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Primeira edição: Publicado em um volume pela Editora Kommunist, de Moscou, em 1918. V. I. Lênin, Obras, 4.ª ed. em russo, t. 28, págs. 271/295
Fonte: A aliança operário-camponesa, Editorial Vitória, Rio de Janeiro, Edição anterior a 1966 - págs.
Tradução: Renato Guimarães, Fausto Cupertino Regina Maria Mello e Helga Hoffman de "La Alianza de la Clase Obrera y el Campesinado", publicado por Ediciones en Lenguas Extranjeiras, Moscou, 1957, que por sua vez foi traduzido da edição soviética em russo, preparada pelo Instituto de Marxismo-Leninismo adjunto ao CC do PCUS, Editorial Política do Estado, 1954. Capa e apresentação gráfica de Mauro Vinhas de Queiroz
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Como já dissemos, o livro de Kautsky, se o título correspondesse ao conteúdo, não deveria chamar-se A Ditadura do proletariado, e sim Paráfrase de Ataques Burgueses Contra os Bolcheviques.
Nosso teórico volta a dar vida às velhas «teorias» dos mencheviques sobre o caráter burguês da revolução russa, isto é, à antiga deformação do marxismo feita pelos mencheviques (e que Kautsky refutou em 1905!). Por mais fastidiosa que seja essa questão para os marxistas russos, temos que examiná-la.
A revolução russa é uma revolução burguesa, diziam todos os marxistas da Rússia antes de 1905. Os mencheviques, substituindo o marxismo pelo liberalismo, deduziam daí: portanto, o proletariado não deve afastar-se do que é aceito pela burguesia, deve seguir uma política de harmonia com esta. Os bolcheviques diziam que isto era uma teoria liberal burguesa. A burguesia esforça-se para transformar o Estado segundo o modo burguês, reformista, não revolucionário, conservando na medida do possível a monarquia, a propriedade dos latifundiários, etc. O proletariado deve levar a termo a revolução democrático-burguesa, sem permitir que o reformismo da burguesia o «amarre». Os bolcheviques formulavam do seguinte modo a correlação de forças das diversas classes no momento da revolução burguesa: o proletariado, ganhando para si os camponeses, neutraliza a burguesia liberal e destrói completamente a monarquia, as instituições medievais e a grande propriedade territorial.
O caráter burguês da revolução é revelado pela aliança do proletariado com os camponeses em geral, porque os camponeses, em seu conjunto, são pequenos produtores, que têm por base a produção mercantil. Além disso, acrescentavam iá então os bolcheviques, o proletariado, ganhando para seu lado todo o semiproletariado (todos os trabalhadores e explorados), neutraliza os camponeses médios e derruba a burguesia: nisso consiste a diferença entre a revolução socialista e a revolução democrático-burguesa (veja-se meu folheto de 1905 Duas Táticas, reimpresso na recopilação Doze Anos, Petersburgo, 1907).
Kautsky tomou indiretamente parte nesta discussão em 1905, quando, consultado por Plekhanov, então menchevique, pronunciou-se no fundo contra ele, o que deu origem, nessa época, a muitos chistes da imprensa bolchevique. Agora Kautsky não diz uma só palavra sobre os antigos debates (teme que suas próprias manifestações o desmascarem!). É assim deixa o leitor alemão absolutamente impossibilitado de compreender o fundo do problema. O senhor Kautsky não podia dizer aos operários alemães, em 1918, que, em 1905, era partidário da aliança dos operários com os camponeses, e não com a burguesia liberal, não podia dizer-lhes em que condições propugnava esta aliança, nem o programa que projetava para ela.
Kautsky dá marcha à ré e, a pretexto de uma «análise econômica», com frases altaneiras sobre o «materialismo histórico», propugna agora a subordinação dos operários à burguesia, ruminando, com ajuda de citações do menchevique Maslov, as velhas concepções liberais dos mencheviques; estas citações servem-lhe para demonstrar uma ideia nova sobre o atraso da Rússia, e dessa ideia nova tira uma conclusão velha, dizendo, pouco mais ou menos, que em uma revolução burguesa não se pode ir mais longe do que a burguesia! É isto apesar de tudo o que tinham dito Marx e Engels ao comparar a revolução burguesa de 1789/1793, na França, com a revolução burguesa da Alemanha em 1848!
Antes de passar ao «argumento» de mais peso e ao principal da «análise econômica» de Kautsky, observemos a curiosa confusão de ideias ou a leviandade do autor, denotadas já nas primeiras frases:
«O fundamento econômico da Rússia — afirma nosso «teórico» – é até hoje a agricultura e, concretamente, a pequena produção camponesa. Dela vivem cerca de quatro quintos, talvez até cinco sextos da população.» (pág. 45)
Em primeiro lugar, já pensou o senhor, respeitável teórico, quantos exploradores pode haver entre esta massa de pequenos produtores? Naturalmente, no máximo um décimo, e nas cidades ainda menos, porque aí está mais desenvolvida a grande produção. Ponha inclusive uma cifra inverossimilmente elevada, suponha que um quinto dos pequenos produtores são exploradores que perdem o direito eleitoral. É ainda assim o senhor verá que os 66% de bolcheviques do V Congresso dos Sovietes representavam a maioria da população. A isso se deve acrescentar, ainda, que um grande número de esserristas de esquerda sempre foi partidário do Poder Soviético, isto é, em princípio, todos os esserristas de esquerda eram pelo Poder Soviético, e, quando uma parte deles se lançou à aventureira revolta de julho de 1918, seu antigo partido cindiu-se em dois partidos novos, o dos «comunistas populistas» e o dos «comunistas revolucionários» (constituídos por destacados esserristas de esquerda, a quem já o antigo partido havia elevado aos postos mais importantes do Estado, pertencendo à primeira facção, por exemplo, Zax, e, à segunda, Kolegaev). Por conseguinte, o próprio Kautsky refutou — sem querer! — a lenda ridícula de que com os bolcheviques está a minoria da população.
Em segundo lugar: Pensou o senhor, gentil teórico, que o pequeno produtor camponês vacila inevitavelmente entre o proletariado e a burguesia? Esta verdade marxista, que toda a história da Europa contemporânea confirma, foi há muito tempo «esquecida» por Kautsky, porque reduz a pó toda a «teoria» menchevique que ele reproduz! Sem «esquecê-la» não teria podido negar a necessidade da ditadura do proletariado em um país em que predominam os pequenos produtores camponeses.
Examinemos o principal da «análise econômica» do nosso teórico.
É irrefutável, diz Kautsky, que o Poder Soviético é uma ditadura.
«Mas é mesmo a ditadura do proletariado?» (pág. 34).
“Segundo a Constituição soviética, os camponeses representam a maioria da população com direito a participar nas atividades legislativas e administrativas. O que se nos apresenta como ditadura do proletariado, se se realizasse de um modo consequente e se falando em geral, uma classe pudesse exercer diretamente a ditadura, coisa que só um partido pode fazer, resultaria ser uma ditadura dos camponeses” (pág. 35).
É, encantado com um raciocínio tão profundo e sagaz, o bom Kautsky tenta ironizar:
«É como se a realização menos dolorosa do socialismo estivesse assegurada quando se a confiasse aos camponeses» (pág. 35).
Com grande riqueza de detalhes e citações extraordinariamente eruditas do semi-liberal Maslov, prova nosso teórico uma ideia nova: os camponeses estão interessados em que seja elevado o preço dos cereais e baixo o salário dos operários das cidades, etc. Estas ideias novas, diga-se de passagem, estão expostas de maneira tanto mais fastidiosa quanto menor é a atenção dada aos fenômenos verdadeiramente novos do pós-guerra, como, por exemplo, ao fato de que os camponeses, em troca dos cereais, pedem mercadorias, e não dinheiro, que os camponeses têm falta de instrumentos de trabalho e não podem consegui-los em quantidade suficiente a preço algum. Disso voltaremos a tratar mais adiante de modo especial.
Assim, pois, Kautsky acusa os bolcheviques, o partido do proletariado, de ter posto a ditadura, a tarefa de realizar o socialismo, nas mãos dos camponeses pequeno-burgueses. Muito bem, senhor Kautsky! Qual deveria ser, em sua ilustre opinião, a atitude do partido proletário diante dos camponeses pequeno-burgueses?
Nosso teórico prefere calar sobre isto, provavelmente lembrando o ditado: «A palavra é de prata, o silêncio é de ouro». Mas ele é traído pelo seguinte raciocínio:
“Nos primeiros tempos da República soviética, os sovietes camponeses eram organizações dos camponeses em geral. Agora, esta república proclama que os sovietes são organizações de proletários e de camponeses pobres. Os camponeses acomodados perdem o direito de participar na eleição dos sovietes. O camponês pobre é reconhecido como um produto permanente e de massas na reforma agraria socialista sob a ditadura do proletariado.” (pág. 48)
Que atroz ironia! Na Rússia ela pode ser ouvida na boca de qualquer burguês: todos eles se regozijam e se riem de que a República soviética reconheça francamente a existência de camponeses pobres.
Zombam do socialismo. Estão em seu direito. Mas o «socialista» que se ri do fato de que, depois de uma guerra de quatro anos, extraordinariamente ruinosa, ainda haja em nosso país — e ainda haverá por muito tempo — camponeses pobres, é um «socialista» que só podia surgir em um ambiente de deserção em massa.
Mas, há mais:
“… A República soviética intervém nas relações entre camponeses ricos e pobres, mas não por meio de uma nova distribuição de terra. Para evitar que falte pão aos habitantes das cidades, enviam-se ao campo destacamento de operários armados que arrancam aos camponeses ricos seus excedentes de cereais. Uma parte destes cereais é dada aos habitantes das cidades e outra aos camponeses pobres.” (pág. 48)
Naturalmente, o socialista e marxista Kautsky indigna-se profundamente com a ideia de que tal medida possa ir além dos arredores das grandes cidades (na Rússia ela se estende por todo o país). O socialista e marxista Kautsky observa sentenciosamente, com inimitável, incomparável, admirável fleugma (ou idiotice) de filisteu: ...
«Estas (desapropriações de camponeses acomodados) introduzem um novo elemento de perturbação e de guerra civil no progresso da produção»... (a guerra civil transplantada para o «processo da produção» já é uma coisa sobrenatural!)... «cujo saneamento necessita imperiosamente de tranquilidade e segurança» (pág. 49).
Sim, sim, a tranquilidade e segurança dos exploradores e dos que especulam com os cereais, escondem seus excedentes, sabotam a lei sobre o monopólio dos cereais e condenam à fome a população das cidades, deve, naturalmente, arrancar suspiros e lágrimas ao marxista e socialista Kautsky. Todos nós somos socialistas, marxistas e internacionalistas, — gritam em coro os senhores Kautsky, Heinrich Weber (Viena), Longuet (Paris), MacDonald (Londres), etc.; somos todos pela revolução da classe operaria, mas... mas com a condição de não perturbar a tranquilidade nem a segurança dos especuladores de cereais! É esta imunda deferência para com os capitalistas é encoberta com alusões «marxistas» ao «processo de produção»... Se isto é marxismo, o que será servilismo diante da burguesia?
Vejamos o que acontece com nosso teórico. Acusa os bolcheviques de fazer passar uma ditadura dos camponeses pela ditadura do proletariado. Ao mesmo tempo, acusa-nos de levar a guerra civil ao campo (nós consideramos isto como um mérito nosso), de enviar ao campo destacamentos de operários armados, que proclamam francamente que exercem «a ditadura do proletariado e dos camponeses pobres», ajudam estes, desapropriam os especuladores, os camponeses ricas, dos excedentes de grão que ocultam desobedecendo a lei sobre o monopólio de cereais.
Por um lado, nosso teórico marxista mostra-se partidário da democracia pura, partidário de que a classe revolucionaria, dirigente dos trabalhadores e explorados, se submeta à maioria da população (incluindo, portanto, os exploradores). Por outro lado, explica contra nós que a revolução tem imprescindivelmente um caráter burguês, porque os camponeses, em seu conjunto, se mantêm em um terreno de relações sociais burguesas; ao mesmo tempo, pretende defender o’ ponto-de-vista proletário, de classe, marxista!
Em lugar de «análise econômica» uma teia e uma confusão de primeira ordem. Em lugar de marxismo, fragmentos de doutrinas liberais e prédicas de servilismo diante da burguesia e dos culaques.
Em 1905, os bolcheviques já esclareceram totalmente o problema que Kautsky confunde. Sim, nossa revolução é burguesa enquanto marchamos juntamente com os camponeses como um todo. Nós tínhamos consciência claríssima disto; desde 1905 o dissemos centenas e centenas de vezes; nunca tentamos saltar ou abolir com decretos esta etapa necessária do processo histórico. O empenho de Kautsky em empregar este ponto como «prova» contra nós não prova senão a confusão de suas opiniões e seu temor de recordar o que ele próprio escreveu em 1905, quando ainda não era um renegado.
Mas em 1917, desde o mês de abril, muito antes da Revolução de Outubro, muito antes de tomarmos o poder, dissemos abertamente e explicamos ao povo que então a revolução não podia deter-se nesta etapa, pois o país havia seguido adiante, o capitalismo continuara avançando, a ruína havia alcançado proporções nunca vistas, o que haveria de exigir (quiséssemos ou não) que marchássemos para o socialismo, pois não era possível avançar de outro modo, salvar de outro modo o país, esgotado pela guerra, e aliviar de outro modo os sofrimentos dos trabalhadores e explorados.
Com efeito, tudo ocorreu como tínhamos dito. A marcha da revolução confirmou o acerto de nosso raciocínio. No início, junto com «todos» os camponeses contra a monarquia, contra os latifundiários, contra o medievalismo (e neste sentido a revolução contínua sendo burguesa, democrático-burguesa). Depois, de braço dado com os camponeses pobres, com o semi proletariado, com todos os explorados contra o capitalismo, inclusive os ricaços do campo, os culaques, os especuladores, e neste sentido, a revolução se converte em socialista . Querer levantar uma muralha chinesa entre as duas revoluções, separar uma da outra por algo que não seja o grau de preparação do proletariado e o grau de sua união com os camponeses pobres, é a maior tergiversação do marxismo, é amesquinhá-lo, substituí-lo pelo liberalismo. Seria fazer passar de contrabando, por meio de citações pseudocientíficas sobre o caráter progressista da burguesia em comparação com o medievalismo, uma defesa reacionaria da burguesia rente ao proletariado socialista.
Certamente os sovietes são um tipo e uma forma muito superior de democracia porque, unificando e incorporando à política a massa de operários e camponeses, são a instituição mais próxima do «povo» (no sentido em que Marx falava em 1871 de verdadeira revolução popular), o barômetro mais sensível do desenvolvimento e aumento da maturidade política e de classe das massas. A Constituição soviética não foi escrita segundo um «plano», não foi composta por despachos, nem imposta aos trabalhadores pelos juristas burgueses. Não, essa Constituição surgiu do processo de desenvolvimento da luta de classe, à medida que amadureciam as contradições de classe. Assim o demonstram fatos que Kautsky se vê obrigado a reconhecer.
De início, os sovietes agrupavam os camponeses em sua totalidade. A falta de desenvolvimento, o atraso e a ignorância dos camponeses pobres punham a direção nas mãos dos culaques, dos ricos, dos capitalistas e dos intelectuais pequeno-burgueses. Foi a época de hegemonia da pequena burguesia, dos mencheviques e socialistas revolucionários (só os bobos ou renegados como Kautsky podem acreditar que uns ou outros sejam socialistas). A pequena burguesia oscilava inevitável e necessariamente, entre a ditadura da burguesia (Kerenski, Kornilov, Savinkov) e a ditadura do proletariado, porque a pequena burguesia é incapaz de qualquer atitude independente, em vista das características essenciais de sua situação econômica. A propósito, Kautsky renega totalmente o marxismo quando utiliza em sua análise da revolução russa a noção jurídica e formal de «democracia», que serve à burguesia para dissimular sua dominação e enganar as massas, esquecendo que «democracia» quer dizer de fato, algumas vezes, ditadura da burguesia, e outras, reformismo impotente da mediocracia que se submete a essa ditadura, etc. Segundo Kautsky, a Rússia era um país capitalista em que havia partidos burgueses, havia um partido proletário, que levava atrás de si a maioria do proletariado, sua massa (os bolcheviques), mas não havia partidos pequeno-burgueses. Os mencheviques e esserristas não tinham raízes de classe, raízes pequeno-burguesas!
As vacilações da pequena burguesia, dos mencheviques e esserristas, educaram as massas e afastaram de tais «dirigentes» sua imensa maioria, todas as «camadas baixas», todos os proprietários e semiproletários. Os bolcheviques conseguiram predominar nos sovietes (por volta de outubro de 1917 em Petrogrado e Moscou), e entre os esserristas e mencheviques acentuou-se a divisão.
O triunfo da revolução bolchevique significava o fim das vacilações, a destruição completa da monarquia e da grande propriedade territorial (antes da Revolução de Outubro ela não havia sido destruída). Nós levamos a termo a revolução burguesa. Os camponeses estavam do nosso lado em sua totalidade. Seu antagonismo em relação ao proletariado socialista não podia manifestar-se imediatamente. Os sovietes agrupavam os camponeses em geral. A diferenciação de classe no seio da massa camponesa ainda não estava madura, ainda não se havia manifestado exteriormente.
Este processo foi desenvolvendo-se durante o verão e o outono de 1918. A insurreição contrarrevolucionária dos tchecoslovacos despertou os culaques, que desencadearam na Rússia uma onda de revoltas. Não foram livros ou jornais, mas a vida que fez ver aos camponeses pobres a incompatibilidade de seus interesses com os dos culaques, dos ricaços, da burguesia rural. Os «esserristas de esquerda», como todo partido pequeno-burguês, refletiam as oscilações das massas, e 110 verão de 1918 se cindiram: uma parte deles fez causa comum com os tchecoslovacos (insurreição de Moscou, quando Prochian, apoderando-se — durante uma hora! — do telégrafo, anuncia ã Rússia a queda dos bolcheviques; logo veio a traição de Muraviov, comandante supremo do exército destinado a combater os tchecoslovacos, etc.). Outra parte, mencionada acima, continuou com os bolcheviques.
O aguçamento da crise de abastecimento das cidades impunha, de modo cada vez mais nítido, o monopólio dos cereais (o que «foi esquecido» pelo teórico Kautsky em sua análise econômica, que repete coisas velhas, lidas há dez anos em Maslov!).
O antigo Estado, o Estado dos latifundiários e burgueses, inclusive o Estado democrático republicano, enviava ao campo destacamentos armados que se achavam de fato à disposição da burguesia. O senhor Kautsky não o sabe! Não vê nisso, Deus nos livre, «ditadura da burguesia»! É «democracia pura», sobretudo se aprovada pelo parlamento burguês! Que Avxentiev e S. Maslov, com os Kerenski, Tsereteli e demais elementos esserristas e mencheviques, encarceravam durante o verão e o outono de 1917 os membros dos comitês agrários, disso «não ouviu falar» Kautsky, isso ele silencia!
Tudo se reduz a que o Estado burguês, que exerce a ditadura da burguesia por meio da república democrática, não pode reconhecer perante o povo que serve à burguesia, não pode dizer a verdade e tem que recorrer à dubiedade.
Ao contrário, o Estado do tipo da Comuna, o Estado soviético diz franca e honradamente a verdade ao povo, declarando que é a ditadura do proletariado e dos camponeses pobres, atraindo com esta verdade milhares e milhares de novos cidadãos, mantidos na ignorância dentro de qualquer república democrática, e incorporando-os à política, à democracia, à administração do Estado, dos sovietes. A república soviética envia ao campo destacamentos de operários armados, em primeiro lugar os mais avançados, os das capitais. Estes operários levam o socialismo ao campo, põem a seu lado os camponeses pobres, os organizam e instruem, e os ajudam a esmagar a resistência da burguesia.
Todos os que estão a par da situação e visitaram o campo dizem que ali a Revolução de «Outubro» (isto é, a revolução proletária) só chegou no verão e no outono de 1918. Produziu-se então a reviravolta. À onda de revoltas de culaques seguiu-se um movimento ascensional dos camponeses pobres, a multiplicação dos «comitês de camponeses pobres». No exército, aumentou o número de comissários procedentes da classe operaria, o número de oficiais e de chefes de divisão e de exército saídos da classe operaria. Enquanto o imbecil Kautsky, assustado pela crise de julho (de 1918) e os alaridos da burguesia, corre atrás dela servilmente e escreve todo um folheto do qual emana a convicção de que os camponeses estão a ponto de derrubar os bolcheviques, enquanto este imbecil vê na deserção dos esserristas de esquerda uma «redução» (pág. 37) do círculo dos que sustentam os bolcheviques, neste momento, estende-se imensamente o círculo verdadeiro dos partidários do bolchevismo, porque dezenas e dezenas de milhões de camponeses pobres despertam para uma vida política independente, emancipando-se da tutela e influência dos culaques e da burguesia rural.
Perdemos algumas centenas de esserristas de esquerda, de intelectuais sem caráter e de camponeses culaques, mas conquistamos milhões de camponeses pobres.(1)
Um ano depois da revolução proletária nas capitais, sob sua influência e com sua ajuda, a revolução proletária chegou aos rincões mais atrasados do campo, consolidando definitivamente o Poder Soviético e o bolchevismo, demonstrando definitivamente que no interior do país não há forças que se oponham a ele.
Depois de ter levado a cabo a revolução democrático-burguesa com os camponeses em geral, o proletariado da Rússia passou definitivamente à revolução socialista quando conseguiu cindir o campo, quando ganhou para si os proletários e semiproletários do campo, quando soube uni-los contra os culaques e a burguesia, incluindo nesta a burguesia camponesa.
Se o proletariado bolchevique das capitais e dos grandes centros industriais não tivesse sabido agrupar em torno de si os camponeses pobres contra os camponeses ricos, teria sido demonstrado que a Rússia «não estava madura» para a revolução socialista: o campesinato teria continuado a ser «um todo», isto é, teria continuado submetido à direção econômica, política e espiritual dos culaques, dos ricaços e da burguesia, e não teria ido além de uma revolução democrático-burguesa. (Mas nem mesmo isto — seja dito entre parênteses — teria demonstrado que o proletariado não devia tomar o poder, porque só ele levou efetivamente a seu termo a revolução democrático-burguesa, só ele fez algo sério para apressar a revolução proletária mundial, só ele criou o Estado soviético, que é, depois da Comuna, o segundo passo em direção ao Estado socialista).
Por outro lado, se o proletário bolchevique, imediatamente em outubro ou novembro de 1917, sem ter sabido aguardar a diferenciação de classes no campo, sem ter sabido prepará-la nem realizá-la, tivesse querido «decretar» a guerra civil ou a «instauração do socialismo» no campo, se tivesse querido prescindir da aliança temporária com os camponeses em geral, sem fazer certas concessões ao camponês médio, etc., isto teria sido uma desnaturação blanquista do marxismo; uma minoria teria tentado impor sua vontade à maioria, ter-se-ia chegado a um absurdo teórico, a não compreender que a revolução de todos os camponeses ainda é uma revolução burguesa e que sem uma série de transições, de etapas transitórias, não se pode fazer dela uma revolução socialista em um país atrasado.
Em um problema político e teórico da maior transcendência, Kautsky confundiu tudo, e, na prática, demonstrou ser um simples lacaio da burguesia que clama contra a ditadura do proletariado.
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Idêntica ou maior é a confusão que Kautsky armou em outro problema de fundamental interesse e importância: o de se saber se foi bem formulado, em princípio, e logo levado convenientemente à prática o trabalho legislativo da República soviética no que se refere à transformação agraria, transformação socialista dificílima e, ao mesmo tempo, da máxima importância. Ficaríamos infinitamente gratos a todo marxista do ocidente da Europa que, depois de ler pelo menos os documentos mais importantes, fizesse a crítica de nossa política, porque deste modo nos ajudaria extraordinariamente e ajudaria a revolução que está amadurecendo todo o mundo. Mas em lugar de crítica, Kautsky nos oferece uma incrível confusão teórica, que converte o marxismo em liberalismo e que na verdade, é um conjunto de invectivas burguesas, vazias e venenosas, contra os bolcheviques. Que julgue o leitor:
«A grande propriedade latifundiária não se podia manter, em virtude da revolução. Isto foi visto claramente desde o primeiro instante. Não havia outro remédio senão entregá-la à população camponesa»... (Não é exato, senhor Kautsky; o senhor coloca o que está «claro» para o senhor no lugar da atitude das diversas classes em relação ao problema. A história da revolução demonstrou que o governo de coalizão de burgueses e pequeno-burgueses, mencheviques e esserristas seguia uma política destinada a manter a grande propriedade agraria. A melhor prova está na lei de S. Maslov e na prisão dos membros dos comitês agrários.(2) Sem a ditadura do proletariado a «população camponesa» nunca teria vencido o latifundiário unido ao capitalista).
«... Mas, quanto às formas em que isto se devia fazer, não existia unidade de critério. Eram concebíveis diferentes soluções...» (Kautsky preocupa-se, principalmente, com a «unidade» dos «socialistas», sejam quais forem os que ele assim denomina. Mas esquece que as classes fundamentais da sociedade capitalista devem chegar a soluções diferentes). «...Do ponto-de-vista do socialismo, a solução mais racional teria sido transformar as grandes empresas em propriedades do Estado e confiar aos camponeses, que até então haviam trabalhado nelas como operários assalariados, o cultivo das grandes propriedades agrícolas em forma cooperativa. Mas esta solução supõe a existência de um proletariado agrícola que não existe na Rússia. Outra solução teria sido transferir para o Estado a grande propriedade agraria dividindo-a em pequenas parcelas, que seriam dadas em arrendamento aos camponeses com poucas terras. Desta maneira, ter-se-á realizado algo de socialismo...»
Kautsky, como sempre, se salva com o seu famoso estribilho: por um lado, não se pode deixar de confessar, por outro, é preciso reconhecer. Põe juntas soluções diferentes, sem se decidir pela única real, pela única ideia marxista: qual deve ser a transição do capitalismo ao comunismo em determinadas condições particulares? Na Rússia há operários agrícolas assalariados, mas poucos, e Kautsky nem sequer toca na questão, que o Poder Soviético formulou, de como passar para o cultivo em comunas e em cooperativas. Mas o mais curioso é que Kautsky quer ver «algo de socialismo» no arrendamento de pequenas parcelas de terra. Isto não é, no fundo, mais do que uma palavra-de-ordem pequeno-burguesa e nada tem «de socialismo». Se o «Estado» que arrendou as terras não é um Estado do tipo da Comuna, mas uma república burguesa parlamentar (e isto é o que sempre supõe Kautsky), o arrendamento da terra em pequenas parcelas será uma reforma liberal típica.
Nada diz Kautsky do fato de ter o Poder Soviético abolido toda a propriedade da terra. Pior ainda: mistura osdados de maneira incrível e cita decretos do Poder Soviético omitindo neles o essencial.
Depois de declarar que «a pequena produção aspira ao direito absoluto de propriedade privada sobre os meios de produção», que a Constituinte teria sido «a única autoridade» capaz de impedir a repartição (afirmação que provocará uma gargalhada na Rússia, porque todo mundo sabe que os operários e camponeses só reconhecem a autoridade dos sovietes enquanto que a Constituinte se tornou palavra-de-ordem dos tchecoslovacos e latifundiários), Kautsky continua:
“Um dos primeiros decretos do Governo soviético diz: 1. Fica abolida imediatamente e sem qualquer indenização a propriedade latifundiária. 2. As propriedades dos latifundiários, bem como. as terras da Coroa, dos mosteiros e da Igreja, com todos os seus animais de trabalho e instrumentos de lavra, edifícios e todas as dependências, passam à disposição dos comitês agrários das comarcas e dos sovietes de deputados camponeses dos distritos até que se reúna a Assembleia Constituinte.”
Kautsky cita apenas estes dois itens e conclui:
“A referência à Constituinte foi letra morta. De fato, os camponeses dos diferentes distritos puderam fazer com a terra o que quiseram” (pág. 47).
Eis alguns exemplos da «crítica» de Kautsky! Eis um trabalho «científico» que, mais do que qualquer outra coisa, parece uma falsificação! Induz-se o leitor alemão a acreditar que os bolcheviques capitularam perante os camponeses, no que se refere ao direito de propriedade privada sobre a terra, e que deixaram os camponeses fazer («nos diferentes distritos») o que cada um queria!
Na realidade, o decreto citado por Kautsky, o primeiro decreto, promulgado a 26 de outubro de 1917 (calendário antigo), compreende cinco artigos e não dois, sem contar os oito artigos do Mandato, a respeito do qual se diz que «deve servir de norma de conduta».
O terceiro artigo do decreto assinala que as explorações agrícolas passam «ao povo» e que é obrigatório fazer «o inventario exato de todos os bens confiscados» e «instruir uma guarda revolucionaria com o maior rigor». É o mandato assinala que «o direito de propriedade privada sobre a terra fica abolido para sempre», que «as propriedades melhor organizadas» «não serão divididas», que «todo o gado de trabalho e instrumentos de lavra passam, sem indenização, para o usufruto exclusivo do Estado ou das comunidades, segundo suas proporções e importância, que «toda a terra passa a fazer parte do fundo agrário nacional».
Mais tarde, ao mesmo tempo em que era dissolvida a Assembleia Constituinte (5 de janeiro de 1918), o III Congresso dos Sovietes aprovou a «Declaração de direitos do povo trabalhador e explorado», que agora é parte da Lei fundamental da República soviética. Seu artigo II, parágrafo 1.º, diz que «fica abolida a propriedade privada sobre a terra» e que «as propriedades e empresas agrícolas-modelo são consideradas patrimônio nacional».
Por conseguinte, a alusão à Assembleia Constituinte não era letra morta, porque outra instituição nacional representativa, muitíssimo mais autorizada para os camponeses, encarregou-se de resolver o problema agrário.
Em seguida — a 6 (19) de fevereiro de 1918 — foi promulgada a lei sobre a socialização da terra, que confirma mais uma vez a abolição de toda a propriedade sobre a terra, pondo esta e todo o gado de trabalho e os instrumentos de lavra das explorações privadas à disposição das autoridades soviéticas, sob o controle do Poder Soviético federal; como objetivo desta gestão das terras a lei assinala:
“o fomento da exploração coletiva na agricultura, por ser a mais vantajosa do ponto-de-vista da economia do trabalho e dos produtos, em prejuízo das explorações individuais, com o objetivo de passar à exploração agrícola socialista” (art. 11, item d).
Ao instituir o usufruto igualitário da terra, diz a lei sobre o problema fundamental de «quem tem direito a gozar da terra»:
(Art. 20). “Dentro da República Federativa Soviética da Rússia podem desfrutar de parcelas de terra para fins públicos e pessoais: A) Com fins educativos e instrutivos: 1) O Estado, representado pelos órgãos do Poder Soviético (federal, regional, provincial, de comarca, de distrito e de aldeia). 2) As organizações sociais (sob o controle e com a autorização do Poder Soviético local). B) Para o cultivo: 3) As comunas agrícolas. 4) As cooperativas agrícolas. 5) As comunidades rurais. 6) Famílias e indivíduos isolados...”
O leitor pode ver que Kautsky desnaturou inteiramente a questão, apresentando ao leitor alemão a política e a legislação agraria do Estado proletário da Rússia de uma maneira inteiramente falsa.
Kautsky não soube sequer formular do ponto-de-vista teórico os problemas importantes e fundamentais!
Estes problemas são os seguintes:
Quanto ao primeiro item é preciso estabelecer, acima de tudo, os dois fatos seguintes, que são fundamentais:
Um teórico marxista que quisesse servir à revolução operaria por meio de sua análise científica, deveria dizer, em primeiro lugar, se é verdade que a ideia do usufruto igualitário da terra tem um valor democrático revolucionário, o valor de levar a termo a revolução democrático-burguesa. Em segundo lugar, deveria dizer se os bolcheviques procederam bem ao fazer aprovar com seus votos (e a cumpri-la com a maior lealdade) a lei pequeno-burguesa relativa ao usufruto igualitário.
Kautsky não soube sequer perceber em que consiste teoricamente o quid da questão!
Nunca teria conseguido negar que o princípio igualitário tem um valor progressista e revolucionário em uma revolução democrático-burguesa. Esta revolução não pode ir mais além. Ao chegar a seu termo, mostra às massas, com muito clareza, rapidez e facilidade, a insuficiência das soluções democrático-burguesas, a necessidade de ultrapassá-las e de passar para o socialismo.
Os camponeses que derrubaram o tzarismo e os latifundiários querem a nivelação, e não há força que possa contê-los, uma vez libertados dos latifundiários e do Estado parlamentar burguês republicano. Os proletários dizem aos camponeses: nós os ajudaremos a chegar ao capitalismo «ideal», porque o usufruto igualitário da terra é a idealização do capitalismo do ponto de vista do pequeno produtor. Mas, ao mesmo tempo, lhes mostraremos a insuficiência deste sistema, a necessidade de passar ao cultivo coletivo da terra.
Seria interessante ver o que faria Kautsky para negar o acerto do proletariado ao dirigir assim a luta dos camponeses!
Kautsky preferiu fugir do problema...
Além disso, enganou abertamente os leitores alemães, ocultando-lhes que na Lei sobre a terra o Poder Soviético dá preferência direta às comunas e às cooperativas, colocando-as em primeiro lugar.
Com todos os camponeses até o fim da revolução democrático-burguesa; com os elementos camponeses pobres, proletários e semiproletários, avante, em direção à revolução socialista! Esta foi a política dos bolcheviques, e esta era a única política marxista.
Mas Kautsky embrulha-se, não conseguindo formular um só problema! Por um lado, não se atreve a dizer que os proletários deveriam ter divergido dos camponeses no problema do usufruto igualitário, porque compreende o absurdo de tal divergência (além do mais, em 1905, antes de ser renegado, Kautsky propugnava clara e francamente a aliança entre operários e camponeses, da qual fazia depender o triunfo da revolução). Por outro lado, cita com simpatia as vulgaridades liberais do menchevique Maslov, quo «demonstra» o caráter utópico e reacionário da igualdade pequeno-burguesa do ponto de vista do socialismo e silencia sobre o caráter progressista e revolucionário da luta pequeno-burguesa pela igualdade, pelo princípio igualitário, do ponto-de-vista da revolução democrático-burguesa.
Kautsky meteu-se em um labirinto: notem que o Kautsky de 1918 insiste no caráter burguês da revolução russa. O Kautsky de 1918 exige: Não saias desse limite! É este mesmo Kautsky vê «algo de socialismo» (para a revolução burguesa) na reforma pequeno-burguesa que entrega em arrendamento aos camponeses pobres pequenas parcelas de terra (isto é, na aproximação do igualitarismo)!!
Compreenda-o quem puder!
Além disso, Kautsky mostra uma incapacidade filisteia para levar em conta a política real de um partido determinado. Cita frases do menchevique Maslov, sem querer ver a política real do partido menchevique em 1917, o qual em «coalizão» com latifundiários e democratas constitucionalistas defendia, de fato, uma reforma agraria liberal e o acordo com os latifundiários (como provam a prisão de membros dos comitês agrários e o projeto de lei de Maslov).
Kautsky não viu que as frases de P. Maslov sobre o caráter reacionário e utópico da igualdade pequeno-burguesa encobre, de fato, a política menchevique de conciliação entre camponeses e latifundiários (isto é, a tapeação daqueles por estes), em lugar da derrubada revolucionaria dos latifundiários pelos camponeses.
Bom «marxista» este Kautsky!
Os bolcheviques são os que tiveram muito em conta a diferença entre a revolução democrático-burguesa e a socialista: ao levar a primeira a seu termo, abriam o caminho para a passagem à segunda. Esta é a única política revolucionaria e a única política marxista.
Kautsky repete em vão as sutilezas insípidas dos liberais:
«Nunca em parte alguma os pequenos camponeses passaram à produção coletiva movidos pela persuasão teórica» (pág. 50).
Que engenhoso!
Nunca e em parte alguma os pequenos camponeses de um grande país estiveram sob a influência de um Estado proletário.
Nunca e em parte alguma os pequenos camponeses chegaram a uma luta de classe aberta entre os camponeses pobres e os ricos, até a guerra civil entre uns e outros, com a circunstância de estarem os pobres sustentados pela propaganda, pela política e pela ajuda econômica e militar do poder político proletário.
Nunca e em parte alguma se enriqueceram tanto os especuladores e ricaços em consequência de uma guerra, nem se arruinou tanto a massa camponesa.
Kautsky repete velharias, rumina coisas gastas, temendo até mesmo pensar nas novas tarefas da ditadura do proletariado.
É se os camponeses, caro Kautsky, não têm bastantes instrumentos para a pequena produção e o Estado proletários os ajuda a conseguir máquinas para cultivar o solo coletivamente, será isto «persuasão teórica»?
Passemos ao problema da nacionalização da terra. Nossos populistas, e entre eles todos os esserristas de esquerda, negam que a medida que levamos à prática seja a nacionalização da terra. Equivocam-se teoricamente. Posto que não ultrapassamos o limite da produção mercantil e do capitalismo, a abolição da propriedade privada sobre a terra é sua nacionalização. A palavra «socialização» expressa somente uma tendência, um desejo, uma preparação da transição para o socialismo.
Qual deve ser, pois, a atitude dos marxistas em relação à nacionalização da terra?
Tampouco desta vez sabe Kautsky formular pelo menos o problema teórico, ou — o que é pior — tergiversa intencionalmente, embora se saiba pelas publicações russas que Kautsky conhece as antigas discussões dos marxistas russos sobre a nacionalização da terra, sobre sua municipalização (entrega das grandes propriedades às administrações locais e sobre sua repartição.
Kautsky zomba abertamente do marxismo quando diz que a passagem das grandes propriedades para as mãos do Estado e seu arrendamento em pequenas parcelas aos camponeses com pouca terra realizaria «algo de socialismo». Já dissemos que nisso nada há de socialismo. Mais ainda: não há nem sequer revolução democrático-burguesa levada a seu termo. Kautsky teve a grande desgraça de fiar-se muito nos mencheviques. Disso resulta um fato curioso. Kautsky, que defende o caráter burguês de nossa revolução, que reprova aos bolcheviques sua ideia de empreender o caminho que leva ao socialismo, apresenta ele próprio uma reforma liberal como socialismo, sem levar esta reforma até a supressão completa de todos os elementos medievais nas relações de propriedade territorial! Resulta que Kautsky, do mesmo modo que seus conselheiros mencheviques, defende a burguesia liberal, temerosa da revolução, em lugar de defender uma revolução democrático-burguesa consequente.
Com efeito, porque passar para o Estado somente as grandes propriedades e não todas as terras? A burguesia liberal chega assim ao máximo na manutenção do velho (isto é, uma revolução de consequências mínimas) e deixa de pé as maiores facilidades para voltar a ele. A burguesia radical, isto é, a que quer levar a seu termo a revolução burguesa, propõe a palavra-de-ordem de nacionalização da terra.
Kautsky, que em tempos muito remotos, há quase vinte anos, escreveu uma obra marxista admirável sobre o problema agrário, não pode ignorar o que indicou Marx: a nacionalização da terra é uma palavra-de-ordem consequentemente burguesa. Kautsky não pode ignorar a polêmica entre Marx e Rodbertus e as notáveis explicações de Marx em Teorias da Mais-valia, onde mostra com particular clareza o valor revolucionário que tem a nacionalização da terra do ponto-de-vista democrático-burguês.
O menchevique P. Maslov, com tanta infelicidade escolhido por Kautsky para conselheiro, negava que os camponeses russos pudessem aceitar a nacionalização de toda a terra (incluindo a deles). Esta concepção estava, até certo ponto, relacionada com sua «original» teoria (repetição do que foi dito pelos críticos burgueses de Marx), que negava a renda absoluta e aceitava a «lei» (ou o «fato», segundo dizia Maslov) «da fertilidade decrescente da terra».
Na realidade, a revolução de 1905 já tornou evidente que a imensa maioria dos camponeses russos, tanto membros das comunidades como proprietários de suas parcelas, desejava a nacionalização de toda a terra. A revolução de 1917 veio confirmá-lo e, depois de o poder passar para as mãos do proletariado, converteu o desejo em realidade. Os bolcheviques foram fiéis ao marxismo, não tentaram (apesar de Kautsky nos acusar disso, sem sombra de provas) «saltar» por cima da revolução democrático-burguesa. Os bolcheviques começaram por ajudar os ideólogos democrático-burgueses dos camponeses, os que eram mais radicais, mais revolucionários, que estavam mais perto do proletariado isto é, os esserristas de esquerda, a realizar o que era de fato a nacionalização da terra. A propriedade privada da terra foi abolida na Rússia a 26 de outubro de 1917, isto é, no primeiro dia da revolução proletária socialista.
Deste modo, criou-se uma base, a mais perfeita do ponto-de-vista do desenvolvimento do capitalismo (Kautsky não poderá negá-lo sem romper com Marx), e, ao mesmo tempo, o regime agrário mais flexível para a passagem ao socialismo. Do ponto-de-vista democrático-burguês, os camponeses revolucionários da Rússia não podem ir mais longe. nada «mais ideal» pode haver, deste ponto-de-vista, do que a nacionalização da terra e a igualdade de seu usufruto, nada «mais radical» (do mesmo ponto-de-vista). Os bolcheviques, só os bolcheviques, e só em virtude do triunfo da revolução proletária, são os que ajudaram os camponeses a levar verdadeiramente a seu termo a revolução democrático-burguesa. É unicamente deste modo fizeram o máximo para facilitar e apressar a passagem para a revolução socialista.
Por aí se pode julgar a incrível confusão que Kautsky oferece aos seus leitores quando acusa os bolcheviques de não compreenderem o caráter burguês da revolução e se afasta ele próprio do marxismo a ponto de silenciar sobre a, nacionalização da terra e apresentar a reforma agraria liberal, a menos revolucionaria (do ponto-de-vista burguês), como «algo de socialismo»!
Com isso chegamos ao terceiro dos problemas formulados acima: Até que ponto a ditadura do proletariado na Rússia levou em conta a necessidade de passar ao cultivo coletivo da terra? Kautsky torna cometer a esse respeito algo que se assemelha a uma falsificação: limita-se a citar as «teses» de um bolchevique, nas quais se trata do problema da passagem ao cultivo coletivo da terra! Depois de haver citado uma destas teses, exclama nosso «teórico», em tom de triunfo:
“Ao se declarar que algo é um problema, não se resolve, infelizmente o problema. A agricultura coletiva na Rússia está por ora condenada a ficar no papel. Nunca em parte alguma os pequenos camponeses passaram à produção coletiva movidos pela persuasão teórica” (pág. 50).
Nunca e em parte alguma um autor recorreu a tão grande argúcia como Kautsky. Cita as «teses», mas não diz uma só palavra sobre a lei do Poder Soviético. Fala de «persuasão teórica» e não diz uma só palavra sobre o poder proletário que tem em suas mãos as fábricas e as mercadorias! Tudo o que o marxista Kautsky escrevia em 1899 no Problema agrário sobre os meios de que dispõe o Estado proletário para fazer passar paulatinamente os pequenos camponeses ao socialismo, o renegado Kautsky esquece em 1918.
É claro que algumas centenas de comunas agrícolas e explorações soviéticas apoiadas pelo Estado (isto é, de grandes explorações cultivadas por cooperativas operarias, por conta do Estado), representam muito pouco. Mas pode chamar-se de «crítica» a atitude de Kautsky, que não toca neste fato?
A nacionalização da terra, obra, na Rússia, da ditadura do proletariado, constituía a melhor garantia de que a revolução democrático-burguesa seria levada a seu termo, mesmo no caso em que uma vitória da contrarrevolução fizesse retroceder da nacionalização que a repartição (caso que analiso especialmente em meu livro sobre o programa agrário dos marxistas na revolução de 1905). Além disso, a nacionalização da terra dá ao Estado proletário as maiores possibilidades de passar para o socialismo na agricultura.
Em resumo: Kautsky oferece-nos, teoricamente, uma confusão incrível, afastando-se inteiramente do marxismo; na prática, vemos seu servilismo diante da burguesia e o reformismo burguês. Boa crítica, em verdade!
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Kautsky inicia sua «análise econômica» da indústria com o magnífico raciocínio que se segue:
A Rússia tem uma grande indústria capitalista. Seria factível montar sobre esta base a produção socialista?
«Poderia pensar-se assim se o socialismo consistisse em que os operários das diferentes fábricas e minas as tomassem como sua propriedade» (literalmente: se apropriassem delas) «levando a cabo a produção em cada uma delas por conta própria» pág. 52). «Precisamente hoje, 5 de agosto, o dia em que escrevo estas linhas — acrescenta Kautsky —, chegam de Moscou notícias sobre um discurso pronunciado por Lênin a 2 de agosto e no qual, segundo comunicam, disse: «Os operários têm firmemente as fábricas em suas mãos, os camponeses não devolverão as terras aos latifundiários». O lema «a fábrica para os operários, a terra para os camponeses» não foi até hoje um lema social-democrata, mas anarco-sindicalista» (págs. 52/53).
Citamos na íntegra este raciocínio para que os operários russos, que antes estimavam Kautsky, e com razão, vejam por si mesmos como procede este trânsfuga, que se passou para a burguesia.
Com efeito: a 5 de agosto, quando já existia um sem-número de decretos sobre a nacionalização das fábricas na Rússia, os operários não «se apropriando», além disso, sequer de uma única fábrica, posto que todas passaram a ser propriedade da república, a 5 de agosto Kautsky, interpretando com má-fé evidente uma frase de um discurso meu, trata de inculcar aos leitores alemães a ideia de que na Rússia se entregam as fábricas aos operários de cada empresa! É depois, em dezenas e dezenas de linhas, rumina que as fábricas não devem ser entregues aos operários de cada empresa!
Isto não é crítica, mas um procedimento de lacaio da burguesia, a soldo dos capitalistas para caluniar a revolução operaria.
As fábricas têm que passar para as mãos do Estado, das comunidades ou das cooperativas de consumo, repete uma ou outra vez Kautsky e, por fim, acrescenta:
«Este é o caminho que se tentou empreender agora na Rússia»...
Agora!! O que quer dizer isto? Em agosto? Mas não pôde Kautsky encarregar seus Stein, Axelrod ou outros amigos da burguesia russa de traduzir ao menos algum decreto sobre as fábricas?
“....Não se vê ainda até onde se chegou neste sentido. Em todo caso, este aspecto da República soviética apresenta para nós o máximo interesse, mas continua inteiramente nas trevas. Não faltam decretos...” (Por isso Kautsky não quer ver seu conteúdo ou o oculta a seus leitores!), “mas faltam notícias fidedignas sobre o efeito de tais decretos. A produção socialista é impossível sem unia estatística completa, detalhada, segura e rápida. Até agora, a República soviética não pôde criá-la. O que sabemos de suas medidas econômicas é extremamente contraditório, e de comprovação impossível. Isto é também um dos resultados da ditadura e do esmagamento da democracia. Não há liberdade de imprensa, nem de palavra...” (pág. 53).
Assim se escreve a história! Na imprensa «livre» dos capitalistas e dos partidários de Dutov, Kautsky teria encontrado dados sobre as fábricas transferidas aos operários...! É verdadeiramente magnífico este «sério erudito» que se coloca acima das classes! Kautsky não quer sequer roçar em alguns dos inumeráveis fatos demonstrativos de que as fábricas transferidas unicamente à república, de que delas dispõe um órgão do Poder Soviético, o Conselho Superior de Economia Nacional, composto principalmente de delegados dos sindicatos operários. Com néscio empenho de homem afundado em sua carapaça repete insistentemente: eu quero uma democracia pacífica, sem guerra civil, sem ditadura, com boas estatísticas (a República soviética criou um instituto de estatística, levando para ele os elementos mais competentes da Rússia, mas é claro que uma estatística ideal não pode ser conseguida imediatamente). Em uma palavra: o que prefere Kautsky é a revolução sem revolução, sem luta inflamada, sem violências. É como pedir que houvesse greves sem luta apaixonada entre operários e patrões. Que apareça quem consegue distinguir um tal «socialista» de um vulgar burocrata liberal!
Baseando-se em tais «dados», isto é, fugindo deliberadamente, com completo desprezo, dos numerosíssimos fatos, Kautsky «conclui»:
"É duvidoso que, no que se refere a verdadeiras conquistas práticas, e não a decretos, tenha o proletariado russo conseguido com a República soviética mais do que teria obtido da Assembleia Constituinte, na qual, do mesmo modo que nos sovietes, predominavam os socialistas, embora de um matiz diferente.” (pág. 58)
Uma pérola, não é verdade? Aconselhamos aos partidários de Kautsky que difundam amplamente entre os operários russos estas palavras, pois ele não podia ter dado melhor prova de sua queda política. Kerenski também era «socialista», camaradas operários, só que «de um matiz diferente»! O historiador Kautsky contenta-se com um nome, com um qualificativo do qual se «apropriaram» os esserristas de direita e os mencheviques. Mas não quer nem ouvir falar dos fatos, que provam que, sob o governo Kerenski, mencheviques e esserristas de direita apoiavam a política imperialista e a pilhagem burguesa, e silencia, discreto, o fato de que a Assembleia Constituinte dava a maioria a esses heróis da guerra imperialista e da ditadura burguesa. É a isto se chama «análise econômica»!...
Para terminar, outra amostra de «análise econômica»:
... “Aos nove meses de existência, em lugar de haver estendido o bem-estar geral, a República soviética vê-se obrigada a explicar a que se deve a escassez geral.” (pág. 41)
Os democratas constitucionalistas acostumaram-nos a tais raciocínios. Todos os lacaios da burguesia continuam raciocinando assim, na Rússia: Deem-nos — dizem — em nove meses o bem-estar geral, depois de quatro anos de guerra destruidora, e enquanto o capital estrangeiro presta uma ajuda múltipla à burguesia da Rússia, para que esta continue as sabotagens e as insurreições. Na prática não há, como se vê, diferença alguma, nem sombra de diferença entre Kautsky e o burguês contrarrevolucionário. Discursos melosos, disfarçados de «socialismo», repetem o que, brutalmente, sem circunlóquios ou adornos, dizem na Rússia os Kornilov, Dutov e Krasnov.
★ ★ ★
As linhas acima foram escritas a 9 de novembro de 1918. No dia nove à noite chegaram da Alemanha notícias que anunciam o começo vitorioso da revolução, primeiro em Kiel e outras cidades do norte e do litoral, onde o poder passou aos sovietes de deputados operários e soldados, e logo em Berlim, onde também o poder passou às mãos de um soviete.
Torna-se desnecessária, pois, a conclusão que restava a escrever para o folheto sobre Kautsky e a revolução proletária. 10 de novembro de 1918
Notas de rodapé:
(1) No VI Congresso dos Sovietes (6 a 9 de novembro de 1918) houve 967 delegados com voz e voto, 950 dos quais eram bolcheviques, e 351 com voz sem voto, dos quais 335 eram bolcheviques. Por conseguinte, 97% de bolcheviques. (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
(2) No período da revolução democrático-burguesa de fevereiro, o governo provisório deteve vários membros dos comitês agrários em resposta às insurreições camponesas e à ocupação da terra dos latifundiários pelos camponeses. (retornar ao texto)