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Primeira Edição:Le Réveil, Genebra, 05/11/1904.
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Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo, janeiro 2006.
Direitos de Reprodução: Copyleft.
O número daqueles que se dizem anarquistas é tão grande, hoje, e sob o nome de anarquia expõem-se doutrinas tão divergentes e contraditórias que estaríamos errados em nos surpreendermos quando o público, de forma alguma familiarizado com nossas idéias, não podendo distinguir de imediato as grandes diferenças que se escondem sob a mesma palavra, permanece indiferente em relação à nossa propaganda e também ressente uma certa desconfiança em relação a nós.
Não podemos, é óbvio, impedir os outros de se atribuírem o nome que eles escolhem. Quanto a nós mesmos reiniciarmos à denominação de anarquistas, isto de nada serviria, pois o público simplesmente acreditaria que teríamos virado a casaca.
Tudo o que podemos e devemos fazer é distinguirmo-nos sem dubiedade daqueles que têm uma concepção da anarquia diferente da nossa, e extraem desta mesma concepção teórica conseqüências práticas absolutamente opostas àquelas que extraímos. E a distinção deve resultar da exposição clara de nossas idéias, e da repetição franca e incessante de nossa opinião sobre todos os fatos que estão em contradição com nossas idéias e nossa moral, sem considerações por uma pessoa ou por um partido qualquer. Esta pretensa solidariedade de partido entre pessoas que não pertenciam ou não teriam podido pertencer ao mesmo partido, foi sem dúvida uma das causas principais da confusão.
Ora, chegamos a tal ponto que muitos exaltam nos camaradas as mesmas ações que censuram nos burgueses, e parece que seu único critério do bem ou do mal consiste em saber se o autor de tal ou qual ato se diz ou não anarquista. Um grande número de erros conduziu alguns a se contradizerem abertamente, na prática, com os princípios que professam em teoria, e outros a suportar tais contradições; assim também, um grande número de causas conduziram ao nosso meio, pessoas que no fundo zombam do socialismo, da anarquia e de tudo o que ultrapassa os interesses de suas pessoas.
Não posso empreender aqui uma análise metódica e completa de todos estes erros, e também limitar-me-ei a tratar daqueles que mais me chocaram.
Falemos antes de mais nada da moral.
Não é raro encontrar anarquistas que negam a moral. Inicialmente é um simples modo de falar, para estabelecer que do ponto de vista teórico eles não admitem moral absoluta, eterna e imutável, e que, na prática, revoltam-se contra a moral burguesa, que sanciona a exploração das massas e golpeia todos os atos que lesam ou ameaçam os interesses dos privilegiados. Em seguida, pouco a pouco, como acontece em muitos casos, tomam a figura retórica como expressão exata da verdade. Esquecem que, na moral habitual, ao lado das regras inculcadas pelos padres e pelos patrões para assegurar mais substancial parte, sem as quais toda a coexistência social seria impossível – eles esquecem que se revoltar contra toda regra imposta pela força não quer dizer em absoluto renunciar a toda reserva moral e a todo sentimento de obrigação para com os outros; – esquecem que para combater de modo racional certa moral, é preciso opor-lhe, em teoria e em prática, outra moral superior: e acabam algumas vezes, seu temperamento e as circunstâncias ajudando, por se tornarem imorais no sentido absoluto da palavra, isto é, homens sem regra de conduta, sem critério para guiar suas ações, que cedem passivamente ao impulso do momento. Hoje, privam-se de pão para socorrer um camarada; amanhã, matarão um homem para ir ao bordel!
A moral é a regra de conduta que cada homem considera como boa. Pode-se achar má a moral dominante de tal época, de tal país ou de tal sociedade, e achamos, com efeito, a moral burguesa mais do que má; mas não se poderia conceber uma sociedade sem qualquer moral, nem homem consciente que não tenha critério algum para julgar o que é bom e o que é mal, para si mesmo e para os outros.
Quando combatemos a sociedade atual, opomos a moral burguesa individualista, a moral da luta e da solidariedade, e procuramos estabelecer instituições que correspondam à nossa concepção das relações entre os homens. Se fosse de outra forma, por que não acharíamos correto que os burgueses explorem o povo?
Outra afirmação nociva, sincera em alguns, mas que, para outros, é apenas desculpa, é que o meio social atual não permite que se seja moral, e que, conseqüentemente, é inútil tentar esforços destinados a permanecerem sem sucesso; o melhor a fazer, é tirar das circunstâncias atuais o máximo possível para si mesmo sem se preocupar com o próximo, exceto a mudar de vida quando a organização social tiver também mudado. Certamente, todo anarquista, todo socialista compreende as fatalidades econômicas que, hoje, obrigam o homem a lutar contra o homem; e ele vê, como bom observador, a impotência da revolta pessoal contra a força preponderante do meio social. Mas é igualmente verdade que, sem a revolta do indivíduo, associando-se a outros indivíduos revoltados para resistir ao meio e procurar transformá-lo, este meio nunca mudará.
Somos, todos sem exceção, obrigados a viver, mais ou menos, em contradição com nossas idéias; mas somos socialistas e anarquistas precisamente na medida em que sofremos esta contradição e que procuramos, tanto quanto possível, torná-la menor. No dia em que nos adaptássemos ao meio, não mais teríamos, é óbvio, vontade de transformá-lo, e nos tornaríamos simples burgueses; burgueses sem dinheiro, talvez, mas não menos burgueses nos atos e nas intenções.
Inclusão | 28/01/2006 |