Anarquia e Violência

Errico Malatesta

Setembro/Outubro de 1894


Primeira Edição: Partes I e II, Liberty (Londres) 1, números 9 (setembro de 1894) e 10 (outubro de 1894).

Fonte: Instituto de Estudos Libertários

Tradução: Inaê Diana Ashokasundari Shravya

HTML: Fernando Araújo.


Desde as suas primeiras manifestações, os anarquistas têm sido quase unânimes quanto à necessidade do recurso à força física para transformar a sociedade existente; e, enquanto os demais partidos autodenominados revolucionários foram avançando aos tropeços para o pântano parlamentar, a ideia anarquista se identificou de algum modo com a insurreição armada e a revolução violenta.

Mas, talvez, não houve explicações suficientes quanto ao tipo e ao grau de violência a empregar; e aqui, como em muitos outros casos, foram vagueiam e sentimentos muito distintos sob nosso nome em comum.

De fato, as numerosas atrocidades que têm sido ultimamente perpetradas por anarquistas e em nome da anarquia, trouxeram à luz do dia profundas diferenças que antes haviam sido ignoradas, ou escassamente previstas.

Alguns companheiros, enojados da atrocidade e da inutilidade de certos atos destes, se declararam em oposição a toda violência, a que for, exceto em casos de defesa pessoal contra ataques diretos e imediatos. O que, na minha opinião, significaria a renúncia a toda iniciativa revolucionária, e a reserva de nossos golpes para os insignificantes, e muitas vezes involuntários, agentes do governamento deixando em paz os organizadores do, e os principais beneficiados pelo, governamento e exploração capitalista.

Outros companheiros, pelo contrário, conduzidos pela excitação da luta, azedos pela infâmia da classe dominante, e seguramente influenciados pelo que restou das antigas ideias jacobinas que se infiltram na educação política da geração presente, aceitaram precipitadamente todo e qualquer tipo de violência, sempre e quando for cometida em nome da anarquia; e declararam menos que o direito à vida e à morta àqueles que não são anarquistas, ou àqueles que não são anarquistas exatamente de acordo ao seu modelo.

E a massa do público, ignorando estas polêmicas, e enganados pela imprensa capitalista, enxergam na anarquia nada mais que bombas e adagas, e habitualmente consideram os anarquistas como feras selvagens sedentas de sangue e de ruína.

É portanto necessário que nos expliquemos com muita claridade em relação a esta questão da violência, e que cada um de nós assuma uma posição em concordância: necessário tanto aos interesses das relações de cooperação prática que possam existir entre aqueles que professam o anarquismo, assim como também aos interesses da propaganda geral, e a nossas relações com o público.

Na minha opinião, não pode haver dúvida de que a ideia anarquista, que nega o governamento, por sua própria natureza se opõe à violência, que é a essência de todo sistema autoritário – o modo de ação de todo governamento.

A anarquia é a liberdade na solidariedade. É somente através da harmonização de interesses, através da cooperação voluntária, através do amor, do respeito, e da tolerância recíproca, pela persuasão, pelo exemplo, e pelo contágio da benevolência, que pode e deve triunfar.

Nós somos anarquistas porque acreditamos que nunca poderemos alcançar o bem-estar combinado de todos – o qual é o propósito dos nossos esforços – exceto através duma livre compreensão entre as pessoas, e sem impor pela força a vontade de ninguém sobre a de nenhum outro.

Noutros partidos, há certamente pessoas que são tão sinceras e tão devotas aos interesses do povo como os melhores de nós poderiam ser. Mas o que caracteriza a nós anarquistas e nos distingue de todos os demais é que não acreditamos que somos possuidores da verdade absoluta; não acreditamos que somos infalíveis, nem oniscientes – a qual é a pretensão implícita de todos os legisladores e candidatos políticos que for; e consequentemente, não acreditamos que somos chamados à direção e à tutela do povo.

Somos, por excelência, o partido da liberdade, o partido do livre desenvolvimento, o partido da experimentação social.

Mas contra esta mesma liberdade que reclamamos para todos, contra a possibilidade desta busca experimental de melhores formas de sociedade, se erguem barreiras de ferro. Legiões de soldados e policiais estão prontos para massacrar e encarcerar quem seja que não se submeta mansamente às leis que um punhado de pessoas privilegiadas fizeram para seus próprios interesses. E inclusive se não existissem soldados nem polícia, enquanto a constituição econômica da sociedade prossiga sendo como é, a liberdade ainda seria impossível; porque, já que todos os meios para a vida estão sob o controle duma minoria, a grande massa da humanidade está obrigada a trabalhar para os outros, e se juntarem na pobreza e na degradação.

A primeira coisa que se precisa fazer, portanto, é se desfazer da força armada que defende as instituições existentes, e através da expropriação dos proprietários atuais, por a terra e os demais meios de produção à disposição de todos. E isto não possível de ser feito – na nossa opinião – sem o emprego da força física. Mais ainda, o desenvolvimento natural dos antagonismos econômicos, a consciência desperta duma fração importante do proletariado, o número constantemente crescente de desempregados, a resistência cega das classes dominantes, em resumo, a evolução contemporânea como um todo, estão nos conduzindo inevitavelmente ao rebentar uma grande revolução, que derrubará tudo com a sua violência, e os sinais predecessores desta já são visíveis. Esta revolução ocorrerá, com ou sem nós; e a existência dum partido revolucionário, consciente do fim a alcançar, servirá para dar uma direção à violência, e para moderar seus excessos através da influência dum ideal nobre.

É assim que somos revolucionários. Neste sentido, e dentro destes limites, a violência não é uma contradição com os princípios anarquistas, dado que não resulta da nossa livre escolha, mas que nos é imposta pela necessidade na defesa de direitos humanos sem reconhecer, que são impedidos pela força bruta.

Repito: como anarquistas, não podemos e não desejamos empregar a violência, exceto em nossa defesa e na dos demais contra a opressão. Mas reclamamos este direito à defesa – completo, real e eficaz. Isto é, queremos ser capazes de chegar através do instrumento material que nos fere, e atacar a mão que sustenta o instrumento, e a cabeça que a controla. E queremos escolher nossa própria hora e campo de batalha, de modo a atacar o inimigo sob condições mais favoráveis possível: quer quando já está nos atacando e provocando, quer quando dorme, e relaxa sua mão, contando com a submissão popular. Pois é um fato, a burguesia está em permanente estado de guerra contra o proletariado, pois nunca, nem por um momento, cessa de explorar este e de oprimi-lo.

Infelizmente, entre os atos cometidos em nome da anarquia, houveram alguns que, ainda que carentes de características anarquistas, foram confundidos com outros atos de óbvia inspiração anarquista.

Da minha parte, protesto contra esta confusão entre atos totalmente distintos em valor moral, bem como também em efeitos práticos.

Apesar da excomunhão e do insulto de certas pessoas, eu considero que é essencial discriminar entre o ato heroico duma pessoa que conscientemente sacrifica sua vida por aquilo que acredita que fará bem, e o ato quase involuntário de algum infeliz o qual foi reduzido pela sociedade ao desespero, ou o ato brutal duma pessoa que foi descarrilhada pelo sofrimento, e se contagiou desta selvageria civilizada que rodeia a todos nós; entre o ato inteligente duma pessoa que, antes de agir, pondera o bem ou o mal provável que poderia resultar por sua causa, e o ato irreflexivo da pessoa que golpeia ao acaso; entre o ato de quem se expõe ao perigo para poupar os seus semelhantes do sofrimento, e o ato burguês de quem leva sofrimento a outros em para benefício próprio; entre o ato anarquista de quem seja destruir os obstáculos que se põem no caminho da reconstituição da sociedade sobre a base do livre acordo de todos, e o ato autoritário da pessoa que pretende castigar a multidão por sua estupidez, aterrorizá-la (o que a torna ainda mais estúpida), para impor suas próprias ideias.

Definitivamente, a burguesia não tem direito algum de se queixar da violência de seus inimigos, já que toda a sua história, enquanto classe, é uma história de derramamento de sangue, e já que o sistema de exploração, que é a lei de sua vida, produz diariamente hecatombes de inocentes. Definitivamente, também, não são os partidos políticos os que devem se queixar da violência, pois estes têm, um e todos, as mãos vermelhas de sangue derramado desnecessariamente, e completamente por seu próprio interesse; estes, que criaram os jovens, geração pós geração, no culto à força triunfante; estes, que quando não são apologistas da Inquisição, são, no entanto, entusiastas admiradores do Terror Vermelho que freou o esplêndido impulso revolucionário a finais do século passado, e preparou o caminho ao Império, para a restauração, e o Terror Branco.

A aparente gentileza que ocorreu em certa parte da burguesia, agora que suas vidas e suas carteiras se veem ameaçadas, é, em nossa opinião, é algo que absolutamente não se deve confiar. Mas não é característica nossa regular nossa conduta pela quantidade de prazer ou vexame que possa ocasionar a burguesia. Devemos nos conduzir de acordo com os nossos princípios; e o interesse de nossa causa, que ao nosso parecer é a causa de toda a humanidade.

Já que os antecedentes históricos nos levaram à necessidade da violência, empreguemos a violência; mas não esqueçamos nunca que é um caso de dura necessidade, e é em essência contrária às nossas aspirações. Não esqueçamos que toda a história testemunha este inquietante fato – quando a resistência à opressão foi vitoriosa gerou sempre ova opressão, e isso nos adverte de que deverá ser assim sempre até romper para sempre com a sangrenta tradição do passado, e que a violência se limite tão somente à ais estrita necessidade.

A violência gera violência; e o autoritarismo gera opressão e escravidão. As boas intenções dos indivíduos ão podem de modo algum afetar esta sequência. O fanático que diz a si mesmo que salvará o povo pela força, e a seu próprio modo, é sempre uma pessoa sincera, mas é um terrível agente da opressão e da reação. Robespierre, com horrível boa fé e sua consciência pura e cruel foi tão fatal para a Revolução como a ambição pessoal de Bonaparte. O fervor ardente de Torquemada pela salvação das almas causou muito mais dano à liberdade de pensamento e ao progresso da mente humana que o ceticismo e corrupção de Leão X e sua corte.

As teorias, as declarações de princípio, ou as magnânimas palavras nada podem fazer contra a filiação natural dos fatos. Muitos mártires morreram pela liberdade, muitas batalhas foram enfrentadas e ganhas em nome do bem-estar de toda a humanidade, e no entanto a liberdade foi depois de tudo significar nada mais que a ilimitada opressão e exploração dos pobres pelos ricos.

A ideia anarquista não está mais assegurada contra a corrupção do que a ideia liberal provou não estar, mas o começo da corrupção já poderia ser observado se notamos o desprezo pelas massas que exibem certos anarquistas, sua intolerância, e seu desejo de espalhar o terror ao seu redor.

Anarquistas! Salvemos a anarquia! A nossa doutrina é uma doutrina de amor. Não podemos, e não devemos ser nem vingadores, nem distribuidores de justiça. A nossa tarefa, ossa ambição, nosso ideal, é ser libertadores.


Inclusão: 19/01/2022