A contradição irredutível

Errico Malatesta

31 de março de 1900


Primeira Edição: Publicado originalmente sob o título “La contradizione irreduttibile”, em La Questione Sociale, Paterson, Nova Jersey, Vol. 6, new series, No. 30, 31 de março de 1900. 

Fonte: Instituto de Estudos Libertários

Tradução: Inaê Diana Ashokasundari Shravya

HTML: Fernando Araújo.


Nota da tradução: Antes do surgimento do que passou a ser conhecido como “comunismo de luxo plenamente automatizado”, o movimento anarquista já afirmava o luxo para todas as pessoas, entendido sob o enunciado “riqueza social e bem-estar para todos!”, que vira e mexe irrompe nos textos malatestianos. Diferentemente do que afirmam certos ecossocialistas e marxistas-adoradores-da-miséria, a abundância não implicaria uma exploração massiva de ecossistemas. Tal afirmação só faz sentido se considerarmos a existência do anarquismo pós-escassez – do qual considero o anarquismo solarpunk o seu mais atual desdobramento – ou do comunismo de luxo plenamente automatizado dentro do contexto do capitalismo, o que não faz sentido algum. Se a tentativa de realização desse projeto se desse dentro do contexto capitalista, sem qualquer revolução, não passaria duma fracassada tentativa, que no fim das contas resultaria numa melhor viva para as classes dirigentes e numa pior para a classe trabalhadora. O anarquismo pós-escassez/anarquismo solarpunk só pode se realizar mediante uma revolução social e uma revisão radical dos atuais modos de produção.

No texto que se segue, Malatesta aborda brevemente as vantagens de outras formas de produção que não sejam capitalistas, isto é, calcadas na exploração e na opressão. Em tempos de miséria, o minimalismo pode muito bem ser uma expressão de sua naturalização, em vez duma perspectiva crítica sobre o sistema social vigente.

Boa leitura!
Inaê Diana Ashokasundari Shravya

★ ★ ★

Eles escrevem de Bari, Itália:

“Nossa cidade está passando por uma crise muito triste. A fabricação de barris, antes uma indústria próspera, encontra-se cada vez mais em declínio. A causa deste declínio repousa na introdução de novas tarifas por empresas ferroviárias e transportadoras, que permite o retorno de barris vazios a custos muito baixos; daí vem um consumo diminuído de barris. Algum tempo atrás os mestres fabricantes de barris tomaram medidas para resolver esta condição crítica, pedindo que os custos de transporte dos barris vazios fossem aumentados. No último domingo, em frente à prefeitura, eles se encontraram para pedir ajuda às autoridades. Um comitê de 12 trabalhadores fabricantes de barril, acompanhados por um inspetor de segurança pública, foi recebido pelo prefeito, que prometeu resolver as coisas.”

Como na terra o prefeito vai resolver as coisas? Pedindo às companhias ferroviárias que aumentem novamente os custos de transporte para barris vazios? Como assim, se os capitalistas são aqueles que possuem as ferrovias, que comandam os prefeitos e os mestres do prefeito!

E então, aumentando a cobrança pelos barris que retornam, subiria o preço do vinho.

Se os consumidores de vinho se voltassem para o prefeito, ele prometeria resolver as coisas para eles também?

Esse pobre prefeito deve se achar numa posição similar ao Deus Todo-Poderoso, a quem uma pessoa pede chuva, e outra, bom tempo. E ele não é sequer onipotente!

Mas em vão nos preocupamos com a posição dos prefeitos, que sabem muito bem como escapar deste quebra-cabeça… fazendo promessas a todos e mantendo nenhuma delas.

Merecem muito mais atenção da nossa comiseração aqueles pobres trabalhadores que, ignorantes da raiz dos seus problemas, deixam ser enganados e zombados na medida em que eles permitem que sejam escoltados até a prefeitura por um inspetor de segurança pública, e esperam que os oficiais se importem com a sua sorte.

O caso dos fabricantes de barril de Bari é um caso típico, que mostra nitidamente o absurdo da sociedade capitalista.

Em casos similares não há outra cura possível que não a abolição do capitalismo, a transformação radical do sistema de produção. E cada comércio, cada forma de atividade humana deve, cedo ou tarde, se encontrar no mesmo caso, que já é bastante difundido devido à superabundância do trabalho.

Associações não ajudam; nem greves e todas as outras formas de resistência; nem cooperativas.

Sempre que ninguém precisa do trabalho dum trabalhador, o trabalho não pode impor nenhum acordo: ele deve morrer de fome – mais ou menos devagar, mais ou menos convulsivamente, mas morrer de fome deve… a menos que possa romper com o atual sistema.

E o progresso tende a tornar o trabalho de um número cada vez maior de trabalhadores desnecessário.

Esta é a derradeira e irredutível contradição entre capitalismo e progresso.

Ou previne todo progresso, consagrando as castas atuais, abolindo a competição entre capitalistas, proibindo qualquer desenvolvimento na produção, qualquer nova máquina, qualquer nova aplicação científica, e reduz os trabalhadores ao status de animais domésticos, rações concedidas pelos seus mestres – em resumo, um regime como aquele dos jesuítas exercido no Paraguai; ou destrói o capitalismo e organiza a produção não para o benefício de poucos, mas para o maior bem-estar para todos.

A solicitação dos fabricantes de barril de Bari de aumentar o custo do transporte de barris usados, de modo que os vinícolas achassem mais conveniente queimá-los do que enviá-los de volta, é o mesmo que pedir aos fabricantes de barril que enviem apenas 10 barris a cada 100 ao mercado e destruam os outros 90 antes que possam ser usados.

É possível conseguir isso? Claro que não. Ainda, a estrutura atual da sociedade é tão absurda  que tornaria tal medida vantajosa.

Quando pessoas morrem de fome  porque há muita coisa, ou porque é muito fácil de produzir, ou porque é durável demais, a destruição deve aparecer – e pode fugazmente ser – mais útil do que a produção. Um fogo, um terremoto pode ser uma bênção, trazendo emprego e pão aos desempregados.

Mas a destruição da riqueza não é como os trabalhadores podem se emancipar. E felizmente o tempo passou, ao menos nos países mais avançados, durante o qual os trabalhadores pensavam que eles poderiam parar o progresso, e depositar tanta energia na quebra da maquinaria quanto seria necessária para assumir o seu controle.

Não devemos combater o progresso, mas direcioná-lo para o proveito de todos.

E para que isso aconteça, os trabalhadores devem tomar posse de todo o capital, toda riqueza social, de modo que seria de seu interesse que os produtos abundassem e a produção exigisse o mínimo de esforço possível.

Eis a razão do porque é necessário fazer a revolução.

Organização do trabalho, greves, resistência de todos os tipos podem até certo ponto na evolução capitalista melhorar as condições de trabalhadores ou preveni-los do pior; elas podem servir muito bem para treinar trabalhadores para a luta; elas sempre são, em mãos capazes, um meio de propaganda – mas elas são desesperadamente impotentes para resolver a questão social. E assim elas devem ser usadas de tal modo a ajudar a preparar mentes e músculos para a revolução – para a expropriação.

Qualquer um que não consiga entender isto, é reduzido a suplicante dos prefeitos… e sendo ridicularizado.


Inclusão: 19/01/2022