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Primeira Edição: Publicado originalmente em Pensiero e Volontà, maio de 1926.
Fonte: Instituto de Estudos Libertários
Tradução e adaptação: Inaê Diana Ashokasundari Shravya - da versão disponível em https://es.theanarchistlibrary.org/library/errico-malatesta-ni-democratas-ni-dictadores-anarquistas>
HTML: Fernando Araújo.
Teoricamente, “democracia” significa governo do povo; governo de todos para todos mediante os esforços de todos. Numa democracia o povo deve poder dizer o que deseja, nomear os executores de seus desejos, monitorar seu agir e removê-los quando for adequado.
Naturalmente isto presume que todos os indivíduos que compõem um povo têm a capacidade de formar uma opinião e expressá-la em relação a todos os temas que lhes interesse. Implica que todos são política e economicamente independentes e, portanto, ninguém, para viver, estaria obrigado a se submeter à vontade de outros.
Se existem classes e indivíduos que são privados dos meios de produção e, consequentemente, dependentes de outros com o monopólio sobre esses meios, o assim chamado sistema democrático pode ser somente uma mentira, que serve para enganar as massas do povo e mantê-las dóceis com um aspecto externo de soberania, enquanto o governo da classe privilegiada e dominante está de fato sendo salvaguardado e consolidado. De tal maneira é a democracia e de tal maneira tem sido sempre na estrutura capitalista, seja qual for a forma que assuma, da monarquia constitucional ao assim chamado governo direto.
Não poderia existir uma coisa chamada democracia, um governo do povo, mais que num regime socialista, quando os meios de produção e de vida se encontram socializados e o direito de todos a intervir nos assuntos públicos correntes se embasa e se garante na independência econômica de cada pessoa. Neste caso pareceria que o sistema democrático fosse mais capaz de garantir a justiça e de harmonizar a independência individual com as necessidades da vida em sociedade. E assim parecia, mais ou menos claro, àqueles que, na era dos monarcas absolutos, lutaram, sofreram e morreram pela liberdade.
Mas o fato é que, olhando as coisas como realmente são, o governo de todo o povo resulta ser uma impossibilidade, devido ao fato de que os indivíduos que conformam o povo têm opiniões e desejos diferentes e nunca, ou quase nunca ocorre, que nalgum assunto ou problema possam todos estar de acordo. Portanto, o “governo de todo o povo”, se é preciso que tenhamos governo, pode muito bem ser só o governo da maioria. E os democratas, sejam socialistas ou não, estão dispostos a concordar. Acrescentam, certamente, que se devem respeitar os direitos das minorias; mas já que é a maioria quem decide quais são esses direitos, resulta que as minorias só têm o direito de fazer o que a maioria quer e permite. O único limite à vontade da maioria seria a resistência, e isto sabem as minorias e podem levantá-la. Isto significa que sempre haveria uma luta social, na qual uma parte dos membros, se fosse a maioria, tem o direito de impor sua própria vontade sobre os demais, emparelhando os esforços de todos para seus próprios fins.
E aqui daria uma pausa para mostrar como, com base no raciocínio respaldado pela evidência dos eventos passados e presentes, nem mesmo é verdade que onde há governo, chame-se autoridade, aquela autoridade resida na maioria e como na realidade toda “democracia” tem sido, é e deve ser nada menos que uma “oligarquia” – um governo dos poucos, uma ditadura.
Mas, para utilidade deste artigo, prefiro vagar pelo lado dos democratas e assumir que pudesse realmente haver um verdadeiro e sincero governo da maioria.
Governo significa o direito de fazer a lei e a impor sobre todos pela força: sem uma força policial não há governo.
Agora, pode uma sociedade viver e progredir pacificamente para o bem maior de todos, pode se adaptar gradualmente às circunstâncias sempre variantes se a maioria tem o direito e os meios para impor sua vontade pela força sobre as minorias reacionárias?
A maioria é, por definição, retrógrada, conservadora, inimiga do novo, letárgica de pensamento e ação e ao mesmo tempo impulsiva, imoderada, sugestionável, simplista em seus entusiasmos e irracionais temores. Toda nova ideia brota de um ou alguns poucos indivíduos, é aceita, se é viável, por uma minoria mais ou menos considerável e conquista à maioria, se é que ocorre, só depois de ter sido substituída por novas ideias e novas necessidades e já se tornara obsoleta e talvez um obstáculo, em vez de um estímulo ao progresso.
Mas então queremos um governo da maioria?
Certamente não. Se é injusto e prejudicial que uma maioria oprima minorias e obstrua o progresso, é ainda mais injusto e prejudicial que uma minoria oprima a toda a população ou imponha suas próprias idéias pela força, as que ainda que que sejam boas excitariam repugnância e oposição pelo fato de serem impostas.
Logo, não devemos esquecer que existe todo tipo de minorias distintas. Há minorias de egoístas e patifes como há as de fanáticos que acreditam ser possuidores da verdade absoluta e, em perfeita boa-fé, buscam impor aos demais o que eles sustentam ser a única via à salvação, ainda que seja uma simples estupidez. Há minorias de reacionários que buscam dar as costas ao relógio e estão divididos com relação aos caminhos e limites da reação. E há minorias de revolucionários, também divididos com relação aos meios e fins da revolução e sobre a direção que o progresso social(1) há de tomar.
Que minoria deve assumir?
Este é um assunto de força bruta e capacidade para a intriga, e as probabilidades de que o êxito caia à mais sincera e mais devota ao bem geral não são favoráveis. Para conquistar o poder são requeridas habilidades que não são exatamente aquelas que são requeridas para assegurar que a justiça e o bem-estar triunfem no mundo.
Mas continuarei dando aos demais o benefício da dúvida e supor que uma minoria chegasse ao poder e que, entre aquelas que aspiram ao governo, eu considerasse a melhor por suas ideias e propostas. Quero supor que os socialistas chegassem ao poder e acrescentaria, também os anarquistas, se me não for impedido por uma contradição nos termos.
Seria isto o pior cenário de todos?
Sim, para obter o poder, seja legal ou ilegalmente, é requerido que se tenha abandonado pelo caminho grande parte da própria bagagem ideológica e que se tenha desfeito de todos os escrúpulos morais. Logo, Uma vez no poder, o grande problema é como permanecer aí. É preciso criar um interesse compartilhado no novo estado das coisas e incluir a esses no governo a uma nova classe privilegiada, e suprimir todo tipo de oposição mediante todos os meios possíveis. Talvez em nome do interesse nacional, mas sempre com resultados destruidores da liberdade.
Um governo estabelecido, fundado sobre o passivo consenso da maioria e forte em números, em tradição e no sentimento – às vezes sincero – de estar no lado certo, pode oferecer algo de espaço à liberdade, pelo menos de forma que as classes privilegiadas não se sintam ameaçadas. Um novo governo, que dependa do apoio somente de uma e frequentemente escassa minoria, encontra-se obrigada, por necessidade, a ser tirânica.
É suficiente pensar no que fizeram os socialistas e comunistas quando chegaram ao poder, quer traindo seus princípios e seus camaradas, quer hasteando cores em nome do socialismo e do comunismo.
É por isto que não somos nem a favor do governo duma maioria, nem do duma minoria; nem pela democracia nem pela ditadura.
Somos a favor da abolição do gendarme. Somos a favor da liberdade de todos e do livre acordo, que estará aí para todos quando ninguém tenha os meios para forçar os outros, e todos estejam envolvidos na contribuição da sociedade. Somos a favor da anarquia.
Notas de rodapé:
(1) É preciso ressaltar que, ao fazer uso do termo “progresso social”, Errico faz alusão a um acontecimento impulsionado pela força social revolucionária – “força” no sentido de dinâmica, não de -cracia, que seria a força policial da qual ele fala -, não a um fatalismo ou algo semelhante ao positivismo, posto que ele mesmo já expressou sua oposição a esse tipo de crença num texto – ainda que não só neste – seu chamado “A Greve Geral”, publicado no número 132 do Umanità Nuova, em 7 de julho de 1922. [N.T.] (retornar ao texto)