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Primeira Edição: Título original “Errori e Rimedi”. Do número único de “L’Anarchia“, Londres, agosto de 1896. Esta tradução (muito provavelmente de Neno Vasco) é extraída da revista A Sementeira de Lisboa (N.º 45 da 1.ª série, julho de 1912). Para facilitar a leitura, modernizámos o português em algumas passagens, sem deturpar o conteúdo.
Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/2019/02/19/erros-e-remedios/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Há hoje tanta gente diferente que se chama anarquista, e com o nome de anarquia expõem-se tantas ideias discordes e contraditórias, que na verdade não temos razão para nos espantarmos quando o público, que é estranho às nossas doutrinas e não pode à primeira vista distinguir as grandes diferenças que se ocultam sob o véu duma palavra comum, se faça surdo à nossa propaganda e nos olhe com receio.
Naturalmente, não podemos impedir que os outros adotem o nome que lhes apeteça; e abandonarmos nós o qualificativo de anarquistas não serviria para outra coisa senão para aumentar a confusão, pois o público julgaria simplesmente que tínhamos mudado de opiniões.
O mais que podemos e devemos fazer é distinguir-nos claramente de todos os que da anarquia têm um conceito diferente do nosso, ou que do mesmo conceito teórico deduzem consequências práticas contrárias às que nós deduzimos. E a distinção deve resultar da exposição clara das nossas ideias e da contínua repetição, franca e sonora, da nossa opinião sobre todos os factos que estejam em contradição com as nossas conceções e com a nossa moral, sem consideração alguma de pessoa ou de partido. Porque a pretensa solidariedade de partido, entre pessoas que não pertenciam nem podiam pertencer ao mesmo partido, tem sido precisamente uma das causas primordiais da confusão. E a tal ponto se chegou que muitos exaltam nos «camaradas» as ações que vituperam nos burgueses; e parece que o único critério que possuem do bem e do mal é este: se o autor do ato a julgar usa ou não o qualificativo de anarquista.
Muitos são os erros que levaram uns a colocar-se em contradição completa com os princípios que teoricamente professam, e os outros a sofrer esta contradição; como muitas são as causas que têm trazido para o meio de nós indivíduos que no fundo se riem do socialismo e da anarquia e de tudo o que está além dos interesses da sua pessoa.
Não posso empreender um exame metódico e completo desses erros; apontarei apenas alguns à medida que me ocorram.
Antes de mais nada falemos de moral.
É comum encontrarmos anarquistas que «negam a moral». A princípio é um simples modo de dizer para significar que, sob o ponto de vista teórico, não admitem uma moral absoluta, eterna, imutável, e que, na prática, se insurgem contra a moral burguesa, que sanciona a exploração da massa e condena os atos que põem em perigo e prejudicam os privilegiados. Mas depois, pouco a pouco, como costuma acontecer em tantas outras coisas, tomam a figura de retórica pela expressão exata da verdade. Esquece-lhes que na moral corrente, além das regras inculcadas pelos padres e pelos amos no interesse do seu domínio, existem também, e são na realidade as mais numerosas e substanciais, as regras que são o resultado e a condição de qualquer convivência social; esquece-lhes que a revolta contra toda e qualquer regra imposta pela força não significa de maneira alguma a renúncia a todo e qualquer freio moral e a todo e qualquer sentimento de obrigação para com os outros; esquece-lhes que para combater racionalmente uma moral é indispensável opor-lhe, em teoria e na prática, uma moral superior. E, se nisso forem um pouco ajudados pelo temperamento e pelas circunstâncias, acabam por se tornar imorais na aceção absoluta da palavra; isto é, homens sem regra de conduta, sem critério para guiar as suas ações, que cedem passivamente aos impulsos do momento. Hoje tiram o pão da boca para socorrer um companheiro e amanhã matarão um homem para poder ir a um bordel!
A moral é a regra de conduta que cada indivíduo tem por boa. Pode achar-se má a moral dominante numa dada época, num país determinado, em certa sociedade, e com efeito nós achamos péssima a moral burguesa; mas não se pode conceber uma sociedade sem uma moral, seja ela qual for, nem um homem consciente que não tenha critério algum para julgar o que é bom e o que é mau para si e para os demais. Quando combatemos a sociedade presente, à moral individualista dos burgueses, à moral da luta e da concorrência, opomos a moral do amor e da solidariedade, e tratamos de estabelecer instituições que correspondam a esta nossa conceção das relações entre os homens. De outra maneira, como poderíamos achar mau que os burgueses explorem o povo?
Outra afirmação daninha, que em muitos é sincera, mas que em outros é uma desculpa, é que o atual ambiente social não permite sermos morais; e que, por conseguinte, é inútil fazer esforços com os quais nada se pode alcançar: o melhor é cada um esgravatar para si o mais que possa, dadas as presentes circunstâncias, sem se importar com os outros, mudando depois de vida quando mudar a organização social. Certamente, todo o anarquista, todo o socialista compreende a fatalidade económica que hoje constrange o homem a lutar contra o homem, e todo o bom observador vê a impotência da revolta individual contra a força prepotente do ambiente social. Mas é igualmente certo que sem a revolta do indivíduo, que se associa aos outros indivíduos revoltados para resistir ao ambiente e tratar de o transformar, esse ambiente nunca mudaria.
Todos nós, sem exceção alguma, nos vemos forçados a viver mais ou menos em contradição com os nossos ideais; mas somos socialistas e anarquistas, pelo que sofremos com essa contradição e tratamos de a diminuir o mais possível. No dia em que nos adaptássemos ao meio, naturalmente nos passaria o desejo de o transformar e nos converteríamos em simples burgueses: burgueses sem dinheiro talvez, mas nem por isso menos burgueses nos atos e nas intenções.
Outra fonte de erros e de culpas gravíssimas tem sido o modo como muitos interpretaram a teoria da violência.
A sociedade atual mantém-se com a força das armas. Nunca classe oprimida alguma conseguiu emancipar-se sem recorrer à força; nunca as classes privilegiadas renunciaram a uma parte, mínima embora, dos seus privilégios, senão pela força, ou por medo à força. As instituições sociais presentes são tais que se torna impossível transformá-las por meio de reformas graduais e pacíficas, e impõe-se a necessidade duma revolução violenta que, violando e destruindo e legalidade, funde uma sociedade sobre novas bases. A obstinação, a brutalidade com que a burguesia responde aos mais anódinos pedidos do proletariado, demonstram a fatalidade da revolução violenta. É, pois, lógico e necessário que os socialistas, e especialmente os anarquistas, sejam um partido revolucionário e prevejam e apressem a revolução.
Mas infelizmente há nos homens uma tendência a confundir o fim com os meios; e a violência, que para nós é e deve continuar a ser uma dura necessidade, converteu-se para muitos em fim único da luta. A história está cheia de exemplos de homens que, tendo começado a lutar por um fim elevado, perderam no calor da refrega todo o domínio sobre si mesmos, e perdendo de vista o fim alvejado, se transformaram em feras carniceiras. E, como o demonstram factos recentes, muitos anarquistas não escaparam a este terrível perigo da luta violenta. Irritados com as perseguições, enlouquecidos com os exemplos de cega ferocidade que a burguesia dá diariamente, começaram a imitar o exemplo dos burgueses, e o espírito de amor foi suplantado pelo de vingança, pelo de ódio. E, como os burgueses, chamaram justiça ao ódio e à vingança. Depois, para justificar os seus atos, que podiam entretanto explicar-se como efeito das horríveis condições do proletariado e servir como uma razão mais para invocar a destruição duma ordem de coisas que produz tão tristes resultados, alguns começaram a formular a mais estranha, a mais fanática, a mais autoritária das teorias, e sem reparar na contradição, apresentaram-na como um novíssimo progresso da ideia anarquista. Eles, que aliás se dizem ao mesmo tempo deterministas e negam toda a responsabilidade, dedicaram-se a procurar os responsáveis do estado atual de coisas, encontrando-os não só nos burgueses conscientes que fazem o mal sabendo que o fazem, não só entre a massa de burgueses que são burgueses por que assim nasceram e nunca a si próprios perguntaram o porquê da sua situação; mas até entre a massa de trabalhadores que, suportando a opressão sem revolta, são o seu principal esteio; e para todos decidiram… a pena de morte! E até houve quem delirasse sobre não sei que «responsabilidade potencial» para resolver o extermínio das mulheres grávidas e das crianças! Alguns que com razão negam aos juízes burgueses o direito de aplicar uma hora que seja de cadeia, fazem-se árbitros da vida e da morte dos outros e chegam a dizer que se tem o direito de matar quem não pense como nós! Parece incrível e muitos não quererão acreditar. E no entanto, há tempos, todos podiam ler num jornal «anarquista» palavras como estas: «Em Barcelona estalou uma bomba numa procissão religiosa, deixando no solo 40 mortos e não sabemos quantos feridos. A polícia prendeu mais de 90 anarquistas com a esperança de deitar a mão ao heróico autor do atentado.» Nenhuma razão de luta, nenhuma desculpa, nada: é heróico matar mulheres, crianças, homens inermes, porque eram católicos! Isto é pior do que a vingança; é o furor doentio do místico sanguinário, é o holocausto sangrento nas aras dum deus… ou duma ideia, o que afinal dá na mesma. Ó Torquemada! Ó Robespierre!
Apresso-me a declarar que a grande maioria dos anarquistas espanhóis protestaram contra o ato insano. Mas há também quem se chame anarquista e louve o ato, e isto basta para que o governo finja mistutá-los todos num feixe e o público os confunda a valer.
Gritemo-lo com força e sempre: os anarquistas não devem, não podem ser carrascos: são libertadores. Não odiamos pessoa alguma; não lutamos para nos vingar, nem para vingar os mais; queremos o amor para todos, para todos a liberdade.
Porque a atual fatalidade social e a obstinada resistência da burguesia obrigam os oprimidos a empregar a força física como último recurso, não recuemos ante a dura necessidade e preparemo-nos para usá-la vitoriosamente. Mas não façamos vítimas inúteis, mesmo entre os inimigos. O próprio fim pelo qual lutamos nos força a ser bons e humanos mesmo no meio do furor da batalha; de outro modo, não se explica como poderíamos querer lutar por um fim como o nosso, se não fôssemos bons e humanos. E não nos esqueçamos de que uma revolução libertadora não pode sair do extermínio e do terror, que foram e serão sempre geradores de tirania.
Por outro lado, ameaça o movimento anarquista um erro contrário àquele em que caiem os terroristas. Um pouco como reação contra o abuso que nos últimos anos se faz da violência, um pouco como sobrevivência da ideia cristã, e sobretudo por influência das prédicas místicas de Tolstoi, às quais o génio e altas qualidades do autor dão voga e prestígio, começa a adquirir certa importância entre os anarquistas o partido da resistência passiva, que tem por princípio ser preferível deixar que nos oprimam e vilipendiem, a nós e aos outros, do que fazer mal ao opressor. É o que se tem chamado anarquia passiva.
Como alguns, impressionados pela minha aversão contra a violência inútil e danosa, quiseram atribuir-me, não sei se com intenção de me gabar ou de me denegrir, tendências para o tolstoísmo, aproveito o ensejo para declarar que, a meu ver, esta doutrina, por mais sublimemente altruísta que pareça, é na realidade a negação do instinto e dos deveres sociais. Um homem pode, se é muito… cristão, sofrer pacientemente todas as espécies de vexações sem se defender por todos os meios possíveis, e continuar a ser talvez um homem moral. Mas na prática, não seria ele, ou outro qualquer, um terrível egoísta se deixasse oprimir os outros sem tentar defende-los? se, por exemplo, antes quisesse ver reduzida à miséria uma classe, pisado um povo pelo invasor, ofendido um homem na sua vida e na sua liberdade, do que arranhar a pele do opressor?
Pode haver casos em que a resistência passiva seja uma arma eficaz, e seria então por certo a melhor das armas, por ser a que mais pouparia sofrimentos humanos. Mas, em regra, professar a resistência passiva significa segurar os opressores contra o medo à revolta e, portanto, trair a causa dos oprimidos.
É curioso observar como os terroristas e os tolstoístas, precisamente por serem místicos uns e outros, chegam a consequências práticas quase iguais. Aqueles não vacilariam em destruir meio mundo contanto que fizessem triunfar a ideia; estes deixariam toda a humanidade sob o peso dos maiores sofrimentos para não violar um princípio.
Quanto a mim, violaria todos os princípios do mundo para salvar um homem: o que, afinal, de facto, seria respeitar o princípio, visto que, a meu ver, todos os princípios morais e sociais se reduzem a um único: o bem dos homens, de todos os homens.