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Primeira Edição: KULTURINDUSTRIE IM 21. JAHRHUNDERT. Zur Aktualität des Konzepts von Adorno und Horkheimer in revista EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, 9 (03/2012) [EXIT! Crise e Crítica da Sociedade da Mercadoria, nº 9 (03/2012)], ISBN 978-3-89502-333-0, 200 p., 13 Euro, Editora: Horlemann Verlag, Heynstr. 28, 13187 Berlin, Deutschland, Tel +49 (0) 30 49 30 76 39, http://www.horlemann.info.
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Tradução: Boaventura Antunes
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Nota prévia: o presente ensaio é a versão escrita e alargada de uma comunicação apresentada em 21 de Novembro de 2010 na Alliance Française em São Paulo no âmbito de uma série de conferências subordinadas ao tema “A Indústria Cultural no Século XXI”.
Há textos que já estão envelhecidos quando vêem a luz do dia. E há textos que mesmo com cem anos de idade se apresentam frescos e emocionantes. O livro A Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, onde se inclui o célebre capítulo sobre a Indústria Cultural, teve a primeira edição em 1944. Poder-se-á ainda falar tanto tempo depois da actualidade das ideias aí formuladas?
Para o pensamento pós-moderno em sentido lato a resposta é clara: não. Este ponto de vista tornado dominante nas últimas décadas gosta de acusar o conceito de indústria cultural de ser portador de um “pessimismo cultural” conservador. Que mal poderá haver na industrialização da cultura? Não se encontrarão aí potenciais de liberdade e progresso que podem ser utilizados por todos os seres humanos? A esquerda cultural e pop pós-moderna, na sua experiência mediática para não dizer snobismo mediático, julgou-se para lá do pensamento “fora de moda” da teoria crítica. Com isso, no entanto, apenas demonstrou o seu próprio carácter de simples fenómeno de moda. Entretanto a empresa pop pós-moderna já está um pouco entrada nos anos e os seus velhos protagonistas ganharam uma aura já quase de avô. De repente eles mesmos correm o risco de se tornarem conservadores em relação ao seu próprio métier de juventude cultural profissional. É precisamente nesta situação que é de todo o interesse voltar a ver com outros olhos o conceito crítico de indústria cultural e as acusações pós-modernas contra ele lançadas.
Para começar será preciso esclarecer o que se deve entender por “pessimismo cultural”. No modo de expressão pós-moderno, que em todo o caso prefere proceder associativamente, a simples classificação denunciatória já parece falar por si mesma, sem precisar de mais fundamentação. Aqui se infiltra de algum modo a referência pejorativa à postura de “burguesia cultural” na argumentação depreciativa, argumentação essa que permanece igualmente associativa e indeterminada. Na realidade a “burguesia cultural”, a que corresponde a estrita diferença entre cultura de entretenimento e cultura séria, é um fenómeno bem especificamente alemão. A literatura, a música etc. “sérias” ou de “alto nível cultural” não devem ser manchadas por um “entretenimento” entendido como fundamentalmente baixo, tal como o ensino e a investigação académicas não devem ser manchadas por uma “ciência popular” aferida pelo entendimento comum.
Se a burguesia cultural clássica, sobretudo na Alemanha, torce o nariz à superficialidade da moderna cultura comercial, isso não passa de um gesto vazio. Pois tal crítica permanece ela própria superficial, uma vez que a sua preocupação é toda ela para os modos exteriores de exposição, enquanto o conteúdo social e o núcleo politico-económico de tais produções têm de ser ocultados e permanecem amplamente irreflectidos. Esta espécie de “pessimismo cultural” é uma forma de reacção puramente intracapitalista. Quanto mais se invoca abstractamente uma “essência interna” indeterminada e mistificada da alta cultura iluminista burguesa, tanto mais irrelevante se apresenta a cruzada da burguesia cultural contra a indústria cultural. Atrás disso esconde-se um penoso estado de coisas. O entretenimento frívolo e a simplificação popular não passam do reverso do carácter carregado ideologicamente em alto grau das próprias ciência e arte burguesas “sérias” que assim se torna reconhecível. O facto de estas não serem compradas apenas porque já antes tinham sido compradas pelo Estado para efeitos de representação mostra a origem comum em que o dinheiro se valida no Estado e o Estado no dinheiro. É verdadeiramente a involuntária revelação deste contexto que não agrada aos críticos da cultura da burguesia cultural na industrialização da cultura, pois com isso a sua própria vida fica exposta. Para os restos hoje miseráveis e do ponto de vista capitalista precarizados dos bajuladores burgueses da alta cultura está completamente rompida a distância para a superficialidade cultural, pelo que a sua atitude só pode ser entendida como sátira real.
É verdade que não se pode absolver sem mais Adorno e Horkheimer do patriotismo do milieu da “burguesia cultural”. Este, no entanto, encontra-se mais no modo de exposição do que no conteúdo crítico. Se a “crítica da crítica” pós-moderna insiste sobretudo no primeiro, então ela mais uma vez diz mais sobre si mesma do que sobre o objecto que põe de lado. De facto para o culturalismo pós-moderno são sempre mais importantes os trapinhos, os acessórios, o “styling” e a atitude do que aquilo que neles se exprime. A crítica inverdadeira e ela própria superficial da burguesia cultural à superficialidade vira-se num culto pós-moderno afirmativo da superficialidade. A aparência imediata ter-se-ia emancipado da sua essência. Ao que corresponde o modo de pensar positivista que submete os conteúdos a um método formal vazio e os condena à indiferença.
A feira explícita da exterioridade, de que a crítica cultural conservadora e a nebulosa invocação de uma “interioridade” constitui uma mera inversão, naturalmente não é nada de novo. Ela regressa periodicamente, ainda que na pós-modernidade tenha experimentado por assim dizer a sua apoteose de capitalismo tardio e de capitalismo de crise. Heinrich Heine, no seu ensaio crítico sobre A Escola Romântica (1833), tem em mira de certa maneira uma atitude e um modo de proceder semelhantes para caracterizar o processo de autodissolução do romantismo: “Entre os imitadores de Fouqué tal como entre os imitadores de Walter Scott formou-se tristemente o costume de descrever apenas a manifestação exterior e o traje em vez de a natureza interna das pessoas e das coisas. Este género rasteiro e modo leve grassa actualmente tanto na Alemanha como na Inglaterra e em França. Mesmo se as descrições já não enaltecem o tempo da cavalaria, mas dizem respeito às nossas condições modernas, mesmo assim mantém-se o estilo antigo de ver apenas o acidental do fenómeno em vez de a sua essência. Os nossos novos romancistas, em vez de conhecimento das pessoas exprimem apenas conhecimento do vestuário, baseando-se talvez no mote: o hábito faz o monge.
Já foi dito muitas vezes e não foi só do lado conservador que a redução dos objectos à sua fenomenologia e decididamente à sua fachada, tal como o formalismo tanto estético como epistémico, constituem marcas ineludíveis de esgotamento cultural e social e de processos de dissolução; seja de uma formação social, de uma época, de um padrão cultural ou de uma determinada escola. No que respeita ao nosso objecto, trata-se não apenas do modelo em fim de linha da pós-modernidade, mas é esta que já constitui como tal e no seu conjunto o modelo em fim de linha da modernidade capitalista sob todos os pontos de vista. O baile de máscaras pós-moderno não representa senão uma festa de classe média em tempo de peste, nem sequer particularmente frívola, mas sim aborrecida. De resto uma metáfora com que Roswitha Scholz caracterizou já nos anos noventa o carnaval histórico da pós-modernidade como fuga condenada ao fracasso para o palácio de cristal do capitalismo de casino. Isso até hoje pouco mudou na consciência ideológica do carácter social pós-moderno apesar dos violentos surtos da crise. Quanto mais se invoca a “criatividade”, mais surge ininterruptamente a apresentação do acidental e do exterior. Não é a criação de algo novo que se exprime com emoção contra a determinação da essência, mas sim a fuga perante a essência negativa e completamente miserável da realidade da própria existência.
A hipóstase da capa exterior cultural e metodológica encobre precisamente a causa central da indiferenciação, ou seja, a forma social geral e sobreposta como conteúdo substancial, à qual também a indústria cultural já pertence sempre. O que é “burguês” em sentido próprio na esfera cultural dominante não é um gesto conservador da “cultura” da associação de filólogos, mas sim o carácter de mercadoria dos seus produtos, que integra estes no reino do “trabalho abstracto” e a si mesmo se degrada em elemento abstracto na metamorfose do capital, como um móvel de design ou comida de design. Os protagonistas podem aqui ignorar reciprocamente o carácter de entretenimento ou sério.
Ironicamente a burguesia cultural clássica e as suas actuais figuras decadentes não se ilude de modo diferente do pós-modernismo que surfa nos média quanto à essência negativa da cultura capitalista. Ambos reflectem apenas diferentes estádios do desenvolvimento capitalista do mesmo modo afirmativo. O pessimismo cultural é conservador e a formação positiva pós-moderna da indústria cultural é apenas pseudo-“progressista” no mesmo continuum capitalista não transcendido por nenhum dos lados. Por isso a diferença se encontra apenas relativamente às embalagens ou aos penteados, enquanto a determinação categorial idêntica permanece escondida e não se consegue sentir o ridículo comum. Quando riem uns dos outros riem sempre apenas de si mesmos.
O pessimismo cultural conservador é elitista até aos ossos e só a partir deste ponto de vista é pseudo-crítico da produção intelectual em série. A cultura há-de supostamente morrer com o ocidente porque já não está reservada às classes superiores “cultas” mas assume o carácter de uma cultura de massas. A crítica da frivolidade, da superficialidade e da vulgaridade da indústria cultural reconduz-se assim directamente ao facto de ser produzida para a grande maioria, incluindo as camadas sociais inferiores consideradas como que “por natureza” intelectualmente menores. Devia conceder-se-lhes com gosto uma espécie de divertimento ingénuo, de modo a terem o seu prazer inofensivo e evitarem maus pensamentos, desde que a alta cultura elitista mantivesse o seu caracter exclusivo e a coisa ficasse entre nós.
Na indústria cultural, pelo contrário, sente-se como ameaçador que ela nivele as pretensões, ultrapasse as fronteiras sociais e desmascare como um disparate a aura de zelo cultural da antiga burguesia, uma vez que esta há muito perdeu a sua base histórica que só ideologicamente continua presente. Não é por acaso que Adorno e Horkheimer troçam dos “amigos da educação” que “idealizam como orgânico o passado pré-capitalista” imponentemente patriarcal. Por isso a cultura de massas industrial e comercializada não fica sujeita ao veredicto conservador por ser “o esclarecimento como mistificação das massas” (como diz o subtítulo do capítulo da Indústria Cultural), mas sim porque torna reconhecível a falsidade reacionária do auto-incensamento bucólico e imitador dos clássicos da consciência de professor efectivo que gostaria de refrescar a sua própria estupidez social na canonizada “nobre simplicidade e silenciosa grandeza” (Winckelmann) de heranças culturais irreais.
Inversamente os profetas pop pós-modernos rejubilam exactamente com a mesma massificação industrial como se ela fosse per se valiosamente emancipatória. A cultura de massas já seria sempre boa, independentemente do conteúdo e da forma, e seja ela uma cultura autónoma das próprias massas ou uma cultura que obedece a imperativos heterónomos e perfeitamente independentes destinados à consciência estragada das massas. Uma afirmação mais ou menos do mesmo modo que para a ideologia do movimento de esquerda (de resto completamente marcada em termos pós-modernos) qualquer movimento de massas em si já tem de ser essencialmente “autêntico” seja qual o sentido em que se movimenta. A indústria cultural, independentemente da sua forma de mercadoria e de capital, enquanto acessibilidade geral e afirmação de massas, é considerada como momento de libertação no capitalismo de facto já não grandemente tematizado. Esta atitude aponta no entanto apenas para o brutal interesse próprio de uma determinada personagem na comercialização, nomeadamente como designer secundário académico e publicista. Essa é a verdadeira razão porque ela gostaria de colar à teoria crítica o pessimismo cultural elitista conservador como qualidade determinante.
Ora o conceito negativo de indústria cultural em Adorno e Horkheimer quer dizer exactamente o contrário: não é a acessibilidade para todos que é objecto de crítica, mas sim que a indústria cultural, como eles dizem, “representa o mais sensível instrumento de controle social”. Trata-se portanto do conteúdo estruturalmente alienado e objectivadamente autoritário da cultura de massas capitalista e não do seu alcance para lá das elites. Este conteúdo segundo Adorno e Horkheimer é “barbárie estética” porque processa a “moral degradada dos livros infantis de ontem” a fim de disponibilizar para os desaforos sociais os indivíduos cada vez mais infantilizados.
A antítese da indústria cultural seria uma cultura para todos que se opusesse à coerção da mera repetição e internalização do princípio dominante; portanto nem uma cultura para poucos, que se mantém como mero ornamento desse princípio, nem uma cultura compensatória de terapia ocupacional democrática, que não passa de um mecanismo de controle híbrido. É justamente este carácter essencial da indústria cultural na forma da mercadoria que os ideólogos pop pós-modernos não querem reconhecer, embriagando-se pelo contrário nela. A crítica, se é que ela ainda surge, reduz-se a uma mera diferenciação interna que confere arbitrariamente um estatuto de culto pseudo-emancipatório a determinadas tendências de massas da indústria cultural, como se a compra e consumo dos respectivos produtos contrariasse o controle social de modo puramente imanente, enquanto outras produções são rejeitadas com fundamentação igualmente superficial.
Outro aspecto da crítica cultural genuinamente conservadora consiste no seu reducionismo tecnológico, que corresponde à atitude elitista de burguesia cultural. A cultura também estaria condenada à decadência supostamente porque a sua massificação exigiria simultaneamente uma mecanização tecnológica. É justamente contra esta interpretação que protestam Adorno e Horkheimer logo no início do capítulo da Indústria Cultural. Aí se diz: “Os interessados adoram explicar a indústria cultural em termos tecnológicos. A participação de milhões em tal indústria imporia métodos de reprodução que, por seu turno, fazem com que inevitavelmente, em numerosos locais, necessidades iguais sejam satisfeitas com produtos estandardizados. … Ora isso não deve ser atribuído a uma lei de desenvolvimento da técnica enquanto tal, mas sim à sua função na economia contemporânea”.
Para os dois autores esta função é dupla: o controle social é eficaz como efeito colateral justamente porque a cultura foi transformada num objecto imediato da produção para o puro lucro. Ou, expresso em termos de filosofia social nas palavras de Adorno e Horkheimer: “Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida em que é algo em si mesmo”. Sob o totalitarismo da economia isto é válido tanto para o mais simples objecto de uso material como para os bens da produção cultural capitalizada. Tal como um casaco socialmente não é um casaco e o leite não é leite, mas ambos aparecem igualmente como objectivação de “trabalho abstracto” e portanto como quantidade abstracta de preço, assim também a qualidade sensível e estética de bens culturais musicais ou literários e teóricos é degradada pela sua forma abstracta de valor e de certa maneira morta, porque esta apenas proporciona ao produto o acesso à “validade” e à participação na massa de substância social do valor, permanecendo o conteúdo específico para si indiferente. Em todo o caso poder-se-á anotar à formulação de Adorno e Horkheimer que não se trata aqui do processo de uma mera “troca”. Pois a circulação representa apenas a esfera de “realização” da “riqueza abstracta” como fim em si mesmo (Marx), ou seja, o regresso da substância do valor representada no corpo das mercadorias à forma do dinheiro que lhe é “própria”.
É em primeiro lugar desta objectividade económica fetichista, com a sua permanente mudança de forma interna a que o objecto real permanece exterior, que deriva a estandardização mecânica e o nivelamento dos conteúdos, e não de uma exigência puramente tecnológica. A crítica cultural conservadora insiste no processo tecnológico de produção em massa justamente porque gostaria de manter fora da linha de tiro a essência negativa da forma social de mercadoria. O pós-modernismo agudiza mesmo essa ignorância, uma vez que já nem sequer recusa a crítica da determinação social da forma, mas declara-a desde logo impossível epistémica e logicamente. A oposição à retórica de decadência dos conservadores consiste então novamente numa mera inversão da sua redução tecnológica. Seria justamente a tecnologia como tal que desenvolveria efeitos benéficos independentemente da sua forma capitalista (ou mesmo tornados gentilmente possíveis apenas por esta). A crença pós-moderna inversa na libertação cultural através da tecnologia sucumbe também ao mesmo mal-entendido. Pessimismo cultural conservador e optimismo cultural pós-moderno constituem na sua limitação tecnológica as duas faces da mesma medalha. Ambas escondem igualmente a dominação da “riqueza abstracta” capitalista sobre os conteúdos e as formas de exposição dos bens culturais.
Em todo o caso a tecnologia da indústria cultural não está imune à forma económica do fetiche do capital nem à função de controle social a ela associada. Ela não é de modo nenhum neutra na sua forma de manifestação concreta, à semelhança dos meios técnicos de produção nas outras indústrias capitalistas. Mas não se deve confundir causa com efeito. É a forma e a estrutura da tecnologia que obedece aos imperativos da relação social e não o contrário. Os aparelhos estão geneticamente impregnados pela forma social. O desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo é sempre simultaneamente um desenvolvimento de forças destrutivas. Isto é válido não apenas num sentido superficial e particular, por exemplo para a industrialização da guerra, com a bomba atómica como ponto culminante da técnica e ultima ratio dos progressos democráticos. Também a linha de montagem não representa um aumento puro e neutro da produtividade, pelo contrário, na sua determinação concreta pertence igualmente à miséria do trabalho abstracto a que os produtores estão subjugados. A indústria cultural não é excepção nesta identidade entre produtividade abstracta e destruição.
O momento destrutivo do fim em si mesmo económico fetichista atinge, modela e violenta de múltiplos modos para lá da correspondente orientação das técnicas de produção também os conteúdos culturais. Tal como no caso das mercadorias para as necessidades do dia-a-dia, não se trata do conteúdo da necessidade, mas sim da sua adaptação também técnica ao conteúdo da valorização. A inversão capitalista entre meio e fim, entre concreto e abstracto apresenta-se de modo específico na produção de bens culturais. De facto pode entender-se isto também como inversão entre técnica de produção e conteúdo ou entre inovação técnica e conteúdo: não é um (novo) conteúdo que procura para si uma técnica adequada, pelo contrário, qualquer conteúdo é adaptado a uma técnica rentável e a “criatividade” reduz-se exactamente a isso. Mas também esta relação não deriva de qualquer relação independente de técnica e conteúdo, mas sim do facto de ambas serem forçadas à cama de Procrustes do imperativo do valor. Adorno e Horkheimer escrevem a este respeito: “A indústria cultural se desenvolveu com a primazia dos efeitos,… dos detalhes técnicos sobre a obra, que outrora trazia a ideia e com essa foi liquidada”.
Deste modo se inverte a relação entre conteúdo e modo de representação. Na indústria cultural este último parece autonomizar-se, como se mostra de seguida: “O facto de que suas inovações características não passem de aperfeiçoamentos da produção em massa não é exterior ao sistema. É com razão que o interesse de inúmeros consumidores se prende à técnica, não aos conteúdos teimosamente repetidos, ocos e já em parte abandonados”. Tal como na produção o que está em causa é apenas o aumento das vendas, também no consumo consequentemente o que está em causa é apenas a função técnica de brinquedo igualmente indiferente ao conteúdo. Mas se os “detalhes técnicos” já não são expressão da ideia do conteúdo, dominando pelo contrário acima do conteúdo e “liquidando” a ideia, esta tendência irresistível é ela própria por sua vez devida à forma geral de mercadoria tanto do meio de produção como também dos produtos. A formulação aponta justamente para o facto de que a técnica dos meros efeitos não existe por acaso, mas é expressão daquele totalitarismo económico que nos tempos pós-modernos ainda se agravou enormemente em comparação com meados do século passado.
O efeito tecnológico tem o seu modelo na publicidade omnipresente, na estética das mercadorias do mercado mundial. A ideia de conteúdo não possui qualquer existência própria; ela está à partida ao serviço de uma coisa que lhe é exterior e por isso ela é também casual, tornada irreal de modo formalista e abafada no mero efeito. É justamente para esta dimensão da estética das mercadorias que Adorno e Horkheimer apontam já em 1944, na fase final da totalização do design publicitário no mundo da vida: “A cultura é uma mercadoria paradoxal. Ela está tão completamente submetida à lei da troca que não é mais trocada. Ela se confunde tão cegamente com o uso que não se pode mais usá-la. É por isso que ela se funde com a publicidade.… A publicidade é seu elixir da vida. (O seu) produto … acaba por coincidir com a publicidade de que precisa por ser intragável”.
De notar aqui, como já se assinalou, a redução notória que ocorre em Adorno e Horkheimer à chamada “troca” que representa uma truncagem na economia, pois no sistema do “trabalho abstracto” reacoplado a si mesmo não pode falar-se de “troca” em sentido próprio. Apenas a uma observação superficial a forma dinheiro corresponde a uma “relação de troca” externa, sendo que essencialmente faz parte do fim em si autonomizado da “riqueza abstracta” como auto-relação interna do capital. Abstraindo disso, é justamente apenas perante este pano de fundo que aquela autonomização secundária da publicidade se torna possível e acaba por se tornar uma necessidade que imprime o seu selo em toda a produção cultural, como se diz no capítulo da Indústria Cultural: “A publicidade converte-se na arte pura e simples com a qual Goebbels a identificou premonitoriamente”. Deste modo “uma olhadela rápida mal consegue distinguir texto e imagem publicitários da parte redaccional”.
A actividade artística é tão pouco livre como na idade média cristã, pois tal como então qualquer representação tinha de repetir sempre a mesma constituição religiosa, também agora ela se transforma sempre na mesma publicidade, justamente na sua aparentemente fortuita “multiplicidade” e contingência, publicidade que a si mesma se recomenda e aprecia na figura de automóveis, bebidas energéticas, telemóveis ou bonés de basebol. Representar o mundo na forma autonomizada da publicidade significa só conseguir percebê-lo na forma da mercadoria autonomizada. Isto afecta também a autopercepção e as relações sociais dos indivíduos. Até na intimidade, que já não existe, nasce uma distância mediatizada que tem como pressuposto uma completa ausência de distância em relação aos imperativos sociais. Já não existe qualquer espaço de tranquilidade social não sobrecarregado com as exigências da dominação. O modelo de identidade posto em movimento tem de se apresentar sempre e em toda a parte à sentença das “tabelas de opinião” no eterno carnaval da subjectividade como uma marca de cerveja ou de perfume. O capital humano ambulante precisa dos produtos da indústria cultural em sentido lato não tanto para uso, mas mais como sujeito para a teimosa “auto-representação” em que os portadores do traje estão secretamente convencidos da sua falta de valor. Os actores para si mesmos nem sequer quando estão sozinhos podem abandonar o seu papel. A máscara de carácter secundária da indústria cultural do autovendedor precário está colada à pele.
Dá a impressão quase maçadoramente que também neste aspecto se pode percorrer a complementaridade polar de pessimismo cultural conservador e optimismo cultural pós-moderno crente no progresso. Mais uma vez os suportes da reflexão da burguesia cultural troçam da publicidade apenas porque gostariam de conseguir uma barreira ideológica contra a infiltração do económico vulgar na esfera elitista da arte. Eles barram o efeito sem conteúdo apenas para conseguir parar a comercialização de pretensos “bens mais sagrados” sem quererem tocar minimamente no capitalismo. Assim, a publicidade vulgar não deve poder ser reconhecida como a face que sorri trocista no espelho à refinada arte burguesa. Nesse aspecto tal como em qualquer outro a forma social da relação fetichista devorou o conteúdo. O que resta também na arte oficial para os círculos superiores, que já só consegue ser elitista no preço em dinheiro, é a comum autovenda pelos artistas de salão que são “vanguardistas” ao máximo quando com vergonham viram os quadros para a parede e escurecem os textos.
E mais uma vez o pós-modernismo apenas vira a crítica aparente do pessimismo cultural e proclama a publicidade como libertação da arte do toque de museu de um classicismo de mestre-escola. O carácter auto-represivo das mónadas da auto-representação alimentadas pelo complexo totalitário da indústria cultural é tão escondido aqui como no caso da contraparte conservadora. A distância hipocritamente assumida da consciência de burguesia cultural em relação à literal comunidade de publicidade universal e autopublicidade vira-se no entanto na divisa pós-modernista “estar presente é tudo”. Não só a proximidade formal, mas também a conexão interna entre propaganda populista e publicidade ou não devem ser mencionadas ou consideram-se mesmo susceptíveis de carga positiva. O pós-modernismo está assim de acordo com Goebbels sem querer saber disso. Cada um apraz-se em efeitos sem conteúdo para assim renovar a própria máscara de carácter e deixar qualquer crítica à partida sem objecto. A consciência do estilo de vida pós-moderno é já apenas uma espécie de boné de basebol colectivo ideal que se promove a si mesmo.
A apologia pós-moderna do predomínio do efeito e do detalhe técnico sobre o conteúdo gosta de afirmar que isso está associado a um conforto cultural que garante o “prazer sem remorsos”. Que mal haverá nisso? Uma vez que se dissolveu qualquer critério de conteúdo e a crítica foi declarada uma impossibilidade, gostaria ainda de se proceder como se a mercadoria da indústria cultural caísse do céu como uma espécie de maná ou voasse para a boca de cada um como os pombos assados do país da cocanha. Inversamente a burguesia cultural conservadora, na medida em que ainda sequer existe e não tem já de se colocar na forma do passado, vê a indústria cultural como pechincha cultural deselegante e considera que o consumo dos seus produtos só se faz sem esforço porque se trata de lixo absolutamente sem pretensões que envenena a mente e a alma. Contra isso são apresentados os “trabalhos de elevada pretensão” produzidos, os únicos que devem ser válidos para os “verdadeiros artistas” bem como para os “verdadeiros apreciadores da arte”, como pequena mas refinada comunidade de um “conhecimento” sem preço.
Também neste aspecto os optimistas pós-modernos da cultura e os pessimistas conservadores da cultura estão bem uns para os outros: ambos afirmam por igual a facilidade e o prazer sem esforço do consumo da indústria cultural, só que este gozo supostamente cómodo é avaliado de maneira oposta. Adorno e Horkheimer abordam o assunto de modo completamente diferente. De acordo com a sua origem, de facto, eles não estão imunes ao auto-incensamento que simplesmente assenta mais na canonização e na restrição no sentido da alta cultura burguesa do que na primazia do conteúdo. Mas, independentemente deste condicionamento socio-histórico, eles não deixam de ver o contexto de mediação interna entre a indústria cultural e a pressão para a eficiência no trabalho capitalista, entre “trabalho abstracto” e “gozo do tempo livre” pretensamente sem remorsos. Não se trata aqui simplesmente da crítica a um simples efeito compensatório, como se uma coisa fosse exterior à outra.
Na realidade, a dialéctica do consumo pop totalmente capitalizado consiste precisamente em que a coerção social e a liberdade de escolha do objecto, o esgotamento perturbado da energia laboral protestante e a autocomplacência na exposição não só correspondem, mas transformam-se uma na outra e uma manifesta-se na outra. O trabalho pesado de miséria não é apenas o pressuposto indispensável, que se gostaria de manter discreto, mas sempre o pressuposto consciente para a capacidade de compra. Adorno e Horkheimer não invocam o perigo de um gozo demasiado fácil para a capacidade de trabalho que no entanto seria preciso exigir, mas mostram que aquele cómodo conforto é em si mesmo ilusório. O que é dado enquanto tal não pode ser separado do seu contrário no processo de ganhar dinheiro, como eles deixam claro: “A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é procurada pelos que querem se subtrair aos processos de trabalho mecanizado, para que estejam de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a mecanização adquiriu tanto poder sobre o homem em seu tempo de lazer e sobre sua felicidade, determinada integralmente pela fabricação dos produtos de divertimento, que ele apenas pode captar as cópias e as reproduções do próprio processo de trabalho”.
Mais uma vez não é a exigência da técnica de reprodução em si que realiza esta inversão fatal, mas sim o totalitarismo fetichista da forma geral da mercadoria que tendencialmente transforma todas as expressões vitais em “trabalho abstracto” ou pelo menos as equipara a ele; mesmo não estando ligadas a qualquer processo de valorização real. Não há qualquer verdadeiro relaxamento na falsa concentração e fixação no trabalho do sujeito. Mesmo o deixa-andar tem de ser instrumentalmente organizado e profissionalizado para que se transforme no seu exacto contrário. É para isso que aponta uma das mais frequentemente citadas passagens do capítulo da Indústria Cultural: “O fun (em inglês no original: gracejo) é um banho medicinal, que a indústria da diversão prescreve incessantemente”.
Não só a coerção para o trabalho e o delírio do esforço se reproduzem no consumo de mercadorias da indústria cultural, mas também a monadologia objectiva da esfera da circulação capitalista, ou, como observam Adorno e Horkheimer, “a dureza da sociedade da concorrência”. O fun também se torna um banho medicinal porque o “gozo” não é inocente nem cómodo, e nem sequer inteligente, mas, apesar de toda a camaradagem das festas, torna-se numa inspecção do design dos corpos, dos trapos e das personalidades, em que cada simulacro de eu só consegue divertir-se contra todos os outros e tem de fazer crer permanentemente a si mesmo que o prazer está nisso. Mesmo a máscara de tempo livre forçadamente alegre, como se diz no resumo do capítulo da Indústria Cultural “atesta a tentativa de fazer de si mesmo um aparelho eficiente…”. Em lado nenhum isto se mostra mais claramente do que nas micro-empresas pós-modernas de high-tech e de publicidade. O “trabalho abstracto” e a concorrência só se tornam um jogo e uma festa porque tanto a festa como o jogo há muito que se transformaram em “trabalho abstracto” e concorrência.
Com isto se revela a indústria cultural também como uma organização com conotação sexual. Mulheres e homens situam-se aí de modo diferente apesar de todas as modificações culturais, exactamente porque se trata de modelos, simulações e formas de reprodução do “trabalho abstracto”. Pois a forma de sujeito assim determinada, incluindo a da concorrência universal, tem conotação estruturalmente masculina, como Roswitha Scholz mostrou na sua teoria da dissociação sexual que pela primeira vez tematizou a relação de género à altura conceptual das categorias capitalistas fundamentais. Mesmo estando as mulheres cada vez mais integradas na esfera do “trabalho abstracto” e na esfera pública capitalista elas continuam a ser aí menos apreciadas porque continua a cair sobre elas a responsabilidade no sentido mais amplo pela oikos dissociada daquela esfera na medida em que não se pode expressar em dinheiro (gestão da casa, cuidar das crianças e dos idosos etc.). Esta relação capitalista entre os sexos profundamente ancorada no inconsciente colectivo atravessa todos os domínios sociais. E assim por maioria de razão se reproduz no “banho medicinal” da tensa empresa do divertimento. As mulheres entretanto concorrem aí com outros corpos diferentes dos corpos sexuais aparentemente autodeterminados que se revelam como “mulheres” em todas as autonomias individualizadas. Também como “capazes de fazer tudo”, que devem ser igualmente responsáveis pela família e pela profissão, elas não perdem a acentuação específica sexual — ainda que de forma modificada — e o “ser mãe” continua a matraquear por trás. Isto repercute-se na sua auto-imagem co-fabricada pela indústria cultural; daí que elas também não sejam realmente tomadas a sério como sujeitas do fun.
Está na altura, como seria de esperar, de enfrentar a Internet como complexo mais avançado da indústria cultural. A “Net” constitui sem dúvida a tecnologia pós-moderna perfeita que não por acaso é comparada com a descoberta da imprensa no início da modernidade considerando-se que terá efeitos igualmente revolucionários. Mas, tal como a impressão de livros e as suas consequências sociais não se podem entender a partir de si mesmas mas apenas no contexto do processo de constituição histórica proto-capitalista, também a Internet não pode ser declarada um estabelecimento tecnológico autónomo com potencialidade de mudança social, mas apenas como momento socio-tecnológico nos limites históricos do capitalismo.
A oposição complementar até aqui esboçada entre o pessimismo cultural da burguesia cultural e o optimismo cultural pós-moderno fica quase sem razão de ser neste complexo ultramediático; e de facto sobretudo porque a alta cultura conservadora e de filologia antiga da burguesia clássica está pronta a capitular incondicionalmente. A correspondente burguesia cultural no contexto específico alemão foi por um lado desde sempre uma burguesia de fantasia, um grupo social difuso e multifacetado, cujos membros pretendiam considerar-se “algo melhores” justamente no aspecto cultural. Esta demarcação referia-se não apenas às qualificações (académicas) superiores, mas a um cânone cultural tendo por cerne as línguas antigas, a filosofia clássica e a poesia do idealismo alemão. A pretensão a isto associada de “cultura superior” ia muito para lá dos poucos especialistas no assunto; abrangia todo o espaço académico e também certamente o pessoal docente e até os que concluíam o secundário. Por isso a demarcação não era apenas face às “massas incultas”, mas também contra as elites dos outros países capitalistas. Uma burguesia de fantasia era-o certamente também no que diz respeito à competência quanto ao conteúdo daquele cânone cultural que para a maioria desta classe não passava de superficial e ia perfeitamente de braço dado com os ritos de vapores de cerveja e a brutalidade nas relações sociais.
Esta velha “barbárie culta” da burguesia académica alemã extinguiu-se na época das guerras mundiais e não há que chorar por ela. Na democracia de mercado mundial após 1945 desapareceu ainda mais o cânone cultural clássico dando cada vez mais lugar a uma mera consciência de elite funcional. O que restou foi um fraco reflexo da pretensão de resto nunca realmente cumprida e um resíduo apenas fantasmagórico da falsa consciência de ser “algo melhor”. Na actual ideologia de classe média este impulso reduz-se cada vez mais à tentativa de compartimentar a qualificação a nível do secundário da própria prole contra as novas classes inferiores e os migrantes, ou seja, de sabotar qualquer ultrapassagem do há muito anacrónico sistema escolar em três graus da RFA.
Quanto aos conteúdos, o império fantasmático da burguesia cultural desapareceu definitivamente com a terceira revolução industrial. A presunção elitista há muito que já não se refere à capacidade de conseguir recitar Homero no texto original, mas sim a uma mistura de economia política e “competência multimédia” que dá o perfil ideal para o indivíduo pós-moderno de via estreita enquanto “aparelho de sucesso”; mesmo que seja apenas na nova fantasia do respectivo milieu. A consciência de elite sem fundamento trocou com muito sofrimento a máscara colada à cara; ela tornou-se tão vulgarmente da economia capitalista e tão ordinariamente tecnológica como toda a organização democrática. Mesmo os professores de latim, cientistas literários e catedráticos de filosofia vão como aprendizes para junto de jovens e dinâmicos empresários aldrabões e desfazem-se em admiração perante maluquinhos de treze anos que gostam de se considerar virtuosos no clique de rato. A nova elite é notoriamente sem pretensões espirituais e aparelhada para o curso de mercado de modo tão reducionista que as universidades “de excelência” poderão ser consideradas quando muito como ironia objectiva. A apoteose do complexo da indústria cultural consiste em que a elite de todos os sectores está transformada em meras figuras de banda desenhada que se deleitam extraordinariamente no seu estado porque já não têm qualquer critério de comparação.
Adorno e Horkheimer em 1945 ainda não podiam saber da revolução tecnológica digital nem da sua aplicação ao desenvolvimento capitalista. Mas estiveram perfeitamente em posição de prognosticar a tendência geral para a integração mediática no que respeita à indústria cultural, tal como Marx o tinha feito para a cientificização da indústria capitalista. “A televisão”, escrevem eles, “tende a uma síntese do rádio e do cinema” e isso irá dar na “realização irónica do sonho wagneriano da obra de arte total". Pois a “harmonização entre palavra, imagem e música”, uma vez que já não segue qualquer lei cultural própria, é apenas “o triunfo do capital investido”.
É fácil de perceber que a Internet se prepara para consumar a síntese da indústria cultural numa escala ainda maior. As diferentes tecnologias de impressão, telefone, telefonia, rádio, cinema e televisão são fundidas num único complexo global. No entanto daí não emerge novamente uma revolução tecnológica enquanto tal, mas é a lógica (que penetra geneticamente todo o sistema) do “trabalho abstracto”, da forma autonomizada do valor e do controle social por estas regido que constitui a matriz e simultaneamente o movens desta integração mediática. A força sintética não resulta de qualquer reflexão consciente e já nem sequer das actividades autónomas dos indivíduos, mas emana pelo contrário da determinação heterónoma da forma social. Por isso se condensam e agravam na Internet como novo meio central todas as contradições e deficits que Adorno e Horkheimer detectaram precocemente na indústria cultural. De facto trata-se apenas da pressentida “realização irónica do sonho wagneriano da obra de arte total" num sentido abrangente. O que se pode assinalar em alguns aspectos essenciais.
Desde o início que é inerente à indústria cultural a tendência para inverter a relação entre objecto e representação, entre signo e significado, ou apagar a diferença entre eles. Aqui apenas surge o “mundo invertido” geral da relação de capital numa dimensão específica da indústria cultural. Horkheimer e Adorno vêem esta tendência de inversão já no então recente meio do cinema a cores: “O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objectos empíricos, mais fácil se torna hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme”.
Não se trata de um propósito consciente, por exemplo no sentido de uma “manipulação” deliberada da consciência (como também em Adorno e Horkheimer parece ser sugerido ocasionalmente mais tarde), pelo contrário, o momento manipulativo reside na lógica objectiva das relações e na própria expressão delas na indústria cultural: “A vida não deve mais, tendencialmente, poder se distinguir do filme sonoro”. Esta formulação no capítulo da Indústria Cultural aponta para um “dever” no sentido do “sujeito automático” (Marx) da valorização do capital. Os indivíduos manipulam-se em certa medida a si mesmos justamente porque são “sujeitos” do imperativo capitalista. Tal como se consuma uma inversão porque a produção concreta já só é socialmente “válida” como forma de manifestação do “trabalho abstracto”, tal como a forma das mercadorias se duplica na forma do dinheiro e tal como a “riqueza concreta” só pode ser forma de representação e de manifestação da “riqueza abstracta”: também se inverte e duplica a percepção e a representação cultural-simbólica do mundo e da própria existência. A autonomização já esboçada do efeito técnico sem conteúdo vai ainda mais longe e agrega-se num pseudo-mundo, uma vez que os objectos concretos tal como os indivíduos com eles relacionados se tornam meras formas de manifestação do seu próprio modo de representação e este último desenvolve uma espécie de vida aparente.
Ao que Marx designou por “formas de existência objectivas”, ou seja, à verdadeira vida no capitalismo marcada pelos imperativos da valorização e da autovalorização é sobreposta uma segunda realidade virtual: uma encenação e auto-encenação mediática. Este conceito tornou-se inflacionário como semi-crítico ou directamente afirmativo. Não por acaso se expandem designações do mundo do teatro como metáforas em todos os domínios da vida. Os indivíduos consideram-se cada vez mais como os seus próprios actores no seu próprio teatro. Esta pseudo-vida virtual não só tem função compensatória para a miséria das relações sociais reais, mas também é imaginativa e ideologicamente elevada a “verdadeira” realidade, perante a qual a existência material e social real surge como mero apêndice e já quase como irreal.
As palavras de Adorno e Horkheimer sobre a indistinguibilidade e mesmo inversão mediáticas entre o ser social e o parecer produzido pela indústria cultural são proféticas porque já fazem ver no cinema uma tendência que vai muito para além dele. Para a maioria dos consumidores da indústria cultural de então o cinema a cores ainda era reconhecível como produto das fábricas de sonhos e a sala de cinema identificada como um lugar onde uma pessoa não se instala a sério, mas entra ocasionalmente saindo do mundo do dia-a-dia. A Internet, pelo contrário, não em geral mas para um número elevado e crescente de pessoas em diferentes graus, tornou-se uma espécie de residência espiritual e cultural que inversamente se abandona apenas ocasionalmente para uma visita à realidade social e material. Esta inversão entre aparência mediática e realidade atingiu, com a ajuda do desenvolvimento tecnológico e a síntese dos aparelhos electrónicos, pelo menos uma nova dimensão.
Certamente que não devemos cair no erro de levar o cliché demasiado a sério. Abstraindo do facto de que a maior parte da humanidade não tem acesso ou tem um acesso muito limitado à Internet e que com a expansão se vão revelando limites de saturação por falta de poder de compra e/ou de infraestruturas, também para muitos utilizadores habituais a diferença entre o mundo real e o virtual de modo nenhum desapareceu. O que aliás nem sequer é possível, tal como o valor abstracto de modo nenhum consegue fazer desaparecer a necessidade de bens de uso materiais na sua maneira de representação na forma do dinheiro. Se o dinheiro não se pode comer, muito menos downloads.
A hipóstase da virtualidade também não constitui um simples problema geracional como muitas vezes se quer fazer crer. A pretensa “geração Net” de “nativos do digital” é mais uma lenda de fazedores de opinião interessados. Na realidade não existe grupo etário uniformizado numa socialização digital específica. Não se deve confundir o consumo talvez mais frequente de meios de comunicação electrónicos nem com uma maior competência no assunto nem com um movimento da percepção sem dificuldades. Também entre os teenagers se encontram não poucos indivíduos com dificuldade em lidar com um ambiente digitalizado; não é apenas entre adultos mais velhos. E o consumo superficial de brinquedos das tecnologias da informação da indústria cultural não põe em acção qualquer “soberania”, muito menos se isso assumiu um carácter de vício. Em todas as gerações há poucos possuidores de uma efectiva competência digital abrangente; e não é certo o sentido em que a aplicam.
A adaptação pretensamente mais fácil de teens e twens à virtualização tecnológica do mundo da vida é em parte mera ilusão de especialistas profissionais em juventude, mas em parte também auto-ilusão da geração com esses interesses, na sua própria falsa consciência. Ou também uma auto-ilusão dos seus pais e avós com uma socialização de burguesia cultural residual que gostariam de atribuir à própria prole especiais oportunidades de futuro, como capital humano capaz de clicar no rato. O “darwinismo dos média” frequentemente invocado poderá facilmente ficar para trás. As jovens competências mediáticas de via reduzida de hoje, que já nem livros lêem, são os perdedores de amanhã, mesmo do ponto de vista da imanência capitalista.
Os propagandistas da tendência para a virtualização, em todo o caso real, nem coincidem com o ensino das competências tecnológicas, nem reflectem sobre as contradições insolúveis surgidas nesta tendência ou sobre o ilusionismo a elas associado. Pelo contrário, estamos perante uma certa parte da produção de opinião académica e mediática que conseguiu um estatuto hegemónico porque este confere uma expressão ideológica afirmativa ao desenvolvimento capitalista no princípio do século XXI. A pressão para a virtualização, na medida em que se generaliza de acordo com a tendência em todo ocaso paralisante, corresponde antes a uma zelosa adaptação à ideologia hegemónica e assim a um estado em que as necessidades próprias já não se conseguem distinguir de um conformismo sem cerimónias. Em todo o caso a fuga para um além simulado digital aponta para a miséria da realidade capitalista.
O desacoplamento da consciência pós-moderna do velho cânone cultural burguês de modo nenhum produz qualquer novo conteúdo, mas transforma em conteúdo a própria “forma vazia”, assim consumando a ilusão objectiva do capital que gostaria de emancipar a “riqueza abstracta” da matéria e da natureza. Pertence à essência da ideologia pós-moderna anti-essencialista que a relação referencial entre representação e objecto, modus e conteúdo ou signo e significado tenha de ser apagada. Se o culturalismo propaga a autonomização dos sistemas de signos e dos modi, ele sucumbe à abstracção funcional do comprar e vender na esfera de mercado burguesa que já não quer saber da sua substância fetichista. A síntese de meios da indústria cultural através da Internet parece fornecer uma base tecnológica para a emancipação ilusória dos signos. O gradual desaparecimento do mundo em correntes de dados amarra a aparência real fetichista da mercadoria num plano diferente, como campo de jogos universal mecanicamente produzido, sobre o qual não só os objectos mas também as pessoas se duplicam e na sua virtualização proporcionam a si mesmas uma vida aparente que corresponde à sua real nulidade e indignidade. O espaço virtual é assombrado pelos avatares enquanto espíritos dos mortos vivos que realmente vegetam nos campos de concentração da valorização do capital e da administração do trabalho.
O virtualismo integrado da indústria cultural penetrou a respectiva tecnologia; mas mais uma vez a razão não é a tecnologia como tal, pelo contrário, esta assume o seu carácter através do carácter da forma de sujeito capitalista, que vai bisbilhotando numa dinâmica cega. Por isso também não é por acaso que a maioria das presenças no campo de jogos virtual são masculinas. Na realidade os homens e as mulheres individualmente não se encaixam nas suas atribuições socio-históricas, como foi demonstrado na teoria da dissociação sexual, mas em média também não podem livrar-se delas enquanto a relação social subjacente não for abolida. A atenção conotada como feminina para com crianças, idosos e doentes dela necessitados até já nas novelas surge na melhor das hipóteses de forma idealizada; é de todo impossível encená-la como “realidade virtual” porque nesta área não é possível qualquer simulação técnica sob pena de se revelar imediatamente o carácter absurdo desta. O espaço virtual constitui o império espiritual secundário, duplicado do “trabalho abstracto” também no sentido do seu devir historicamente irreal; e os avatares que o assombram são sobretudo fantasmas da masculinidade patriarcal moderna.
À medida que os massmedia electrónicos modernos e a produção da indústria cultural a eles associada entravam na vida eles eram também calibrados formal e tecnologicamente para a passividade do seu público. Adorno e Horkheimer vêm aí decididamente uma marca estrutural essencial da indústria cultural: “A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu nenhum dispositivo de réplica e as emissões privadas são mantidas na servidão”.
A apologia pós-moderna do “espectáculo” (Debord) da indústria cultural julga poder intervir triunfantemente neste lugar para provar o carácter antiquado do pessimismo cultural da teoria crítica. Pois se a falta de um “dispositivo de réplica” era notória para os média pré-digitais e mesmo para o estádio inicial da Internet, entretanto — apressa-se a concluir o arrasoado pop pós-moderno — a velha estrutura autoritária de “emissor e receptor” estaria de facto superada. A palavra-chave é “interactividade”. A mutação sem fim da Internet teria conduzido à nova qualidade da Web 2.0 interactiva, é o que não cessa de ser dito tanto nos suplementos culturais como no mundo académico. Neste nível qualquer “utilizador” pode sempre e em toda a parte ligar-se e do modo mais personalizado possível intervir pela palavra (ou pela imagem).
Os passos desta mutação são elucidativos. Vão desde a pseudo-participação em programas de rádio com participação telefónica dos ouvintes, jogos de marcar presença com cumprimentos tolos “a todos os que me conhecem” etc., passando pelo inflacionamento de websites privados, até aos Blogs, às formas directamente interactivas da “função comentário” nas mailing lists ou nas edições electrónicas dos média impressos, às redes “de amizade” da Web 2.0 e aos serviços informativos como o “Twitter”. Mas todas estas formas de interacção digital conduziram tão pouco a uma emancipação mediada de modo puramente tecnológico como todas as formas anteriores da indústria cultural.
O conceito de um mero “dispositivo de réplica” foi talvez escolhido com infelicidade por Adorno e Horkheimer, porque eles também não podiam entender esta função de modo reduzido à técnica. Mas trata-se de algo diferente. A capacidade de réplica é organizada apenas no nível do objecto e do equipamento e não ao nível social. A expressão “redes sociais” digitais que aparentemente contradiz esta avalização não passa de um eufemismo. O social refere-se aqui a um contexto quase exclusivamente virtual, meramente simulado; trata-se na maior parte das vezes de amizades irreais entre avatares. Os verdadeiros indivíduos ficam muitas vezes anónimos, ou tiram a máscara apenas de modo exibicionista na distância mediaticamente mediada que aparentemente permite uma proximidade primitiva secundária. À irrealidade corresponde o não compromisso; de resto algo de essencial da disposição íntima pós-moderna que foge de qualquer compromisso como o diabo da cruz. Esta óbvia fenomenologia da Web 2.0 é geralmente conhecida e frequentemente tematizada; não em último lugar nos mesmos suplementos culturais que gostam de delirar sobre a interactividade digital. Mas gostam pouco de reflectir sobre os seus pressupostos ou consequências.
O pano de fundo é constituído desde logo não pela pura tecnologia mas sim, como não podia deixar de ser, pelo desenvolvimento social logicamente corrente e associado à “interpretação” tecnológica. O dispositivo como tal fornece apenas o termo aliás traiçoeiro da “interactividade” ou “interacção”, como se se tratasse de uma relação recíproca entre planetas, moléculas, insectos ou componentes mecânicos. Esta desumanização, já insinuada no termo quase igualmente neutro de “comunicação”, corresponde ao estatuto desrealizado das pessoas participantes, que se transformaram literalmente em simples máscaras. Poder-se-ia designar como astúcia negativa da razão capitalista o facto de o “dispositivo de réplica” técnico surgir precisamente no momento em que os sujeitos socialmente reduzidos ao mínimo e virtualmente desumanizados e tornados reconhecíveis como meros actores já não têm nada para dizer uns aos outros, pelo contrário, já só conseguem apresentar uns aos outros as suas máscaras. Portanto não se fala de “diálogo”, de “discussão” nem muito menos de “polémica”, não por acaso proibida, mas sim de uma “interactividade” vazia e mecânica a que os indivíduos burgueses se reduziram a si mesmos.
Adorno e Horkheimer pressentiam já em 1944 o estado de decadência da subjectividade capitalista que Ulrich Beck caracterizou quarenta anos mais tarde como “individualização”. Ao contrário das hipóteses optimistas de Beck, eles já sabiam antecipadamente que o processo não tinha nada a ver com a libertação dos indivíduos da coerção social objectivada, mas sim com um novo patamar da sua interiorização, que se exprime também exteriormente como nova qualidade da mera “libertação” no sentido de uma universal situação de fora de lei [Vogelfreiheit]. O indivíduo abstracto, desde início o tipo lógico ideal de sujeito funcional capitalista, ou seja, o contrário de um indivíduo concreto vivendo conscientemente a sua própria socialidade, após um longo e doloroso processo de desenvolvimento refinou-se até à pura forma pós-moderna, em que surge já apenas como um ponto ou como uma “unidade”. O capital, o “sujeito automático” da valorização, é agora a auto-referência imediata, não filtrada, louca e demoníaca do sujeito: cada um é o seu próprio capitalista, cada um é o seu próprio trabalhador. O homem isolado já não tem qualquer história, mas, como unidade abstracta, já é apenas um ponto médio das tendências de mercado, uma máquina de autovalorização, ou, como se diz premonitoriamente no capítulo da Indústria Cultural: “Cada um é tão-somente aquilo mediante o que pode substituir qualquer outro: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo, é o absolutamente substituível, o puro nada”.
Mas já não há aqui qualquer Dialética do Esclarecimento, como Adorno e Horkheimer ainda pretendiam constatar, se bem que com dúvidas, mas sim o cumprimento da sua promessa. O esclarecimento nunca tinha prometido outra coisa senão a “felicidade” de cada um poder transformar-se a si mesmo num “puro nada”. Este contexto é perfeitamente claro e criticável. Mas o pós-modernismo em todas as suas variações não quer esta crítica; os respectivos exemplares deleitam-se na sua pura nulidade que eles imaginam como libertação da materialidade e de todas as relações em geral. Os indivíduos abstractificados até mais não poder ser já não conseguem envolver-se com coisa nenhuma, com conteúdo nenhum, porque eles próprios se tornaram um objecto meramente exterior e coisificado.
Isto já se aplicava de certa maneira à individualidade abstracta ainda não amadurecida que se exercitava nos primeiros dispositivos da tecnologia de “comunicação” no século XIX; por exemplo e em primeiro lugar no telefone, então ainda limitado às classes superiores com capacidade de pagamento. Quando a Adorno e Horkheimer ironizam que os velho “dispositivo de réplica” telefónico ainda tinha deixado “liberalmente” os participantes “desempenhar” o papel de sujeitos e que o dispositivo de controle democrático da indústria cultural pelo contrário já nem isso permite, tal ponto de vista de modo nenhum é desmentido pela “Web 2.0” interactiva. Mesmo que ambos os autores se tenham expressado talvez ainda no sentido de uma dialéctica positiva, possível mas não desenvolvida, mesmo assim a sua formulação irónica deixa pressentir que o carácter “liberal” e simultaneamente de mero dispositivo do telefone reduz a subjectividade a “desempenhar um papel”, porque por trás está o poder apriorístico do “sujeito automático” que rebaixou o moderno conceito de “subjectividade” ao conceito de uma simples função. A essência desta subjectividade “interactiva” precoce exprime-se da melhor maneira naquelas cenas do cinema em que o participante visível afasta de si o auscultador para não ter de ouvir o palavreado insuportável do parceiro de “interacção” e depois parla por sua vez para o bocal sem que a interrupção tenha sido notada no outro lado.
Com isto já terá sido dito provavelmente tudo sobre a “interactividade” na pantomina do cinema mudo. A mania do telemóvel que grassa há mais de uma década trouxe esta situação à sua última reconhecibilidade, na medida em que lhe confere agora uma mobilidade tecnológica e simultaneamente um espaço público do exibicionismo “comunicativo”. O que antes era piedosamente abrigado pela cabine telefónica irrompe agora como verborreia nas ruas, nos cafés e nos meios de transporte. Poderia ser preferível que os participantes desnudassem de facto simplesmente as partes sexuais, pois pelo menos os circunstantes seriam poupados à obscenidade muito pior da sua activa ferramenta bucal. Pois o que é a gabardine aberta do tradicional exibidor do membro sexual perante e boca aberta de um pseudo-sujeito pós-moderno? Nas “comunicações” compulsivamente ouvidas já não é possível reconhecer qualquer contexto humano; e mesmo as comunicações profissionais ou comerciais mostram apenas porque é que a economia empresarial tem de conduzir à catástrofe pessoal e social. O dispositivo telefónico móvel entretanto cruzado com a Internet faz aparecer o correspondente sistema de “réplica” que vai muito para lá da publicidade compulsiva acusticamente limitada das presunçosas comunicações quotidianas.
A Web 2.0 oferece a qualquer discutidor de café e a qualquer arruaceiro pubertário pelo menos formalmente a plataforma para uma publicidade mundial imediata. Mas a possibilidade tecnológica coincide com a sua irrealidade social. Os indivíduos tornam-se mediaticamente activos em expressões para a generalidade social precisamente na forma irreflectida e acriticamente aceite em que foram comprimidos pelo capitalismo: como pseudo-individualidades atomizadas, como meros exemplares do mesmo princípio transcendental. Quando um puro nada interage com outro, trata-se apenas da velha conhecida “figura de interacção” por outros meios, a saber, que um possuidor de mercadorias encontra outro. Só na aparência se trata da “discussão” de conteúdos e problemas reais, mas de facto trata-se em primeira linha da auto-encenação narcisista, que nos meios mais antigos da indústria cultural pelo menos ainda não estava “interactivamente” ligada, mas permanecia atributivamente na situação de amigavelmente “muda”, como um equipamento apenas habitualmente activo ou como uma irradiação acústica unilateral. Continua a ser um segredo dos apologistas saber porque há-se ser melhor uma irradiação acústica nos dois sentidos. Adorno e Horlheimer já tinham reconhecido que a “extravagância bem organizada” constitui o verdadeiro fim do exercício mediático, e no caso é igual, seja a cena agora ligada “interactivamente” ou não. Na medida em que os participantes se limitam a apresentar-se ou ligar-se reciprocamente, é justamente através do “dispositivo de réplica” que eles continuam desligados: “Este número não está atribuído”.
A “interacção” limitada à forma e reduzida à técnica é ainda mais difícil que a do processo de canal unilateral porque sugere uma estrutura dialógica tornada antecipadamente impossível pelo equipamento do sujeito pós-moderno, na medida em que este continua a ser afirmado acriticamente. Isto também se aplica à auto-satisfação pseudo-anti-autoritária dos pequenos bloggers que se submetem aos imperativos socio-económicos do “sujeito automático” justamente porque se transformam a si próprios em marcas de empresa. A relação autoritária não é ultrapassada por deixar de ser uma relação exterior, mas deslocada para o interior dos indivíduos como auto-relação autoritária. Tal como cada um é o seu próprio capitalista e o seu próprio trabalhador, também cada um é a sua própria estrela, o seu próprio herói e o seu próprio e único fã; e mesmo o seu próprio clube de fãs, enquanto personalidade múltipla por via da multiplicação virtual. Também se poderia dizer: cada um é a sua própria indústria cultural caseira e também a maioria das criações se torna correspondentemente penosa. Mas não faz mal porque na comunidade de tagarelas também já ninguém nota.
Tal como a virtualização do mundo da vida se apresenta de modo diferente para homens e mulheres, o mesmo acontece também com a virtualização e com o meio “interactivo”. Mais precisamente: o patriarcado coisificado, a dissociação sexual, reproduz-se de maneira diferente na “interacção” mediática individualizada, à semelhança da indústria cultural em geral e desde o início. E tal como o “trabalho abstracto” é estruturalmente conotado como masculino, mesmo estando as mulheres há muito tempo também “empregadas” nessa esfera funcional, o mesmo se aplica também ao espaço virtual das auto-encenações. Aqui também o sexo pode ser mudado com um clique de rato, sendo que mais uma vez são sobretudo os homens que também querem ainda deitar a unha a uma feminilidade virtual para ser realmente “tudo” na sua imaginação. A parte efectiva de mulheres entre os encenadores da Net será por isso presumivelmente ainda menor do que já parece.
O “puro nada” assinalado por Adorno e Horkheimer é, como reflexo do “trabalho abstracto”, igualmente estruturado como masculino e, justamente na sua nulidade, disponível para a violência latente. Pois o puro nada da subjectividade desmiolada e virtualizada só consegue transcender o seu estado de mónada na configuração de batidas e caças às bruxas. Naturalmente que também raparigas participam no muito deplorado mobbing digital; mas por regra ele tornou-se sobretudo um desporto de jovens masculinos. Isso torna-se ainda mais claro nos ajuntamentos virtuais de comentários sujos para adultos. Para o mob digital que periodicamente de forma como “interactividade” masculina, de resto, as mulheres desagradáveis constituem o objecto favorito. Este carácter fascista latente de tropa de assalto no espaço virtual pode perfeitamente irromper na realidade social e tornar-se violência material imediata. Nisso consiste talvez sobretudo o jeito para o consenso e a “capacidade de realidade” tecnologicamente “interactivos” dos autofigurantes digitais.
A indústria cultural como campo de valorização do capital pressupõe naturalmente o carácter de mercadoria dos seus produtos, cuja expressão reificada das relações humanas, como é sabido, foi por Marx animada no seu conceito de fetiche. A objectividade de valor das mercadorias culturais no espaço de uma produção para o puro lucro exige agora verdadeiramente a retransformação “realizadora” e a expressão destas mercadorias na forma da “riqueza abstracta”, ou seja, no dinheiro, através do acto de venda. Aqui entra novamente a apologia pós-moderna do complexo da indústria cultural, pelo menos no que respeita à Internet. Os conteúdos de todo o tipo aí oferecidos não custam nada ou custam muito pouco, ainda que se tente permanentemente introduzir ou estabilizar limitações de acesso e modos de pagamento digitais. Não significará isto que, pelo menos a indústria cultural digital, sem querer já está em parte para lá da forma do dinheiro e da mercadoria? Não se deverá considerar isto como grande potencialidade emancipatória, francamente como o surgimento de um comunismo do grátis para lá dos “bens pagos”?
O que se passa não é que o capítulo da Indústria Cultural não tenha previsto nada disto apenas porque ainda não havia Internet em 1944. De facto muitas mercadorias da indústria cultural, por exemplo, revistas, discos ou CDs, tinham então como têm hoje de ser comprados à boa maneira tradicional; e também o cinema é um serviço cultural oferecido para ser comprado, tal como um bilhete para a montanha russa ou uma entrada num cabaret. Mas a rádio e a televisão já não podem entrar como mercadorias isoladas na valorização e no campo de realização do mercado. Se para o efeito até agora são cobrados impostos pelo Estado já não se trata aqui de uma metamorfose regular na produção capitalista de mercadorias, mas em todo o caso de uma determinação da forma daí derivada. O Estado subvenciona estes sectores socializados da Indústria Cultural como “de direito público” tal como outras infraestruturas e recupera uma parte destes custos na forma de impostos. O carácter de mercadoria de toda a organização não é assim minimamente desmentido, mesmo se os programas devem ser obtidos baratos ou quase grátis. Por maioria de razão isto se aplica às emissoras privadas surgidas na senda da era neoliberal, financiadas exclusivamente pela publicidade.
Adorno e Horkheimer não se metem muito numa análise politico-económica do contexto formal da indústria cultural com as metamorfoses do processo social de valorização, mas reflectem sobre o carácter quase grátis da rádio e da televisão mais no plano dos símbolos culturais e psicossocial: “Actualmente, as obras de arte são apresentadas pela indústria cultural como os slogans políticos e, como eles, inculcadas a um público relutante a preços reduzidos. Elas tornaram-se tão acessíveis quanto os parques públicos. Mas isso não significa que, ao perderem o carácter de uma autêntica mercadoria, estariam preservadas na vida de uma sociedade livre”.
Assim se dá a entender que o consumo tornado mais ou menos grátis de uma parte crescente da produção da indústria cultural de modo nenhum está “superado” numa ultrapassagem por toda a sociedade do sistema produtor de mercadorias, mas continua a ser parte integrante deste. Tal como os meios de propaganda política são inerentes à forma de mercadoria, mesmo se são difundidos gratuitamente entre o povo, o mesmo se aplica ao consumo mediático dos produtos culturais. Eles não fogem à forma do dinheiro como “bens pagos”, apenas a mediação com o conjunto do sistema é outra; seja o financiamento baseado numa cobrança estatal de rendimentos capitalistas, no sistema de crédito ou numa ligação com a publicidade, como cujo suporte privilegiado a indústria cultural aliás se apresenta. Na medida em que as preferências testadas dos compradores (por exemplo no Facebook) mais uma vez dão ocasião a novos anúncios publicitários, os utilizadores supostamente grátis colaboram involuntariamente no financiamento. Nessa medida apenas no plano da aparência imediata ou da particularidade para os consumidores se pode falar de “dissolução do genuíno carácter de mercadoria” destes produtos, porquanto eles permanecem mercadorias de acordo com o seu caracter social, mercadorias cujo contexto formal apenas nas instâncias de mediação se desmonta.
Este carácter repercute-se, não só no conteúdo mas também no aspecto social e psicológico, tanto mais fortemente junto dos indivíduos consumidores quanto mais ele já não é imediatamente económico para eles como acto de compra, como Adorno e Horkheimer fazem notar criticamente contra a pseudo-emancipação da massificação do barato ou mesmo do grátis: “A eliminação do privilégio da cultura pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de que eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais existentes, justamente para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara”. Assim dizem Adorno e Horkheimer involuntariamente que o “privilégio da cultura” burguês era apenas uma ilusão na qual já residia como verdadeiro movens a tendência para a “venda em liquidação”, para a “decadência” e para a “incoerência bárbara” que na indústria cultural apenas se torna manifesta. Aquela cultura burguesa que ainda tinha de custar alguma coisa não era senão o luxo de uma auto-reflexão afirmativa firme que nem uma rocha, de que ainda se precisava nos tempos da constituição capitalista, mas que perdeu os seus momentos excedentários na mesma medida em que mergulhou no quotidiano das massas como deformação da indústria cultural.
Também aqui mais uma vez é preciso ter em atenção a lógica económica funcional que em Adorno e Horkheimer permanece mais como pano de fundo sem ser explicitamente nomeada. A industrialização da educação e da cultura está submetida à mesma lei da concorrência que os outros sectores do capital. Neste aspecto, no entanto, o determinante é o imperativo económico e não o tecnológico. A luta pela quota de mercado (mesmo numa área secundária, como a publicidade enquanto sector económico próprio, para o qual o produto da indústria cultural constitui o plano de sustentação) exige um embaratecimento que só pode basear-se na redução dos custos de produção. Mas se os custos das produções culturais são baixados à bruta a qualidade sofre ainda mais que no caso das indústrias de produção material. O produto é então sempre “uma carripana” e ainda muito pior. Pois só é possível “racionalizar” a produção intelectual ou artística como quem racionaliza a produção de guarda-lamas ou de cambotas à custa do completo esvaziamento do seu conteúdo. Ela perde o seu próprio valor de uso com a incorporação directa no sistema do “trabalho abstracto”, como já Adorno e Horkheimer deixaram claro no caso da reversão ou mesmo indistinguibilidade entre conteúdo redaccional e publicidade. É o que se vê por exemplo nos jornais publicitários grátis cujos conteúdos redaccionais, na medida em que estão estreitamente cruzados e mesmo francamente misturados com a publicidade, mostram de modo particularmente crasso a “decadência” da reflexão como expressão cultural e a “incoerência bárbara” da cultura capitalista transmitida gratuitamente.
A Internet tem esta natureza de uma produção capitalista de conteúdo e de cultura que já apenas é paga monetariamente de modo indirecto e justamente por isso perde o seu “valor de uso”, transformada numa organização de massas individualizada. Não se trata aqui de modo nenhum de uma libertação emancipatória da “criatividade”, mas sim de uma espécie de “privatização” neoliberal da produção em massa normalizada da indústria cultural numa escala nunca vista. Cada um ser a sua própria indústria cultural já não deve ser entendido apenas como metáfora irónica ou como definição cultural-simbólica, mas é para ser tomado à letra com todas as suas implicações. A forma tecnológica que corresponde ao equipamento do sujeito pós-moderno provoca uma enchente de apresentações completamente desqualificadas que já não podem ser avaliadas nem recusadas por qualquer instância redaccional.
Portanto cada um é o seu próprio meio, a sua própria revista, o seu próprio cinema e programa de televisão. Ao contrário da produção profissional, aqui de facto já não é necessária qualquer “racionalização” para rebaixar o objecto com a pré-formação capitalista até à aptidão para o gratuito. As descuidadas criações de todo o tipo estão em todo o caso determinadas pela situação dos seus actores, que não se conseguem envolver com nada e são movidos pela pressão da concorrência, pela pressa do serviço em abstraccto e por um controle do fundo de tempo, situação que exclui qualquer concentração nos conteúdos. Quem perante este pano de fundo se “liga” “interactivamente” com externalizações com as quais à partida não tem quaisquer custos nem pode nem quer ter, nem custos materiais nem de esforço intelectual, esse também já não precisa de baixar custos. O que foi o resultado na linha de montagem económica da verdadeira indústria cultural é no caso das auto-apresentações individuais já um pressuposto, nomeadamente a indiferença, a fugacidade e a inutilidade do objecto. Cada um é o seu próprio jornal publicitário gratuito.
O desprezo por todos os critérios e o desdém por todos os conteúdos levam a cultura burguesa à sua plena reconhecibilidade justamente onde ela se torna aparentemente “grátis”. Já na antecâmara desta situação Adorno e Horkheimer formularam este “progresso” como descida do valor em dinheiro para uma desvalorização cínica de todos os conteúdos e não como emancipação da forma da mercadoria: “Quem, no século dezanove ou no início do século vinte, desembolsava uma certa quantia para ver uma peça teatral ou para assistir a um concerto dispensava ao espectáculo pelo menos tanto respeito quanto ao dinheiro gasto”. Na cultura do grátis da Internet já nada nem ninguém é respeitado. Também já nem se pode falar de respeito próprio. Quem no meio do capitalismo enaltece o total desvalor das suas produções intelectuais e artísticas com isso admite também a nulidade do seu conteúdo. Pois um puro nada também só pode produzir um puro nada.
Quando no caso não apenas se é suporte de publicidade mas se é também a própria coisa a publicitar naturalmente que o financiamento secundário se mantém em limites bastante estreitos. Como seu próprio jornal publicitário gratuito não se ganha um cêntimo através de terceiros, pois não se tem senão o conteúdo, que já não é nenhum e do qual também não vem nada. Assim os sujeitos do gratuito na Internet fiscalizam reciprocamente o respectivo desvalor. Subjectividade desvalorizada mas não ultrapassada — também este estado de um culturalismo desculturalizado Adorno e Horkheimer de certa maneira previram: “A arte manteve o burguês dentro de certos limites enquanto foi cara. Mas isso acabou. Sua proximidade ilimitada, não mais mediatizada pelo dinheiro, às pessoas expostas a ela consuma a alienação e assimila um ao outro sob o signo de uma triunfal reificação. Na indústria cultural, desaparecem tanto a crítica quanto o respeito… Para os consumidores nada mais é caro. Ao mesmo tempo, porém, eles desconfiam que, quanto menos custa uma coisa, menos ela lhes é dada de presente”.
Um verdadeiro presente teria custado despesas e por isso seria algo em si. Libertar o gasto dos recursos não apenas para o caso pessoal particular, mas fundamentalmente libertá-lo da sua forma fetichista do valor só funcionaria no entanto para o conjunto da sociedade e para todos os bens e não teria nada a ver com o carácter individual de um presente, pelo contrário, seria mesmo uma maneira diferente de reprodução social. A cultura pseudo-grátis da Internet não é uma coisa nem outra. O sujeito pós-moderno da auto-encenação, armado com a tecnologia da “comunicação” mas socialmente e quanto aos conteúdos em geral vazio ou indiferente, produz apenas cripto-mercadorias em larga medida sem gastos, justamente porque já nenhum gasto lhe é pago e no capitalismo não se podem aguentar gastos não pagos.
E justamente porque não existe qualquer modus revolucionado de utilização dos recursos a nível de toda a sociedade, que a existir seria válido também para a produção cultural, os actores do grátis virtual iludem-se com os seus pacotes de troca vazios numa “economia da dádiva”. Na medida em que existiram de facto nas formações pré-modernas estruturas sociais de reciprocidade traduzidas como “de dádiva”, estruturas que aqui são apenas toscamente ideologizadas, elas foram em todo o caso expressão de uma mobilização real de recursos e não tinham nada a ver com coisas aparentes. O facto de um conteúdo intelectual ou cultural poder ser divulgado “sem custos” através de um clique de rato de modo nenhum significa que ele também seja produzido sem a aplicação de recursos intelectuais e materiais; a ser assim ele não passaria de um conteúdo nulo.
Os economistas da dádiva interactiva trocam entre si o puro nada que corresponde ao seu estado social e intelectual, e na verdade até sabem ou pelo menos pressentem isso, como Adorno e Horkheimer já constataram. O que acontece aos consumidores-produtores digitais não é diferente do que acontecia aos anteriores simples consumidores, cuja atitude o capítulo da Indústria Cultural descreve: “A dupla desconfiança contra a cultura tradicional enquanto ideologia mescla-se à desconfiança contra a cultura industrializada enquanto fraude. Transformadas em simples brindes, as obras de arte depravadas são secretamente recusadas pelos contemplados juntamente com as bugigangas a que são assimiladas pelos meios de comunicação. Os espectadores devem se alegrar com o facto de que há tantas coisas a ver e a ouvir”. Eles participam na externalização de massas indiferenciada, sem custos, indiferente e recíproca em que ninguém se leva a sério a si mesmo nem aos outros. Por isso quem tenha tido a má sorte de activar gastos reais e carregar um conteúdo efectivo tem de ser nivelado sem piedade pelo mesmo nada mediático que é guardado com inveja pelos seus titulares. Qualquer esforço pelo conteúdo é “depravado” e o seu resultado tornado parecido com “bugigangas” baratas, e justamente por isso os “contemplados” sabem secretamente que se estão a enganar reciprocamente e por isso já consideram sempre tudo um logro.
Também não se deve deixar passar em claro que Adorno e Horkheimer, mesmo na crítica radical à cultura do falso grátis, mantinham em mente como imagem idealizada igualmente falsa os velhos heróis da cultura plena e superiormente burguesa que ainda vendiam realmente conteúdo autêntico e simultaneamente se podiam dar ao luxo de desprezar esta relação. Assim se diz poucas páginas depois no capítulo da Indústria Cultural: “O Beethoven mortalmente doente, que joga longe um romance de Walter Scott com o grito: ‘Este sujeito escreve para ganhar dinheiro’ e que, ao mesmo tempo, se mostra na exploração dos últimos quartetos — a mais extremada recusa do mercado — como um negociante altamente experimentado e obstinado, fornece o exemplo mais grandioso da unidade dos contrários, mercado e autonomia, na arte burguesa. Os que sucumbem à ideologia são exactamente os que ocultam a contradição, em vez de acolhê-la na consciência de sua própria produção…”.
Não se pode deixar de reconhecer, e tal testemunha da manutenção do carácter social da antiga burguesia cultural em ambos os autores, que eles pensam ter existido “a unidade dos contrários, mercado e autonomia, na arte burguesa” cujo “exemplos mais grandiosos” se poderiam reunir precisamente na capacidade de se revelar como “negociante altamente experimentado e obstinado”. Se nas condições capitalistas de reprodução não se pode renunciar ao pagamento monetário dos gastos, na medida em que estes de acordo com o fundo de tempo e os recursos materiais vão para lá de uma simples relação de hobby até a produção de conteúdos, tão-pouco se pode fazer passar inversamente a astúcia do negociante e a esperteza da valorização como reverso da “autonomia” artística e teórica. Esta última tem de estar sempre em pé de guerra com a primeira; qualquer habilidade para os negócios é ela própria devoradora no que ao fundo de tempo e aos recursos diz respeito e constitui portanto inevitavelmente um desvio da concentração na própria coisa. Uma tal qualificação aponta não para o conteúdo como apesar de tudo “a mais extremada recusa do mercado”, mas sim em última instância para uma heteronomia que tem de ser inerente a qualquer valorização, mesmo a dos quartetos.
A nostalgia ideológica de Adorno e Horkheimer pertence ao seu resto de razão burguesa iluminista na qual mercado e autonomia são idênticos na arte e não só. A crítica e a historicização negativa desta razão capitalista não são levadas até o fim na Dialética do Esclarecimento, onde os autores de facto reconhecem a “oposição” de mercado e autonomia, as quais no entanto pretendem fazer surgir como “unidade” reconciliada ou pelo menos fundamentalmente reconciliável num passado de burguesia cultural idealizado. Na conservação hesitante da razão burguesa já antes reconhecida como negativa e destrutiva faz-se a quadratura do círculo; a apreciada astúcia dos negócios é a da lógica hegeliana em que as contradições não conduzem à ruptura e à explosão, mas sim à falsa reconciliação positivamente superadora na forma do eterno sujeito da circulação.
Mas a concepção de Adorno e Horkheimer, apesar deste excurso deficitário, formula ainda uma crítica consciente do problema contra a cultura do grátis das comunidades de “utilizadores” por maioria de razão falsa e mentirosa, quando eles fazem notar que “sucumbem à ideologia” justamente aqueles que “ocultam a contradição, em vez de acolhê-la na consciência da sua própria produção”. Não se trata obviamente de uma imaginada unidade entre conteúdos que se fecham à forma do valor, por um lado, e habilidade para o negócio monetário da circulação, por outro, cuja idealização ela própria “oculta a contradição”, mas sim e apenas do facto de que surge com toda a nitidez a irreconciabilidade da contradição e a necessidade da ruptura histórica (em vez da “superação” positiva) na “consciência da sua própria produção” e de cuja forma da mercadoria ou do dinheiro como mal necessário sob as condições opressivas se retira aquela interpretação minimizadora ou mesmo transfiguradora.
Por muito actual que seja a concepção de indústria cultural também para o início do século XXI, há hoje uma importante diferença em relação a 1944. Então estava ainda pela frente a grande prosperidade do pós-guerra. Na transição da época das guerras mundiais para a curta época histórica de produção em massa e consumo em massa do fordismo, Adorno e Horkheimer não podiam perceber a indústria cultural em formação do ponto de vista da crise objectiva ou do limite interno histórico do processo de valorização. O complexo da indústria cultural que se revelava nebulosamente nas suas dimensões tinha de lhes parecer uma fatalidade, como forma de controle total ou autocontrole e de submissão da consciência à máquina do fim em si capitalista.
Hoje, pelo contrário, a indústria cultural desenvolvida está sob o signo de um limite objectivo amadurecido do capital mundial. A própria Internet é toda ela parte integrante de uma tecnologia de crise da terceira revolução industrial, cujos potenciais de valorização conduzem ao esvaziamento da substância do valor. Também neste aspecto não é a tecnologia como tal que autonomamente teria efeito sobre as relações e seria a verdadeira razão para o seu revolucionamento. A racionalização, que leva à extinção do fogo do “trabalho abstracto”, segue as mesmas leis que este; a libertação da força de trabalho supérflua constitui o reverso da sua subsunção ao capital. No sentido do fetichismo social, “autónomo” é apenas o automovimento solto do “sujeito automático” do qual nasce a tecnologia de crise em geral que dá expressão à autocontradição interna do sistema. O capitalismo não esbarra num limite tecnológico dele independente, mas sim no seu próprio limite (económico) interno. No complexo da indústria cultural este limite geral do capital ergue-se de uma maneira específica que aponta simultaneamente para o mecanismo da crise e para as suas formas de desenvolvimento.
A virtualização culturalista do mundo da vida corresponde à virtualização económica do capital. Os dois momentos não representam qualquer novo grau de desenvolvimento do modo de produção e modo de vida capitalista, mas sim um processo da sua desvirtualização e portanto da sua real autodestruição. A dessubstancialização do capital através da redução desproporcional da força de trabalho regular, a única de produz valor, criou aquela famigerada economia global de bolhas financeiras em que o capital passou da acumulação real para uma acumulação meramente simulativa. Esta representa por assim dizer o seu próprio avatar económico no mundo aparente do céu financeiro desacoplado. Mas o espaço virtual da Internet não se limita a espelhar em sentido simbólico-cultural o capital fictício já sem cobertura de qualquer valorização real, mas pertence também directamente a esse império económico espiritual.
A Internet, como complexo híbrido da indústria cultural, não produz mercadorias reais, mas apenas virtuais. Ela nem sequer produz num volume apreciável produtos intelectuais ou artísticos imateriais, que na forma da mercadoria pudessem ter participado da massa da substância social do valor, mas apenas divulga electronicamente tais conteúdos associados a gastos objectivos, enquanto os conteúdos genuínos surgidos directamente na Net, tanto objectiva como economicamente em grande parte sem valor, nem contribuem para a massa de substância real de valor nem dela participam, na medida em que permanecem “grátis” desse modo inverídico.
Ora se a publicidade é determinante para a indústria cultural não só como forma de expressão da estética das mercadorias, mas também como base financeira da economia da Net, então esta factualidade esclarece o modo do seu encaixe na reprodução capitalista. A publicidade, como sector secundário por sua vez capitalistamente improdutivo, que não traz qualquer contribuição para a massa da substância social real do valor, representando pelo contrário uma dedução dela, só pôde expandir-se numa dimensão sem precedentes na história do capitalismo na base insuflada da economia das bolhas financeiras e do endividamento desde os anos de 1980. Só perante este pano de fundo surgiu o complexo tecnológico-cultural da Internet daí derivado na sua actual amplitude. Os serviços, possibilidades de acesso ou de apresentação e conteúdos gratuitos postos à disposição só podem ser descritos em termos capitalistas como suportes de publicidade. Quanto mais a indústria cultural se desloca para o espaço virtual, mais precária se torna esta dependência.
Simultaneamente este espaço exige também um poderoso e muito real agregado infraestrutural de consumo energético, cablagem, baterias de servidores etc. que por sua vez se repercute como factor de custos. Em grande parte estes equipamentos tecnológicos também têm de ser financiados a partir da publicidade ou exigem uma parte das suas receitas. Isto também se aplica às redes promovidas ou postas à disposição pelo Estado cujas receitas também são uma dedução da massa social de valor; tal como as suas outras funções também esta é cada vez mais financiada a crédito. Sejam quais forem as mediações, o complexo da indústria cultural virtualizada é essencialmente uma criatura do capital fictício e das suas diversas formas, que no seu conjunto representam uma antecipação cada vez mais irreal de futura criação real de valor protelada sempre mais. O limite interno de toda a organização torna-se manifesto na mesma medida em que o sistema de crédito demasiado estendido colapsa, as cadeias de crédito se rompem e se revela a infinanciabilidade social da cultura do grátis virtual. A total deslocação do problema para o crédito estatal não altera aqui nada.
Quando portanto os pressupostos económicos escondidos caírem a pique revelar-se-á que a mentalidade do grátis do “utilizador” de modo nenhum constitui uma antecipação da abolição da forma da mercadoria e do dinheiro. Pelo contrário, trata-se de uma consciência que há muito só vive do crédito e até só pensa no crédito. Tal como uma reprodução não monetária surge erroneamente como “sem custos” mesmo dos gastos materiais ou sociais enquanto “desmaterialização” ilusória, assim também a própria existência virtualizada surge como não paga, cujos custos terão de cair noutro lado, sobretudo quando não se precisa de saber nada disso. O pós-modernista ecologicamente esclarecido é sempre a favor do bom e contra o mau, só que tem de haver corrente eléctrica na tomada e os artistas da vida têm de ter que comer a um nível aceitável de gourmet, sem que as condições sociais de um luxo qualitativamente diferente e realmente generalizado se tornem um problema a sério. O consumo do futuro da substância do valor, a deslocação dos créditos mal parados e o desaparecimento técnico do dinheiro da realidade do mundo da vida surgem como uma espécie de “mundo sem dinheiro” que de algum modo se tornou bastante mais barato. A revolução contra a “riqueza abstracta” não se dá, mas cada um é o seu próprio bad bank. Também do ponto de vista político-social surgiram, no lugar de revolucionários, caçadores de pechinchas digitais. Nem é bom perguntar como reagirá a consciência da indústria cultural ao colapso do seu mundo de ilusão e auto-ilusão.
A restrição e impasse económico corresponde à restrição e impasse cultural. Neste contexto a questão da inovação na indústria cultural e nas suas fontes deve ser posta de lado. Mesmo como sector secundário e até improdutivo do capital, que no entanto tem de ser economicamente alimentado pela massa de substância social do valor, a indústria cultural é tão abstracta e em si desqualificada quanto aos conteúdos como toda a valorização no seu conjunto. A completa indiferença perante qualquer conteúdo material, porque o seu objecto próprio é o valor abstracto, obriga portanto a liquidar os recursos culturais que não coincidem imediatamente com o fim em si da “riqueza abstracta”; precisamente como os recursos naturais, materiais e humanos, aliás, também têm de ser recrutados para a acumulação abstracta como suportes concretos indiferentes.
No movimento histórico ascendente do capital para a determinação da forma abrangente e planetária surgiu uma genuína arte e cultura burguesa que em primeiro lugar se tinha formado sobretudo como oposicionista no terreno das relações apenas meio desenvolvidas enquanto precocemente capitalistas e proto-capitalistas. Tal como a filosofia iluminista e a ciência deste período, ela era um produto capitalista pela estrutura e pelo conteúdo, mas apenas nas suas formas de pensar e representar, como mobilização ideológica e antecipação ideal, e não ainda propriamente como objecto imediato de valorização; por isso também como produto de luxo para patronos nas cortes absolutistas ou para círculos privados e correspondentemente financiada. Também a esfera pública burguesa como pressuposto para uma transformação da indústria cultural permaneceu nessa medida em primeiro lugar como protótipo.
Só neste estatuto intermédio “elevado”, que contradiz a sua própria lógica mesmo que apenas formalmente, pôde a cultura burguesa adquirir a aparência de contexto de reflexão determinado pelos conteúdos e de capacidade de expressão com os célebres “momentos de excesso”, em que se reuniu um fundo de verdadeira “objectividade cultural” que era um reflexo da objectividade do valor mas ainda não esta mesma, a qual ainda só tinha conquistado alguns domínios da reprodução material. A consciência da burguesia cultural quis sempre manter este estatuto intermédio e ligar-lhe a ilusão de arte, ciência etc. “altas”, não corrompidas pelo economismo vil, embora o modo de pensar, as formas de representação e os conteúdos já afirmassem igualmente aquela lógica que escarnece da pretensa autonomia da arte ou da cultura e logo haveria de encontrar a sua expressão simbólica definitiva no “Quadrado Negro” de Malevich.
Ora é evidente que a indústria cultural, apenas incipiente no século XX e só nos limites do capitalismo no início do século XXI aumentada até à virtualização do mundo da vida, nunca pôde alimentar-se de conteúdos a partir de si mesma, mas fê-lo vampirescamente em primeiro lugar a partir daquele passado de uma cultura e arte burguesa ainda não possuída pela sua própria lógica. A aventura da história da imposição do capitalismo, cujas narrativas e criações ainda não entradas elas próprias na valorização (do classicismo e romantismo burgueses, passando pelo realismo, até à “modernidade clássica”) criaram a aparência de um conteúdo cultural independente, mas esgotaram-se no prazo de poucas décadas. A indústria cultural não conseguiu criar mais nada de novo a partir de si mesma. A sua criatividade consistiu sempre apenas na adaptação de material pré-encontrado.
Houve no entanto ainda uma segunda onda a partir da qual a sede vampiresca da indústria cultural pôde beber. Foram as contraculturas e subculturas dos movimentos sociais e milieus, quese orientavam subjectivamente contra o capitalismo ou contra as suas formas de manifestação e que deram expressão intelectual e artística a uma existência marginalizada, a formas de vida inconformadas ou a desvios sociais. Estas culturas de protesto ou pelo menos subculturas foram o campo de referência de uma invocada contraposição “não comercial” à indústria cultural. De facto, porém, eram muito fracas na sua potência subversiva para poderem vir a tornar-se um opositor sério; e na verdade sobretudo porque a sua crítica permaneceu não crítica da forma, fenomenologicamente limitada e socialmente particular, sem conseguir atingir a universalidade social. Tal como a estatalidade capitalista sempre conseguiu capturar, adaptar, torcer e transformar em recursos políticos próprios as tendências “políticas” emancipatórias de curto alcance (do velho movimento operário até à “nova esquerda” de 1968), também as culturas de protesto e subculturas “não comerciais” foram a curto ou a longo prazo transformadas num recurso da indústria cultural.
O que se apresentava como subversão cultural e contracultura constituía, na verdade, tal como a antiga alta cultura burguesa de certa maneira ainda externa, uma espécie de reserva natural para o capital da indústria cultural, reserva que era periodicamente ceifada ou trinchada. Após a segunda guerra mundial ambos os recursos perderam a sua relativa autonomia; a alta cultura burguesa simplesmente morreu e já só podia ser utilizada como madeira seca, as subculturas tornaram-se cada vez mais viveiros capitalistas. Como na sequência da revolução tecnológica e da globalização todos os horizontes se reduzem, também se acelera o processo de mutação da indústria cultural, de criações subcomerciais ou protocomerciais até ao desaparecimento do objecto.
Adorno e Horkheimer descrevem o vampirismo cultural apenas tendo em vista a decadência da antiga alta cultura burguesa e também com imprecisões; mas o problema das subculturas ficou fora do seu horizonte ou foi de imediato subsumido ao conceito de indústria cultural. A partir deste déficit de análise também se esclarece parcialmente o erro do julgamento negativo de Adorno sobre o jazz, cuja origem e qualidade própria foram ignoradas. Adorno, neste ponto plenamente conduzido pelas idiossincrasias do “bom gosto” da burguesia cultural clássica, não quis ver o jazz na sua especificidade própria anterior à indústria cultural, mas apenas como produto genuíno da máquina cultural capitalista. Ele não viu aqui que esta máquina precisa de um material não inerente a ela própria porque só consegue despedaçar algo que lhe tenha sido trazido. O seu produto precisa de matéria-prima ou semi-elaborada cultural previamente encontrada. Estes recursos não estavam ainda completamente esgotados em meados do século XX.
Poder-se-á admitir que Adorno só conhecia ou só tinha em vista o jazz já orientado pela indústria cultural, por exemplo as show bands dos anos de 1940. Neste sentido Adorno de certo modo acaba por ter razão e sobretudo no que diz respeito ao prognóstico, que no entanto não pode referir-se especificamente ao jazz ou à música pop. Trata-se das criações culturais em geral, seja qual for a especialidade e o nível artificial. Juntamente com a terceira revolução industrial como tecnologia de crise universal e com o processo de crise global que se lhe seguiu, também a indústria cultural atingiu o seu limite histórico. O seu auge, que coincide com a totalização da estética das mercadorias, coincide também com o esgotamento dos seus recursos externos. De certa maneira pode falar-se de uma analogia com o esgotamento das reservas energéticas e com a destruição das bases naturais da vida, bem como com a crise das relações entre os sexos. Também neste sentido o capitalismo destrói os seus próprios pressupostos. Na mesma medida em que a abstracção do valor segue a sua dinâmica interna e completa realmente o programa da sua totalização, dissolve não só a sua própria substância de trabalho, mas também os seus fundamentos naturais, sexuais e culturais, os quais se transformam de pressupostos mudos em gritantes contradições.
O pós-modernismo faz notar involuntariamente o limite cultural quando desliga as intenções da cultura de protesto e da subcultura da sua pretensão ideológica de “não comercial” ou “anticomercial” e as desloca directamente para a indústria cultural, na medida em que gostaria de escolher para si momentos pretensamente subversivos literalmente por compra no supermercado ou por download numa Internet subsidiada. O conteúdo de realidade desta interpretação está em que, pelo menos nos efeitos sociais, já não se trata muito de criações relativamente autónomas, mas sim apenas de produtos que são a priori da indústria cultural como objectos de “autovalorização” e da sua possível procura. A “subversão”, que naturalmente já não é nenhuma, deve ser transferida para o modus do simples consumo de mercadorias (mesmo que seja de uma mercadoria obviamente “gratuita”).
De par com esta ideologia de um consumo “criativo” ou mesmo “crítico” vai a completa recusa de tomar como foco da crítica a forma da mercadoria como tal (com o que o pós-modernismo no seu conjunto regride para trás do marxismo do movimento operário, em vez de o transcender). A questão já não é que a forma da mercadoria como mal necessário se agarre também aos conteúdos da sua crítica, de modo que esta se possa articular em geral e reproduzir os seus pressupostos materiais, mas sim que o carácter de mercadoria é aceite ou ignorado e o conteúdo é positivado como conteúdo da valorização, mesmo que num sentido apenas simbólico.
Mas se a “criatividade” já consiste apenas no tipo e na combinação do consumo de mercadorias, então isso conduz a uma crise do valor de uso, porque já não há qualquer novo fornecimento de conteúdos. Após a morte da antiga alta cultura burguesa a subcultura sofre o mesmo destino. Já só há pseudo-subculturas, elas próprias já orientadas pela indústria cultural. Mesmo a mais tola banda escolar já aspira desde o início ao sucesso comercial ou pelo menos ao capital cultural para “aparecer” nas listas de sucessos, e dá fundamentalmente mais valor à “apresentação” do que ao conteúdo inovador que não tem. Isto aplica-se a todo o sector cultural, abstraindo das excepções. Tal como a substância do valor é apenas simulada, uma vez que ocorre uma reciclagem a partir das bolhas financeiras, também a indústria cultural vive apenas da reciclagem de velhos conteúdos sucessivamente adaptados, até que sufoque na sensaboria dos eternos requentados. Esta situação torna-se cada vez mais explicitamente naquela barbárie cultural de que fala o capítulo da Indústria Cultural.
O círculo da reflexão crítica fecha-se se regressarmos à complementaridade polar da pseudo-crítica elitista culturalmente pessimista e da afirmação pós-moderna da superficialidade. A superfície é o mundo dos fenómenos imediatos; cultural é o do outfit, do design, do guarda roupa. Se a burguesia cultural denuncia publicamente a superficialidade, ela refere-se apenas o outfit que lhe salta à vista, a formas de apresentação e manifestação impertinentes ou estranhas. O stock remanescente de consciência cultural elevada, mesmo se tem um quadro de Kandinsky na parede, num aspecto não está assim tão longe do filisteu pequeno-burguês do dinheiro e da cerveja como gosta de expressar livremente na sua aversão contra a “arte degenerada”, a “música negra” e o movimento pop “americano”. Trata-se aqui não do carácter da superfície em si, mas apenas de trapos e sons “erróneos”, como metáforas de um design social rejeitado. Por detrás está o medo do estranho, dos underdogs, dos desviantes ou das “classes perigosas”.
Ainda que o culturalismo pós-moderno cultive e romantize justamente fenómenos e formas de expressão abominadas pelos velhos filisteus culturais, mas apenas como acessórios sem conteúdo e arbitrários, ele pertence à mesma estrutura de percepção e constitui ele próprio uma consciência de classe média, apenas diferentemente posicionada. O conflito neste campo isolado não passa de maçador e os intervenientes são demasiado identificáveis na sua identidade. Poderia sem mais tornar-se chique pendurar “vanguardisticamente” na parede num golpe de surpresa o famigerado veado bramante; logo as galerias ficariam repletas deles, desde Nova Iorque até à província de Berlim. A reciclagem que a indústria cultural faz de todas as formas de expressão nivela como é sabido também a diferença entre arte e kitsch. No fundo começou já com as apresentações dadaístas do pechisbeque como objecto artístico; o que foi considerado um escárneo é tratado há muito tempo com seriedade académica como problema da história da arte.
Com isto não se pretende negar que a “expressão” habitual tem de encontrar uma forma na sociedade, no universo vital e na cultura quotidiana. Cada formação histórica exprime-se artisticamente, mesmo onde não existe uma esfera isolada da arte; as pessoas decoram o espaço vital e apresentam-se nas suas vestes etc. Estas múltiplas formas de expressão a diversos níveis nunca são puramente individuais, mas sim também determinadas através da respectiva sociedade, das suas contradições e do seu desenvolvimento. Em relação ao modo de produção e de vida capitalista, no entanto, é preciso ter presente que foram o vazio e indiferença quanto aos conteúdos que são inerentes aos seus mecanismos, bem como o esgotamento e seca cultural que acabam por ser realizados pela sua dinâmica específica, que levaram à dominação e autonomização grotescas do exterior. Tal como a forma abstracta da mercadoria se autonomiza face ao conteúdo concreto e rebaixa este à sua mera “forma de manifestação”, assim acontece analogamente a já referida inversão entre conteúdos culturais e intelectuais e a sua “forma de apresentação” exterior.
Isto aplica-se também à chamada cultura quotidiana, que se desenvolveu até àquilo que já Marx apontou como “religião do quotidiano”; no entanto muito para lá do carácter ideológico referido por Marx. Já não se trata de meras “opiniões” e interpretações ideológicas do mundo, mas sim de modos de expressão e de auto-interpretações entendidos existencialmente. O “puro nada” tem de se auto-apresentar como capa nas relações com os seus semelhantes e tem de armar permanentemente o seu outfit em sentido lato. A muito invocada pluralização de estilos de vida é completamente uniforme no que diz respeito ao seu carácter como meio de ganho de distinção, situação em que a pluralidade se dissolve novamente num “mainstream”; mesmo que este pareça correr em diversas direcções.
A questão decisiva aqui é que mesmo os mais simples trapos em si bastante irrelevantes são carregados com formalidades arbitrárias e “questões de gosto” com uma importância impertinente. Que ninguém consiga escapar às tendências sociais neste plano, a não ser à custa da pura comicidade, não constitui nada de essencial. Assim andamos nós há quarenta anos não de toga, mas de jeans; ainda que já não nas mesmas, pois o desgaste do material obriga a gastar tempo na compra de calças. Se as jeans e os cabelos compridos dos jovens ou a música rock já foram considerados como sinal de uma espécie de protesto juvenil, há muito que está provada a inocuidade e o carácter afirmativo desta pseudo-revolta. Isso tornou-se apenas uma moda geral nas calças, a que mesmo os velhotes tiveram de sucumbir. Naturalmente que tais fenómenos se repetem em cada geração de algum modo na puberdade. Mas a novidade é que eles assumam uma relevância social generalizada.
Devo comprar umas calças que possam servir a um elefantezinho, de modo que ninguém veja se eu tenho rabo? Ou umas calças tão estreitas que perturbem a circulação sanguínea e toda a gente possa ver que não tenho rabo? Tais alternativas existenciais nos tempos pós-modernos já não são deixadas para os jovens abaixo de quinze anos, mas entram na categoria de quase ideologias políticas. Que os indivíduos desenvolvam preferências no vestuário, na comida e bebida, no sexo, na sensibilidade corporal ou na decoração da casa já não constitui uma questão natural e inocente. Se tatuagens ou piercings, comida vegetariana ou vegan e coisas que tais se transformam numa espécie de visão do mundo, com a qual as pessoas se separam ou se reconhecem de um determinado círculo como antes com o emblema do partido, então isso aponta para o carácter da ideologia do outfit como procedimento de substituição, com o qual se pretende substituir o vazio ideal e social.
Tais procedimentos de substituição simbólicos e da cultura quotidiana ganham importância justamente para a administração da crise e suas ideologias de disciplinamento. As campanhas contra os fumadores incluindo medidas administrativas de proibição ou a denúncia dos hábitos alimentares “não saudáveis” das classes inferiores não têm nada a ver com a preocupação com o bem-estar. Pelo contrário, o que acontece é que assim se desloca a percepção das disparidades sociais, da pobreza, dos desaforos sociais e do stress do trabalho para o figurativo, para a “performance” pessoal, como se o problema fosse apenas de mudanças no plano dos hábitos ou atitudes culturais quotidianas que não teriam nada a ver com uma relação social coerciva. Tal ideologia da administração de seres humanos apela segura do objectivo para as almas aparentadas de personalidades de auto-encenação vazia que pretendem realizar-se no culto da superficialidade e que se tornam tanto mais permeáveis aos mecanismos de disciplinamento quanto estes se apresentam como oferta de design.
O culturalismo pós-moderno e sua sobreacentuação da aparência já têm antecedente histórico num duplo aspecto. Filosoficamente trata-se da corrente irracionalista do pensamento burguês, desde a viragem anti-hegeliana no século XIX, passando pela filosofia vitalista, até ao existencialismo. É o contraprograma burguês formulado por Nietsche e Heidegger contra Marx e Adorno, donde também a chamada esquerda pós-moderna retira as suas referências principais. Ligada a ele esteve sempre a atitude ou modo de percepção conhecida pelo nome de “estetização”. O horror da guerra e da destruição, o terror da normalidade, o sofrimento e a miséria tornam-se “belas imagens”, entranhas e barrigas inchadas pela fome ou feridas ulceradas tornam-se obras de arte. A “estética do terror”, desde Walter Benjamin designada por fascismo subjectivo, constitui os antecedentes e é secretamente parte integrante da viragem culturalista pós-moderna contra a crítica do capitalismo conteudística, social e categorial.
A encenação da “entrada em cena”, mostrada por Leni Riefenstahl na estética cinematográfica do congresso do partido do Reich, com a sua figuração de desfiles de massas, pertence também a esse programa. A individualização pós-moderna desse modo de proceder não muda nada da essência da coisa; e pode a qualquer momento virar em surdos motins colectivos, como prova o mobbing digital. A indiferença perante o conteúdo na sua agudização pós-moderna dá lugar a um programa esteticista ainda mais abrangente que o do início do século XX, que nem sequer é percebido como tal porque representa um sentido geral da vida.
Esta estetização militante, que agora fez da forma do design publicitário uma matriz totalitária, é uma arma muito mais eficaz contra a crítica radical do que as simples construções de pensamento da ideologia. Não se trata da coisa em si, mas do estilo. No lugar da análise crítica surgem tratados do tipo “como empobrecer com estilo”. O styling não reconhece qualquer outro critério de verdade além do número de comentários “gosto” na Net. E o que é publicitado é o que é apreciado como outfit. A objectividade negativa deve ser escondida por um “subjectivismo estético”; no lugar da revolução social surge a pseudo-revolução sem dor do “parecer belo” — a estetização da existência de todos e cada um. É esteticizada não só a guerra e a atrocidade, mas também a crise, a nova pobreza e a catástrofe ambiental. Trata-se simultaneamente duma estetização da verdade, que corresponde ao paradoxal “relativismo absoluto” da pós-modernidade.
A ideologia da estetização tornada forma de vida real não deve ser confundida com a estética em si. A questão não é que cada conteúdo encontre a sua adequada forma de expressão ou de exposição, para o que podem ser desenvolvidos critérios. Em vez disso é a forma estética que se autonomiza como se viu contra o conteúdo e rebaixa este à sua forma de manifestação acidental e não essencial. É esta inversão, implantada e consumada pela forma totalitária da mercadoria na arte e na cultura, que constitui o programa da estetização.
Trata-se de um processo histórico que teve a sua conclusão na estética das mercadorias após a segunda guerra mundial e que só pode desembocar, como qualidade de mercado mundial da “incoerência bárbara”, numa nova estetização da política ela própria há muito desrealizada. O terror é agora tanto mais medonho de outra maneira quanto ele apresenta simultaneamente todos os traços da tolice. Foi justamente o novo centro, verde, social-democrata e social-ecológico, que não só apertou o torniquete da administração social da crise e pôs em marcha Hartz IV, mas simultaneamente também levou ao auge a sua “venda” democrática como pantomina do design publicitário. Não por acaso são os quadros e autoproclamados “revolucionários da cultura” da antiga nova esquerda de 1968 que produzem este desenvolvimento. Eles já então assumiram antecipadamente o pós-modernismo de esquerda e hoje mostram-lhe o seu futuro, mesmo que este já não deva conduzir aos ministérios, mas simplesmente a mandatos pelo “partido dos piratas”. Esta geração de filhos e netos do “novo centro” já envelhecido nem precisa mais de qualquer passado radical de esquerda para o design da sua entrada em cena.
A metamorfose das antigas encenações prontas a ser representadas de comunas e de combatentes de rua em maturidades de homens de Estado mostram involuntariamente que não pode mesmo haver uma “revolução cultural” autónoma no sentido de simples revolucionamento da atitude, do outfit, da “conduta do discurso”, do “estilo de pensamento” e do quotidiano, até ao penteado, à cultura de consumo ou mesmo alimentar etc. Se a geração de 68 politicamente crescida se permite uma modernização e democratização “cultural revolucionária” da RFA, enquanto fracassou como revolucionária, prova assim apenas que o pseudo-radicalismo performativo só serve em culturas de protesto baratas e superficiais, para ultrapassar a puberdade e também para o “revolucionamento” do próprio capitalismo e do seu estilo de management. Uma boémia de classe média que se dá por ser da arte do quotidiano, da experimentação sexual e da rebeldia habitual já desempenhou sempre este papel. A “revolução cultural” assim limitada da nova esquerda foi no entanto a última da sua espécie porque já não havia nada para revolucionar em termos económico-culturais por falta de substância real de valor e o comboio da esquerda pop pós-moderna já há muito que estava fora da linha.
Só haverá uma “revolução cultural” no futuro se for simultaneamente expressão de um movimento social revolucionário com efectivo poder de intervenção e não performance meramente simbólica. Um tal movimento não existe actualmente e portanto também não se pode desenvolver qualquer estética da crítica mas apenas uma crítica da estética dominante, enquanto crítica da indústria cultural. Não se pode vestir uma roupa sem o corpo para ela. O culto pós-moderno da superficialidade, na sua atitude de crítica aparente em que os próprios protagonistas não acreditam, é tão sem substância como a valorização do capital virtualizada da pós-modernidade. A condição para uma nova integração do movimento social com o movimento cultural revolucionário é que penetre na consciência das massas uma nova crítica radical do contexto da forma fetichista, coisa de que a esquerda pós-moderna não quer saber absolutamente para nada.
O que o culturalismo ideológico presentemente ainda consegue ao serviço do capital é única e exclusivamente o enfraquecimento interno da própria crítica categorial. Pois esta corre o risco de se transformar num objecto puramente estético através da recepção parcial e aparente justamente da crítica do “trabalho”, do valor e da dissociação sexual, ou seja, num acessório efémero da auto-encenação, assim se tornando completamente sem compromisso. Com a totalização do design publicitário vai de par a subsunção em geral de todos os conteúdos na corrente cega do espírito do tempo ou na moda. Não se trata apenas de trapos da moda, mas também de delitos da moda, de doenças da moda e ideologias da moda, até mesmo de indecências da moda. Justamente a esquerda pós-moderna espalha os seus ditos ordinários por todo o lado através do seu lugarejo intelectual de província. Por isso as personalidades sociais pós-modernas são por princípio pessoas de pouca confiança; não podemos lembrar-nos delas numa posição fixa e com carácter vinculativo, nem sequer relativamente à crítica categorial, tanto quanto eles supostamente se apropriaram dela.
Tal como o velho patriarca verde de 1968 Joschka Fischer periodicamente alarga e volta a encolher como um harmónio o perímetro da sua corpulência, transformando-se de barrigudo em corredor de maratona e vice-versa, assim também os estrategas individualizados do outfit transformam periodicamente o seu comportamento, as suas atitudes e convicções sem qualquer conexão interna. Já se sabe que qualquer conteúdo a que se deita a mão logo terá de ser novamente removido. Períodos inteiros da vida minguam num Verão ou possivelmente numa tarde; todas as relações se dissolvem já quase antes de terem começado. Aplica-se a divisa de Berlusconi que terá dito: “Já fui muitas vezes sincero”. Uma vez que o puro nada não pode permanecer junto de nada, ele também não aprendeu nada certo, nem sequer a própria língua materna. O cidadão do mundo pós-moderno não sabe bem alemão nem sabe bem inglês; não sabe bem nada, mas já cheirou tudo alguma vez.
Como antídoto para esta situação lamentável recomenda-se em sentido emancipatório uma ampla recusa da estetização e da moda sem compromisso, o que implica uma crítica radical do culturalismo pós-moderno. O conteúdo tem de ser reposto no seu direito prioritário. Isto aplica-se tanto à crítica superficial da superficialidade feita pelo stock remanescente da consciência de burguesia cultural como ao contrapolo pós-moderno. O mundo não é um acessório; o culto da superficialidade devia ser coberto de escárnio e maldizer. A indústria cultural não pode ser iludida por uma hiperafirmação pós-moderna de esquerda, mas apenas através da desvalorização militante do mero design em qualquer sentido. Nas publicações da crítica radical deviam talvez ser fomentados os textos pesados e no outfit a simplicidade consciente.
Não podemos partir do capítulo da Indústria Cultural da Dialética do Esclarecimento sem rupturas, mas a recepção crítica da concepção aí desenvolvida permanece indispensável. O pós-modernismo que se imaginou para lá dela já não tem nada a dizer no mundo de crise do século XXI. Resta a esperança de que já esteja prestes a levantar-se uma geração que diga com toda a simpatia aos ideólogos pop apaixonados pela própria juventude profissional que eles mesmos são agora os velhos insuportavelmente chatos de ontem e que vai sendo tempo de fazerem uma interrupção da emissão.