Conversa com o correspondente do jornal americano The World, Lincoln Eire(N131)

V. I. Lénine

21 de fevereiro de 1920

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Publicado: em Inglês em 21 de Fevereiro de 1920 no Jornal The World, nº 21368

Publicado: Publicado em russo pela primeira vez em 1957, na revista Kommunist, nº 153

Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t3, pp 253-257.

Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.40, pp. 150-156.

Transcrição e HTML: Manuel Gouveia

Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo.


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OS ALIADOS JOGAM UMA «PARTIDA DE XADREZ»

Quanto à notícia acerca da decisão dos aliados de levantar o bloqueio, Lénine disse:

É difícil acreditar na sinceridade dessa proposta indeterminada, a qual se combina, pelos vistos, com os preparativos de um ataque contra nós através do território da Polónia. À primeira vista, o plano do Conselho Supremo parece ser bastante verosímil: o reinicio das relações comerciais através das cooperativas russas. Mas as cooperativas já não existem, foram unidas aos nossos organismos soviéticos de distribuição. Por isso, que podem significar o palavreado dos aliados de que querem ter relações com as cooperativas? Naturalmente, isso é pouco claro.

É por isso que digo que um estudo mais atento nos convence de que esta decisão parisiense representa simplesmente uma jogada na partida de xadrez dos aliados, cujos motivos são até agora pouco claros.

Lénine calou-se por um momento, e depois acrescentou com um largo sorriso:

Menos claros ainda, por exemplo, que a intenção do marechal Foch de visitar Varsóvia.

Perguntei-lhe se considerava séria a possibilidade de uma ofensiva polaca. (É preciso lembrar que na Rússia se falou de um ataque dos polacos contra os bolcheviques e não o contrário.)

Sem dúvida alguma - respondeu Lénine - Clemenceau e Foch são senhores muito e muito sérios, mas entretanto foi um deles que elaborou esse plano agressivo, e o outro prepara-se para realizá-lo. É, naturalmente, uma ameaça séria, mas nós já tivemos de enfrentar ameaças mais sérias. Porém, isso desperta em nós não tanto medo como uma desilusão pelo facto de os aliados continuarem ainda a procurar o impossível. Porque uma ofensiva polaca é tão incapaz de resolver o problema russo no espírito que lhes é desejável como, no seu tempo, a ofensiva de Koltchak e de Deníkine. Lembre-se que a Polónia tem muitas preocupações próprias. Entretanto, está claro que ela não pode receber ajuda de nenhum dos seus vizinhos, incluindo a Roménia.

Porém, a paz parece mais próxima do que antes - sugeri eu.

Sim, isso é verdade. Se a paz é a consequência natural do comércio connosco, os aliados já não podem evitá-la por muito mais tempo. Ouvi dizer que Millerand, sucessor de Clemenceau, expressa o desejo de considerar a questão das relações comerciais com o povo russo. É possível que isso testemunhe uma mudança brusca do estado de espírito entre os capitalistas franceses. Porém, na Inglaterra são ainda fortes as posições de Churchill, enquanto Lloyd George, que quer provavelmente ter relações de negócios connosco, não se atreve a romper abertamente com os círculos políticos e financeiros que apoiam a política de Churchill.

OS ESTADOS UNIDOS PERSEGUEM OS SOCIALISTAS

E quanto a América?

É difícil entender o que ali se passa. Os vossos banqueiros, parece, temem-nos mais do que nunca. Em todo o caso, o vosso governo exerce uma repressão extraordinariamente cruel não só contra os socialistas, mas também contra toda a classe operária no seu conjunto, em comparação com qualquer outro governo, até mesmo em comparação com o governo francês reaccionário. Ele persegue visivelmente os estrangeiros. E entretanto, que faria a América sem os seus operários imigrantes? Eles são absolutamente indispensáveis ao vosso desenvolvimento económico.

Porém, alguns empresários americanos, parece, começam a compreender que é mais sensato fazer negócios vantajosos na Rússia do que conduzir uma guerra contra a Rússia, e isso é um bom indício. Precisaremos de artigos industriais americanos - locomotivas, automóveis, etc. - mais do que de mercadorias de qualquer outro país.

E quais são as vossas condições de paz?

Não vale a pena gastar tempo com palavreado acerca disso. Todo o mundo sabe que estamos prontos a concluir a paz em condições cuja justiça não pode ser contestada nem mesmo pelos capitalistas de espírito mais imperialista. Por mais de uma vez declarámos o nosso desejo de paz, que a paz é necessária, bem como a nossa disposição de dar ao capital estrangeiro as concessões e garantias mais generosas. Mas não temos a intenção de permitir que, em nome da paz, nos estrangulem até à morte.

Não vejo quaisquer razões para que um governo socialista como o nosso não possa ter relações de negócios ilimitadas com os países capitalistas. Nós não somos contra a utilização das locomotivas e máquinas agrícolas capitalistas, o que é que eles terão a objectar contra a utilização do nosso trigo, do nosso linho e da nossa platina socialistas? Pois o cereal socialista tem o mesmo sabor que qualquer outro cereal, não é verdade? Claro que eles terão que ter relações de negócios com os horríveis bolcheviques, isto é, com o governo soviético. Porém, para os empresários americanos que produzem, por exemplo, aço, manter relações de negócios com os Sovietes não será uma coisa mais difícil do que quando eles tiveram que tratar durante a guerra com os governos da Entente em matéria de equipamento militar.

A EUROPA DEPENDE DA RÚSSIA

Eis porque esse palavreado acerca do reinicio do comércio com a Rússia através das cooperativas nos parece pouco sincero ou, pelo menos, pouco claro - é mais uma jogada na partida de xadrez que uma proposta franca e directa, que seria imediatamente agarrada e realizada. Além disso, se o Conselho Supremo tem, realmente, a intenção de levantar o bloqueio, porque é que não nos informa acerca das suas intenções? Não recebemos nenhumas informações oficiais de Paris. O pouco que sabemos está baseado nas notícias dos jornais captadas pela nossa rádio.

Os homens de Estado da Europa e dos Estados Unidos não compreendem, pelos vistos, que a presente ruína económica na Rússia é apenas uma parte da ruína económica mundial. Enquanto o problema económico for considerado não do ponto de vista internacional, mas sim do ponto de vista de nações separadas ou de um grupo de nações, será impossível resolvê-lo. Sem a Rússia, a Europa não poderá pôr-se de pé. E quando a Europa está extenuada, a situação da América torna-se crítica. Que proveito pode tirar a América da sua riqueza se não pode adquirir com ela aquilo que lhe é necessário? Pois a América não pode comer nem vestir o ouro que acumulou, não é verdade? Ela não poderá comerciar de forma vantajosa com a Europa, isto é, comerciar numa base que represente para ela um valor real, enquanto a Europa não lhe puder dar as mercadorias que a América quer receber em troca daquilo que precisa de vender. Mas a Europa não lhe poderá dar estas mercadorias enquanto não se puser de pé no aspecto económico.

O MUNDO PRECISA DE MERCADORIAS RUSSAS

Nós, na Rússia, temos trigo, linho, platina, potassa e muitos minérios, dos quais todo o mundo tem uma aguda necessidade. No fim de contas, o mundo virá buscar isso a nós sem se importar com o facto de termos o bolchevismo ou não termos o bolchevismo. Há indícios de que se chega pouco a pouco à compreensão dessa verdade. Porém, enquanto isso, não só a Rússia, mas também toda a Europa está a despedaçar-se. Mas o Conselho Supremo permite-se ainda realizar uma política de evasivas. A Rússia, assim como a Europa, pode ser salva da ruína completa, mas para isso é preciso actuar imediata e rapidamente. Mas o Conselho Supremo actua muito devagar, terrivelmente devagar. Na realidade, segundo parece, ele já está dissolvido sem ter resolvido nada, e transmitiu as suas funções a um conselho de embaixadores; o seu lugar só deve ser ocupado pela inexistente Sociedade das Nações(N132), que nasceu morta. E poderá a Sociedade das Nações começar a funcionar sem os Estados Unidos, que devem constituir o seu suporte principal?

Perguntei em que medida o governo soviético está satisfeito com a situação militar.

Está muito satisfeito. Os únicos indícios de uma ulterior agressão militar contra nós têm lugar apenas por parte da Polónia, do que já falei. Se a Polónia entrar em tal aventura, isso conduzirá a novos sofrimentos para ambas as partes e à perda desnecessária de novas vidas humanas. Mas nem mesmo Foch poderá assegurar a vitória dos polacos. Eles não poderiam vencer o nosso Exército Vermelho, mesmo se o próprio Churchill combatesse ao lado deles.

Aqui Lénine sorriu sombriamente, atirando com a cabeça para trás. Depois continuou num tom mais sério:

Nós, naturalmente, podemos ser destruídos por qualquer das grandes potências aliadas, se elas puderem enviar contra nós os seus próprios exércitos. Mas elas não se atreverão a fazê-lo. O paradoxo insólito consiste no facto de a Rússia, por mais fraca que seja em comparação com os recursos ilimitados dos aliados, não só ter podido derrotar quaisquer forças armadas, incluindo as tropas britânicas, americanas e francesas, que os aliados conseguiram enviar contra ela, mas também ter alcançado vitórias diplomáticas e morais nos países do cordão sanitário. A Finlândia recusou-se a combater contra nós. Concluímos a paz com a Estónia, e dentro em breve será assinada a paz com a Sérvia(1*) e a Lituânia(N133). Apesar de grandes engodos e ameaças sinistras por parte da Entente contra estes pequenos Estados, eles preferiram estabelecer relações pacíficas connosco.

A SITUAÇÃO INTERNA TEM BOAS PERSPECTIVAS

Isso, sem dúvida, atesta a enorme força moral de que dispomos. Os Estados bálticos, os nossos vizinhos mais próximos, compreendem que só nós é que não temos nenhumas intenções que ameacem a sua independência e o seu bem-estar.

E a situação interna da Rússia?

Ela é crítica, mas tem boas perspectivas. Até à Primavera será superada a falta de víveres, pelo menos o suficiente para que a população dos cidades seja liberta da fome. Haverá então também combustível suficiente. Graças às façanhas admiráveis do Exército Vermelho, já se iniciou a reconstrução da economia nacional. Actualmente, uma parte deste exército está transformada em exércitos de trabalho; esse fenómeno insólito só se tornou possível num país que luta por um ideal elevado. Compreende-se que isso seria impossível nos países capitalistas. No passado, sacrificámos tudo para alcançar a vitória sobre os nossos adversários armados, e agora dirigiremos todos os nossos esforços para restaurar a economia. Para isso serão necessários anos, mas, no final, venceremos.

Quando, na sua opinião, será concluída a construção do comunismo na Rússia? Eu julgava que a pergunta seria difícil, mas Lénine respondeu imediatamente.

Estamos dispostos a electrificar todo o nosso sistema industrial por meio da criação de centrais eléctricas nos Urales e em outros lugares. Os nossos engenheiros dizem-nos que para isso serão necessários dez anos. A conclusão da electrificação será o primeiro degrau importante no caminho para a organização comunista da vida económica da sociedade. Toda a nossa indústria receberá a energia duma fonte comum, que será capaz de abastecer em igual degrau todos os seus ramos. Isso eliminará a rivalidade não produtiva na busca de combustível e criará uma sólida base económica para as empresas da indústria transformadora, sem o que não podemos ter esperança de alcançar um nível de intercâmbio de artigos de primeira necessidade que corresponda aos princípios do comunismo.

Supomos, entre outras coisas, que dentro de três anos estarão acesas, na Rússia, 50 000 000 de lâmpadas incandescentes. Suponho que nos Estados Unidos há 70 000 000 dessas lâmpadas, mas para um país onde a electricidade se encontra ainda na infância, mais de dois terços desse número representam um enorme progresso. Em minha opinião, a electrificação é a mais importante das grandes tarefas que se nos colocam.

ÁSPERA CRÍTICA AOS LÍDERES SOCIALISTAS

Em conclusão da nossa conversa, Lénine enunciou, é verdade que não para serem publicadas, uma série de ásperas observações críticas em relação a alguns líderes socialistas da Europa e da América, do que decorre que ele não acredita na capacidade ou mesmo no desejo desses senhores de fazer avançar com êxito a causa da revolução mundial. Aparentemente ele considera que o bolchevismo abrirá caminho mais apesar desses chefes «oficiais» do socialismo do que com a sua ajuda.


Notas de rodapé:

(1*) No jornal foi cometido um erro. A Sérvia não se encontrava em estado de guerra com a Rússia Soviética. Aparentemente tratava-se da Letónia. (N. Ed.) (retornar ao texto)

Notas de fim de tomo:

(N131) Em meados de Fevereiro de 1920, Lénine concedeu uma entrevista ao correspondente do jornal burguês americano The World, Lincoln Eire. Durante a conversa, que durou uma hora, foram tocadas questões de actualidade. A entrevista de Lénine foi publicada no jornal The World em 21 de Fevereiro de 1920, sendo reproduzida por muitos jornais da Europa Ocidental e América. (retornar ao texto)

(N132) Sociedade das Nações: organização internacional que existiu no período compreendido entre a primeira e a segunda guerras mundiais. Foi constituída em 1919, na Conferência de Paz de Paris das potências vencedoras da Primeira Guerra Mundial. No período compreendido entre 1920 e 1934 a actividade da Sociedade das Nações teve um carácter hostil à União Soviética. Em 1920-1921, a Sociedade das Nações foi um dos centros organizadores da intervenção armada contra o Estado soviético. Em 15 de Setembro de 1934, por iniciativa da diplomacia francesa, os 34 Estados participantes da Sociedade das Nações dirigiram-se à União Soviética, convidando-a a fazer parte da Sociedade. No interesse da luta pela paz, a URSS ingressou na Sociedade das Nações, mas as suas tentativas de criar uma frente de paz chocaram com a resistência dos círculos reaccionários das potências ocidentais. (retornar ao texto)

(N133) O Tratado de Paz entre a RSFSR e a Lituânia foi assinado em 12 de Julho de 1920, em Moscovo. O Tratado de Paz entre a RSFSR e a Letónia foi assinado em Riga, em 11 de Agosto de 1920. (retornar ao texto)

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Inclusão: 04/01/2020