Catecismo do Trabalhador
(O Livro do Trabalhador)

Paul Lafargue


Primeira Edição:. ...

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Catecismo do Trabalhador

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PERGUNTA — Qual é o teu nome?

RESPOSTA — Assalariado.

P. — Quem são os teus pais?

R. — Meu pai era assalariado, o mesmo que o meu avô; porém os pais dos meus pais foram servos e escravos. Minha mãe chama-se Pobreza.

P. — Donde vens e onde vais?

R. — Venho da pobreza e vou à miséria, passando pelo hospital, onde o meu corpo servirá de campo de experiência para os novos medicamentos e de estudo para os doutores que curam os privilegiados do Capital.

P. — Onde nasceste?

R. — Numa mísera água furtada duma casa que meu pai e seus companheiros de trabalho tinham construído.

P. — Qual a tua religião?

R. — A religião do Capital.

P. — Que deveres te impõe a religião do Capital?

R. — Dois principalmente: o dever de renunciar a tudo e o dever do trabalho. A minha religião obriga-me a renunciar aos meus direitos de propriedade da terra, nossa mãe comum; à riqueza das suas entranhas, à fertilidade do seu solo, à sua misteriosa fecundação pelo calor e pela luz solar. Ela ordena-me que renuncie aos meus direitos de propriedade sobre a minha própria pessoa: desde o momento em que entrei as portas da oficina, já não me pertenço, deixo de ser homem e converto-me em coisa, em instrumento de meus amos. A minha religião ordena-me que trabalhe desde a infância até à morte; à luz do sol e à luz do gás; durante o dia e durante a noite; sobre a terra, debaixo da terra, e no mar; sempre e em todas as partes.

P. — Impõe-te ela alguns outros deveres?

R. — Sim; o de prolongar a quaresma durante todo o ano; viver de privações, comendo sempre insuficientemente, restringir todas as necessidades da minha carne e reprimir todas as aspirações do meu espírito.

P. — Proíbe-te certos alimentos?

R. — Sim; veda-me tocar no javali, nas aves, nas carnes de primeira, segunda e terceira classe; provar o salmão, a lagosta e os peixes de carnes delicadas, beber os vinhos naturais, a boa aguardente e o leite puro que sai da vaca.

P. — Que alimentos te permite?

R. — O pão, as batatas, as favas, o bacalhau, os carapaus salgados e os desperdícios dos talhos. Para que possa recompor rapidamente as minhas forças permite-me beber vinho falsificado e aguardente de batata ou de beterraba.

P. — Que deveres te impõe para contigo mesmo?

R. — Reduzir as minhas despesas, viver na pobreza e na miséria, trazer os fatos rotos e remendados, usá-los até que caiam aos pedaços, e andar descalço ou com os sapatos tão rotos que lhe entre pelos buracos a água suja e glacial das ruas.

P. — Que deveres te impõe para com a tua família?

R. — Impedir à minha mulher e aos meus filhos todo o alinho, todo o adorno e toda a gala; vesti-los com fatos ordinários para não ofender o pudor das "pessoas decentes"; ensiná-los a não tiritarem no inverno e a não sufocarem no verão; inculcar a meus filhos, desde pequenos, os sagrados princípios do trabalho, a fim de que, desde a mais tenra idade, possam ganhar a subsistência sem estarem a cargo da sociedade; ensiná-los a que se deitem sem ceia e sem luz, e a- costumá-los à miséria que é o seu destino na vida.

P. — Que deveres te impõe para com a sociedade?

R. — Acrescentar a fortuna social por meio do meu trabalho e das minhas economias.

P. — Que te ordena fazer das tuas economias?

R. — Depositá-las nas caixas económicas do Estado ou confiá-las às sociedades fundadas pelos filantropos da Bolsa, para eles as emprestarem a nossos amos e senhores.

P. — Permite-te dispor das tuas economias?

R. — O menos possível. Recomenda-nos que não insistamos quando o Estado se nega a devolvê-las, e ordena-nos a resignação para quando os filantropos da Bolsa nos anunciam a dissipação e a perda das nossas economias.

P. — Tens direitos políticos?

R. — O Capital concede-me a inocente distração de eleger os legisladores que fazem as leis com que nos castigam; porém proíbe-nos terminantemente que nos ocupemos de política, e que escutemos os propagandistas do Socialismo.

P. — Porquê?

R. — Porque a política é privilégio exclusivo dos ricos e porque os socialistas são uns pífios que nos roubam e enganam, dizendo-nos que o homem que não trabalha não tem direito a comer; que tudo pertence aos assalariados, porque são eles que tudo produzem; que o rico, o senhor, é um parasita o qual é necessário exterminar. A santa religião do Capital ensina — nos, pelo contrário, que o abuso dos ricos cria o trabalho que nos dá de comer; que os endinheirados mantêm os pobres, e que, se não houvesse ricos os pobres pereceriam.

P. — Qual é o teu deus?

R. — O Capital.

P. — É eterno?

R. — Nossos mais sábios sacerdotes, os economistas, dizem-nos que existiu desde o princípio do mundo; porém como então era muito pequeno, Júpiter, Jeová, Jesus e demais falsos deuses têm reinado em seu lugar e em seu nome porém, desde o ano de 1500, pouco mais ou menos, o seu culto foi-se tomando universal, não cessando de engrandecer-se e de crescer em força e poderio: hoje domina o mundo.

P. — É o teu deus todo poderoso?

R. — Sim. Sua posse proporciona todos os gozos da terra. Quando afasta o seu rosto duma família ou duma nação, uma e outra somem-se na miséria e na dor. O poder do deus- Capital aumenta à medida que a sua riqueza cresce; todos ,os dias conquista novos países'-; todos os dias faz engrossar o rebanho dos assalariados, os quais, com o seu constante trabalho, acrescentam o seu poderio.

P. — Quais são os eleitos do deus-Capital?

R. — Os patrões, os capitalistas e os accionistas.

P. — Como é que o Capital, teu deus, recompensa as tuas fadigas?

R. — Esmagando-me, tanto a mim como a minha esposa e filhos com o pesado jugo do trabalho.

P. — E essa a tua única recompensa?

R. — Não. Deus autorisa-nos a satisfazer a nossa fome saboreando com a vista as apetitosas amostras de carnes e provisões, que jamais provamos nem provaremos, e com as quais se alimentam os eleitos e os benditos sacerdotes. A sua bondade permite-nos aquecer os nossos membros, paralisados pelo frio, olhando para os casacos de peles e de lãs com que se cobrem esses mesmos eleitos e sacerdotes benditos, concedendo-nos além disso o delicado prazer de alegrar o nosso olhar com o belo espectáculo que apresenta o desfilar dos automóveis pelas avenidas e praças públicas, ocupadas pela tribo santa dos capitalistas, luxuosos, pançudos, lustrosos, rodeados duma tribo de engravatados serventes. Então, orgulhamo-nos ao pensar que, embora os eleitos gozem destas maravilhas, de que nos vemos privados, elas são obra das nossas mãos e das nossas inteligências.

P. — São os eleitos doutra raça diferente da tua?

R. — Os capitalistas estão formados do mesmo barro que os assalariados; porém foram escolhidos entre milhares e milhões»

P. — Que fizeram eles para merecer esse privilégio?

R. — Nada. Deus prova o seu infinito poder e sabedoria, colocando os seus favores sobre aqueles que nada fizeram para os merecer.

P. — É injusto o Capital?

R. — O Capital é a própria justiça; porém a sua justiça transpõe os limites do nosso débil entendimento. Se o Capital se visse obrigado a conceder os seus favores aos que os merecessem, não seria livre, a sua potência estaria limitada. O Capital não pode afirmar o seu poder senão tomando os seus eleitos, os patrões e os capitalistas, do montão dos incapazes., folgazões e rufiões.

P. — Como te castiga o teu deus?

R. — Condena-me a que não encontre trabalho; então estou excomungado; proíbe-me a carne, o vinho e o lume e mata-me de fome, assim como a minha mulher e a meus filhos.

p._ — Quais são as faltas que deves cometer para merecer a falta de trabalho?

R. — Nenhuma; o Capital decreta a seu prazer a paralisação do trabalho, sem que a nossa débil inteligência possa compreender a razão.

P. — Quais são as tuas preces?

R. — Eu não rezo por palavras: o trabalho é a minha oração.

P. — Onde rezas?

P. — Em toda a parte: no mar, sobre a terra e debaixo da terra, nos campos, nas minas, nas oficinas e nas lojas. Para que a nossa oração seja atendida e recompensada, devemos-pôr aos pés do capital a nossa vontade, liberdade e dignidade. Devemos acudir ao toque da sineta e ao silvo da máquina; e, uma vez orando, devemos, como os autómatos, mover braços e pernas, pés e mãos, soprar e suar, estender nossos músculos e esgotar nossos nervos. Devemos ser humildes de espírito e admitir docilmente os impropérios e injúrias do patrão e dos mestres, porque eles têm sempre razão embora nos pareça o contrário. Devemos dar graças ao amo quando nos rebaixar o salário e prolongar as horas de trabalho, pois tudo quanto ele faz é justo e para nosso bem. Devemos considerar-nos honrados quando o patrão ou os mestres acariciarem nossas mulheres e filhas, pois o nosso deus, o Capital, outorga-lhes o. direito de vida e morte sobre nós. Antes de deixar escapar uma queixa dos nossos lábios, antes de permitir à cólera inflamar o nosso sangue antes de nos declararmos em greve, de nos sublevarmos, devemos suportar todos os sofrimentos, comer pão fabricado com gesso e beber água coberta de lodo, pois para castigar a nossa insolência o Capital arma o proprietário de canhões e sabres, de prisões e guilhotinas

P. — Recebereis alguma recompensa depois da morte?

R. — Sim, uma muito grande. Depois da morte, o Capital deixar-me-à descansar. Não sofrerei frio, nem calor, nem sede, nem fome; não terei motivos para me inquietar. Gozarei do repouso eterno da sepultura.

Os Ladrões

A MULTIDÃO. — Ladrão! ladrão!

SOCIALISTA. — Porque correis até perder o alento?

OPERÁRIO. — Para agarrar o ladrão!

S. — O que te roubou?

O. — A mim, nada.

S. — O que roubou?

O. — Não o sei de certeza; diz-se porém que roubou o cofre dum patrão.

S. — De tal maneira te indigna tanto o haver quem prejudique a propriedade, que chegas ao extremo de correr atrás de um ladrão, sem saber o que ele roubou. Mas diz-me então: porque não deténs o teu patrão?

O. — Porque nada me rouba!

S. — Acabas de cair da lua, meu amigo. Os grandes ladrões, os que roubam todos os dias, são os patrões e os capitalistas.

O. — Queres-me iludir, sem dúvida?

S. — Desgraçado! Os burgueses têm-te cerrado os olhos com a sua justiça, os seus direitos do homem e mais subterfúgios, para que não possas ver que vivem do roubo e que as suas fortunas não são mais do que acumulações de latrocínios. Se tens o bom costume de pensar com o cérebro, compreenderás sem grande dificuldade que o que digo é tão certo como dois e dois serem quatro.

O. — Não vejo as afirmações que fazes com a claridade que tu supões.

S. — Queres que te faça confessar que os patrões e os capitalistas são uns ladrões?

O. — Já se vê que sim! Não estimo os patrões e estou aborrecido de os ouvir difamar os socialistas, porque estes defendem a nossa causa.

S. — Ensinaram-te que a propriedade é o fruto do trabalho, e tu acreditaste-o?

O. — Sim.

S. — Logo, tu deves ser proprietário, porque há mais de quarenta anos que trabalhas. O que é que possuis?

O. — Absolutamente nada. As poucas economias que tinha, dispendi-as no tratamento de minha mulher, por ocasião dos últimos partos.

S. — E decerto que faltou muito pouco para que a tua companheira morresse, por ter estado a tecer mesmo até ao dia do parto. Os burgueses têm razão em dizer que a propriedade é o fruto do trabalho, porém guardam-se muito de acrescentar que, na nossa sociedade é a recompensa da ociosidade.

O. — Nunca pude compreender como nós, operários, não dispomos de um real, enquanto que os patrões e os que denominas capitalistas, que não trabalham, dispõem de milhões„

S„ — E não te fizeram crer que essa desigualdade era um mistério ainda maior do que o da Santa Virgem que teve um menino Jesus com o auxilio duma pomba, e depois de o ter dado à luz ficou tão virgem como no dia do seu nascimento. Não há tais mistérios; o que há são mentiras e ruindades. E senão, como procede o teu patrão, que não é pior nem melhor que os demais burgueses, para enriquecer sem trabalhar?

O. — Ora, como procede! Diz-se patriota e estabeleceu as fiações e tecidos na Polónia para poder competir vantajosamente com os produtos franceses que se exportam para a Rússia.

S. — Admites, sem dúvida, que não é por amor aos operários poloneses que ele lhes dá o seu trabalho?

O. — Tampouco é por carinho para connosco, seus compatriotas, pois nos obriga a trabalhar durante onze ou doze horas, todos dias, nas suas oficinas que parecem masmorras, e onde muitos companheiros têm perdido os seus membros e a sua vida.

S. — Então, porque motivo procede assim?

O. — Porque todo o seu interesse consiste em nos fazer trabalhar.

S. — E como é isso?

O. — Eu não o sei; porém o facto é assim e nada nem ninguém me convencerá do contrário.

S. — Se o não sabes, é porque não queres reflectir um pouco. Tu és tecelão; suponhamos que num dia de trabalho produzes 30 metros de tela de algodão, que o teu patrão vende por 150 escudos. Ele gasta em fio e algodão, 50 escudos; em gás, força motriz deterioração das máquinas e gastos gerais, 20 escudos, e dá-te de jorna 30 escudos; total 100 escudos. Fica, portanto, um lucro de 50 escudos. A quem julgas que deve pertencer, a ti ou ao patrão?

O. — A mim, com os diabos que sou quem fabrica a tela, e não ao meu patrão, que se entretém enquanto eu trabalho, a difamar os socialistas, ao mesmo tempo que bebe champagne para digerir as ostras e as trufas com que se regala!

S. — Já vês que, neste caso, o teu patrão te rouba 50 escudos.

O. — Bem o vejo! E como se mos tirasse da algibeira.

S. — De maneira que tu crês, como os socialistas que se o teu patrão faz trabalhar o operário não é para que ele ganhe a vida, mas sim para lhe roubar o fruto do seu trabalho. Quantos mais operários o burguês emprega na sua fábrica, mais rouba. Por isso ele a desenvolve cada vez mais e vai construindo outras no estrangeiro.

O. — Compreendo perfeitamente o roubo do patrão; mas o capitalista, que carece de oficinas e de. fábricas, que processos emprega para roubar?

S. — O patrão não guarda para ele só os roubos que faz aos seus operários; não tem outro remédio senão ceder várias partes por aluguer aos proprietários do imóvel, por interesses aos capitalistas e banqueiros que lhe adiantara os fundos e lhes negoceiam as suas letras de cambio e suas firmas, por impostos ao Estado, que se empregam em pagar os interesses aos portadores da divida pública. Todo esse mundo, alegre e satisfeito, formado por proprietários, capitalistas, banqueiros e accionistas se entende, como os ladrões, para repartir com os patrões industriais e agrícolas os roubos que continuamente praticam com os trabalhadores assalariados da cidade e do campo.

O. — O que me estás a explicar recorda-me a história de uma quadrilha de bandidos que li há anos num livro velho e quase desprezado. Quando estes bandidos assaltavam um viajante distribuíam o produto por todos de forma que ninguém ficasse sem a sua parte; embora não tivesse contribuído para dar o golpe, o capitão recebia três partes e o seu lugar-tenente duas. Entre eles tudo estava regulamentado. Porém ocorre-me uma coisa: se os patrões, os capitalistas e o Estado formam tuna quadrilha de bandidos que roubam o operário, para que serve a justiça?

S. — Para nada que convenha aos trabalhadores. Tu nunca viste que os tribunais tenham condenado os patrões, os capitalistas ou o Estado, a restituir aos operários o que lhes tem roubado, porém, em troca, conhecerás muitos grevistas que tenham sido condenados a prisão por reclamarem aumento de salário.

O. — Eu mesmo estive dois meses preso, por causa da greve que tivemos há 5 anos. Resulta, pois, que a justiça não serve senão aos patrões e capitalistas.

S. — A justiça é a guarda das riquezas que roubam aos trabalhadores. Como na quadrilha de bandidos de que tu falas, nesta sociedade de ladrões tudo está legalizado. Os tribunais constituiram-se para impedir que os miseráveis roubem aos burgueses e que estes se roubem entre si. A isto se deve a criação de inspectores de produtos alimentícios, para evitar que os patrões se envenenem uns aos outros com as suas criminosas falsificações.

O. — De forma que a indignação moral provocada pela ladroeira dos 10 mil contos de Madame Humbert, não era mais do que ruído. Se essa senhora, em vez de roubar os capitalistas, tivesse arrebatado o fruto do seu trabalho aos camponeses e aos operários tê-la-iam deixado comer em paz uns milhões que se considerariam honradamente adquiridos.

S. — Então, tê-la-iam enaltecido, proclamando-a santa e benfeitora da humanidade. O teu patrão tê-la-ia apontado como exemplo de virtudes capitalistas, porque ele apenas tem podido roubar uns trinta milhões de trabalhadores da França e da Polónia. Os burgueses indignam-se ruidosamente contra os ladrões que os roubam, fazendo ver aos incautos que eles detestam o latrocínio e aquilo que possuem é fruto do seu trabalho.

O. — Fazem como o ladrão que se coloca à frente dos que gritam, dizendo em altos berros : "Ao ladrão! ao ladrão!" para fazer perder a pista aos que o perseguem.

S. — Chegará um dia em que os trabalhadores estarão dispostos a correr atrás do- capitalista que os rouba, como agora correm para agarrar o ladrão que rouba o burguês.

O Que Custam os Capitalistas aos Operários

O. — Admito contigo que o patrão da grande indústria, que se faz substituir na direcção por operários, pode ser suprimido sem inconveniente e até com vantagem.

S. — Observa, peço-te eu, que é o próprio patrão que se suprime e se torna desnecessário na produção. Agora não falta mais que suprimi-lo na divisão dos bens, dos quais ele leva a melhor parte.

O. — Estou de acordo, porém não vejo o que nós ganharemos com isso. O patrão far-nos-a trabalhar sempre para viver.

S. — E que não haverá capitalistas que possam viver sem trabalhar. Façamos a conta do que custam. Tu és mineiro, diz-me: é o mesmo queimar o carvão no forno da caldeira de vapor que no fogão da cozinha ao ar livre?

O. — Ah! não! Na caldeira, a combustão do carvão produz a força motriz que põe em movimento toda a oficina. No fogão, pela sua parte, não serve senão para nos corromper com o fumo que produz.

S. — Tu saberás que nós somos como máquinas e que o pão e os alimentos são o nosso carvão; o que come o produtor dá-lhe forças para o trabalho, reproduz o valor do consumido e alguma coisa mais que lhe rouba o patrão; porém como o capitalista não trabalha, o que consome perde-se como o carvão aceso ao ar livre.

O. — Tens razão; os capitalistas são bocas inúteis que os operários são obrigados a sustentar; porém se o que eles comem se unisse ao nosso alimento habitual, este não aumentaria muito.

S. — Entendo o que dizes; que para cada capitalista há centenas e milhares de associados e a sua parte repartida entre tantos, seria pequena» E certo. Encaremos a questão debaixo doutro aspecto: Não te dizem repetidas vezes que a preguiça é a mãe de todos os vícios?

O. — Raios do diabo! Essa é uma frase que não tem deixado de repercutir os meus ouvidos desde que uso calções: na Escola, no Catecismo, na oficina, em toda a parte, enfim; e o mais curioso dessa moral é que os patrões e os padres, que são os que mais a apregoam, são também os que mais enganam e os que pior procedem.

S. — Tens razão. São assim os que divulgam essa moral, e senão vê como a conduta dos capitalistas no-lo demonstra. As matérias que consomem não são empregadas em nenhum trabalho útil; só servem para desenvolver entre eles vícios que os operários desconhecem e que envenenam a sociedade do mesmo modo que o carvão que se queima inutilmente empesta a atmosfera.

O. — A preguiça é para os capitalistas um adorno! Eles e suas mulheres, filhos e filhas, enganam-nos duma maneira que nem se pode fazer uma ideia. Não querem fazer nada, nem a sã próprios são capazes de se servir. Têm necessidade de um exército de serviçais para engraxar o seu calçado escovar-lhes os fatos, varrer as habitações e preparar-lhes as refeições; e asseguraram — me que as damas têm donzelas que as penteiam, lhes apertam o espartilho e calçam as meias, as metem no banho e as enxugam depois.

S. — Quem alimenta os serviçais, que não trabalham senão para servir os capitalistas?

O. — Os seus amos, com certeza!

S, — Porém, quem é que produz o dinheiro que eles dispendem na manutenção e salário dos serviçais?

O. — Não são seguramente os capitalistas, que temem o trabalho mais que o fogo.

S. — Os trabalhadores são, portanto, os que produzem o dinheiro que os capitalistas gastam com os seus serviçais, lacaios e cocheiros, com os cavalos e cães que são os seus domésticos de quatro patas; numa palavra, a conta de numerosos servos da classe capitalista, corre a cargo da classe assalariada.

O. — Diabo! Como o mundo está mal feito!

S. — Não é isso somente. Ao capitalista fica-lhe muito tempo livre, em que não se aborrece nem tem de pensar que é explorado, para enriquecer outros, o que acontece aos assalariados, mas ocupa-se a procurar todos os prazeres possíveis e imagina- veis. Para se divertir, o capitalista necessita de cortesãs, cantoras e bailarinas de Óperas literatos, pintores e músicos; todo um exército de mulheres e homens, que passa a vida trabalhando, para o distrair; e toda essa gente tem ao seu serviço grande número de criados, para ela se poder consagrar dia e noite a procurar prazeres para o capitalista. São também os assalariados que mantém todas essas bocas inúteis.

O. — Estou de acordo em que os criados o sejam, porém os artistas e escritores são úteis.

S. — Para quem? Não para ti nem para teus companheiros de certeza; vós não tendes tempo para ler os seus livrecos, nem dinheiro para ouvir os seus trinados nem admirar as suas cabriolas, o que não impede que sejais vós os que satisfazeis as suas necessidades. Tudo o que o capitalista emprega em manter aqueles que lhes subministram distracções materiais e intelectuais é gasto que se desperdiça de igual forma ao que ele consome.

O. — Já vejo onde vais parar. Os indivíduos que servem e entreteem os capitalistas, de qualquer forma que eles se chamem, ou sejam tenores de ópera, ou cronistas de Fígaro, são seus domésticos pessoais, e portanto bocas inúteis, visto que não prestam nenhum serviço aos operários, que são os que realmente os mantêm. O capitalista é um parasita, à custa do qual vivem outros parasitas.

S. — O raciocínio é simples como um dia bom. Porém, há outros parasitas além dos citados. Os prazeres dos ricos formam um elemento muito favorável para o culto do parasitismo. Imagina, pois, a florescente população parasitária de prostitutas, chulos, rufiões e escroques que a libertinagem dos ricos cria nas grandes capitais da civilização; esses parasitas convertem-se por sua vez em degenerados, chegando a atentar contra a pessoa e propriedade dos capitalistas. Para se livrarem desses atentados, empregam a policia, os magistrados e os carcereiros, os quais constituem uma nova espécie parasitária.

O. — Começo a ver as coisas!

S. — Escuta-me um pouco mais, que vou terminar: os milhões que custa o exército a que chamam nacional, porque proporciona os vigilantes e guardas da ordem capitalista, donde se tiram?

O. — Dos impostos.

S. — Quem paga os impostos?

O. — Todo o mundo; os capitalistas e os operários.

S. — Porém, como os capitalistas não possuem um único real que não tenha sido produzido pelos assalariados, resulta que o sustentamento de todos esses instrumentos de opressão, que utiliza unicamente a classe dominante, são pagos pelos trabalhadores. Continuemos. Tu admites que tudo quanto o capitalista consome se inutiliza?

O. — Sim, como o carvão queimado ao ar livre.

S. — Pela mesma razão, é inútil o trabalho que se emprega em edificar os seus palácios e casas de campo,, em construir os seus automóveis e barcos de recreio, em tecer os seus fatos, etc.

O. — E com muito mais motivo o trabalho que se gasta em fabricar objectos de luxo; e é o cúmulo da exploração o que sucede nestas indústrias; os operários que a elas se dedicam figuram entre os mais mal pagos. Eu nasci num povo onde o fabrico das rendas constituía uma indústria; e, no entanto, conheci muitas dessas desgraçadas que não tinham ganho em sua vida mais do que o indispensável para se alimentarem com pão duro, e sem embargo, tinham perdido a vista fazendo rendas, tão inúteis e difíceis como as de Aleçon e de Malinas, para que se engalanassem as grandes senhoras.

S. — Quanto mais se enriquecem os capitalistas, mais se multiplicam os operários de luxo. A classe capitalista retira da produção útil um número considerável de mulheres e de homens para que a sirva, a entretenha, defenda a sua propriedade, prolongue a sua dominação, produza o que eles consomem e inutiliza num luxo imbecil e criminoso.

O. — Compreendo-te: ao serviço privado e social de cada capitalista há uma centena de trabalhadores, um milhar, ou talvez mais ainda; suprimindo a classe capitalista, restituir-se-ia à produção esse colossal exército de trabalhadores improdutivos; quer dizer, dum golpe poderia reduzir-se a nossa jornada de trabalho a uma metade.

Para que Servem os Patrões?

O. — Porém se não houvesse patrões, quem me daria trabalho?

S. — Com frequência, alguns companheiros me apresentam essa questão. Queres que a examinemos? Para trabalhar, necessitamos uma fábrica, máquinas e matéria prima.

O. — Perfeitamente.

S. — Quem construiu a fábrica?

O. — Os pedreiros.

S. — Quem construiu as máquinas?

O. — Os mecânicos.

S. — Quem semeou o algodão que tu teces, quem cuidou da lã que tua mulher fia, quem extraiu o mineral de ferro que forja teu filho?

O. — Os cultivadores, os pastores, os mineiros, os operários como eu.

S. — Por conseguinte, tu, tua mulher e teu filho só podeis trabalhar porque estes diferentes operários vos forneceram fábrica, máquinas e matéria prima.

O. — Justo; eu não posso tecer sem algodão e sem tear.

S. — Logo, não é o patrão que te dá trabalho, mas sim o pedreiro, o mecânico, o cultivador. Tu sabes como o teu patrão pôde obter tudo o que tu necessitas para trabalhar?

O. — Comprou-o.

S.— Quem lhe deu dinheiro?

O. — Eu não o sei, seu pai ter-lhe-à deixado alguma coisa; ele acha-se agora milionário.

S. — Ganhou ele o seu milhão fazendo girar as suas máquinas e tecendo o seu algodão?

O. — Nada disso. Foi fazendo-nos trabalhar a nós.

S. — Enriqueceu, pois na ociosidade; é a única maneira de fazer fortuna; os que trabalham ganham só o preciso para viver» Porém, diz-me, se tu e os teus companheiros de oficina não trabalhassem, não se oxidariam as máquinas do patrão e não se estragaria o algodão?

O. — Tudo se arruinaria na fábrica se não trabalhássemos nela.

S. — Por conseguinte, trabalhando conservas as máquinas e a matéria prima que te são necessárias para trabalhar.

O. — É verdade, e nunca tinha pensado em tal.

S. — Teu patrão ocupa-de do que se passa na fábrica?

O. — Não muito: todos os dias dá a sua voltazinha para nos ver trabalhar, porém guarda as mãos nas algibeiras para as não sujar. Na fábrica de fios, onde trabalham minha mulher e minha filha, nunca se vêm os patrões, apesar deles serem quatro; porém o facto ainda mais ressalta na oficina de metalurgia de meu filho: ali nunca se vêm nem se conhecem os patrões, nem há meio de ver sequer a sua sombra; é uma sociedade anónima o patrão: por exemplo, se tu e eu tivessemos quinhentos escudos no bolso, poderíamos comprar uma acção e convertermo-nos em patrões, sem nunca ter posto os pés na oficina e sem necessidade de os pôr jamais.

S. — Quem, pois, vigia e dirige o trabalho nessa oficina de patrões accionistas, nessa fábrica de fiação de quatro patrões associados e na tua mesma fábrica com um só, se não aparecem por ali ou se vão e não fazem nada?

O. — Os directores e os contramestres.

S. — Porém se são os operários os que edificaram a fábrica, os que construiram as máquinas e produziram a matéria prima;se são os operários os que trabalham com as máquinas, e os directores e os contramestres que regulamentam o trabalho, o que faz o patrão?

O. — Nada.

S. — E se houvesse um caminho de ferro daqui à Lua, poderiam enviar-se para ali, sem bilhete de volta, todos os patrões, sem que a oficina metalúrgica de teu filho, a fábrica de fiação de tua mulher e a de tecidos onde trabalhas deixassem de forjar, fiar ou tecer, como à sua partida. Sabes quanto ganhou o teu patrão o ano passado?

O. — Calculamos que tenha ganho dez mil contos.

S. — Quantos operários emprega, entre homens mulheres e crianças?

O. — Um milhar.

S. — Que salários vos dá?

O. — Uns por outros, cerca de dez contos ao ano, contando com os ordenados dos directores e dos contramestres.

S. — De modo que os mil trabalhadores da fábrica receberam dez mil contos de salários, o preciso para não morrerem de fome, enquanto que o teu patrão embolsou dez mil contos por não ter feito nada. De onde veem estes vinte mil contos?

O. — Do céu não é seguramente pois eu nunca vi chover dinheiro.

S. — São pois os operários da fábrica que produziram os dez mil contos que receberam de salários, e além disso os dez mil contos de benefícios para o patrão, o qual empregou uma parte deles em comprar novas máquinas.

O. — É incontestável.

S. — Visto isso, são os operários que produzem o dinheiro que o patrão consagra a comprar máquinas para a produção! são os directores e contramestres, quer dizer os assalaria — dos como tu, os que dirigem esta; pois então, para que serve o patrão?

O. — Para explorar o trabalho.

S. — Diz melhor para explorar o trabalhador; é mais claro e mais exacto.

Liberdade Patronal e Escravidão Operária

 

— Companheiro de trabalho, assegura-se-nos que desde a Revolução de 89 e a Declaração dos Direitos do Homem todos somos livres. Tu és livre?

— Eu? Creio que sim!

— Vejamos se é verdade; Quem te concede o direito de trabalhar?

— O patrão.

— Quem fixa a tua jornada de trabalho?

— O patrão.

— Quem fixa o teu salário?

— O patrão.

— Quem vende o produto do teu trabalho e guarda os lucros?

— O patrão.

— Quem te concede ou te tira um dia de descanso?

— O patrão.

— Então, não ter nenhum direito sobre o produto do teu trabalho, sofrer de manhã à noite a lei do patrão, não poder trabalhar, quer dizer, não poder comer, tu tua mulher e os teus filhos, sem licença do patrão, chamas a isso ser livre? Que grande liberdade te "fabricaram” a Revolução de 89 e os Direitos do Homem! Continuemos: quem tem a liberdade de enriquecer, fazendo trabalhar o operário, a sua mulher e filhos?

— O patrão.

— Quem tem a liberdade de impor ao operário, a sua mulher e a seus filhos, o género de trabalho que lhe produza a maior quantidade de benefícios?

— O patrão.

— Quem tem a liberdade de pôr na rua o operário quando não necessita dele?

— O patrão.

— Quem tem a liberdade de deixar morrer de fome nas ruas os operários velhos que durante a sua juventude e virilidade o enriqueceram?

— O patrão.

— Quem tem liberdade de fazer sentir a fome aos operários que pela greve reclamam um pouco mais de jorna e um pouco menos de trabalho?

— O patrão.

— Quem tem a liberdade de se servir dos polícias, dos soldados, dos juízes, para refrear as iras grevistas que ele expulsou das suas oficinas?

— O patrão.

— Pois, camarada a Revolução de 89 e os Direitos do Homem deram todas as liberdades ao patrão e a escravidão ao operário.

A Oficina Pior do que a Prisão

MINEIRO — Acaba de dar-se a liberdade a Gabriella Bompard depois de dezassete anos de prisão. É coisa dura estar encerrada todo o dia durante tantos anos.

SOCIALISTA — É horrível, com efeito. Porém a tua existência é acaso mais agradável?

M. — Isso é chalaça...

S. — A que horas te levantas?

M. — Ao amanhecer, muito antes de sair o sol, e este tem — se posto já quando saio da mina.

S. — Então passas a jornada debaixo da terra como uma toupeira, pois não vês o sol?

M. — Vejo-o, sim, aos domingos e dias de festa; porém nesses dias não há pão em casa, e por um bocado dele renunciaria ao sol e voltaria a entrar debaixo da terra.

S. — O prisioneiro não tem necessidade de renunciar ao sol para ter pão; todos os dias lho põem na mesa, quer trabalhe ou não. Sabes tu que a sua jornada é mais curta do que a tua? Ele levanta-se mais tarde e deita-se mais cedo; não teme explosões de grisu, nem as engrenagens e as correias das máquinas, como os teus companheiros da mina e da oficina. É o único que te atormenta o ter de pagar ao padeiro?

M. — Qual! Estão também o senhorio, e.. .

S. — O prisioneiro tem a casa grátis e está mais seguro do que tu e a tua família. Não é preciso ter preocupações, porque o Estado toma conta de tudo a seu cargo: habitação, alimentos, vestidos, lavagem, aquecimento.... Quantas economias tens?

M. — Quererás dizer dividas? Nós devemos a semana ao padeiro e ao tendeiro, antes de haver recebido a féria. Quando eu me casei tinha ainda umas pequenas economias; depois vieram os filhos e não me ficou nem um tostão. Há dezoito anos que trabalho na mina; os meus dois filhos mais velhos trabalham também, e sem embargo, hão temos economias de espécie alguma. Se eu amanhã caísse enfermo teríamos de estender a mão. Aconselham-nos a economia, porém, sangue de cristo! donde querem que eu economize, quando apenas temos o pão que necessitamos?

S. — Gabriella Bompard economizou 1.250 escudos, que lhe entregaram à saída do cárcere.

M. — Pois então está — se melhor no cárcere que na oficina!

S. — É como dizes.

M. — Porém, como pode ser uma coisa assim?

S. — A vida dos presos é dura, encerram — nos como bestas ferozes; porém a do operário é pior. O governo encerra os criminosos para proteger e assegurar os burgueses, porém não pensa em realizar benefícios mediante o seu trabalho; não tem, pois, interesse em os tornar duplamente mais desgraçados do que são. Porém o patrão já é outra coisa: tem grande interesse em nos fazer sofrer a miséria o mais possível; cada hora que acrescenta à nossa jornada e cada real que escamoteia ao nosso salário, convertem-se em dinheiro que ele embolsa largamente. E quanto mais miseráveis nos encontramos, mais barato temos de vender o nosso trabalho! A miséria dos trabalhadores faz a riqueza dos capitalistas!

Dinheiro

Nasci — logo a meus pais custou dinheiro
o baptismo que Deus nos dá de graça.
Fui crescendo — e lá estava o mealheiro
na Igreja onde eu ia pedir graças.

Quis casar com uma moça — mais dinheiro
Brinquei com ela — não brinquei de graça,
que aos nove meses me custou a graça
casamento na Igreja — mais dinheiro

Morreu minha mulher — não lhe achei graça.
E menos graça ao raio do dinheiro
p’ro enterro que o prior não vai de graça,
e pede mais dinheiro que o coveiro.

Se ser cristão requer sempre dinheiro
porque dizem que as graças são de graça,
os que as graças nos vendem por dinheiro?

E de tanto latim me terem dito
língua que caro me tem custado,
não estranhem que eu esteja tão magrito,
e, quem vende esse latim, tão anafado.

Poema de Filinto Elísio


Inclusão 22/03/2019