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Nós não nos contentamos em definir a economia soviética, mas nos esforçamos, estudando os problemas da Economia Política, em esclarecer os problemas análogos que se apresentam na U. R. S. S. Chegou o momento de fazermos o balanço de nosso trabalho e tirar dele algumas conclusões gerais. Paremos, desde já, e brevemente, sobre algumas particularidades do método empregado no estudo da economia soviética.
Estas particularidades decorrem do considerável papel representado pelo Estado soviético, órgão da ditadura do proletariado, na economia do período de transição. A economia capitalista é espontânea, anárquica; a economia soviética combina a espontaneidade com a organização racional. A organização racional sob um plano de conjunto supõe a direção consciente do processo econômico, ou, pelo menos, a reação consciente das pessoas ou dos órgãos sociais ou governamentais em face desse processo. Disso não se depreende, naturalmente, que um órgão dirigente do processo econômico, de acordo com um plano racional, possa agir por conta própria. Todas as ações de tais organismos têm suas causas e estão submetidas a leis. Isto significa unicamente que ele não é o joguete cego destas leis, mas que, pelo contrário, elas se manifestam através de sua vontade e de sua consciência. A espontaneidade supõe, pelo contrário, a regulação das relações de produção pela lei elementar do valor, por fora, e, às vezes, em Oposição à vontade e à consciência humana.
Dai uma diferença essencial de princípio entre a Economia Política e a teoria da economia soviética. Para estudar, sob sua forma mais pura, a ação das leis que regem a economia capitalista e que atuam independentemente da vontade e da consciência dos homens, devemos fazer abstração de tudo que interfere nesta espontaneidade, e especialmente do Estado capitalista.(1) Foi o que fizemos. O estudo da economia soviética exige, porém, uma atitude completamente diferente. A organização racional, baseada num plano de conjunto, está representada aí pelos órgãos do Estado soviético, por sua ação, por suas decisões. O Estado soviético é um elemento necessário às relações de produção da economia soviética, enquanto o Estado capitalista é, na sociedade capitalista, uma superestrutura edificada por cima destas relações.
Consideremos, em primeiro lugar, o regulador das relações de produção da economia soviética em vias de transição do capitalismo para o socialismo. A economia soviética reúne, ao contrário do capitalismo, dois princípios: o plano e a espontaneidade. Parecerá natural deduzir disso a existência de dois reguladores, cada um agindo dentro de sua própria esfera: o regulador racional no setor socialista da economia soviética e o regulador espontâneo — a lei do valor — no setor rural e, de modo geral, no da economia privada. Estes dois princípios opostos da economia soviética. se combateriam e um dos reguladores eliminaria o outro. Por mais tentadora que seja a simplicidade e a lógica aparente desta aplicação ela não é justa.
Sabemos que a condição da existência de toda sociedade é a de um certo equilíbrio entre a produção e o consumo. Este equilíbrio exige a observação de certas proporções na repartição do trabalho entre os ramos da produção. A lei da proporcionalidade das despesas do trabalho rege toda sociedade, qualquer que seja a forma das relações de produção, mas se manifesta nela diferentemente. Na economia capitalista, ela age independentemente da vontade e da consciência dos homens pela lei do valor. Na sociedade comunista, ela agirá exclusivamente através da vontade e da consciência dos homens e encontrará sua expressão nas medidas dos órgãos competentes.
Que observamos? O equilíbrio das relações de produção descansa, igualmente a qualquer outra econômica, na lei das despesas do trabalho. Mas, como e sob que forma esta lei exerce sua ação reguladora? Existe aí a ação combinada de duas formas de regulação, pela lei do valor e pelo plano, sendo preponderante a direção racional (planificada) que utiliza a lei do valor — e que é a mais ativa. O caráter transitório da economia soviética exige que assim seja. E a lei do valor transforma-se proporcionalmente ao progresso do principio racional, em lei da despesa do trabalho. Recordemos ainda que não se pode considerar as relações entre a organização e a espontaneidade, na economia soviética, unicamente como uma luta. Citemos Bukharine a este respeito:
Quando falamos de nosso crescimento econômico baseado (e tal é, de um certo modo, a significação da Nep), refutamos por isto mesmo a tese segundo a qual a acumulação socialista se opõe à lei do valor. Figuradamente, constrangemos a lei do valor a nos servir. A lei do valor “nos ajuda” e, por mais estranho que is-so possa parecer, ela prepara deste modo a sua própria ruína.
Quais são as outras categorias fundamentais da economia capitalista (mais-valia, salário, problema da repartição da mais-valia decomposta em lucro industrial, lucro comercial, renda territorial e juros)? O princípio fundamental que nos guiou no estudo deles problemas, no seio da economia soviética, é que as relações de produção dos dois setores fundamentas da nossa economia — setor socialista estatal e setor camponês — não são, no fundo, relações capitalistas: muito embora as categorias da economia capitalista em suas formas exteriores se mantenham, elas não são aplicáveis aos dois setores.
No que concerne aos elementos do capitalismo do Estado e aos do capitalismo propriamente dito da economia soviética, as categorias da economia capitalista a eles se aplicam, apenas com algumas reservas decorrentes de suas relações com o setor socialista.
Já demonstramos o papel desempenhado na economia soviética pelas formas do salário, do lucro e da mais-valia.
Não nos falta senão formular algumas conclusões gerais. O setor socialista e o setor da pequena agricultura contribuem principalmente para determinar as relações de produção da economia soviética, podendo estas relações ser concentradas em dois problemas: o das relações entre a classe operária considerada em seu conjunto, organizada em Estado, e os operários (Invividos) considerados como partes deste todo (e também ao problema das relações entre certos grupos de operários); e o das relações entre a classe operária e os camponeses. Estes dois grupos de relações de produção determinam em conjunto os caracteres da economia soviética. Por isso, Lenine pôde dizer. “Pela primeira vez na História, existe um Estado em que não há senão duas classes, o proletariado e os camponeses”.
Se nós nos detivermos agora, mais demoradamente, no setor socialista, veremos que as formas exteriores da mais-valia (preferimos este termo ao de produto suplementar), do salário, do lucro comercial e dos juros, revestem aqui, na realidade, as relações entre a classe operária e os operários (indivíduos), ou certos grupos de operários.
Com efeito, que é, na indústria soviética, o salário? É o fundo de consumo individual dos operários. Que é a mais-valia? É o produto suplementar criado pelos operários, e que, em vez de ir para o fundo de consumo individual dos proletários, serve em parte para satisfazer as necessidades do Estado operário, isto é, da classe operária em seu conjunto, e, em parte, para aumentar o fundo de acumulação socialista (isto é, ainda uma vez, para satisfazer as necessidades da classe operária).(2)
Quanto ao lucro industrial e ao lucro comercial, ao lucro comercial e aos juros, não são mais que formas variadas da repartição do produto suplementar da indústria estatal no seio do setor socialista. Estas diversas formas, cuja aparência lembra as categorias dos capitalistas, escondem, na realidade, relações não capitalistas. Existe ai uma contradição entre a forma e o conteúdo. Nós estabelecemos que estas formas são impostas pelas relações mercantis, e continuarão necessárias enquanto durarem estas relações. Exigindo de nossas empresas estatais que elas se bastem a si mesmas e que sejam lucrativas, fazendo-lhes pagar juros pelo crédito, etc., nós nos esforçamos para lhes impor uma organização mais autônoma e mais racional.
O problema das relações entre o setor socialista da economia soviética e o setor camponês, entre a classe operária e os camponeses, já foi estudado neste livro. Chegamos a esta conclusão geral: na U. R. S. S., os interesses da classe operária e das massas camponesas coincidem nos pontos essenciais. Veremos, mais adiante, que a ditadura da classe operária assegura à maioria dos pequenos agricultores a mais fácil, a mais simples e a mais acessível transição para o socialismo, pela cooperação e pela industrialização da agricultura. A realização deste plano de cooperação, concebido por Lenine, exige o desenvolvimento de nossa indústria socialista.
O camponês também deve trazer sua parcela para o fundo de acumulação socialista, e a apropriação, pelo Estado operário, de uma parte do rendimento do trabalho do agricultor, não pode ser considerada como exploração.
As relações que se estabelecem entre os setores socialista e camponês da economia soviética não podem, portanto, ser assimiladas às relações capitalistas.
Tudo isto não exclue naturalmente as contradições parciais e temporárias, as divergências de interesses entre diversos grupos no seio da classe operária, assim como entre a classe operária e os camponeses, divergências estas que podem mesmo tomar, às vezes, um caráter bem agudo. Não existe, porém, antagonismos irredutíveis de classe, semelhantes aos que observamos na economia capitalista.
Mas a economia soviética compreende também relações capitalistas que têm uma certa importância, embora sejam insignificantes na indústria e na agricultura. Entre estes elementos capitalistas e os setores socialistas e camponeses estabelecem-se relações mútuas.
Uma parte do produto suplementar da indústria de Estado pode cair pelo comércio, pelo crédito, etc., nas mãos do capital privado. Uma parte da mais-valia dêste último pode cair nas mãos do Estado soviético. Haverá, no primeiro caso, transformação do produto suplementar em mais-valia e, no segundo, ao contrário, transformação da mais-valia em produto suplementar.
As outras categorias da economia capitalista sofrem, em circunstancias análogas, idênticas transformações.
Mas qual é a tendência de seu desenvolvimento?
A medida que a organização racional — sob um plano de conjunto — se imponha mais completamente na economia soviética, a lei do valor se transformará em lei de despesa do trabalho. As categorias de economia capitalista, formas e conteúdo, definharão, ao mesmo tempo, pelo desaparecimento de seu conteúdo (já muito restrito na economia soviética) e pelo supérfluo de suas formas. Quando a economia soviética se tornar socialista elas terão desaparecido. A mais-valia e o lucro se transformarão em produto suplementar, o salário tornar-se-á fundo de consumo individual dos trabalhadores, o dinheiro e o crédito terão desaparecido, o comércio terá cedido o lugar à repartição socialista. A transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade socialista estará terminada.
Notas de rodapé:
(1) Afirmemos, por fim, para evitar todo mal-entendido, que não se pode permitir a ignorância do papel do Estado na época do imperialismo, caracterizado pela existência de monopólios que aspiram a direção consciente do processo econômico. (retornar ao texto)
(2) Nós não estamos levando em conta as deformações burocráticas do Estado Soviético, pois elas se extinguem progressivamente. (retornar ao texto)
Inclusão | 15/06/2023 |