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Escrito: a 22 de maio de 1918.
Primeira Edição: Pravda, n° 101, de 24 de Maio de 1918.
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1978, t2, p 618-623, Edições Avante! — Lisboa, Edições Progresso — Moscovo.
Tradução: Edições "Avante!" com base nas Obras Completas de V. I. Lénine, 5.ª ed. em russo, t.36 pp 357-364.
Transcrição: Partido Comunista Português
HTML: Fernando A. S. Araújo, março 2009.
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Edições
"Avante!" — Edições Progresso Lisboa — Moscovo, 1977.
Camaradas! Há uns dias visitou-me um delegado vosso, camarada do partido, operário da fábrica Putilov. Este camarada descreveu-me com todo o pormenor o quadro extremamente penoso da fome em Petrogrado. Todos sabemos que, em toda uma série de províncias industriais, a questão dos víveres tem a mesma gravidade, a fome bate não menos dolorosamente à porta dos operários e dos pobres em geral.
E ao mesmo tempo observamos uma especulação desenfreada com os cereais e outros produtos alimentares. A fome não é devida à falta de cereais na Rússia, mas é devida a que a burguesia e todos os ricos travam o combate final, decisivo, contra o domínio dos trabalhadores, contra o Estado dos operários, contra o Poder Soviético, na questão mais importante e aguda, na questão dos cereais. A burguesia e todos os ricos, incluindo os ricos do campo, os kulaques, torpedeiam o monopólio dos cereais, destroem a distribuição estatal de cereais, implantada em benefício e no interesse do abastecimento de cereais de toda a população, em primeiro lugar dos operários, dos trabalhadores, dos necessitados. A burguesia torpedeia os preços fixos, especula com os cereais, ganha cem, duzentos rublos, e mesmo mais, em cada pud de cereais, destrói o monopólio dos cereais e impede a regular distribuição de cereais, destrói com a concussão, o suborno, o apoio raivoso a quanto possa deitar a perder o poder dos operários, que procura realizar o princípio primeiro, básico e fundamental do socialismo: «quem não trabalha não come.»
«Quem não trabalha não come» — isto compreende-o qualquer trabalhador. Com isto estão de acordo todos os operários, todos os camponeses pobres e mesmo médios, todo aquele que passou necessidades, todo aquele que tenha vivido alguma vez do seu salário. Nove décimos da população da Rússia estão de acordo com esta verdade. Nesta verdade simples, simplicíssima e evidente, está a base do socialismo, a fonte inesgotável da sua força, a garantia indestrutível da sua vitória definitiva.
Mas o essencial consiste, precisamente, em que uma coisa é declarar-se de acordo com esta verdade, jurar que se a compartilha, reconhecê-la em palavras, e outra coisa é saber aplicá-la na prática. Quando centenas de milhares e milhões de pessoas sofrem de fome (em Petrogrado, nas províncias não-agrícolas, em Moscovo) num país onde os ricos, os kulaques e os especuladores ocultam milhões e milhões de puds de cereais, num país que se chama a si próprio República Socialista Soviética, existem motivos para que cada operário e camponês consciente reflicta séria e profundamente.
«Quem não trabalha não come» — como levar isto à prática? É claro como a luz do dia que para levar isto à prática é necessário, primeiro, o monopólio estatal dos cereais, isto é, a proibição absoluta de todo o comércio privado de cereais, a entrega obrigatória ao Estado de todos os excedentes de cereais a preço fixo, a proibição absoluta a quem quer que seja de reter e ocultar os excedentes de cereais. Segundo, para isto é necessário um registo rigoroso de todos os excedentes de cereais e o envio irrepreensivelmente correcto dos cereais dos lugares onde os há em excesso para os lugares onde são insuficientes, juntamente com a acumulação de reservas para o consumo, a laboração e a sementeira. Terceiro, para isto é necessário uma distribuição dos cereais correcta, justa, que não dê nenhuns privilégios nem vantagens aos ricos, entre todos os cidadãos do Estado, sob o controlo do Estado operário, proletário.
Basta reflectir minimamente acerca destas condições da vitória sobre a fome para compreender a profundíssima estupidez dos desprezíveis charlatães do anarquismo, que negam a necessidade do poder de Estado (implacavelmente severo com a burguesia, implacavelmente firme em relação aos desorganizadores do poder) para a transição do capitalismo para o comunismo, para a libertação dos trabalhadores de todo o jugo e de toda a exploração. Precisamente agora, quando a nossa revolução abordou em pleno, de maneira concreta e prática — e nisto consiste o seu imenso mérito — as tarefas da realização do socialismo, precisamente agora, e exactamente na questão do que é mais importante, na questão dos cereais, vê-se com a maior clareza a necessidade de um férreo poder revolucionário, da ditadura do proletariado, da organização da recolha de produtos alimentares, do seu transporte e da sua distribuição numa escala de massas, nacional, tendo em conta as necessidades de dezenas e centenas de milhões de pessoas, calculando as condições e os resultados da produção com um e com muitos anos de antecedência (pois há anos de más colheitas, são necessários trabalhos de melhoria dos solos para que aumente a colheita de cereais, o que requer um trabalho de muitos anos, etc).
Románov e Kérenski deixaram em herança à classe operária um país extremamente arruinado pela sua guerra de rapina, criminosa e pesadíssima, um país saqueado totalmente pelos imperialistas russos e estrangeiros. Os cereais só chegarão para todos se se registar do modo mais rigoroso cada pud, se se distribuir com a mais absoluta igualdade cada libra. O pão para as máquinas, isto é, o combustível, também é extremamente insuficiente: se não pusermos em tensão todas as forças para conseguir uma economia implacavelmente rigorosa do consumo, uma distribuição correcta, paralisar-se-ão os caminhos-de-ferro e as fábricas, e o desemprego e a fome farão sucumbir todo o povo. A catástrofe está diante de nós, chegou muitíssimo perto de nós. Atrás de um mês de Maio desmedidamente duro vêm os meses ainda mais duros de Junho, Julho e Agosto.
O monopólio estatal dos cereais existe no nosso país por lei, mas de facto a burguesia torpedeia-o a cada passo. O rico do campo, o kulaque, o explorador que saqueou durante decénios toda a vizinhança, prefere ganhar com a especulação, com a aguardente — isto é tão vantajoso para o seu bolso —, e atira a culpa da fome para o Poder Soviético. Precisamente assim procedem os defensores políticos do kulaque — os democratas-constitucionalistas, os socialistas-revolucionários de direita, os mencheviques, que «trabalham» aberta e veladamente contra o monopólio dos cereais e contra o Poder Soviético. O partido dos indecisos, isto é, dos socialistas-revolucionários de esquerda, também aqui é indeciso: cede aos gritos e berros egoístas da burguesia, grita contra o monopólio dos cereais, «protesta» contra a ditadura dos víveres, deixa-se intimidar pela burguesia, teme a luta contra o kulaque e agita-se histericamente, aconselhando a elevar os preços fixos, a autorizar o comércio privado, etc.
Este partido dos indecisos reflecte na política algo de parecido com o que sucede na vida, quando o kulaque incita os pobres contra os Sovietes, os suborna, dá, por exemplo, a algum camponês pobre um pud de trigo não por seis rublos, mas por três, para que este pobre corrompido «aproveite» ele próprio com a especulação, «beneficie» ele próprio com a venda especulativa deste pud por 150 rublos, comece ele próprio a gritar contra os Sovietes, que proíbem o comércio privado dos cereais.
Todo aquele que seja capaz de pensar, todo aquele que queira reflectir minimamente, verá com clareza que linha segue a luta:
Ou vencem os operários conscientes, avançados, unindo à sua volta a massa dos pobres e estabelecendo uma ordem férrea, um poder implacavelmente severo, a verdadeira ditadura do proletariado, e obrigam o kulaque a submeter-se, implantando uma distribuição correcta dos cereais e do combustível à escala nacional;
— ou a burguesia, ajudada pelos kulaques e com o apoio indirecto dos indecisos e dos confusos (anarquistas e socialistas-revolucionários de esquerda), derrubará o Poder Soviético e instalará um Kornílov russo-alemão ou russo-japonês, que trará ao povo a jornada de trabalho de 16 horas, o meio quarto de pão para a semana, fuzilamentos de operários em massa e torturas nas masmorras, como na Finlândia, como na Ucrânia.
Ou — ou.
Não há meio termo.
A situação do país chegou ao extremo.
Quem reflecte na vida política não pode deixar de ver que os democratas-constitucionalistas e os socialistas-revolucionários de direita e mencheviques tentam pôr-se de acordo entre si sobre se é mais «agradável» um Kornílov russo-alemão ou russo-japonês, se esmagará melhor e mais seguramente a revolução um Kornílov coroado ou republicano.
Já é tempo que se ponham de acordo todos os operários conscientes, avançados. Já é tempo de que acordem e compreendam que cada minuto de demora é uma ameaça de que pereçam o país e a revolução.
As meias medidas não ajudarão. As lamentações a nada conduzirão. As tentativas para conseguir pão ou combustíveis «a retalho», para «si mesmo», isto é, para a «sua» fábrica, para a «sua» empresa, só reforçarão a desorganização, só facilitarão aos especuladores a sua obra egoísta, imunda e tenebrosa.
E eis porque, camaradas operários de Petrogrado, me permito dirigir-vos esta carta. Petrogrado não é a Rússia. Os operários de Petrogrado são uma pequena parte dos operários da Rússia. Mas, dos destacamentos da classe operária e de todos os trabalhadores da Rússia, eles são um dos melhores, mais avançados, mais conscientes, mais revolucionários, mais firmes, menos propícios às frases vazias, ao desespero dos indecisos, a deixar-se intimidar pela burguesia. E nos momentos críticos da vida dos povos aconteceu mais de uma vez que os destacamentos de vanguarda das classes avançadas, mesmo pouco numerosos, arrastaram todos atrás de si, incendiaram as massas com o fogo do entusiasmo revolucionário e realizaram as mais grandiosas façanhas históricas.
Tínhamos quarenta mil na fábrica Putílov — dizia-me o delegado dos operários de Petrogrado — mas a maioria deles eram operários «temporários», não proletários, gente insegura, frouxa. Agora restam quinze mil, mas são proletários experientes e temperados na luta.
Eis qual a vanguarda da revolução — em Petrogrado e em todo o país — que deve lançar o apelo, que deve erguer-se em massa, que deve compreender que está nas suas mãos a salvação do país, que dela se exige um heroísmo não menor do que em Janeiro e Outubro de 1905, em Fevereiro e Outubro de 1917, que é preciso organizar a grande «cruzada» contra os especuladores de cereais, os kulaques, os exploradores, os desorganizadores, os concussionários, a grande «cruzada» contra os violadores da mais rigorosa ordem estatal na recolha, transporte e distribuição do pão para as pessoas e do pão para as máquinas.
Só o levantamento em massa dos operários avançados pode salvar o país e a revolução. São precisos dezenas de milhares de proletários avançados, temperados, suficientemente conscientes para explicar as coisas aos milhões de pobres em todos os confins do país e para se pôr à cabeça destes milhões; suficientemente firmes para afastar e fuzilar implacavelmente todo aquele que «se deixe seduzir» — acontece — pelas seduções da especulação e se converta de combatente da causa do povo em saqueador; suficientemente firmes e fiéis à revolução para suportar organizadamente todo o peso da campanha em todos os confins do país para instaurar a ordem, para reforçar os órgãos locais do Poder Soviético, para velar localmente por cada pud de trigo, por cada pud de combustível.
Fazer isto é mais difícil do que dar provas de heroísmo durante alguns dias, sem abandonar o seu lugar habitual, sem partir em campanha, limitando-se a um impulso — à insurreição contra o monstro idiota Románov ou o cretino e fanfarrão Kérenski. O heroísmo do trabalho de organização prolongado e tenaz à escala nacional é incomensuravelmente mais difícil, mas incomensuravel-mente mais elevado, que o heroísmo das insurreições. Mas a força dos partidos operários e da classe operária consistiu sempre em encarar o perigo de frente, audaz, directa e abertamente, não temendo reconhecê-lo, em pesar com serenidade as forças existentes no «seu» campo e no campo «alheio», o dos exploradores. A revolução avança, desenvolve-se e cresce. Crescem também as tarefas que se colocam perante nós. Crescem a amplitude e a profundidade da luta. A verdadeira e principal antecâmara do socialismo consiste na distribuição correcta dos cereais e do combustível, no aumento da sua obtenção, no mais rigoroso registo e controlo sobre eles por parte dos operários e à escala nacional. Isto já não é uma tarefa «revolucionária geral», mas precisamente uma tarefa comunista, precisamente a tarefa em que os trabalhadores e os pobres devem dar a batalha decisiva ao capitalismo.
Merece a pena consagrar todas as forças a esta batalha: as suas dificuldades são grandes, mas grande é também a causa, pela qual lutamos, da abolição da opressão e da exploração.
Quando o povo tem fome, quando o desemprego faz estragos cada vez mais terríveis, quem esconder um só pud de cereais excedentes, quem privar o Estado de um pud de combustível é o pior dos criminosos.
Em tal momento — e para a sociedade verdadeiramente comunista isto é sempre certo —, cada pud de cereais e de combustível é uma coisa verdadeiramente sagrada, muito superior às coisas sagradas com que os padres enchem a cabeça dos tontos, prometendo-lhes o reino dos céus como recompensa pela escravidão na terra. E para despojar esta verdadeira coisa sagrada de todo o vestígio de «santidade» clerical é preciso apoderarmo-nos dela na prática, é preciso conseguir de facto a sua distribuição correcta, é preciso recolher até ao fim todos os excedentes de cereais sem excepção para as reservas do Estado, é preciso limpar todo o país dos excedentes de cereais escondidos ou não recolhidos, é preciso retesar as forças ao máximo, com mão firme de operário, para aumentar a obtenção de combustível e conseguir a sua maior economia, a maior ordem no seu transporte e consumo.
Necessitamos de uma «cruzada» de massas dos operários avançados para cada ponto onde se produzem cereais e combustível, para cada ponto importante do seu transporte e distribuição, para elevar a energia do trabalho, para decuplicar a sua energia, para ajudar os órgãos locais do Poder Soviético no registo e no controlo, para a aniquilação armada da especulação, da concussão e do desleixo. Esta tarefa não é nova. Propriamente falando, a história não coloca tarefas novas — só aumenta a dimensão e a amplitude das velhas tarefas, à medida que aumenta a amplitude da revolução, que crescem as suas dificuldades, que cresce a grandeza da sua tarefa histórico-universal.
Uma das obras mais grandiosas e indeléveis da revolução de Outubro — da Revolução Soviética -consiste em que o operário avançado, como dirigente dos pobres, como chefe das massas trabalhadoras do campo, como edificador do Estado do trabalho, «foi ao povo». Petrogrado enviou para o campo milhares e milhares dos melhores operários, como enviaram outros centros proletários. Os destacamentos de combatentes contra os Kalédine e os Dútov, os destacamentos de víveres não são uma novidade. A tarefa consiste unicamente em que a proximidade da catástrofe, a gravidade da situação, obriga a fazer dez vezes mais do que antes.
O operário, ao tornar-se chefe avançado dos pobres, não se tornou um santo. Conduziu o povo em frente, mas também foi contaminado pelas doenças da decadência pequeno-burguesa. Quanto menor era o número de destacamentos formados pelos operários melhor organizados, mais conscientes, mais disciplinados e firmes, tanto mais frequentemente se corrompiam, tanto mais frequentes eram os casos de vitória do elemento de pequeno proprietário do passado sobre a consciência proletária, comunista, do futuro.
Ao iniciar a revolução comunista, a classe operária não pode desfazer-se de uma só vez das fraquezas e dos vícios legados pela sociedade dos latifundiários e capitalistas, a sociedade dos exploradores e tubarões, a sociedade do sórdido interesse e do lucro pessoal de uns poucos a par da miséria de muitos. Mas a classe operária pode vencer — e, ao fim e ao cabo, vencerá segura e inevitavelmente — o velho mundo, os seus vícios e as suas fraquezas, se se lançarem contra o inimigo novos e novos destacamentos de operários, cada vez mais numerosos, cada vez mais instruídos pela experiência, cada vez mais temperados pelas dificuldades da luta.
Essa, precisamente essa, é a situação existente agora na Rússia. Isoladamente e em desordem não é possível vencer a fome e o desemprego. Necessitamos de uma «cruzada» de massas dos operários avançados a todos os confins do imenso país. São precisos dez vezes mais destacamentos de ferro do proletariado consciente e fiel sem reservas ao comunismo. Então venceremos a fome e o desemprego. Então elevaremos a revolução até à verdadeira antecâmara do socialismo. Então tornar-nos-emos também capazes de conduzir uma guerra defensiva vitoriosa contra os abutres imperialistas.
22/V.1918
N. Lenine
Notas de fim de tomo:
[N311] Sobre a Fome (Carta aos Operários de Petrogrado) foi escrita por Lénine depois de uma conversa com um representante da comissão de compras da Fábrica Putilov (hoje Kirovski), o operário marcador de caldeiraria A. V. Ivanov. Lénine informou Ivanov sobre o decreto aprovado pelo Conselho de Comissários do Povo em 9 de Maio de 1918 sobre a concessão de plenos poderes extraordinários ao Comissário do Povo dos Víveres para a luta contra a burguesia do campo, que escondia as reservas de cereais e especulava com elas. Lénine deu a Ivanov uma cópia deste decreto para que o desse a conhecer aos operários da fábrica Putilov. Cumprindo as indicações de Lénine sobre a criação de um seguro exército operário para uma campanha contra os kulaques, os especuladores de cereais, os desorganizadores e os concussionários, os operários de Petrogrado enviaram, no começo de 1918, um primeiro destacamento de víveres composto por 400 homens. (retornar ao texto)
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Inclusão | 08/09/2009 |