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Primeira Edição: ....
Fonte: Passa Palavra - Trecho da obra O trabalhador intelectual publicada originalmente em 1905, este artigo foi traduzido por Horácio González, revisado por Heitor F. da Costa, Aníbal Mari e José E. Andrade e publicado originalmente na coletânea Marxismo heterodoxo organizada por Maurício Tragtenberg (São Paulo: Brasiliense, 1981). Este e outros escritos de Jan Waclaw Machajski jamais foram reeditados em língua portuguesa. https://passapalavra.info/2018/02/117449/
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O socialismo do século XIX não é, como afirmam seus crentes, um ataque contra os fundamentos do regime despótico que existe há séculos sob o disfarce da sociedade civilizada, do Estado. Não é mais do que o ataque a uma só forma deste regime: a dominação dos capitalistas. Mesmo no caso de vitória, este socialismo não suprimiria a pilhagem secular, não eliminaria mais do que a propriedade privada dos meios materiais de produção, da terra e das fábricas. Ele não suprimiria mais do que a exploração capitalista.
A supressão da propriedade capitalista, isto é, a posse privada dos meios de produção, não significa ainda a desaparição da propriedade privada familiar em geral. É justamente a instituição desta última que garante a pilhagem secular, que assegura à minoria possuidora e à sua descendência todas as riquezas e toda a herança cultural da humanidade. É precisamente esta instituição que condena a maioria da humanidade a nascer escrava, a uma vida de trabalho manual.
A expropriação da classe dos capitalistas não significa ainda, de nenhum modo, a expropriação de toda a sociedade burguesa.
Somente pela supressão dos capitalistas privados, a classe operária moderna, os escravos contemporâneos, não deixam de serem escravos, condenados a um trabalho manual durante toda a vida; consequentemente, a mais-valia nacional, criada por eles não desaparece, mas passa pelas mãos do Estado democrático, como fundo de manutenção para a existência parasitária de todos os extorsionários, de toda a sociedade burguesa. Esta última, depois da supressão dos capitalistas, continua a ser uma sociedade dominante, tal como anteriormente era a dos dirigentes e governantes cultos, a sociedade dos “colarinhos brancos”; ela fica com a posse do lucro nacional, que se partilha da mesma forma que antigamente: “honorários” dos “trabalhadores intelectuais”; pois graças à propriedade e ao modo de vida familiar, este sistema se conserva e se reproduz de geração em geração.
A socialização dos meios de produção não significa senão a abolição do direito de propriedade privada e da gestão privada das fábricas e da terra. Em seus ataques contra o industrial, o socialista não atinge em nada os “honorários” do diretor e do engenheiro.
O socialismo do século passado deixava invioláveis todos os ganhos dos “colarinhos brancos”, enquanto “salários dos trabalhadores intelectuais” e considerava a intelligentsiacomo “não interessada e não tomando parte da exploração capitalista” (Kautsky).
O socialista contemporâneo não pode e não quer suprimir a pilhagem e a servidão seculares.
Na segunda metade do século XIX, o socialismo proclamou-se em toda a parte uma ciência social. Depois da economia política “proletária”, criou-se agora uma sociologia “proletária” e uma filosofia histórica “socialista”.
A ciência social não pode ser inimiga do regime de servidão que existe desde o desenvolvimento histórico da civilização. Ela não deseja ser mais do que a analista imparcial deste desenvolvimento histórico; consequentemente, ela não é sua inimiga, mas sua tutora.
Entretanto, o socialismo tem experimentado uma irresistível tendência a converter-se numa verdadeira ciência social. Os sábios socialistas – afastando-se sem cessar e cada vez mais da ideia de que toda a história passada das sociedades civilizadas nada é senão a história da servidão da maioria da humanidade, de que as leis históricas dos séculos passados, até nossos dias, são as leis fundadas sobre a pilhagem, a expressão da vontade da minoria dirigente – dedicam-se a analisar estas leis como leis objetivas do desenvolvimento da comunidade humana, ocupando-se de “descobri-las e formulá-las com o fim de submeterem-se a elas”.
Graças a essa propagação da fé, chegam os sábios socialistas a convencer as massas operárias a que se submetam à marcha histórica objetiva, ao mesmo tempo que se submetem, indubitavelmente, às leis da natureza do século XIX, que nos têm preparado o paraíso socialista.
Sobre esta trilha, a ciência socialista se reconhece imediatamente como um simples meio de adormecimento do espírito de revolta dos operários; ela chega a ser, apesar de seu ateísmo, uma simples meditação religiosa e uma súplica pela vinda do paraíso socialista. Converte-se numa religião que obscurece o espírito e a vontade dos escravos do regime burguês.
A ciência socialista marxista tem criado uma verdadeira providência socialista, cuja ação a “produção capitalista cava ela mesma sua própria sepultura”, se destrói ela mesma por seu próprio desenvolvimento; e as leis econômicas irreversíveis, independentes mesmo da vontade dos homens, levam diretamente ao “reino da igualdade e da liberdade”.
Os anos passam, e as previsões marxistas dos sábios socialistas revelam sua identidade com as previsões de todos os demais padres e pregadores. Eles prometem aos escravos da sociedade burguesa a felicidade depois da morte, eles garantem o paraíso socialista a seus descendentes.
A certeza inabalável da religião científica marxista no advento inevitável do reino socialista da liberdade abençoa, ao mesmo tempo, o progresso burguês, o “progressismo”, a “legitimidade”, a “conformidade com os objetivos” do regime contemporâneo fundado sobre a pilhagem. A crença marxista na passagem inevitável do capitalismo para o socialismo; a crença no capitalismo, enquanto premissa indispensável para o socialismo, converte-se finalmente no equivalente a um alto grau de amor ao progresso burguês, ao desenvolvimento da dominação total da burguesia, à pilhagem burguesa total. Uns crentes, os verdadeiros socialistas proletários, permeados de religião marxista, chegam a ser os melhores combatentes pelo progresso burguês, os apóstolos mais calorosos e os participantes empolgados da revolução burguesa.
A “pureza” original do evangelho socialista, apesar de todas as deformações trazidas pelos maus pastores da social-democracia, não pode ser nem perdida nem esquecida. Os ensinamentos contemporâneos do anarquismo colocam-se como tarefa voltar aos princípios inabaláveis do socialismo do século passado, em toda sua pureza. Ao invés do oportunismo da social-democracia que tem escandalizado e corrompido as massas por sua aspiração à reforma e ao desenvolvimento do regime atual, o ensinamento anarquista conclama as massas para a aspiração pura ao ideal, ao movimento direto, sem etapas, em direção à “meta final”.
Os anarquistas devem, primeiramente, não esquecer que neste terreno eles não inventaram nada de novo e que não escapam do círculo das idéias dos marxistas ortodoxos, os quais não esqueceram jamais, em todos os aspectos da ortodoxia, a “meta final”, inclinando-se, sem cessar, diante das práticas dos revisionistas, até que estas demonstraram-lhes no fim, resolvendo a “bernsteiniada”, que sua aspiração à “meta final” devia constituir uma mesma coisa com o reformismo bernsteiniano, porque a “meta final” era o movimento – quer dizer, nada.
Quanto aos anarquistas, não podem negar a sentença de Bernstein, segundo a qual na “vida”, na luta prática e “real”, cada passo do socialista não pode evitar converter-se num compromisso e num desvio diante da doutrina; tanto mais que entre eles, os anarquistas, apareceu ultimamente uma “prática” específica (o anarco-sindicalismo francês). O anarco-sindicalista, só pela sua participação em qualquer greve, atraiçoa os princípios, pois nesse caso ele não luta mais pela “meta final”, mas pelas “concessões”, pelas “reformas”.
Aparentemente, o socialismo do século passado não pode encontrar uma via sem acomodamentos com a ordem burguesa existente.
Tal via se reencontra, inteira e exclusivamente, inscrita em filigranas no regime burguês contemporâneo. O socialismo do século XIX, mesmo em seu aspecto mais assustador, o anarquismo, converte-se num fato inteiramente legal, em uma república democrática, na forma do sindicalismo e da “propaganda do ideal anarquista”. Os anarquistas mais irredutíveis chegam a ser cidadãos bem intencionados – tanto como os social-democratas da sociedade contemporânea – e já não mais podem conspirar contra as “liberdades” democráticas de expressão, de “imprensa” e “de associação”, que dão a possibilidade, segundo suas convicções (que nesta questão são as mesmas que as dos social-democratas), de uma preparação legal para a revolução social.
A atividade clandestina conspirativa chega a ser, para os anarquistas, dentro de um Estado democrático, tão utópica, tão inocente como para qualquer social-democrata.
De fato, a derrubada da ordem de servidão existente como única via direta, como única via livre de qualquer compromisso com a legalidade burguesa, é a conspiração clandestina para a transformação das greves operárias freqüentes e violentas em uma insurreição, em uma revolução operária mundial. Esta via encontra-se inteiramente fora dos limites do ensinamento socialista contemporâneo.
Os socialistas do século XIX declaram-se inimigos revolucionários irredutíveis, não do regime contemporâneo de classes, não do regime burguês em geral, mas apenas da forma da sociedade civilizada que nasce no começo do desenvolvimento da produção capitalista, quando ela, explicam os marxistas, ainda não conseguiu revelar seu papel progressista, manifestando somente seu aspecto mais sombrio.
É justamente na medida em que o socialismo desenvolve-se como ciência, que se firma e se elabora a consciência dos socialistas na sua hostilidade irredutível a respeito, unicamente, da forma monstruosa da sociedade contemporânea, forma adquirida pela exploração capitalista.
Como será mostrado adiante, o socialismo enquanto ciência não pode exprimir nada além da revolta contra as “anormalidades mórbidas” da sociedade contemporânea, não contra a sociedade civilizada em geral.
Com efeito, quais são os motivos, as razões para atacar o regime burguês atual, segundo os ensinamentos socialistas? Em primeiro lugar, o agravamento da situação da população em comparação com seu estado dentro das formas sociais anteriores, conseqüência da ofensiva da produção capitalista. Em seguida, o comportamento desordenado da economia, a “anarquia” da produção, a incapacidade da sociedade atual para garantir uma justa e constante evolução da vida econômica do país.
Os ensinamentos marxistas predizem a queda do capitalismo, independentemente da vontade dos homens e sustentam a necessidade objetiva do socialismo com respeito à sociedade existente. O objetivismo marxista é um sistema que está fundado inteiramente em postulados deste gênero.
O regime socialista converte-se numa necessidade para todos, pois as crises não permitem à sociedade existir na sua forma anterior. Não é para a derrubada da sociedade atual que os socialistas se revoltam contra o regime capitalista, mas para curá-lo dessas crises, o que não significa de nenhuma forma, pois, a queda do regime secular de servidão, mas, ao contrário, sua consolidação.
Os socialistas científicos declaram que o regime capitalista é incapaz de durar, porque não está em condições de cumprir o que realizaram os regimes de épocas anteriores, quer dizer, de ocupar toda a força de trabalho que, ao invés, esbanja-se pelo desemprego.
O capitalismo, enquanto pior estádio da sociedade civilizada, concentra, contrariamente ao passado, todas as riquezas nas mãos de um punhado de magnatas. Não somente ele não permite aos elementos mais fortes das classes inferiores esperar por uma melhoria de sua situação, mas ameaça mesmo sua existência. Expropria os próprios capitalistas. Diminui o número de possuidores. Vem então a argumentação bem conhecida do socialismo científico: no final do século XIX havia um campesinato e um artesanato florescentes; os camponeses mais dedicados tinham a possibilidade de aceder à condição de mestres; as individualidades mais capazes detinham igualmente a possibilidade de se elevar a posições mais privilegiadas. As velhas formas da sociedade conservavam entre os explorados a esperança de que os mais hábeis dentre eles, um sobre cem, por exemplo, ou um sobre mil, pudessem converter-se em mestres. O capitalismo quase tem aniquilado essa possibilidade, e por isso mesmo ele tem-se condenado a desaparecer. É incapaz de multiplicar o número de mestres.
Os socialistas são os inimigos da ordem existente, porque ela não sabe gerir racionalmente a economia, porque é incapaz de progredir, porque os governantes são muito ignorantes e incapazes de resolver os problemas da vida, que cada vez mais nascem e se desenvolvem.
O Manifesto comunista esforça-se em apresentar tudo isto o mais claramente possível:
“Sem dúvida, a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dirigente e de impor à sociedade, como lei suprema, as condições de vida de sua classe. Ela não pode exercer seu domínio, pois não pode assegurar a existência do escravo, no interior mesmo de sua escravidão: ela é forçada a deixá-lo cair tão baixo que tem de nutri-lo em lugar de ser nutrida por ele. A sociedade não pode mais viver sob a burguesia, o que quer dizer que a existência da burguesia e a existência da sociedade chegaram a se tornar incompatíveis”(1)
Basta lembrar novamente a natureza da polêmica entre os “ortodoxos” e Bernstein, para confirmar tudo o que tínhamos dito antes.
Para provar que não tem sentido ser revolucionário na Europa Ocidental, que a social-democracia, como defensora da classe operária, deve tornar-se reformista, Bernstein tinha que demonstrar que o capitalismo contemporâneo não representava um agravamento do regime social em comparação com aquele que o tinha precedido. Todos os ortodoxos reconheceram que a existência do socialismo científico estava ligada muito intimamente à resolução deste problema, em qualquer sentido que seja.
A derrubada da ordem atual não pode ser possível e sensata a não ser quando ela degenera ou se debilita.
Kautsky o reconhece muito ingenuamente. Se fosse verdade, diz, que, como afirma Bernstein, a crise que ameaça incessantemente o mundo industrial chegasse a desaparecer, que o capitalismo não aniquilasse as classes médias, que o número dos possuidores não diminuísse, então não teria sentido derrubar a ordem existente e ser em geral socialista (ver seus artigos contra Bernstein em Vorwärts).
A degeneração das classes dirigentes, para um marxista ou para qualquer outro socialista contemporâneo, representa a premissa indispensável para a supressão da escravidão. Se a sociedade burguesa é capaz de desenvolver-se, sua derrubada torna-se impensável. Não se pode aspirar a uma revolução violenta se alguém não acredita, para si mesmo, e se não pode convencer aos outros, que a burguesia é débil, que o regime burguês “decompor-se-á” depressa e inevitavelmente a si próprio.
Os ortodoxos que sentem a necessidade de acalmar a intransigência dentro de seu exército, dirigido unicamente contra as leis e as autoridades que impedem o progresso burguês (é nesta posição que se encontra a social-democracia russa diante do tzarismo), são levados a originar a crença em uma “bancarrota da burguesia” inevitável e imediata, a despeito de todos os passes de mágica a que isso os obriga. Assim, para Parvus, aquele mesmo que considera a revolução socialista tão longínqua, como para todo bernsteiniano, só uma revolução burguesa é possível na Rússia, por agora; o mesmo Parvus demonstraria imediatamente, apoiado em números, que a “catástrofe industrial e a bancarrota definitiva da burguesia produzir-se-ão obrigatoriamente bem cedo”.
O marxismo espera atestar seu revolucionarismo de outra maneira, menos lutando com real intransigência contra o regime de pilhagens. Contenta-se com demonstrar que o momento histórico mesmo, as leis mesmas da sociedade humana, independentes e à margem dos homens – é uma verdadeira predição socialista – não fazem senão condenar a sociedade burguesa à ruína e ao desfalecimento e lhe dar ao mesmo tempo a possibilidade de libertar o mundo da servidão.
Mas não há clarividência socialista, não há nenhuma lei de desenvolvimento da sociedade independente da vontade dos homens. Não há forças da natureza que possam recompensar os “bons” oprimidos em razão de suas infelicidades, e que punissem os opressores injustos por suas más ações. Os socialistas indignam-se e lutam contra o agravamento do regime de classes; sua luta, somente ela, pode suprimir esse agravamento, e não o próprio regime de classes.
É por isso que a despeito das expectativas e esperanças dos ingênuos crentes, o socialismo científico não pode senão colaborar ativamente com o desenvolvimento do progresso burguês. Isto se torna neles uma consciência específica muito profunda. A social-democracia incorpora nele, com suas profissões de fé, todos os elementos capazes e competentes da sociedade burguesa contemporânea. Nos Interesses de classe, Kautsky declara:
“(…) Se a social-democracia chegasse a ser o único partido lutando pelo progresso social, deveria ao mesmo tempo converter-se no partido de todos os que aspiram ao desenvolvimento posterior da sociedade.
”(…) Atualmente, somente o proletariado e seu partido representam os interesses do progresso social e, ao mesmo tempo, os interesses vitais de toda a sociedade (…) Os interesses proletários coincidem atualmente com os da nação.“
Da mesma maneira que a religião cristã, depois de ter condenado o mundo do mal, o tem encarnado ela mesma com maior conseqüência, os partidos socialistas, que têm condenado à ruína a ordem existente, tornam-se, com grande dano para os ortodoxos, os partidos do progresso burguês.
A fé socialista impulsionou seus fiéis para lutar pelo progresso burguês, pelo fortalecimento e desenvolvimento dos Estados burgueses constitucionais. A democracia industrial e política, a obra cultural nas prefeituras, as cooperativas e os sindicatos, tudo isso deve preparar os operários para a vida socialista.
Os anarquistas irredutíveis vão começar, evidentemente, a dizer que o mundo do mal burguês corrompeu unicamente aos social-democratas, que a queda e o oportunismo destes apresentam-se como conseqüência da sua participação nos órgãos legislativos atuais. Quanto a eles, os anarquistas, preconizando a não-participação na política, estão ao abrigo dessa degenerescência.
O que acima dissemos sobre a natureza de todo o ensinamento socialista prova toda a vaidade das esperanças e confiança dos anarquistas. O fundamento do ensinamento socialista – a fórmula da socialização como panacéia – em qualquer forma pura em que seja considerado, não é em si mesmo mais do que uma ofensiva contra uma das formas de pilhagem, e não contra a pilhagem secular na sua totalidade. Não há nada que esperar de diferente da doutrina anarquista, pois ela tenta conservar, da mesma forma que as outras, o evangelho socialista revelado desde longo tempo, e nisso se isola.
Com efeito, o principal teórico do anarquismo contemporâneo, Kropotkine, chama a todo mundo para a revolução, salientando os mesmos motivos que os socialistas científicos. Podemos ler nas Palavras de um rebelde(2) o que segue:
“Nós constataremos que dois fatos predominantes se evidenciam: o despertar dos povos, diante da quebra moral, intelectual e econômica das classes dominantes; e os esforços impotentes, agonizantes das classes abastadas, para impedir, esse despertar. Estas classes dominantes, sempre medrosas, sempre com o olhar voltado ao passado, sempre mais e mais incapazes de realizar qualquer coisa de permanente. Uma enfermidade incurável corrói a todos: é a senilidade. Se as classes dirigentes pudessem ter o sentimento de sua posição, certamente elas se apressariam a marchar ao encontro das aspirações novas dos povos. Porém, envelhecidas em suas tradições, sem outro culto que os polpudos bolsos, elas opõem-se com todas suas forças a esta nova corrente de idéias”.
“O trabalhador enxerga a incapacidade das classes governantes: incapacidade de compreender suas aspirações novas; incapacidade de gerir a indústria, incapacidade de organizar a produção e as trocas.”
O fato que isto esteja sob a bandeira do socialismo científico ou do anarquismo não vai levar os trabalhadores a se levantarem contra as “classes governantes” unicamente porque elas são “incapazes de gerir a indústria, organizar a produção e as trocas”, unicamente porque elas tornaram-se irreversivelmente “senis”. A atitude do anarquismo diante do regime secular de pilhagem, como o leitor pode comprovar, não é mais hostil que a dos “socialistas parlamentaristas” corruptos. Muito pelo contrário, Kropotkine, ainda que seja inimigo de todo governo, com respeito às classes dominantes, revela uma ingenuidade de criança, que sem trabalho poder-se-ia encontrar-lhe equivalente nos social-democratas “corrompidos”. Ele pensa que se “as classes dirigentes” não se tornassem “senis” e se “pudessem ter o sentimento de sua posição, certamente elas se apressariam a marchar ao encontro das aspirações novas”, e que seriam “capazes de realizar alguma coisa de permanente”. Tudo isto fica muito confuso; sobre que base Kropotkine declara-se, ele e seus ensinamentos, hostil a todo governo, enquanto ao mesmo tempo se indigna apenas contra as classes dominantes senis? Governos progressistas apareceram mais de uma vez no desenvolvimento histórico, governos que “compreendiam” as aspirações novas, compreendiam igualmente, segundo seu entender, as necessidades do povo e garantiam o bem-estar às massas populares.
Mas que aconteceria se as classes dirigentes “senis” fossem substituídas por outras, novas, jovens, nem impotentes nem ignorantes? Nesse caso, os fundamentos para realizar a revolução, para derrubar o governo e para ser anarquista, perderiam a razão de ser. Este resultado fatal perfila-se diante do anarquismo com tanta força quanto diante do socialismo científico, como em geral diante de todos os socialistas do século passado. Na história das revoluções, frequentemente são eliminadas as classes dirigentes “senis” para substituí-las por novas. Onde se encontra a garantia de que as classes dirigentes possam deixar de existir completamente e por própria vontade?
A única garantia de que isso possa acontecer é a aspiração consciente das massas exploradas à derrubada de todas as classes dirigentes, quer sejam retrógradas ou progressistas.
Segundo o raciocínio dos socialistas, a rebelião dos escravos modernos origina-se não da existência das classes dirigentes em geral, mas por causa de sua degenerescência. Isto significa, pois, que pelo momento há uma verdadeira força de indignação e de luta, unicamente dirigida contra a estagnação e a degenerescência da sociedade dominante. Onde se encontra a força que derrubaria a totalidade da sociedade dominante? Que suprimiria a própria existência das classes dirigentes? É uma força extra-humana, é uma meta histórica predestinada, com a qual se promete transformar o protesto contra a degenerescência e a quebra da ordem atual deste século em uma luta contra a dominação em geral. Os marxistas esforçam-se em desenvolver esta crença por meio de considerações e promessas “científicas” e “econômicas”; quanto aos anarquistas, eles o fazem por meio de uma simples propaganda religiosa do ideal anarquista.
De uma maneira semelhante à fé cristã que não gerou nada do reino celeste sobre a terra e não fez senão contribuir com o regime de pilhagem e santificá-lo, a religião socialista não criou o paraíso socialista, e não faz senão contribuir para o progresso burguês, para o nascimento de novas e jovens classes dirigentes, cuja ausência motiva sua luta.
O socialismo do século XIX esforça-se para compreender apenas o debilitamento e o processo de decomposição da forma contemporânea de dominação. É compreensível, em conseqüência, que o mistério da dominação em geral não seja nem percebido, nem revelado. O socialismo não demonstra outra coisa que a “incompetência” e inadequação da sociedade dominante contemporânea, o que ainda não prova em nada a “inadequação”, o parasitismo e a pilhagem de todos os dominadores na história. Muito pelo contrário, o marxista considera como sua tarefa principal provar a necessidade, para a comunidade humana, das classes dirigentes que foram aparecendo na história.
Em conseqüência, o socialismo do século XIX não põe a nu, e não tem nenhuma ambição de fazê-lo, o fundamento de toda dominação, fraca ou forte. Ele não quer nem reconhecer, nem tomar consciência e perceber como verdade a pilhagem constante que tem representado e representa a existência mesma de ambos no curso de toda a evolução histórica.
Ele não tem nem a força nem a vontade de criar as verdadeiras premissas humanas que engendrariam a queda do regime secular de pilhagem e violência. Ao invés, sua tarefa essencial consiste em adquirir a confiança das massas e insuflar-lhes a fé inquebrantável no fato de constituir ele precisamente a única via de derrubada do regime de opressão. Eis sua tarefa específica: convencer do advento inevitável do paraíso socialista, “independentemente da vontade dos homens”, simplesmente provocado pela marcha histórica, pela ação de leis históricas e objetivas.
Essa é a tarefa clássica de toda religião, e a religião socialista desempenha-se nisso muito brilhantemente. A ciência positivista e ateia do século XIX não tem preservado os socialistas de inventar uma substância sobrenatural e uma nova forma de providência. Muito pelo contrário, no momento mesmo em que o socialismo percebeu a necessidade incontida de tornar-se a ciência que revela e explica as leis de desenvolvimento social, pôs-se a elaborar ficções religiosas. A ciência socialista trouxe os mesmos frutos que a ciência dos sacerdotes pagãos ou dos teólogos cristãos.
Os anarquistas esforçam-se para demonstrar que se a ciência marxista se revelou tão fatal para o socialismo revolucionário, é por que não utilizou os fundamentos e os métodos da ciência moderna, mas os da metafísica desacreditada, e principalmente dos ensinamentos trôpegos dos hegelianos. Os anarquistas, ao contrário, puseram como fundamento de sua doutrina um positivismo rigoroso, o “verdadeiro método científico das ciências naturais, o método indutivo-dedutivo, que afasta o perigo de toda metafísica e garante a infalibilidade do ensinamento socialista”.
Os anarquistas, com sua aspiração à “cientificidade”, tanto como os marxistas, não fazem o socialismo sair do domínio das crenças. A ciência socialista cumpre aqui uma função comum a todas as religiões, decorrente de sua aspiração à “cientificidade”, à objetividade, e de seu caráter onisciente e obrigatório para tudo e para todos.
Notas de rodapé:
(1) In. Karl Marx, Oeuvres. Economie, Paris, Gallimard, 1965 v. I, p. 173. (retornar ao texto)
(2) Piotr Kropotkine, Paroles d’un revolté, Paris, Flammarion, 1978. (retornar ao texto)