética. A guerra pela dominação mundial era a meta do empreendimento nazista. Foi uma continuação da política das forças conservadoras nacionalistas das "elites" alemãs desde o final do século XIX. Essas sim carregam a responsabilidade total pelo empreendimento e pelos crimes fascistas que tornaram possíveis e que aceitaram plenamente até o momento em que compreenderam que a guerra estava perdida.
Mas para que a ditadura fascista se estabelecesse e se consolidasse, faltava ainda que a terceira classe social presente, mais numerosa que a pequena e a grande burguesia juntas, não opusesse uma resistência bem-sucedida.
Essa resistência era perfeitamente possível. Milhões de assalariados ansiavam por ela com todas as suas forças. A ausência dessa resistência bem-sucedida se deve, em grande parte, à incompreensão e a estupidez dos líderes do PC [Partido Comunista] e da social-democracia. Por ordem de Stálin, os líderes do PC alegaram que havia uma situação revolucionária na Alemanha, que em tais condições a social-democracia era o principal obstáculo a ser superado, que a social-democracia deveria ser vencida antes de se vencer os nazistas. Eles chamaram os social-democratas de "social-fascistas". Eles subestimaram de forma criminosa o desastre que uma tomada de poder nazista significaria para o PC e todo o movimento operário. Eles alegaram que Hitler não permaneceria no poder por muito tempo e que uma vitória comunista se sucederia rapidamente.
Esse sectarismo dogmático cego tornou muito mais difícil formar uma frente única contra os nazistas, da base ao topo, a qual os stalinistas se recusaram por muito tempo convocar, se contentando com "uma frente única pela base" irrealizável.
A cretinice legalista e eleitoral dos social-democratas não foi menos criminosa que o sectarismo dos stalinistas. Os dirigentes social-democratas se ativeram à ficção de que não se deveria sair da legalidade, mesmo quando os nazistas a violaram totalmente. Eles continuaram a apostar nas eleições que os fascistas estavam determinados a proibir de uma vez por todas. Eles se recusaram a agir em conjunto com o PC sob o pretexto de "se opor à violência de onde quer que ela viesse". Eles sufocaram os esforços dos trabalhadores de opor a greve geral insurrecional à tomada de poder pelos nazistas.
Assim, eles não evitaram a guerra civil, um “estado de sítio” permanente sob as condições mais injustas e desumanas: apenas um campo estava armado e capaz de atacar, o outro campo foi desarmado politicamente, militarmente e moralmente. O resto veio a reboque.
Dada a ascensão generalizada da extrema direita por toda a Europa, é legítimo questionar: existe um paralelo entre a ameaça de ontem e a ameaça de hoje? A resposta deve ser sim. Não se pode deixar enganar por uma dupla ambiguidade que a Frente Nacional [partido francês de extrema-direita] e o Vlaams Blok [partido belga de extrema-direita] mantêm deliberadamente.
Primeiro, existe a ambiguidade entre a máscara política que eles portam em público e seus objetivos fundamentais que ainda procuram ocultar. Para amplificar as vozes, obrigar a direita tradicional a considerá-los parceiros válidos, conquistar uma legitimidade pseudo-democrática, eles jogam a carta dos "valores cristãos tradicionais": pátria, família, segurança, defesa da ordem, etc. Mas quando se examina a ideologia da sua "ala marchante" encontram-se nostálgicos do fascismo sem remorso nem falsa vergonha, racistas, antissemitas, xenófobos, antifeministas, adversários ferrenhos dos sindicatos e do movimento operário e apologistas e advogados dos piores crimes contra a humanidade.
Segunda fraude: o Vlaams Blok se autoproclama um defensor das pessoas comuns. Ele afirma se opor aos imigrantes para que os flamengos desempregados possam encontrar emprego. Se ele atira fogo para todos os lados com o argumento anti-imigração, é porque sente que este argumento ecoa preconceitos presentes em muitos meios populares. Mas essa máscara novamente esconde sua verdadeira face. No programa do Vlaams Blok, a questão dos imigrantes é muito pouco tratada. Ela só aparece em um parágrafo.
O pretenso "nacionalismo popular" é na verdade um nacionalismo dos ricos, destinado a deixar os pobres impotentes. O próprio Le Pen é multimilionário. Dillen é ligado aos meios bancários e industriais conhecidos nos Flandres. O Vlaams Blok quer proibir os piquetes de greve como "milícias privadas armadas". Seu objetivo é desmantelar os sindicatos. Ele defende um regime corporativista ao estilo de Mussolini que faz do patrão o único chefe à frente da empresa. O que há de “popular” nisso, a não ser a demagogia?
Certamente é preciso distinguir a ideologia dessa pequena corja nostálgica do nazismo da mentalidade confusa da grande massa de eleitores do Vlaams Blok que dificilmente compartilha essa nostalgia. Eles são motivados pela frustração e pela sensação de serem negligenciados. Mas na medida em que eles têm a percepção de que "centro-direita" e "centro-esquerda" são cada vez mais a mesma coisa; que não há nenhuma solução alternativa apresentada pelos partidos tradicionais, que a democracia parlamentar é frustrante, impotente e corrupta, eles são tentados a buscar a salvação em outro lugar.
Neste sentido, a ameaça é real de que a extrema-direita, deixando cada vez mais suas máscaras caírem, estenda sua mão em direção ao poder. Sem dúvida, não imediatamente, mas no caso de a recessão econômica aumentar consideravelmente o número de desempregados, de "novos pobres" e de "deixados ao léu".
Existem, no entanto, diferenças substanciais entre a situação atual e a dos anos 1930. Antes de tudo, o perigo de uma ditadura fascista se apresenta hoje pela segunda vez. Ora, um homem ou uma mulher prevenidos valem por dois.
Em seguida, em nenhum país da Europa, o desemprego e a desvalorização atingem a faixa dos 40 a 50% da população, como atingiam na Alemanha daquela época. A base social potencial do movimento fascista de massa é, então, muito menor. É igualmente verdade que o desemprego e a desvalorização atingem, hoje, todos os setores da classe dos assalariados, mais facilmente recuperáveis que os burgueses, se o movimento operário e a frente antifascista adotarem com relação a eles uma orientação adequada e correta.
A esse respeito, não se pode esquecer de uma verdade fundamental já expressa pelo socialista convicto Albert Einstein nos anos 1930: nenhuma luta antifascista eficaz é possível sem a erradicação do desemprego. É por isso que a orientação política de aceitação da austeridade adotada pela social-democracia europeia, bem como pela maioria da burocracia sindical, vem carregada de consequências. Ela prepara objetivamente a cama para a extrema-direita.
A luta antifascista exige uma crítica resoluta desta política, bem como propostas concretas de uma política econômica alternativa. Afinal, o homem e a mulher não vivem só de pão. Por trás da atração que o racismo e a xenofobia exercem sobre certas camadas da população, existe a reincidência da crise de credibilidade do socialismo como projeto de sociedade alternativo em relação ao capitalismo.
Não combateremos o flagelo fascista a não ser recusando fazer qualquer concessão ao racismo e ao egoísmo estrito. Não o combateremos a não ser defendendo francamente os valores socialistas e humanistas de solidariedade, demonstrando na prática que eles servem, melhor que os preconceitos, aos interesses reais de todos os assalariados, que eles dão um sentido à vida mil vezes mais valoroso que os mitos desumanos. Não o combateremos a não ser reinventando a esperança de felicidade [bonheur, bem-estar] para todos.
Somente Trotsky e alguns corajosos intelectuais alemães compreenderam a amplitude do perigo. Trotsky advertiu a classe operária alemã: se vocês deixarem os nazistas chegarem ao poder, eles passarão como um tanque de guerra sobre seus ossos. Os nazistas no poder significam a guerra contra a União Soviética e o extermínio físico das populações judias da Europa, prognosticou Trotsky. É preciso impedir, por todos os meios, os fascistas de chegarem ao poder. É preciso, antes de tudo, constituir contra eles uma unidade de ação, de baixo para cima, de todas as organizações operárias, sem qualquer ultimatismo. Estes chamados aflitos não foram ouvidos.