Conceitos Fundamentais de O Capital
Manual de Economia Política

I. Lapidus e K. V. Ostrovitianov


Livro quinto: O capital comercial e o lucro comercial
Capítulo X - O Capital comercial e o lucro comercial na URSS
49. A inaplicabilidade das categorias do capital comercial e do lucro comercial ao comércio estatal da URSS


capa

Acabámos de estudar ligeiramente as relações de produção que se dissimulam atrás das categorias do capital comercial e do lucro comercial.

Estudamos as leis que regem estas relações de produção. Em que medida as categorias do capital comercial e do lucro comercial se aplicam no comércio da URSS?

Três formas de comércio existem na URSS comércio estatal, cooperação, comércio privado. Não é preciso dizer que estas formas não são independentes uma da outra, mas ligadas entre si, e o fato decisivo na sua interdependência é que as posições dominantes da economia estão nas mãos do Estado soviético. A questão que acabamos de apresentar aqui deve evidentemente ser resolvida de maneira diferente para cada uma destas formas de comércio; e a resposta que dermos, dependerá por sua vez da forma estudada e das numerosas combinações resultantes das relações das três formas entre si, da natureza do produtor de mercadoria vendida e da natureza do comprador. A troca entre dois órgãos do Estado - entre dois trusts - ou a realização, por uma empresa comercial estatal, dos produtos da indústria estatal é uma coisa; a venda destas mesmas mercadorias por uma empresa do Estado ao comércio privado que as revenderá, por sua vez, é coisa muito diferente. Uma terceira situação surge, enfim, quando um capitalista cede suas mercadorias a uma organização do Estado que as revende, etc.

Detenhamo-nos em primeiro lugar no comércio estatal e suas relações com as diversas formas económicas existentes no país. Entendemos por comércio estatal o comércio que fazem o Estado, os trusts, os sindicatos(1), os estabelecimentos especiais, etc.

São aplicáveis ao comércio estatal da URSS as categorias capitalistas do capital comercial e do lucro comercial?

Primeiramente, estudemos o caso da realização dos produtos de uma empresa industrial do Estado pelo comércio estatal. Suponhamos que o Sindicato Têxtil vende ao Trust da Confecção de Roupas de Moscou, os tecidos fabricados por um trust têxtil. Estas relações assemelham-se, exteriormente, a relações capitalistas. O Sindicato Têxtil dispõe de todos os elementos que definem o capital comercial: mercadorias em quantidade determinada, locais de comércio, pessoal empregado, etc.

Do mesmo modo que uma empresa capitalista comercial, o Sindicato Têxtil vende o tecido ao Trust de Confecção de Moscou, com uma certa majoração sobre o preço que tinha pago ao Trust do Tecido.

A venda de mercadorias dá ao Sindicato, como a toda empresa comercial capitalista, um certo excedente de dinheiro sobre o preço de custo das mercadorias escoadas e que se chama, no regime capitalista, lucro comercial. Enfim, o Sindicato do Tecido, do mesmo modo que uma empresa capitalista comercial, utiliza-se do trabalho dos empregados no comércio, etc.. Por outro lado, posto que na nossa prática quotidiana, como na nossa literatura cientifica, aplicamos a nosso comércio estatal os termos de “capital comercial” e de “lucro comercial”, tem-se a impressão de uma semelhança completa entre o comércio estatal da URSS e o comércio capitalista comum. Mas esta semelhança exterior não nos deve enganar(2), pois é preciso verificar que espécie de relações de produção se dissimula atrás das formas do capital comercial e do lucro comercial, no comércio capitalista e no comércio estatal da URSS.

O capital comercial e o lucro comercial pressupõem relações capitalistas no comércio, isto é, a existência de capitalistas comerciantes que se apropriem, sob a forma de lucro comercial, graças à exploração dos empregados no comércio, de uma parte da mais-valia do capital industrial.

Mostramos, ao tratar da mais-valia na URSS, que a inexistência de uma classe capitalista na nossa indústria estatal é um dos indícios mais decisivos do seu caráter não capitalista. Outro tanto pode se dizer, sem a menor ressalva, do comércio estatal entre as empresas estatais, pois que nossas empresas comerciais estatais são propriedade da classe operária e não de capitalistas. Mas, que é o lucro comercial? O lucro comercial tem sua origem na mais-valia criada pelos operários das empresas industriais. A forma de lucro comercial oculta, no caso, o problema da repartição da mais-valia entre os diferentes grupos da burguesia, entre a burguesia industrial e a burguesia comercial.

Como devemos considerar o excedente em dinheiro que o nosso Sindicato Têxtil recebe depois de ter distribuído o tecido do Trust Têxtil? Qual é a origem deste excedente em dinheiro? Este excedente representa uma parte do produto suplementar dos operários que trabalham nas empresas do Trust Têxtil.

O Trust e o Sindicato Têxteis, sendo ambos empresas pertencentes ao Estado proletário, a parte do produto suplementar que passa de um para outro não contêm elementos de exploração capitalista, ao contrário da mais-valia cedida pelo capitalista industrial ao capitalista comerciante. Não estamos aqui em presença de um problema de repartição, no sentido capitalista da palavra, isto é, de um problema de repartição do lucro entre diferentes grupos da burguesia, mas sim de uma nova repartição dos recursos que passam de uma caixa do Estado para outra.

O capital comercial e o lucro comercial caracterizam-se ainda pela exploração dos empregados no comércio. Ainda que o trabalho destes não crie nem valor nem mais-valia, é, no entanto, uma das condições que assegura ao capitalista comerciante a possibilidade de obter uma parte da mais-valia do capitalista industrial. Mas, repitamos, quando se trata do Sindicato Têxtil, pertencente à classe operária em seu conjunto, da qual fazem parte os empregados no comércio, a noção de exploração não é aplicável.

Chegamos, assim, a concluir que as relações que se estabelecem no nosso comércio estatal, por ocasião da realização dos produtos da indústria estatal, não encerram elementos capitalistas. As noções de capital comercial e de lucro comercial, são, portanto, inaplicáveis ao nosso comércio estatal e só somos obrigados a nos servir dessa terminologia capitalista por falta de termos que correspondam mais exatamente à natureza das relações de produção existentes na URSS

O comércio estatal, é, nas mãos do Estado soviético, um poderoso meio de ação consciente(3) diante do jogo das forças espontâneas do mercado, e constitui neste sentido uma das condições mais necessárias para a edificação socialista. (Ver § 38. O valor na URSS).

Mas este jogo espontâneo de forças penetra em nossa economia por inúmeros canais que o ligam ao mercado rural; e está aí porque as empresas estatais não podem ainda passar, nas suas relações mútuas, da estimativa do preço de custo em dinheiro à estimativa do preço de custo em horas de trabalho.

O comércio estatal, que tem por objetivo a repartição das mercadorias produzidas entre as diversas partes (socialista e não socialista) da economia soviética e a regulação desta repartição, no interesse do Estado soviético, ressentem-se, muito mais ainda do que a indústria estatal, do caráter transitório desta economia, no seio da qual as velhas formas encerram um novo conteúdo. É o que explica fenómenos tão monstruosos como a concorrência das empresas comerciais estatais (naturalmente combatida pelo Estado soviético), a publicidade, os agentes comerciais, intermediários, etc. Mesmo se todas as deformações burocráticas e todos os abusos - que se devem combater e se combatem — fossem eliminados, não seria possível, no período de transição, evitar estas despesas gerais. A própria forma do lucro comercial, ainda que encerrando um conteúdo não capitalista, tem para nós grande importância, porque, independentemente de sua significação de lucro na acumulação socialista, ela revela nas relações mercantis à medida em que uma empresa está racionalmente conduzida e os resultados económicos que obtém. Verifica-se, portanto, que, se a sociedade capitalista está interessada em diminuir as despesas improdutivas da circulação comercial, a economia estatal da URSS, onde a direção planificada já desempenha papel preponderante, o está muito mais.

À medida que se desenvolver a economia estatal e se fortalecer a direção económica baseada num plano de conjunto, as formas capitalistas de comércio estatal desaparecerão; o comércio transformar-se-á pelo seu crescimento num aparelho de repartição consciente dos produtos da economia socialista.


Notas de rodapé:

(1) Os trusts agrupam empresas de produção, oficinas, fábricas, etc.; os sindicatos são empresas comerciais. (retornar ao texto)

(2) Ver livro IV, capítulo VIII, O regulador da economia soviética. (retornar ao texto)

(3) Literalmente seria preciso dizer: um poderoso meio de ação baseada num plano. A ação consciente, racional, deliberada, pressupõe sempre um plano. (retornar ao texto)

Inclusão 20/09/2018