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Primeira Edição: Publicado originalmente como «I Banditi Rossi» no Volontá de Ancona (N. 2, 15 de junho 1913). Também publicado em França como «Les Bandits Tragiques». Tradução provável de Neno Vasco, encontrada no semanário Terra Livre de Lisboa (N. 23, 17 de julho de 1913). Os últimos 5 parágrafos não estavam nessa tradução, e traduzimos nós do original italiano, que pode ser consultado em http://www.bibliotecaginobianco.it/apriflip.asp?idf=3399&id=56265
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/04/28/os-bandidos-tragicos/
Tradução: NOME
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Pode parecer tarde demais para falar deles. Mas na realidade o assunto é sempre de atualidade, pois trata-se de factos e discussões que, assim como se repetiram no passado, assim se repetirão infelizmente ainda no futuro, enquanto perdurarem as causas que os produzem.
Alguns indivíduos roubaram, e para roubar mataram; mataram ao acaso, sem discernimento, quem quer que porventura fosse um obstáculo entre eles e o dinheiro cobiçado, e mataram homens desconhecidos para eles, proletários vítimas tanto ou mais do que eles da má organização social.
No fundo, nada mais vulgar: são os frutos amargos que amadurecem normalmente na árvore do privilégio. Quando toda a vida social está maculada de violência e de fraude, quando quem nasce pobre está condenado a todo o tipo de sofrimentos e humilhações, quando o dinheiro é o meio necessário para obter a satisfação das necessidades próprias e o respeito à personalidade, não podendo tanta gente consegui-lo com um trabalho honesto e digno, não é verdadeiramente caso para espanto surgirem de vez em quando pobres insofridos do jugo, os quais, inspirando-se na moral dos amos, e não podendo roubar o trabalho alheio com a proteção da força armada, roubam ilegalmente a despeito da polícia, e não podendo, para roubar, organizar expedições militares ou vender venenos como géneros alimentícios, assassinam diretamente, à punhalada e a tiro de revólver.
Mas aqueles «bandidos» diziam-se anarquistas; e isto deu aos seus atentados de bandoleirismo uma importância e um significado simbólico que eles em si mesmos estavam longe de ter.
A burguesia aproveita a impressão causada por aqueles factos sobre o público para caluniar o anarquismo e consolidar o seu domínio. A polícia, que amiúde ocultamente os provoca, serve-se deles para aumentar a sua importância própria, saciar o seu instinto de perseguição e aniquilamento, recebendo o preço do sangue em dinheiro e promoções. E por outro lado, muitos camaradas nossos, só porque se falava de anarquia, julgaram-se obrigados a não renegar quem anarquista se dizia: muitos, seduzidos pelo pitoresco do caso, admirados da coragem dos protagonistas, não viram mais do que o facto nu da revolta contra a lei, esquecendo-se de examinar o porquê e o como.
A mim parece-me que para regular a nossa conduta e aconselhar a dos outros é necessário examinar as coisas com calma, julgá-las à luz das nossas aspirações, e não dar às impressões estéticas mais peso do que elas têm.
Corajosos, eram-no certamente aqueles homens; e a coragem (que afinal talvez não seja senão uma forma de boa saúde física) é indubitavelmente uma bela e boa qualidade; mas tanto pode servir para o bem como para o mal. Tem havido homens corajosíssimos entre os mártires da liberdade, como os tem havido entre os mais odiosos tiranos; há-os entre os revolucionários, como os há entre os criminosos, os soldados, os polícias.
Habitualmente, e não sem razão, chama-se heróis aos que arriscam a vida para fazer o bem, e chama-se prepotentes ou, nos casos mais graves, brutos insensíveis e sanguinários aos que empregam a coragem para fazer o mal.
Nem negarei que aqueles episódios foram pitorescos e, num certo sentido, esteticamente belos. Mas reflitam um pouco os poéticos admiradores do «gesto belo».
Um automóvel lançado a toda a velocidade com homens armados de pistolas automáticas, que espalham o terror e a morte ao longo do caminho, é decerto uma coisa mais moderna, mas não mais pitoresca do que um salteador ornado de plumas e armado de bacamarte que detém e saqueia uma caravana de viandantes, ou do que o barão vestido de ferro, num cavalo couraçado, a impor a talha aos vilões — nem é melhor. Se o governo italiano não tivesse só generais de opereta e organizadores ignorantes e ladrões, teria talvez conseguido efetuar na Líbia alguma bela operação militar; mas seria por isso a guerra menos criminosa e moralmente menos feia?
E todavia aqueles homens não eram, ou nem todos eram, malfeitores vulgares!
Entre aqueles «ladrões» havia idealistas desorientados; entre aqueles «assassinos» havia naturezas de herói, que heróis poderiam ter sido se tivessem vivido noutras circunstâncias e tivessem recebido a inspiração de outras ideias. Pois é certo, para quem os conheceu, que aqueles homens se preocupavam com ideias, e que, se reagiram de modo feroz contra o ambiente e procuraram dessa maneira satisfazer as suas paixões e necessidades, foi em grande parte por influência duma especial conceção da vida e da luta.
Mas são essas ideias anarquistas?
Podem tais ideias, por mais que se queira forçar o sentido das palavras, confundir-se com o anarquismo, ou pelo contrário estão com o anarquismo em contradição evidente?
Esta é que é a questão.
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Anarquista é, por definição, aquele que não quer ser oprimido nem quer ser opressor; aquele que quer o máximo bem-estar, a máxima liberdade, o máximo desenvolvimento possível de todos os seres humanos.
As suas ideias e as suas vontades têm origem no sentimento de simpatia, de amor e de respeito para com todos os humanos: sentimento que deve ser suficientemente forte para o induzir a querer o bem alheio como o seu, e a renunciar às vantagens pessoais que exigem, para ser obtidas, o sacrifício dos outros.
Se assim não fosse, porque haveria ele de ser inimigo da opressão e não procurar, ao invés, tornar-se opressor?
O anarquista sabe que o indivíduo não pode viver fora da sociedade, ou melhor, não existe, como indivíduo humano, senão porque transporta em si os resultados da ação de inumeráveis gerações passadas, e tira proveito, durante toda a sua vida, do concurso dos seus contemporâneos.
Sabe que a atividade de cada um influi, direta ou indiretamente, sobre a vida de todos, e reconhece por isso a grande lei de solidariedade, que domina na sociedade como na natureza. E como quer a liberdade de todos, forçosamente há-de querer que a ação desta necessária solidariedade, em vez de ser imposta e sofrida inconsciente e involuntariamente, em vez de ser deixada ao acaso e explorada em vantagem de alguns e em prejuízo de outros, se faça consciente e voluntária e se manifeste portanto para igual proveito de todos.
Ou sermos oprimidos, ou sermos opressores, ou cooperarmos voluntariamente para o bem de todos. Não há outra alternativa possível; e os anarquistas são naturalmente, e não podem deixar de ser, pela cooperação livre e voluntária.
Não nos venham cá fazer «filosofia» e falar-nos de egoísmo, altruísmo e semelhantes quebra-cabeças. De acordo: somos todos egoístas, todos procuramos a nossa satisfação. Mas é anarquista aquele que encontra a sua maior satisfação na luta pelo bem de todos, pela realização duma sociedade em que ele possa encontrar-se entre irmãos, no meio de homens sãos, inteligentes, instruídos e felizes. Quem ao contrário pode adaptar-se a viver contente entre escravos e a tirar lucro do trabalho de escravos, não é, não pode ser anarquista.
Há indivíduos fortes, inteligentes, apaixonados, com grandes necessidades materiais ou intelectuais, que tendo sido pela sorte colocados entre os oprimidos, querem a todo o custo emancipar-se e não lhes repugna tornarem-se opressores: indivíduos que, vendo-se constrangidos na sociedade atual, começam a desprezar e a odiar toda e qualquer sociedade, e, sentindo o absurdo de querer viver fora da coletividade humana, desejariam submeter à sua vontade e à satisfação das suas paixões toda a sociedade, os homens todos. Estes às vezes, quando pescam de literatura, costumam chamar-se super-homens. Não se embaraçam com escrúpulos; querem «viver a sua vida»; riem-se da revolução e de qualquer aspiração futurista, querem gozar hoje, a qualquer custo e à custa de quem quer que seja; sacrificariam toda a humanidade por uma única hora (há quem o tenha dito assim mesmo) de «vida intensa».
São rebeldes, mas não são anarquistas. Têm a mentalidade e os sentimentos dos burgueses falhados e, quando triunfam, fazem-se burgueses a valer, e não dos melhores.
Podemos uma vez ou outra, nas vicissitudes da luta, encontrá-los ao nosso lado; mas não podemos, não devemos e não queremos confundir-nos com eles. E eles sabem-no muito bem.
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Mas muitos deles gostam de se dizer anarquistas. É verdade — e é deplorável.
Não podemos impedir que uma pessoa tome o nome que lhe apraz, nem podemos por outro lado abandonar nós o nome que sintetiza as nossas ideias e que lógica e historicamente nos pertence. O que podemos fazer é velar para que não haja confusão, ou haja a menor possível.
Averiguemos, porém, como sucedeu que indivíduos de aspirações tão opostas às nossas tomaram uma designação que é a negação das suas ideias e dos seus sentimentos.
Referi-me atrás a obscuras manobras de polícia, e ser-me-ia fácil provar como certas aberrações, que se quiseram fazer passar por anarquistas, tiveram a sua primeira origem nos porões policiais de Paris, por sugestão dos chefes de polícia Andrieux, Goron e outros que tais.
Estes polícias, quando o anarquismo começou a manifestar-se e a adquirir importância em França, tiveram a ideia genial, digna deveras dos mais astutos jesuítas, de combater o nosso movimento por dentro. Mandaram para o meio dos anarquistas agentes provocadores que tomavam ares de ultra-revolucionários, e habilmente desfiguravam as ideias anarquistas, tornando-as grotescas e fazendo delas uma coisa oposta ao que verdadeiramente são. Fundaram jornais pagos pela polícia; provocaram atos insensatos e perversos, e gabando-os e qualificando-os de anarquistas; comprometeram jovens ingénuos que depois, naturalmente, venderam; e conseguiram com a complacente cumplicidade da imprensa burguesa persuadir uma parte do público de que o anarquismo era o que eles figuravam. E os camaradas franceses têm boas razões para crer que estas manobras policiais ainda duram, não sendo estranhas aos factos que motivaram este artigo.
Às vezes as coisas vão talvez além da intenção do provocador — mas de todo o modo a polícia tira deles proveito da mesma maneira.
A estas influências policiais outras se devem juntar, mais limpas, mas não menos nefastas. Num momento em que atentados impressionantes tinham chamado a atenção do público para as ideias anarquistas, alguns literatos de talento, profissionais da pena sempre em busca do assunto da moda e do paradoxo sensacional, puseram-se a fazer anarquismo. E, como eram burgueses, com mentalidade, educação e ambições burguesas, fizeram anarquismo que servia bem para dar um arrepio voluptuoso às donzelas fantásticas e às damas enfastiadas, mas tinha pouco que ver com o movimento emancipador das massas, que o anarquismo quer provocar. Eram pessoas de talento, escreviam bem, diziam muitas vezes coisas que ninguém percebia e… foram admirados. Não houve acaso um momento em que na Itália se dizia que Gabriel D’Annunzio se fizera socialista?
Esses «intelectuais» pouco depois voltaram quase todos ao redil burguês para gozar o prémio da notoriedade conquistada, manifestando-se tal como na realidade nunca tinham deixado de ser, isto é: aventureiros literários em busca de réclame; mas o mal estava feito.
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Tudo isto afinal pouco dano teria produzido, se no mundo só houvesse gente com ideias claras, que sabe perfeitamente o que quer e atua em conformidade. Mas infelizmente há um grande número de pessoas de espírito incerto, de mente confusa, que oscilam continuamente de um a outro extremo.
Assim há aqueles que se dizem e julgam anarquistas, mas quando cometem más ações (que afinal seriam muitas vezes perdoáveis em consideração da necessidade e do ambiente) vangloriam-se delas, dizendo que os burgueses fazem assim e ainda pior. É certo; mas então porque se crêem diferentes dos burgueses e melhores que eles?
Atacam os burgueses porque estes roubam aos operários uma boa parte do produto do seu trabalho, mas não têm nada a opor se alguém rouba ao operário o pouco que o burguês lhe deixa.
Indignam-se porque o patrão, a fim de aumentar o seu lucro, faz trabalhar um homem em condições insalubres, mas são cheios de indulgência para quem dá uma facada nesse homem a fim de lhe tirar uns vinténs.
Têm asco ao usurário que subtrai a um pobre diabo um tostão de juros por dez que lhe emprestou, mas acham louvável, ou quase, que alguém tire ao mesmo pobre diabo dez tostões de dez que não se lhe emprestou, passando-lhe uma moeda falsa.
E como são débeis de espírito, julgam-se naturalmente homens superiores e ostentam um profundo desdém pelas «massas embrutecidas», imaginando-se no direito de fazer mal aos trabalhadores, aos pobres, aos desgraçados, porque estes «não se revoltam e portanto sustentam a sociedade atual». Conheço um capitalista que, quando está na cervejaria, se compraz em dizer-se socialista e até anarquista, mas nem por isso deixa de ser na sua oficina um dos mais ávidos exploradores: patrão duro, avarento e soberbo. E não o nega, mas costuma justificar a sua conduta de um modo original para um patrão. Diz ele: «Os meus operários merecem o tratamento que lhes dou, visto que se sujeitam; têm natureza de escravos, são a força que sustém o regime burguês, etc., etc.» É exatamente a linguagem dos que querem dizer-se anarquistas mas não sentem simpatia e solidariedade pelos oprimidos. A conclusão seria que os seus verdadeiros amigos são os patrões, e os seus inimigos as massas deserdadas.
Mas então para quê palrar de emancipação e de anarquismo? Vão para os burgueses e deixem-nos em paz.
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Alonguei-me demasiado para um artigo de jornal, e é necessário concluir.
Concluirei dando um conselho àqueles que «querem viver a sua vida» e não se importam com a vida dos outros.
O furto e o assassinato são meios perigos e em geral pouco produtivos. Por essa via, a maioria das vezes, só se consegue passar a vida nas prisões ou perdê-la no patíbulo — especialmente se se tem a imprudência de atrair a atenção da polícia dizendo-se anarquista e frequentando os anarquistas. Não é um negócio muito rentável!
Quando se é inteligente, enérgico e sem escrúpulos pode-se facilmente abrir caminho entre a burguesia.
Tentem então tornar-se burgueses, pelo furto e pelo assassinato, bem entendido, mas legais. Será um melhor negócio; e, se é verdade que têm simpatias intelectuais pelo anarquismo, que se poupem do desprazer de fazer mal à causa que é cara aos seus intelectos.