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Primeira Edição: INTERVIEW MIT DER INTERNET-ZEITSCHRIFT "TELEPOLIS" (Hannover, Alemanha) em www.exit-online.org. Organizada por Peter Jellen, foi publicada em duas partes na Revista TELEPOLIS de 18 e 19.07.2010
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Sr. Kurz, nos últimos três anos, a crise económica deu origem a três fases de transformação: da crise do imobiliário à crise financeira, da crise financeira à crise económica e da crise económica à crise monetária. Até que ponto é possível explicar essas três fases de escalada da crise com o seu conceito de crise económica geral do capitalismo?
Essas três fases de transformação constituem apenas a aparência dos fenómenos. A crise do imobiliário foi o detonador de uma crise de endividamento e financeira que há muito estava latente. Ela não teve origem nos chamados excessos especulativos contra uma economia normal em si "saudável", pelo contrário, as bolhas de dívida e as bolhas financeiras é que foram resultado de uma falta de valorização real do capital. Desde logo, a superstrutura do crédito não é nenhum factor externo, mas sim parte integrante da produção capitalista de mercadorias e com ela entrosada. Nas últimas duas décadas, esta relação interna tem aumentado, até à dependência estrutural da chamada economia real relativamente aos mercados financeiros. Por isso a crise financeira tinha de levar a uma queda histórica da economia.
Todos os momentos das três fases já estavam incluídos na cerrada sucessão de crises, desde a primeira insolvência do México em 1982. Inicialmente parecia tratar-se de uma crise de dívida da periferia, mas já então atingiu os centros capitalistas. No início dos anos noventa estourou a bolha imobiliária japonesa e o índice Nikkei caiu para um quarto do seu pico. Até hoje o Japão não recuperou da crise bancária nem da estagnação económica interna que se seguiram. Em meados dos anos noventa quebrou o endividamento dos Tigres Asiáticos em moeda estrangeira (dólar), conduzindo a uma crise monetária com uma recessão aguda. Fenómenos semelhantes se puderam observar nas crises financeiras da Rússia, no final da era Yeltsin, e da Argentina, na viragem do século. Em 2001 estourou a bolha dotcom em todo o mundo e desapareceram dos écrãs os "novos" mercados, com a sua capitalização bolsista astronómica de pequenas empresas de Internet, o que trouxe consigo uma curta recessão global. Todas estas crises têm uma coisa em comum: foram limitadas a uma região mundial, ou a um sector, e pareciam por isso controláveis, especialmente através da política de juros baixos ou nulos dos bancos centrais, para a qual o Japão tinha fornecido o padrão. Esta enchente de dinheiro dos bancos centrais, particularmente do FED norte-americano, não apenas produziu a maior bolha imobiliária de todos os tempos, mas também alimentou assim uma inesperada conjuntura de deficit, que se reflectiu principalmente no circuito de deficit do Pacífico entre os E.U.A. e a China, e que conseguiu manter por alguns anos a economia mundial. Ainda no início do verão de 2008, o crescimento era extrapolado pelos institutos económicos para as próximas décadas, apesar de todos estarem conscientes dos “desequilíbrios” da via de exportação de sentido único do Pacífico. Mas o problema foi minimizado e não mais levado a sério, tendo em conta a factualidade aparente de um "crescimento financeiramente induzido".
A falência do Lehman Brothers, no outono de 2008, trouxe à luz do dia que a economia globalizada das bolhas financeiras estava na realidade completamente esgotada. A reacção em cadeia global que provocou abrangeu simultaneamente não só todos os centros, mas até ao último recanto do sistema mundial, da Islândia ao Cazaquistão. A economia global baseada no deficit ficou sem combustível. Já não foi possível dominar esta quebra com uma inundação adicional de dinheiro dos bancos centrais. Em toda a parte teve de intervir o crédito público, numa dimensão que ultrapassou até mesmo a das economias de guerra anteriores. Os pacotes de resgate para o sistema bancário não sanearam os balanços, apenas os mantiveram à tona temporariamente. Programas públicos adicionais de estímulo à economia, na mesma ordem de grandeza, puderam de facto impedir a queda total, mas o problema apenas foi deslocado das bolhas financeiras para as finanças públicas.
As consequências fizeram-se notar em primeiro lugar com a ameaça de falência da Grécia e com uma correlativa crise da União Monetária Europeia. A Grécia é o elo mais fraco da zona euro e esta é o elo mais fraco do sistema monetário internacional, porque o euro foi imposto como moeda artificial a níveis nacionais de produtividade completamente diferentes e com diferente força financeira, e só era adequado para a corrente de exportação unilateral da economia baseada no deficit. Esta crise monetária, porém, também tem uma qualidade diferente das anteriores; ela é o prenúncio de uma crise geral das finanças públicas, que irá abranger não só os países centrais europeus, como a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha, mas também os E.U.A. e a China.
Actualmente, gosta-se de acreditar que os pacotes de resgate terão restaurado a "confiança" no precário sistema financeiro e que as montanhas de créditos malparados terão voltado a ser títulos negociáveis, devendo os enormes programas de estímulo económico desencadear a “retoma” de uma economia mundial auto-sustentada. Este discurso de fim de alarme, que se agarra à aparência dos fenómenos e que se arrasta de trimestre para trimestre, no entanto, fez contas de merceeiro relativamente às leis sistémicas capitalistas subjacentes. O processo de crise em curso desde 2008 não é apenas o culminar global das manifestações de crise parciais nas últimas três décadas, pelo contrário, também difere de todas as anteriores crises conjunturais ou estruturais.
Assim amadureceu a secular auto-contradição interna da valorização do capital, que pode ser descrita em duas fases. Em primeiro lugar, o desenvolvimento da produção forçado pela concorrência, com a aplicação da ciência à produção, fez com que a percentagem de capital físico (máquinas, etc.) fosse cada vez maior em relação à parte da força de trabalho. Para se poder utilizar mesmo uma única força de trabalho produtiva de capital, foi sendo necessário mobilizar um agregado material cada vez maior (aumento da intensidade de capital). Assim, os custos mortos da valorização do capital cresceram de tal forma que cada vez menos puderam ser financiados com os lucros correntes (as máquinas apenas transferem valor anteriormente produzido, mas não criam novo valor). O resultado foi uma expansão histórica do sistema de crédito a todos os níveis (empresas, Estado, privados). A fim de poder produzir mais-valia actual, foi necessário antecipar cada vez mais a mais-valia futura, sob a forma de crédito. Essa contradição era suportável enquanto a dívida pôde ser servida a partir da produção corrente de mais-valia real. Com a terceira revolução industrial da microeletrónica desde o fim da década de 1970, no entanto, extinguiu-se este mecanismo de compensação; a força de trabalho produtora de mais-valia real foi sendo sucessivamente racionalizada, numa nova dimensão histórica. Assim, as cadeias de crédito, sacado sobre um futuro cada vez mais distante, ficaram sob ameaça de ruptura e romperam-se efectivamente em cada vez mais lugares. Não é por acaso que a entrada em acção da terceira revolução industrial coincide com o início dessa série de crises financeiras, económicas e monetárias, que hoje atingem o seu ponto culminante.
A chamada revolução neo-liberal não foi um projecto político subjectivo, mas uma fuga para a frente, dado o problema objectivo da falta de produção de mais-valia real. O que agora é apresentado ingenuamente como erro histórico, ou seja, a ampla desregulamentação dos mercados financeiros era, de facto, a única forma possível de atrasar o colapso do sistema mundial. A valorização do capital virtualizou-se sob a forma de um "capital fictício" já insusceptível de ser coberto pela substância de valor real; a economia baseada na dívida transformou-se numa economia de bolhas financeiras (acções e imóveis), com derivados cada vez mais aventureiros. Esta relação desenvolveu-se durante mais de duas décadas, numa economia real deficitária, sem precedentes na história capitalista. A conjuntura económica de deficit merece, portanto, ser assim designada porque a valorização aparente não se manteve, como nas anteriores bolhas de curto prazo, no céu financeiro, mas foi destinada, como poder de compra não substancial, ao consumo das classes médias (perante a queda dos salários reais), bem como ao investimento na economia real, ela própria tornada irreal segundo critérios capitalistas, estimulando assim a conjuntura económica global. Os milhões de postos de trabalho aparentemente reais nas indústrias viradas unilateralmente para a exportação são uma ilusão de óptica, porque a venda dos seus produtos não assenta em lucros e salários reais, mas é alimentada a partir de uma superstrutura de crédito tornado duvidoso e de bolhas financeiras.
Já a enchente de dinheiro dos bancos centrais, que consumou a ruptura com a doutrina monetarista do neoliberalismo (limitação da massa monetária), foi uma medida de emergência desesperada. A recente deslocação do problema para o crédito público certamente que não resolve o problema, só o empurrando para a queda, que é de esperar para breve. Em nenhum lugar se vêem novos potenciais de valorização real, para os quais os programas públicos de estímulo económico pudessem ser um detonador. Assim, a ligação interna da crise financeira, económica e monetária revela-se como barreira histórica intrínseca ao capital, no nível por ele próprio gerado de desenvolvimento das forças produtivas e de aplicação da ciência à reprodução. O grau alcançado de socialização negativa (na base do valor e da concorrência) já não pode ser enquadrado nas categorias capitalistas.
A seu ver, quais são agora os riscos de inflação ou deflação?
Inflação e deflação são apenas duas formas diferentes de desvalorização dos estados de agregação do capital. O desemprego em massa estrutural, a precarização e os baixos salários à escala mundial, como resultado da terceira revolução industrial, já trouxeram uma desvalorização deflacionária da mercadoria força de trabalho, ou seja, de acordo com Marx, da componente “variável” do capital (a única que produz novo valor). O reverso foi a economia das bolhas financeiras, a construção de direitos ou créditos não substanciais e, portanto, fictícios, como inflação de activos (asset inflation). A cadeia global desta inflação de activos pôde manter-se por mais tempo, sem se transformar numa grande desvalorização do próprio meio que é o dinheiro, porque se estendeu por muitas zonas monetárias. Apesar disso, essa desvalorização era previsível na fase final da última conjuntura de deficit, quando as taxas de inflação em muitas economias emergentes, incluindo China, se aproximavam dos 20 por cento e era esperada para os E.U.A., no final de 2008, uma taxa de 6 a 10 por cento. No fundo, a criação de poder de compra sem substância, através das bolhas financeiras, apesar de suas complexas vias de mediação global, tinha levado ao mesmo resultado final que o clássico recurso à impressão de notas.
Este cenário foi afastado, no entanto, quando o crash dos mercados financeiros de um só golpe queimou biliões de dólares e euros de activos fictícios, ou os remeteu para os cofres dos bancos na forma de papéis tóxicos, na verdade sem valor, mas garantidos por avales estatais, e que passaram a ser contabilizados fora do balanço. A inflação de activos não se transformou em inflação do dinheiro, mas em deflação de activos. Uma vez que desta forma o mecanismo até então existente da economia de deficit chegou repentinamente a um impasse, teria de seguir-se uma redução igualmente rápida do excesso de capacidade global de produção instalada (em particular na indústria automóvel), que havia sido construída apenas por causa do influxo de poder de compra fictício, a partir das bolhas de endividamento e de financiamento; portanto, uma desvalorização generalizada de capital fixo nas fábricas (meios de produção) e de capital mercadoria no mercado (mercadorias invendáveis), associada a um novo surto de desvalorização da força de trabalho (despedimentos colectivos). Até agora continua de facto uma onda global de falências, mas a deflação do capital fixo e do capital em mercadorias pôde ser abrandada temporariamente, graças a programas estaduais gigantescos financiados a crédito. Tanto no sector financeiro como no sector produtivo foi, assim, impedido o famoso “saneamento”, contra as tão amadas leis do mercado, porque, na ausência de novos potenciais de valorização real, após esse “saneamento” restaria apenas um deserto económico.
A desmontagem do excesso de capacidades, no entanto, fica apenas adiada; ela será executada num futuro próximo pela crise das finanças públicas. Todos os programas de estímulo e de ajuda económica são, em última análise, consumo público improdutivo, ainda que, com ele, as empresas que dão nas vistas sejam mantidas vivas através de respiração artificial. O Estado teria de servir o crédito para esse consumo através da taxação (impostos) sobre lucros e salários, a partir da produção de mais-valia real. É aqui que a cobra morde a própria cauda, porque toda a manobra só se torna necessária precisamente porque a produção de mais-valia real já não ocorre em volume suficiente. Ultima ratio numa situação assim desesperada é mesmo pôr a trabalhar a impressora de notas, tal como aconteceu, como é sabido, na economia de guerra, mas agora com a finalidade de prolongar artificialmente a vida do modo de produção capitalista.
Os bancos centrais já cortaram algumas válvulas de segurança, ao aceitarem como “garantia” parcialmente, contra as suas próprias regras, títulos tóxicos dos bancos, ou ao comprarem títulos públicos potencialmente sem valor dos candidatos à bancarrota nacional (BCE). Por um lado, assim se faz agulha para o desenvolvimento dum enorme potencial de inflação, ou seja, para a desvalorização do próprio meio capitalista que é o dinheiro, do qual partem todos os estados de agregação do capital e no qual eles têm de ser convertidos de volta. Uma vez que a inundação de dinheiro dos pacotes de resgate e dos programas de estímulo públicos é injectada directamente nas respectivas zonas monetárias (ao contrário da inundação de dinheiro dos bancos centrais para os mercados financeiros transnacionais), o período de incubação para a realização do potencial inflacionário é muito menor do que no caso da economia transnacional das bolhas financeiras. Em contrapartida, evita-se, precisamente por isso, ligar a impressora de notas. A actual estabilização relativa, num nível inferior ao dos tempos de boom da conjuntura de deficit, é suportada unicamente pelos programas públicos; tendo em conta a situação real da valorização, o Estado teria de subsidiar permanentemente a economia, e isso só seria possível através da impressão de notas. Por conseguinte, os programas de poupança e as operações de resgate neutralizam-se reciprocamente.
Esse dilema assumirá a sua forma contínua. O impacto destas medidas, que se excluem mutuamente, não consegue levar a que deflação e inflação simplesmente se anulem reciprocamente e se dissolvam no ar. Uma vez que, tanto no caso da inflação (em referência ao dinheiro como tal), como no caso da deflação (em referência à força de trabalho, aos activos monetários, ao capital físico e ao capital em mercadorias), se trata apenas de diferentes formas de desvalorização dos elementos da reprodução capitalista, elas também podem ocorrer, em princípio, simultaneamente. Esse será tanto mais o caso se a política monetária e económica, impulsionada pela necessidade, oscilar entre opções contraditórias. Já no final dos anos setenta e início dos anos oitenta ocorreu simultaneamente, como primeira consequência da falta de valorização real, estagnação deflacionária e inflação crescente (estagflação). Essa foi precisamente a razão da revolução neo-liberal, a qual, no entanto, com a economia desregulada das bolhas financeiras, apenas conseguiu um adiamento histórico. Agora o problema de então regressa numa escala muito maior de contradições internas. É possível, portanto, tanto um choque inflacionista como um choque deflacionista, se a orientação for inteiramente por uma das opções conflituantes, ou um período de estagflação, com oscilações essencialmente muito mais violentas do que há 30 anos atrás, se ambas as opções se revezarem mutuamente, com medidas mutuamente excludentes em rápida sucessão.
Críticos do neoliberalismo acusam os políticos alemães de, no caso da crise orçamental grega, apresentarem erroneamente as relações, estrangularem o conceito de Estado de bem-estar social com as imposições de poupança do FMI, e tentarem impor soluções absurdas. Você concorda com os críticos, ou, na sua opinião, essa avaliação passa ao lado do cerne do problema?
Uma mera crítica do neo-liberalismo (como é o caso da ATTAC e de grande parte da esquerda) é curta, porque não penetra no funcionamento interno da crise, mas apenas gostaria de assistir a uma política económica ilusória. Ligada a esta está a esperança de uma viragem keynesiana, que traria de volta um capitalismo "bom", com investimento em postos de trabalho e com as gratificações do Estado de bem-estar social. Trata-se de sonhos idealistas que passam, de facto, ao lado do cerne do problema, pois tanto a doutrina neoliberal como a doutrina keynesiana igualmente pressupõem de forma cega o modo de produção capitalista, com suas categorias e critérios. Porém, sob as condições qualitativamente novas da crise, é o próprio modo de produção dominante que constitui o problema. O keynesianismo está regressando apenas como gestão de crise e de estado de emergência, ou seja, como continuação do neoliberalismo por outros meios. Assim só podem agravar-se as contradições internas.
É verdade, no entanto, que não são só os políticos alemães a deturpar as relações e a buscar soluções absurdas; também a esperança vã de um Estado de bem-estar social keynesiano re-regulado é em si uma abordagem absurda. Onde está o absurdo? Para além do grande circuito de deficit do Pacífico, houve também um circuito menor de deficit europeu, para o qual o euro foi realmente concebido e, na verdade, no interesse da Alemanha. Os enormes excedentes de exportação alemães foram e vão em mais de 40 por cento para a União Europeia e em particular para a zona euro. Estes excedentes são a contrapartida dos deficits comerciais e de serviços dos países da União Europeia, especialmente do sul da Europa. Estes foram objecto de concorrência desleal, com a ajuda do euro, porque deixou de haver compensação através da desvalorização das moedas nacionais. Uma vez que, em toda a parte, a reanimação relativamente fraca da economia de deficit é suportada transferindo o problema da economia das bolhas financeiras para o crédito público, agora os deficits orçamentais dos países europeus vizinhos constituem o reverso de uma grande parte da ascensão das exportações alemãs.
As elites alemãs não querem reconhecer esta relação nem pôr a descoberto as pretensas vantagens na exportação. Aqui se enquadra, além da União Monetária, o facto de a Alemanha, desde o plano Hartz IV e não só, dispor do maior sector de baixos salários da Europa, e de os salários reais neste país, com o apoio dos sindicatos que ainda se mantêm, terem declinado mais rapidamente do que em outros lugares. O constante aumento dos excedentes de exportação nesta base levou a uma relativa solidez financeira da Alemanha. Mas agora os fundamentos deste modelo de negócio são postos em causa. Dentro da União Europeia, manifesta-se um conflito entre os países com deficit e a Alemanha. Também na escala maior das relações transatlânticas se inverteram as frentes da política económica. Os E.U.A., o país com maior deficit, bem como os europeus do sul, exigem que a Alemanha desista de qualquer política de poupança e impulsione o consumo interno para reduzir os desequilíbrios. O mundo está às avessas: o antigo pioneiro do neo-liberalismo exige agora uma política económica diametralmente oposta, assumindo um partido que os sindicatos alemães não se julgam capazes de tomar. Isso parece vir ao encontro das esperanças keynesianas, mas não deixa de ser disparatado, na medida em que apenas forçaria a opção inflacionista. Tal como o Directório Executivo do FMI, os E.U.A. e partes da União Europeia namoriscam com a ideia de uma suposta “inflação controlada", para lidarem com o dilema; mas, dada a situação económica, rapidamente se perderia o controlo.
A contradição interna da União Monetária Europeia já se agudizou de tal maneira que recentemente se tornou necessária uma gigantesca acção de resgate das finanças públicas gregas, à qual se poderão seguir outras (Espanha, Portugal, Itália, Irlanda e Europa Oriental). Não se tratou de qualquer ajuda desinteressada à Grécia, mas sim de uma operação de apoio especialmente aos grandes bancos alemães e franceses, que não se conseguem livrar de centenas de milhares de milhões de títulos de dívida pública grega, cuja desvalorização provocaria novamente um colapso no sistema financeiro. Este resgate orçamental provisório tem o mesmo carácter que os pacotes de resgate após o estouro de bolhas financeiras, agora ao nível das finanças públicas. A medida aplica-se apenas ao problema de títulos de dívida pública já colocados. Para evitar a possibilidade da inflação, a Alemanha assume agora a pose do pai de família da Suábia, pretendendo condenar os gregos e outros duvidosos pecadores do deficit e forçá-los a violentos programas de poupança. No entanto, se estes fossem realmente levados à prática, também o milagre da exportação alemã teria de quebrar de vez. Este é o outro lado do absurdo. O chauvinismo da exportação alemã assenta em pés de barro, porque se baseia precisamente nos deficits dos outros.
Não é possível fugir a este dilema. As elites, naturalmente, no fundo têm consciência disso. As demissões, com desculpas esfarrapadas, de titulares de altos cargos políticos, ultimamente do Presidente federal alemão Köhler, são um indício de que, nos bastidores do optimismo oficial profissional, as coisas se mantêm com bastante dificuldade. Isto poderá repetir-se noutros países. Uma saída clássica do problema à maneira de Helmut Kohl não é mais possível. Assim, perseguem-se mutuamente ideias de solução contraditórias, as quais precisam de ter sempre em vista as sondagens eleitorais, enquanto não se chega a uma ditadura de emergência ou se descamba numa briga geral. O modo de produção capitalista não pode ser posto em causa, portanto, tal como na primeira fase da crise financeira, anda-se à procura de culpados. O combate do governo preto-amarelo não é específico dos seus partidos, pelo contrário, dada a situação problemática, seria repetido em qualquer coligação. Não admira que alguns combatentes joguem a toalha ao chão.
Pode dar uma opinião sobre o que vai acontecer nos próximos tempos?
Uma vez que as políticas monetárias e económicas são contraditórias, é de esperar uma segunda onda da crise económica global nos próximos anos. A qual poderia tomar como ponto de partida a prova de fogo da União Monetária Europeia. Em casos como a Grécia, trata-se, formalmente, de um cenário semelhante ao que sofreu a Argentina há uma década atrás. Mas esta crise estava limitada a um único país quase sem peso na economia mundial. Muito diferente é o caso da ameaça de falência de um Estado dentro da zona euro, pois isso pode lançar toda a União Monetária no abismo. O colapso do circuito de deficit europeu atingiria a economia de exportação alemã até ao tutano e assim se perderia a actual força financeira da Alemanha. Isto significaria grandes falências e despedimentos em massa até aqui adiados neste país e não só. Também as finanças públicas alemãs, em todo o caso já endividadas, chegariam a uma situação semelhante à actual situação das finanças públicas gregas, se, após o desabamento das exportações unilaterais, a notação de crédito nos mercados financeiros fosse por água abaixo. Tal desenvolvimento seria um desastre não só para todo o espaço europeu, mas também para a conjuntura económica global, dada a importância da Europa na economia mundial.
A situação não é melhor no grande circuito de deficit do Pacífico, entre a China e os E.U.A. Lá, de ambos os lados se espera que os outros criem as condições para uma maior estabilidade. Os programas governamentais de estímulo e os subsídios nos Estados Unidos realmente sustiveram em parte a queda do consumo, ainda que não tenha sido possível atingir novamente o nível anterior à crise; mas foi à custa de o crédito público financiado no exterior ter atingido os seus limites, e de ter surgido a perspectiva de ser posto em causa o financiamento da máquina militar e das missões de combate, que são a garantia da posição de potência mundial. Os Estados Unidos exigem à China uma valorização há muito adiada da sua moeda de país com excedentes de exportação e, tal como em relação à Alemanha, um reforço do consumo interno financiado a crédito, para diminuir o desequilíbrio dos fluxos comerciais e para reforçar as suas próprias exportações, que devem compensar o fraco consumo interno. Mas os Estados Unidos, na maioria dos sectores industriais, não têm a capacidade de exportação necessária, cuja construção exigiria elevados custos de investimento. Além disso, teriam de ser reduzidas na China as capacidades correspondentes, porque as empresas dos E.U.A., tal como as empresas europeias e japonesas, investiram pesadamente na China, devido à vantagem dos custos, para abastecer o mercado próprio e os alheios.
Mas a China, por seu lado, tal como a Alemanha, não gostaria de abrir mão da sua vantagem nas exportações, baseadas no trabalho barato e numa moeda artificialmente subvalorizada, porque em ambos os casos toda a economia está voltada para as exportações unilaterais. Uma mudança que levaria anos, se não décadas, a implementar, mas rapidamente esbarraria nos seus limites, porque tais desequilíbrios e seu frágil financiamento a crédito já constituíram justamente o elixir vital da conjuntura económica global. É verdade que a China, com o seu fundo de enormes reservas de divisas, lançou o maior programa de estímulo económico de todos os países e de todos os tempos, tendo obrigado os seus bancos a empréstimos maciços. É por isso que não pode permitir qualquer correcção monetária séria, porque isso seria desvalorizar suas reservas de divisas maciçamente acumuladas. Os programas de estímulo económico da China fortalecem o consumo interno apenas de forma indirecta, e não na medida do necessário para por si poderem puxar a economia mundial, como acontecia antes com o consumo dos E.U.A. financiado externamente. A maioria dos programas flui para infra-estruturas e capacidades de produção adicionais, todas elas orientadas no sentido de que a máquina de exportação unilateral volte a arrancar. Se não for esse o caso, então a China ficará com enormes investimentos arruinados, com as consequências correspondentes para o sistema financeiro. Além disso, a China não pode sustentar um programa desse tipo e, simultaneamente, continuar a comprar títulos do tesouro aos E.U.A. na mesma medida que até agora.
Na zona do Pacífico repete-se, portanto, o dilema europeu numa escala maior. Ambos os circuitos de deficit caminham presentemente para o desabamento, que apenas continua a ser travado, sendo flanqueados pela economia interna, alimentada a custo com base programas públicos de estímulo económico. Se estes acabarem, correm o risco de desmoronar. A segunda onda da crise global tanto pode vir da região do Pacífico, como da Europa, ou de ambas ao mesmo tempo. Todas as histórias de sucesso actuais são apenas instantâneos, com os quais já se está a contar para os próximos anos ˗ tal como no auge da economia global de deficit, entre 2007 e o verão de 2008. Actualmente as percentagens de sucesso do crescimento e das exportações são ainda mais duvidosas do que então, porque partem de um nível inicial muito inferior, após a queda da conjuntura económica mundial. O pensamento positivo resiliente caminha para o seu Waterloo, que está próximo. A questão é apenas saber que período de incubação requer desta vez a nova situação contraditória até se descarregar. O que só pode ser um consolo para o pensamento de curto prazo da economia de mercado, cujo horizonte não vai além do próprio nariz.