O Chile e os problemas da revolução proletária

(Extratos)

Pierre Lambert

Outubro de 1973


Primeira edição: Revista La Verité, n.º 562, outubro de 1973.

Primeira edição em português: Carta de A Verdade, 7 de setembro de 2023, tradução pelo Partido Operário da Unidade Socialista (POUS), seção portuguesa da 4ª Internacional.

Tradução: Comitê de tradutores da Revista A Verdade.

Transcrição e notas: Alexandre Linares.

HTML: G. P.


Há cinquenta anos, na sequência do golpe de Estado do general Pinochet no Chile, em 11 de setembro de 1973. A seção francesa da 4ª Internacional, OCI (atual CCI) reuniu-se na grande sala da Mutualité, em Paris. Foi o camarada Pierre Lambert, em nome do Comité Central da OCI, que apresentou o informe do ato. O texto do informe foi publicado na íntegra no n.º 562 da revista “La Vérité”, de outubro de 1973, sob o título 'O Chile e os problemas da revolução proletária', disponível no site do Centro de Estudos e Pesquisas do Movimento Trotskista e Revolucionários Internacionais - Cermtri. Publicamos aqui a versão traduzida dos extratos do texto publicadas pela “Lettre de La Verité” (Carta de A Verdade), publicação semanal da Corrente Comunista Internacionalista do Partido Operário Independente francês, seção francesa da 4ª Internacional.

I. É preciso fazer o balanço

A partir de 11 de setembro e durante dois dias, aviões, mísseis, bombas, canhões, metralhadoras do exército chileno, um exército que ainda ontem era saudado por ser leal, constitucional e respeitador das instituições, espancam, matam, incendeiam, fazendo milhares de mortos entre os melhores combatentes da classe operária chilena. Dia e noite, sucedem-se as buscas domiciliárias. Qualquer homem portador de uma arma é fuzilado no local: execução [sumária](1) para servir de exemplo.

Em 11 de setembro, o Palácio Presidencial ardeu em chamas. Três anos antes, levado ao poder por uma onda de entusiasmo sem precedentes, Salvador Allende anunciava às massas, reunidas, a sua intenção de conduzir o Chile ao socialismo através de meios democráticos e afirmava que a via mais segura para a revolução era a do boletim de voto.

Durante três anos, em março passado [1973] e novamente em 1º de setembro, as massas, ao apelo de Allende, tentaram salvar o seu governo, o governo que entendiam ser o delas.

Allende, na rádio, poucos minutos depois da Junta lhe ter pedido para se demitir, declarou:

"Não me vou demitir. Não o farei, estou pronto a resistir por todos os meios, mesmo que seja à custa da minha vida, para que a história conserve a lição ignominiosa daqueles que têm a força, mas não têm a razão, mas não têm o direito."

A um almirante que renovou a oferta do general Pinochet de um salvo-conduto que lhe salvaria a vida, Allende respondeu:

"Não me vou render, isso é próprio de cobardes como vocês."

Camaradas, Allende morreu corajosamente. A 3 de Dezembro de 1851, o deputado socialista Baudin, também ele, morreu corajosamente nas barricadas erguidas contra o putsch de Louis Bonaparte. Os revolucionários da época saudaram a coragem de Baudin, mas demonstraram que os Baudin e os Louis Blanc tinham conduzido as massas populares à derrota na revolução de 1848. Há aqui perguntas que todos fazem e que devem ser respondidas.

Perguntas que todos fazem:

O que teriam feito vocês, perguntam-nos, no lugar de Allende?

Porque é que o golpe foi desencadeado agora?

Porque é que Allende pediu aos operários para ficarem nas fábricas em vez de apelar à manifestarem-se na rua?

Porque é que o exército chileno, reputado como constitucional e legalista, organizou o golpe de Estado?

Porque é que o general Pinochet, que em 1970 afirmava a sua lealdade ao governo e ao povo, encabeçou os facínoras que executaram o massacre?

Porque é que as classes médias penderam para a direita, e o que fazer para que elas não andem à deriva? Há também o problema do armamento, e muitas outras questões…

Queria começar por responder a esta objeção de um militante:

"Não quero ouvir nada sobre a política de Allende. É preciso fazer alguma coisa. O mais importante é o banho de sangue.”

Este argumento inaceitável tenta tornar credível a ideia de que os militantes que pensam dever esmiuçar as causas que conduziram as massas trabalhadoras chilenas ao desastre se estariam a opor ao dever sagrado de solidariedade.

Afirmamos claramente: como militantes revolucionários, apelamos à solidariedade incondicional para com todos os trabalhadores e militantes que estão a sofrer a repressão feroz da Junta, qualquer que seja a tendência a que pertençam, quer se reclamem do Partido Socialista(2), do Partido Comunista(3), do MAPU(4), do MIR(5) de esquerda ou dos trotskistas, apelamos à solidariedade incondicional para com os democratas liberais que condenam os generais fascistas. Não é do lado dos revolucionários que serão opostas condições políticas à luta pela solidariedade. Isso é claro. É evidente. Mas eu diria também que este argumento

é duplamente inaceitável porque, se não estou em erro, aqueles que apelam ao silêncio sobre os problemas políticos são os mesmos que não se coíbem de criticar, se não mesmo de caluniar, os esquerdistas e os trotskistas. Esta é a minha resposta a este camarada, a todos os camaradas honestos que, abalados por uma emoção legítima que todos partilhamos, se recusam a encetar o debate político; aqueles que apelam ao silêncio pretendem, de fato, impor a sua própria opinião política.

Uma coisa lhes digo: ninguém nos fará calar. Há que dar respostas. Vamos dar essas respostas para a classe trabalhadora chilena, para a classe trabalhadora francesa, para os 15.000 refugiados políticos da América Latina que estão ameaçados de morte... Ninguém nos fará calar. Temos de dar as respostas. Temos de as explicar. Temos de as demonstrar.

Camaradas, em 1970, a classe operária chilena, embalada por um impulso entusiástico, impôs um governo que considerava ser o seu governo. De imediato, Salvador Allende procurou tranquilizar. Não tranquilizou ninguém.

Henry Kissinger, hoje Secretário de Estado de Nixon e o grande negociador da coexistência pacífica, saudado como tal em toda a parte, disse após a eleição de Allende como Presidente do Chile:

"As eleições, ao colocarem Allende no poder, vão criar imensos problemas, a nós, e às forças democráticas da América Latina".

TRANQUILIZAR O IMPERIALISMO?

O imperialismo não ficou tranquilo com as declarações tranquilizadoras de Allende. Ele sabia que as massas estavam em movimento, e as massas em movimento, no Chile como em qualquer outro lugar, são massas que querem o poder, que querem a expropriação total dos exploradores, que querem a terra para aqueles que a trabalham, que querem romper todos os laços com o imperialismo, que querem a república dos conselhos.

Allende ainda proclamou em 27 de Agosto de 1973:

"Comigo à frente do governo, não haverá golpe de Estado nem revolução violenta!"

Infelizmente, não houve revolução, nem violenta, nem não violenta, mas houve o golpe de Estado mais sangrento que a América Latina alguma vez viu. O Ministro dos Negócios Estrangeiros, presidente do Partido Socialista, Almeyda, afirmou:

"As forças armadas chilenas apoiarão, até ao fim, a experiência socialista no país, desde que esta se mantenha dentro das normas democráticas.”

Camaradas, isto está escrito, isto foi dito a 3 de setembro de 1973, uma semana antes do golpe de Estado.

Todos sabem que se há um general "republicano", saudado, como tal, por todos os quadrantes no Chile e no estrangeiro, é o General Prats, que foi Ministro do Interior no governo de Allende? e que cedeu o seu lugar ao General Pinochet. Cedeu o seu lugar com pleno conhecimento de causa. A imprensa noticiou que, numa quinta-feira à noite, após uma reunião à porta fechada de oficiais da guarnição de Santiago, o Ministro da Defesa, Prats, se apercebeu que só a sua demissão poderia ainda salvar a unidade do exército. Foi ter com o Presidente Allende, seu amigo, e disse-lhe:

"Eu não posso fraturar o exército".

Para este general "republicano", o massacre dos operários e camponeses chilenos era preferível à desarticulação do exército.

Camaradas, o balanço está aí, sangrento, terrível. Temos de tirar daí as lições. A Unidade Popular respeitou a Constituição, uma Constituição que garante a propriedade privada dos meios de produção. A Unidade Popular respeitou o Estado burguês, o exército, o sistema judicial... Os resultados estão à vista. Temos de tirar as lições. Àqueles que, explorando a emoção legítima que hoje mortifica milhões e milhões de trabalhadores deste país, àqueles que conduziram à derrota, àqueles que fizeram com que, hoje, seja nas piores condições que a classe operária chilena, num esforço desesperado, continue o seu combate, a esses devemos dizer:

Temos de fazer contas, temos de as prestar, temos de abrir o debate.

Camaradas, não direi mais nada sobre o que, hoje, se passa no Chile, nem sobre o que lá se passou. Penso que é indispensável, para podermos medir a importância dos problemas em causa, apreciá-los para a nossa própria experiência, porque a emoção que se apodera hoje dos trabalhadores deste país diz respeito a problemas idênticos aos que se colocam diretamente a eles.

II. Colaboração ou ruptura com a burguesia

O cardeal chileno Raoul Silva Enrique, considerado por todos como realmente um homem de esquerda ou quase de esquerda, esforçou-se por conseguir um "diálogo" entre a democracia-cristã e o governo de Allende. Este arcebispo considera, no entanto, que "o marxismo não é a melhor via, porque leva a renunciar de facto ao cristianismo".

A partir do momento em que "o marxismo faz renunciar de facto ao cristianismo", qual é a melhor maneira de trazer de volta às ovelhas perdidas, senão a de Pinochet? Camaradas, não se trata de uma questão de religião, embora sejamos de facto ateus, porque para nós, para as massas, a felicidade conquista-se na terra e não no céu. Mas temos de compreender que corresponde a uma vontade política que existe nesse país, a vontade daqueles que querem fazer admitir ao proletariado que deve colaborar com a burguesia, com todos os partidos da burguesia e, a partir daí, compreende-se que é preciso que haja "bons" patrões, "bons" políticos burgueses.

Camaradas, ouçam o que diz o Le Monde de 18 de setembro de 1973: "Os democratas-cristãos chilenos começam a protestar contra os métodos brutais utilizados pelos militares".

Camaradas, quem são estes democratas-cristãos? O antigo candidato à Presidência da República, Radomiro Tomic, votou com o Partido Democrata-Cristão de [ Eduardo ] Frei a inconstitucionalidade do governo de Allende (não nos esqueçamos! foi este voto que Pinochet e os seus cúmplices utilizaram para afirmar que o golpe de Estado era "legal").

Hoje, a corrente Tomic, de tendência humanista, liberal, também condena o golpe de Estado!

Ao prestar homenagem a Allende, os membros desta tendência dizem: "Havia outra forma de o fazer...".

No entanto, o senhor Tomic continua a apelar à defesa dos chamados valores democráticos, os valores da cacetada e da propriedade privada. Eis, camaradas, o conteúdo real deste esforço empreendido, segundo parece, para tentar reintegrar os trabalhadores católicos na classe operária! Não, não é aos trabalhadores católicos que os dirigentes do PCF e do PS se dirigem, é à hierarquia, ao partido da Igreja, ao partido dos defensores da ordem e da propriedade privada dos meios de produção, aos Tomics que, votando com Frei pela inconstitucionalidade do governo de Allende, prepararam o golpe de Estado da junta fascista (...).

No Nouvel Observateur (...), de 13 de março de 1973, um certo Laffonques escrevia:

“A Unidade Popular saiu revigorada das eleições de 4 de março. Os defensores da direita, decididamente, estão com azar. Neste momento, a questão fundamental para a Unidade Popular é chegar finalmente a um acordo sobre uma linha política de combate e mantê-la, dando cada vez mais concretamente o "poder aos trabalhadores", evitando, graças às virtudes do sistema presidencial, as ciladas de um Parlamento que continua a ser hostil em 54,7%. Desta vez, é possível, tanto mais que a corrente "peruana" que anima os setores progressistas do exército chileno não se lhe oporá!”

Livrai-nos dos nossos “amigos”!

Em 9 de Julho de 1973, após o fracasso da primeira tentativa de golpe de Estado de 29 de junho, o mesmo Laffonques escrevia: "Porque é que falhou? O exército constitucional chileno apoiou Allende".

Todos, todos, à escala internacional, coligaram as suas forças para adormecer o proletariado chileno, para o impedir de compreender que o exército "constitucional" era o exército da burguesia e dos latifundiários. O Sr. Laffonques concluiu o seu artigo nestes termos:

"Por enquanto, todas as forças de esquerda estão unidas perante o perigo comum. Os partidos operários comunistas e socialistas não estão dispostos a deixarem-se degolar.

Escusado será dizer que todos estão armados, à direita e à esquerda. É um segredo de Polichinelo [já todos sabem]. A classe operária, pela sua parte, atingiu o nível mais elevado de combatividade. Continua a ocupar as fábricas e recusa-se a devolvê-las. Para o Sr. Allende, como para todas as forças de esquerda do Chile, a situação é difícil e perigosa, mas não é desesperada".

Sempre a tranquilizar, quando não era preciso ser nenhum gênio para saber – e nós explicamos no [jornal] Informations Ouvrières(6) e na [revista] La Vérité(7) – que o golpe estava a ser preparado há meses e meses. Não era preciso ser um grande gênio – bastava apenas não ser defensor de uma política de colaboração de classes – para não acreditar nestes contos de embalar.

Mas eis que o 11 de Setembro veio e passou, e o Le Nouvel Observateur escreveu no dia 17:

"Simultaneamente, a ação violentamente repressiva das forças armadas contra o povo, contra a classe operária e os partidos de esquerda, começou no início de Agosto, com uma rusga brutal dos militares a uma fábrica em Punta Arenas, no extremo sul, que causou um morto e vários feridos. Os militares utilizaram as prerrogativas que lhes foram concedidas por uma "lei de controle de armas" votada em outubro de 1972, à qual o executivo não se tinha oposto ".

O exército não é, portanto, tão "progressista" e constitucional como o denominado Laffonques o assegurava em 13 de março e 9 de julho de 1973 !

COMO GANHAR?

Portanto, segundo o Le Nouvel Observateur, Allende tinha todas as cartas na mão.

Vocês vêem o que ele fez com elas. Em outubro de 1972, Allende aceitou uma lei dita de "controle de armas" que legalizava as sevícias anti-operárias do exército "constitucional" e "progressista", preparando assim o golpe de Estado de 11 de setembro. Ele não se opôs a esta lei e explicamos a partir de outubro de 1972 até 9 de julho de 1973 e até 11 de setembro de 1973 que Allende sabia a verdade. Podia ter ganho. Sim, Allende poderia ter ganho, mas, para pretender ganhar, teria sido preciso apoiar-se nas massas para estas se oporem a esta lei reacionária que permitia aos fascistas do exército profissional entrar nas fábricas, desarmar os operários, organizar atentados contra os trabalhadores; os dirigentes do PC e do PS teriam de romper com os partidos burgueses, com a Constituição burguesa, com o regime de propriedade privada dos meios de produção, cuja defesa era assegurada pelo exército e pela polícia.

O Le Nouvel Observateur prossegue:

“O caso de Punta Arenas serviu de banco de ensaio e de protótipo a mais de uma centena de intervenções deste género durante o último mês [agosto de 1973]. E numa das últimas, efectuada poucos dias antes do golpe de Estado contra a SUMAR, uma empresa dominada por socialistas de esquerda, as tropas tiveram de recuar perante o fogo dos grupos de autodefesa, perante a mobilização dos ‘cordões industriais’ .”

É muito claro. Durante meses e meses, estas pessoas escoraram a política do governo, não só a apoiaram, mas até a empurraram para a direita. Esconderam sistematicamente a verdade aos trabalhadores franceses. Mentiram-lhes (...).

ESPECIALISTAS DO APOIO CRÍTICO

O Rouge(8) é, como se sabe, o órgão da ex-Liga Comunista (...). Na sua brochura sobre o Chile, Quatro questões, quatro respostas, lemos este extracto edificante do Rouge nº 217 de 1 de setembro de 1973:

"O equilíbrio atual é apenas relativo. A burguesia, sobretudo do ponto de vista militar, é mais forte do que a classe operária e os seus aliados, tanto mais que as massas avançam empiricamente, sem direcção revolucionária. É por isso que a iniciativa virá da burguesia. É um golpe da direita que desencadeará a guerra. O momento em que isso acontecer e a reação imediata da esquerda serão decisivos. Se, num primeiro momento, a resistência se limitar à esquerda revolucionária, à ala esquerda da Unidade Popular, haverá uma derrota militar e a luta tenderá a prosseguir de forma irregular, provavelmente sob a forma de guerrilha. Mas se, como parece mais provável, FORA DESTES SETORES, A DIREITA DA UNIDADE POPULAR, E COM ELA, UMA PARTE DO EXÉRCITO BURGUÊS SE MOBILIZAR (o sublinhado é meu, P.L.), então começará um processo de guerra civil."

Se bem compreendemos o que estas palavras querem dizer, Rouge, que é obviamente a favor da guerra civil, só pode desejar a mobilização da "direita da Unidade Popular e com ela (de) uma parte do exército burguês". Do apoio crítico da ala esquerda da Unidade Popular, chegamos assim ao apoio crítico da "direita", e mesmo de "uma parte do exército burguês"!

Camaradas, na Unidade Popular(9) há o Partido Socialista e o Partido Comunista, e há os partidos da burguesia. Se apoiar a Unidade Popular quer dizer alguma coisa, mesmo que criticamente, isso quer dizer apoiar estes partidos, todos estes partidos, ou seja, apoiar este governo, mesmo criticamente.

Por outras palavras, estamos a virar as costas à questão das questões, à palavra de ordem das palavras de ordem, que nenhuma tendência no Chile quis formular, quis lançar, nomeadamente:

"Os partidos da burguesia e os representantes do Estado-Maior, fora do governo!".

No entanto, a 1 de Setembro de 1973, o Rouge não só se recusou a lançar esta palavra de ordem, como preconizou uma política diametralmente oposta: dar o seu apoio crítico à Unidade Popular de colaboração de classes (...).

III. O papel internacional do Partido comunista francês

Camaradas, a 21 de Setembro, segundo o L'Humanité(10), Marchais(11) declarou: "Nós pronunciamo-nos resolutamente a favor da via pacífica para o socialismo. É a via menos custosa para a classe operária, para o povo e para a nação".

Camaradas, devo deter-me aqui por um momento porque há aqui um jogo que é preciso desmontar. Em Setembro de 1917, Lenine escreveu uma carta ao Comité Central do Partido Bolchevique na qual constam estas linhas: "Proponho que, depois do golpe de Estado falhado de Kornilov, depois de os mencheviques e os S.R. [Socialistas Revolucionários] terem armado os trabalhadores, depois de, por via disso, se encontrarem numa situação de ruptura com a burguesia, proponho que uma delegação do C.C. se vá encontrar com os dirigentes do Partido Menchevique e do Partido Socialista-Revolucionário (não sei se ainda vamos a tempo), proponho que vão ter com eles para lhes dizer:

"Rompam a coligação", "Tomem o poder com base nos sovietes", "Nós comprometemo-nos a lutar pelo poder no plano da democracia soviética, a nunca pegar em armas contra vós...".

E acrescentou:

"Esta seria a via mais económica e pacífica para a revolução proletária. O caminho menos custoso."

Para um ouvinte descuidado, poderia parecer que Marchais estava a repetir Lenine. Mas, Marchais não estava a dizer de todo a mesma coisa! Marchais estava a repetir o que tinha dito no 20º Congresso do PCF:

"Acaso se trata, no quadro do Programa Comum, de instaurar o comunismo ou mesmo o socialismo? É evidente que não. A sociedade socialista tem por fundamento essencial a propriedade colectiva do conjunto dos grandes meios de produção e de troca e o exercício do poder político pela classe operária em aliança com outras camadas da população trabalhadora. Basta consultar o Programa Comum para ver que a sua realização não equivaleria à instauração de um tal regime".

Não se trata de expropriar o capital, não se trata de romper com a burguesia; é por isso um verdadeiro malabarismo utilizar aquilo que Lenin definiu como uma exigência do partido revolucionário, a exigência das massas trabalhadoras, incluindo as que eram influenciadas pelo menchevismo, a exigência dos trabalhadores do campo, que queriam a terra, a exigência: Rompam com a coligação! Essa era efetivamente a via mais pacífica, a menos custosa, a menos sangrenta e é-a seguramente, e, inclusive em França, seria a via menos sangrenta. A via mais sangrenta é aquela que envolve um acordo com a burguesia, aquela que permite que o exército prepare o seu golpe de Estado, aquela que permite que os capitalistas, os monopolistas, se reagrupem em torno do corpo "profissional" da hierarquia militar para que o exército estrangule o povo. Era impossível não evidenciar o carácter desta paráfrase de Lenin feita por Marchais.

Marchais, depois de constatar que os grandes proprietários não renunciam de bom grado aos seus privilégios, acrescenta:

"É a via da luta de classes e isso sob todas as suas formas. Se a burguesia recorrer à violência contra a maioria do povo, as massas populares têm o dever de ripostar."

AS MASSAS … RESPONSÁVEIS?

Mas então, camaradas, no Chile, seria, porventura, das massas a responsabilidade por não terem intervindo? Terá Marchais esquecido que Fajon(12) (dirigente do PCF) foi à América Latina para exortar as massas a não responderem à violência da burguesia?

Na mesma declaração, Marchais afirma:

"Os acontecimentos no Chile não poderiam de modo algum modificar a nossa estratégia em França.… Não consideramos que, no Chile, acabou, que a direita ganhou e que a esquerda foi derrotada. É escandaloso ouvir certos pretensos revolucionários considerarem que já tudo chegou ao fim.”

Não sei quem são esses "pretensos revolucionários" que consideram que "já acabou", mas é certo que a resistência heróica do povo chileno está aí para testemunhar que tudo estava nas suas mãos para vencer, que o que faltou foi um partido revolucionário, e que aqueles que estavam a dirigir [o povo chileno](13), independentemente da sua coragem pessoal, não estiveram à altura da coragem e da consciência política do povo chileno.

Por outro lado, aqueles que, hoje, ousam escrever, em suma, que "na França, faremos como no Chile, e depois veremos quem é o mais forte", esses fazem recair, a responsabilidade sobre os trabalhadores e o povo do Chile. Num número da France Nouvelle de setembro de 1973, podia ler-se:

"A grande burguesia não se coibiu de usar todos os meios, legais ou ilegais, o uso e abuso das suas posições no seio do poder judicial, o uso e abuso da sua força no domínio dos grandes meios de comunicação, a sabotagem da produção e distribuição, a especulação sobre a moeda e as mercadorias."

Mas porque é que a deixaram permanecer nos seus cargos? Porque é que Fajon, três semanas antes, veio dizer que não se devia tocar nas "antigas estruturas", que não se devia nacionalizar o que não devia ser nacionalizado, porque isso não fazia parte do Programa comum da esquerda? Porquê dizer agora o contrário?