MIA> Biblioteca> Errico Malatesta > Novidades
Primeira Edição: Sequência de dois artigos de Malatesta publicados originalmente no n.º 6 do «L’Agitazione» de Ancona (19/4/1897) e no número único de «L’Agitatore» (25/4/1897), que substituíu o n.º 7 do «L’Agitazione» devido à prisão do seu diretor. Tradução encontrada na revista «A Sementeira» de Lisboa (1909-1919) e revista por nós de acordo com o original italiano (que pode ser consultado em http://www.bibliotecaginobianco.it/apriflip.asp?idf=3411&id=56369 e http://www.bibliotecaginobianco.it/apriflip.asp?idf=3412&id=56374). Estes artigos relacionam-se com a conhecida série de artigos «A Organização», publicados em números posteriores do mesmo periódico de Ancona.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2020/05/22/o-individualismo-no-anarquismo-errico-malatesta/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Dissemos no número passado que o harmonismo — a fé numa lei natural por força da qual todas as coisas se acomodariam por si mesmas para o melhor — estava no fundo das ideias dos individualistas, e que só ele podia conciliar o seu desejo forte e sincero do bem de todos com o seu ideal de uma sociedade em que cada um gozasse de liberdade absoluta sem necessidade de estabelecer pactos e de entrar em transação com os outros.
Para dizer a verdade, um fundo de harmonismo, ou como se poderia também dizer, de fatalismo otimista, encontra-se em quase todos os anarquistas e talvez em todos os socialistas modernos das mais diversas escolas. Isso decorre de causas várias e opostas: um pouco a sobrevivência das ideias religiosas segundo as quais o mundo fora criado e ordenado para o bem dos homens; um pouco a influência dos economistas que tentaram justificar com uma pretensa harmonia de interesses os privilégios da burguesia; um pouco o favor quase exclusivo a que chegaram as ciências naturais; e depois o desejo de fazer as coisas belas e fáceis para fins de propaganda, e a comodidade que de saltar por cima das dificuldades sem se dar à pena de as enfrentar e resolver. E os individualistas só têm a culpa, ou o mérito, de terem tirado as consequências lógicas do erro de todos.
Mas o terem errado todos mais ou menos não é razão para persistir no erro. A chamada harmonia que existe na natureza significa tão só isto: se um facto existe, quer dizer que se verificaram as condições necessárias e suficientes para a sua existência.
A natureza não tem finalidade, ou, em todo o caso, não tem as finalidades humanas: para ela a morte, as dores, os massacres dos seres vivos, são indiferentes e podem ser elementos da sua harmonia. O facto de que o gato come o rato é um facto natural e portanto perfeitamente em harmonia com a ordem cósmica; mas se pudessemos interrogar os ratos, talvez nos dissessem que esta harmonia é para eles excessivamente desafinada.
É lei natural que os seres vivos têm que se nutrir, e que portanto o número e a força dos viventes é limitado pela quantidade de alimentos apropriados para cada espécie; mas a natureza mantém o limite, indiferentemente, com as catástrofes, as mortes de fome, as degenerações. E os exemplos poderiam multiplicar-se ao infinito.
Charles Fourier, para dizer o quanto a natureza é superior à arte, serviu-se de uma comparação tornada um clássico à força de ser repetida. “Colocai num vaso umas tantas pedrinhas de várias cores, agitai-as, depois depositai-as sobre uma mesa e obtereis uma combinação de cores tão bela que nenhum pintor a teria conseguido encontrar”. E pode até acontecer… mas uma madona do Tiziano não obtereis por certo; não obtereis sequer aquilo que quiserdes, ainda que seja uma coisa feia. E isto é o essencial.
A verdade é que esta lei misteriosa pela qual a natureza, providência benéfica, deveria acomodar as coisas ao gosto dos homens, é um absurdo que todos os factos contradizem e não resiste por um momento ao exame. Pode-se conceber o fatalismo, por mais que ele contradiga todas as motivações que nos fazem agir; mas o fatalismo otimista, um destino inteligente que se tenha preocupado com a felicidade das gerações humanas, é uma coisa deveras inconcebível!
Por que carga de água essa lei de harmonia haveria de esperar tantas miríades de séculos, para entrar em ação justamente quando nós tivermos proclamada a anarquia?
O Estado e a Propriedade individual são hoje certamente a causa dos mais graves antagonismos sociais; mas estas instituições não podem ter sido produzidas por uma miraculosa suspensão das leis da natureza, e têm de ser o efeito de antagonismos pré-existentes. Destruídas, elas reproduzir-se-iam, se os homens não tratassem de resolver os conflitos que já as produziram uma vez .
E conflitos de interesses e de paixões existem e existirão sempre; pois, ainda que se pudesse eliminar os existentes, a ponto de conseguir o acordo automático entre os homens, outros conflitos se apresentariam a cada nova ideia que germinasse num cérebro humano. De facto, como é que se pode imaginar que ao produzir-se num homem um novo desejo, os cérebros dos outros homens se venham a modificar imediatamente e de modo a dispô-los a acolher favoravelmente esse desejo? Como acreditar que cada nova ideia seja logo acolhida por todos? E depois, serão justas todas as ideias novas? Não se dirão mais asneiras? Ou imagina-se que o ambiente se tornará de tal modo uniforme que suprimirá toda a diferença inicial entre os homens e fará com que todos se desenvolvam sincronicamente em matemática igualdade?
E ainda assim, seria sempre necessário que esta uniformidade de morte fosse obra desejada dos homens, pois a natureza entregue a si própria produz sempre novas variedades!
Não devemos contentar-nos com vãs palavras. Quando se diz que “a liberdade de um encontra, não o limite, mas o complemento na liberdade dos outros”, exprime-se de forma afirmativa um ideal sublime, talvez o mais perfeito que se possa atribuir à evolução social; mas se com isso se pretende afirmar um facto positivo, atual, ou que para realizá-lo bastaria destruir as instituições presentes, troca-se simplesmente a realidade objetiva pelas conceções ideais do nosso cérebro. Deixando de parte a opressão que suportamos como proletários e como governados, quantas coisas não teremos vontade de fazer, e não as fazemos para não desagradar ou não incomodar os outros! Podemos abster-nos voluntariamente e também encontrar prazer em sacrificarmo-nos à comunidade; mas estaríamos mais contentes se os outros tivessem gostos e necessidades diferentes que nos permitissem fazer aquilo que gostaríamos: e isso prova que a nossa liberdade muitas vezes encontra sim um limite na liberdade dos outros.
E não pretendemos falar somente de “gostos e fantasias”, respeitáveis por certo, mas secundários. Os conflitos produzem-se naturalmente também na satisfação das necessidades essenciais, e cabe aos homens eliminá-los ou ajustá-los para o maior bem de todos. Pode alguém ter vontade ou necessidade de comer uma comida que só se pode obter privando dela outra pessoa, de ocupar um posto que já está ocupado por outra pessoa, etc., etc. Poder-se-á prover para que toda a espécie de comida possa estar à disposição de todos, para que cada um encontre o seu lugar… mas é preciso prover.
Dizer que naturalmente, sem pactos, se produzirá precisamente aquela comida que é desejada e os lugares se encontrarão à disposição como se deseja, significa preparar-nos desilusões terríveis; significa na prática renunciar a fazer, e portanto colocar-se em posição de ter que se sujeirar àquilo que farão os outros.
Assim é com o trabalho em geral. Diz-se que todos trabalharão porque o trabalho é exercício higiénico, e necessidade orgânica de exercer as próprias faculdades: e é verdade; mas o que não é verdade é que esta necessidade de exercício correspondará exatamente à necessidade de produtos que têm os homens, e se adaptará espontaneamente às condições impostas pelo instrumento de produção. Se cada um estivesse convencido de que fazendo o que mais lhe agrada faz tudo o que deve para que tudo caminhe bem na mesma, certamente muitos trabalhos necessários seriam feitos porque não agradam a ninguém, ou muitos não se poderiam fazer porque para os fazer é necessário que um certo número de homens se ponham de acordo e respeitem os acordos tomados.
É verdade que a terra pode nutrir abundantemente os seus habitantes e que o trabalho se pode organizar de modo que seja um prazer, ou, no pior dos casos, um leve esforço que todos fariam de boa vontade… mas é preciso organizá-lo. Acreditar que, trabalhando cada um ao acaso, quando bem entender e como bem entender, sem ter em conta o que fazem os outros e sem coordenar e subordinar a sua atividade à atividade coletiva, se deverá chegar ao fim do ano tendo produzido o grão, as máquinas, os sapatos e as alcachofras na quantidade necessária para satisfazer os desejos de todos… é como pôr o nosso destino nas mãos de Deus.
Em conclusão: o homem tem necessidade de viver em sociedade e para isso tem necessidade de se pôr de acordo com os outros homens e cooperar com eles. Ou esta cooperação será alcançada voluntariamente, por livres pactos, e será em vantagem de todos; ou será alcançada à força, pela imposição de alguns, e será explorada em proveito particular dos que a tiverem imposto.
A cooperação livre, voluntária, em benefício de todos, é a Anarquia; a cooperação forçada, em benefício principal de certas dadas classes, é o regime autoritário.
(de «L’Agitatore» de Ancona, número único — 25 de abril de 1897)