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Primeira Edição: Weltwirtschaftskrise, soziale Bewegung und Sozialismus. 12 Thesen em www.exit-online.org. Comunicação apresentada na Conferência do Fórum Marxista da Saxónia em 14.11.2009
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
1. Segundo a actual “formação de opinião” nos média, na política e na ciência económica, a crise económica mundial já não deve existir. Os discursos de fim de alarme sucedem-se diariamente. Gostaria de se acreditar que, aconteça o que acontecer, dentro de um ano tudo vai pertencer ao passado. Talvez não tenha sido assim tão grave; há que esquecer o grande susto geral nos meses após o colapso do Lehman Brothers e as ondas de choque que se lhe seguiram. Ao mesmo tempo, tem de se admitir que o novo crescimento esperado após o colapso global começa a um nível muito mais baixo; levaria muitos anos até se chegar outra vez ao nível de acumulação de antes da crise. As consequências disto raramente são discutidas. Nesta situação, é apropriado pôr em evidência a base epistémica para a "formação de opinião". Base que é constituída por um pensamento positivista, o qual reconhece apenas factos imediatos, dissociados do seu contexto social mundial e do seu devir histórico. O método consiste numa "projecção" (extrapolação) de dados empíricos isolados e de sondagens de "opinião". Esta forma de abordagem falhou grandiosamente no passado recente. Ainda no início do Verão de 2008 se extrapolava com optimismo profissional o suposto crescimento da economia mundial até 2020. Aparentemente, a crise desabou do céu limpo. Podemos, pois, concluir que a percepção e a metodologia positivistas não podem dizer nada sobre o desenvolvimento real. O que também se aplica ao actual discurso de fim de alarme. Se a maioria da esquerda académica e política nem sequer conseguiu prever a crise económica mundial, isso indica que ela já há muito tempo adaptou momentos do pensamento positivista e que está pouco a par da teoria da crise.
2. Um componente importante da actual formação de opinião positiva é a esperança de uma dinâmica de acumulação na Ásia (sobretudo na China), pela qual agora a economia mundial há-de ser impulsionada. Ignora-se aqui a estrutura dessa dinâmica. O crescimento record da China na primeira década do século XXI baseou-se 60 por cento nas exportações, especialmente para os Estados Unidos. Em contrapartida, o crescimento nos Estados Unidos baseou-se 70 por cento no consumo. Tratava-se de uma conjuntura económica de deficit unilateral no Pacífico, pela qual foi impulsionado o crescimento global. Este volante paralisou. Embora a quebra do consumo nos Estados Unidos ainda não esteja plenamente consumada, as exportações chinesas nos três primeiros trimestres de 2009 caíram 25 por cento. Nada indica que a China possa alternar para um consumo interno, susceptível de compensar esta diminuição quantitativa ainda que aproximadamente, ou até mesmo de trazer uma dinâmica de crescimento global. O consumo alargado da classe média chinesa era apenas o produto residual do fluxo das exportações de sentido único. A crise do crescimento da China tem sido compensada nos últimos meses apenas por um gigantesco plano público de recuperação económica, que vai numa pequena parte para o consumo e na maior parte para investimentos em infra-estruturas (aeroportos e portos, estradas e ferrovias etc.) bem como para a especulação imobiliária. Este programa é financiado a crédito pelo Estado e pelos privados, com a particularidade de os bancos serem forçados a assumir todo o risco, contra a sua racionalidade empresarial própria, ao contrário do que acontece no Ocidente. Supõe-se que a conjuntura económica de deficit unilateral do Pacífico voltará a subir e que o nível anterior voltará a ser rapidamente atingido e ultrapassado. Mas isso é extremamente improvável. Ora, se essa expectativa não ocorrer, revelar-se-ão como ruínas de investimento não só os actuais programas de infra-estruturas, mas também as capacidades excedentárias construídas por módulos nas zonas económicas de exportação. Então também a China será apanhada pelo megacrash financeiro, apenas com algum atraso. Também neste aspecto se pode observar que grande parte da esquerda se entrega à mesma ingénua expectativa que a opinião pública burguesa, sem conseguir apresentar um fundamento analítico para tal.
3. Não só na China, mas em todo o mundo a suposta recuperação dos últimos meses baseou-se exclusivamente em programas públicos de apoio à conjuntura económica, ou seja, afinal, em consumo público financiado a crédito. Estes programas podem ser facilmente operados com as capacidades construídas durante a conjuntura de deficit. Eles não requerem novos investimentos do capital privado, pois as capacidades existentes continuam altamente subutilizadas, apesar destes programas. É de esperar, pelo contrário, uma pressão para a redução do excesso de capacidades instaladas em todas as áreas-chave. Por tudo isto os programas conjunturais não dão qualquer ajuda para o muito invocado crescimento auto-sustentado. Para tanto seria necessária uma conjuntura de investimento privado para a qual não existem quaisquer bases. O inflado consumo público, cujo financiamento é alimentado directamente na área monetária, contém no entanto um enorme potencial inflacionário, se tiver que substituir a longo prazo a acumulação autónoma de capital. No dilema do crescimento forçado não mais viável, os Estados aceitam uma inflação galopante, com o objectivo de aguentar a conjuntura bem artificialmente por algum tempo e desendividar-se depois via inflação. Mas isso iria acabar por ter, uma vez mais, consequências devastadoras para a própria acumulação de capital. E mais uma vez é de notar que boa parte da esquerda, tal como da opinião pública burguesa inclinada para a opinião formada pela esquerda, gostaria de considerar o Estado com capacidades superiores, como deus ex machina e lender of last resort (financiador de última instância), sem terem pensado suficientemente esta opção e as suas consequências.
4. Uma análise puramente fenomenológica da crise económica mundial já mostra que as suas causas não estão a ser eliminadas pelas manobras de recuperação até agora adoptadas. Uma análise histórica que vá mais fundo pode demonstrar que estas causas remontam aos anos oitenta do século passado. Depois de se ter esgotado a dinâmica de acumulação fordista do pós-guerra, não se concretizou o esperado potencial de valorização real em novas áreas tecnológicas (tecnologias da informação, biotecnologia etc.). A tentativa de adiar os problemas de valorização em primeiro lugar através do consumo público já então fracassou e resultou em inflação. A política neo-liberal de desregulamentação limitou-se a transferir o problema do crédito público para os mercados financeiros transnacionais. Formaram-se as célebres bolhas financeiras que, durante mais de duas décadas, pareciam gerar uma acumulação virtual insubstancial. Esta acumulação aparente foi acompanhada por uma cerrada cadeia de crises financeiras parciais, em diferentes países, regiões e sectores (da crise da dívida dos países do Terceiro Mundo, passando pelo crash financeiro nos E.U.A. e no Japão no final dos anos oitenta e início dos anos noventa, pela crise das economias dos Tigres Asiáticos, pela crise russa, pela crise bancária escandinava e pela crise da Argentina, até ao crash das dotcom depois da viragem do século), crises que não foram percebidas em sua coerência interna e pareceram susceptíveis de serem dominadas com a maré cheia de dinheiro dos bancos centrais. A nova crise financeira mundial é a primeira global, que já não pode ser contida com os meios habituais. O modelo oficial de explicação resume-se a designar como um "erro histórico" a desregulamentação neoliberal e a reduzir a crise a "excessos" dos banqueiros no céu financeiro os quais, infelizmente, se teriam repercutido na “economia real” saudável. Na verdade, verificou-se exactamente o contrário. Desde os anos noventa ocorreu uma reciclagem das bolhas financeiras na chamada economia real, que alimentou o poder de compra, já sem substância de valor real, para o consumo e o investimento na reprodução capitalista e, desde então, produziu as conjunturas de deficit. O potencial inflacionário deste “keynesianismo do mercado financeiro", foi distribuído pelas zonas monetárias globais e só começou a manifestar-se no auge da conjuntura de deficit (quase 20 por cento na China, esperados seis por cento nos E.U.A.), mas foi ofuscado pelo choque da desvalorização do capital financeiro, para se restabelecer agora com os programas públicos. Porque o padrão de explicação oficial é falso, também a ambicionada re-regulamentação não arranca, tendo sido, pelo contrário, adiada para um tempo imaginário "depois da crise". Não existe qualquer "acumulação real" saudável e a sua dinâmica há muito tempo esgotada já só pode ser prorrogada através de precários programas de simulação, em que as bolhas financeiras possíveis após o choque da desvalorização já não têm força para a reciclagem numa nova conjuntura de deficit, e em que o crédito público já esbarra nos seus limites a curto prazo. Está neste contexto o pior erro de grande parte da esquerda. Mesmo antes do colapso global, os movimentos de crítica da globalização e a esquerda política, numa "crítica reduzida do capitalismo", tinham maioritariamente responsabilizado a especulação financeira pelas manifestações de crise sociais e económicas, pondo assim de pernas para o ar a relação entre causa e efeito. Portanto, não é a esquerda que segue aqui o falso modelo de explicação da opinião pública burguesa; pelo contrário, esta é que foi buscar o seu modelo de explicação ao mainstream da esquerda.
5. Mesmo a análise histórica da dependência recíproca entre a falta de dinâmica de acumulação real do capital global e a formação de uma economia de bolhas financeiras transnacionais ainda fica limitada às aparências. Uma explicação adequada só é possível com referência à crítica da economia política de Marx. Marx analisou a dinâmica histórica do capital e o seu “limite interno” num plano conceptual abstracto. A sua exposição categorial afasta-se do pensamento positivista, porque argumenta no plano da substância do valor insusceptível de reconhecimento empírico imediato, plano que não se confunde com o conceito de criação de valor da economia nacional ou da economia empresarial, em cujas contas não aparece a conexão de quantidades de trabalho abstracto, substância de valor real, ciclos de giro do capital físico e do capital-mercadoria, criação de moeda e sistema de crédito, ou seja, o movimento real só é reproduzido de forma distorcida. A análise categorial de Marx da dinâmica de acumulação mostra a auto-contradição interna do modo de produção capitalista baseada na crescente composição orgânica do capital. A proporção crescente de capital constante (o capital físico "morto", que transmite valor, mas não cria valor) em comparação com o capital variável (a força de trabalho que cria valor e mais-valia) em cada capital-dinheiro aplicado leva à queda tendencial (histórica) da taxa de lucro. Esta expressão relativa da auto-contradição pode ser compensada pelo impacto no conjunto da sociedade de um aumento relativo da mais-valia por força de trabalho (redução do valor desta através do desenvolvimento das forças produtivas), mas só se, ao mesmo tempo, a utilização de capital-dinheiro e, portanto, a aplicação de força de trabalho aumentar em conformidade e levar a uma massa de lucro crescente, apesar da queda da taxa de lucro. Aqui também se faz notar a auto-contradição, na medida em que os custos prévios sempre crescentes do capital físico já não podem ser adequadamente financiados pelos lucros do passado, mas obrigam ao recurso também crescente ao sistema de crédito. Deste modo, o capital tem de recorrer cada vez mais à antecipação da mais-valia futura, para manter em funcionamento a produção de mais-valia actual. Daqui se pode concluir por um limite interno histórico da valorização, se o uso adicional de força de trabalho, mesmo com aplicação crescente de capital-dinheiro, já não tem sucesso suficiente, e se as cadeias de crédito por antecipação do futuro distante se rompem, caindo também assim a massa do lucro. O desenvolvimento na base da terceira revolução industrial desde a década de oitenta pode ser explicado neste sentido, ainda que, pelas razões apresentadas acima, não exista nenhuma evidência empírica, em termos de uma extrapolação positivista. Trata-se, porém, do "poder de abstracção" conceptual (Marx), para explicar os fenómenos reais, em vez de percebê-los como factos descontextualizados, que se possam interpretar arbitrariamente. As insuficiências apontadas de grande parte da esquerda podem ser atribuídas em última instância ao facto de se ter recorrido à teoria de Marx apenas de modo fragmentário. O nível categorial, na medida em que foi sequer tematizado, foi curto-circuitado com diagnósticos positivistas, pressupondo a eterna capacidade de produção de mais-valia relativa e de expansão do capital.
6. O cerne do problema é a categoria do trabalho abstracto, que é definida por Marx de modo claramente negativo, mas foi ligada a uma ontologia do trabalho positiva no marxismo tradicional. Deste modo, "o trabalho" não surgia como abstracção real especificamente capitalista, mas a substância do capital, que é o trabalho, surgia ao mesmo tempo como eterna condição humana. Sendo assim, o trabalho seria naturalmente inesgotável. Isso significava, para a teoria de crise, que era impensável um limite interno da própria substância da valorização, sendo a crise definida apenas ao nível das metamorfoses e desproporcionalidades na circulação do capital; nomeadamente como a chamada "crise de limpeza", que apenas repõe o equilíbrio perturbado da reprodução capitalista. Também a nova crise económica mundial assim é percebida, e aqui se baseia em última análise a sintonia com o horizonte de expectativa burguês. Daqui resulta também uma opção de acção que apenas pretende assumir influência sobre a reestruturação do processo de acumulação, pressupondo já este e excluindo à partida a possibilidade do seu esgotamento histórico.
7. Assim, a esquerda encontra-se numa sintonia com a consciência das massas absolutamente equivocada e insustentável na realidade, consciência esta que permanece passiva e sem força de mobilização. A internalização das categorias capitalistas como condições de vida inquestionáveis já fez um longo percurso. O movimento operário clássico, na fixação dos seus objectivos, manteve-se no terreno da forma de ser capitalista, e fez da substância deste ser, que é o trabalho abstracto, a base da sua legitimação. Mas esta auto-legitimação rompeu-se na terceira revolução industrial. O recuo global da classe operária criadora de mais-valia é apenas o reverso da crise substancial do capital. Os sectores de exportação chineses não constituem qualquer contraprova quantitativa, porque não têm como ponto de partida qualquer produção real de mais-valia, mas foram gerados apenas pelas bolhas financeiras, a partir dos anos noventa. Portanto, a invocação de uma “consciência de classe” baseada na criação de mais-valia real roda em falso. O "trabalho" perdeu a sua pretensa segurança ontológica. Ele está desmoralizado; e tanto relativamente à quantidade produtiva de capital em desaparecimento, como também por causa do seu carácter cada vez mais destrutivo e já não fundado nos conteúdos das necessidades vitais, e ainda por causa da sua precarização. Uma expressão dessa desmoralização é que o slogan oficial "qualquer emprego é melhor do que nada" está, ele próprio, inscrito na consciência das massas por força da ontologia do trabalho. Daqui deriva a esperança desesperadamente reduzida apenas a que a reanimação da dinâmica de acumulação possa ainda trazer melhorias. Assim se explica também a força eleitoral dos partidos liberais-conservadores até no núcleo remanescente da força de trabalho efectiva, e mesmo entre a população desempregada e supérflua.
8. Contramovimentos capazes de intervenção com o tradicional potencial de greve já só existem para os interesses particulares em posições-chave (maquinistas dos caminhos de ferro, controladores de tráfego aéreo), ficando pelo caminho os outros, como representantes de lobbys fracos (produtores de leite). Os movimentos de protesto com motivação de esquerda, com a sua crítica truncada do capitalismo, não vão além de acções simbólicas, com carácter de evento. Por outro lado, a orientação estatista da esquerda política corre o risco vir a dar na partilha da administração capitalista da crise (Linkspartei [Partido da Esquerda], em Berlim e noutros lugares). A tendência inevitável para o declínio é mais provavelmente digerida em formações ideológicas anti-semitas, racistas e sexistas. Também o feminismo da história recente é triturado pelo desenvolvimento da crise, porque o carácter estruturalmente androcêntrico das categorias capitalistas permanece obnubilado e já nem no movimento operário clássico fora objecto de qualquer reflexão. Simultaneamente, as novas classes médias tornadas quantitativamente dominantes sabem que o interesse do seu capital humano qualificado precarizado está dependente de que surja alguma produção de mais-valia real e, perante o desaparecimento desta, está dependente do crédito público e das bolhas financeiras. Por um lado, eles tornam-se assim portadores da crítica truncada do capitalismo reduzida ao capital financeiro; por outro lado, mantêm a esperança precisamente na reanimação deste.
9. Uma resistência generalizada contra a administração da crise, que até agora não está à vista, só é possível se for quebrada até certo ponto a concorrência universal. Sem dúvida que as reivindicações imanentes têm de constituir o ponto de partida. Isso inclui, por exemplo, um salário mínimo legal geral suficiente, um aumento drástico dos valores mínimos das transferências sociais e a paragem das privatizações de serviços públicos, na saúde e noutros campos. Mas, em primeiro lugar, tais reivindicações, dada a situação, já não se conseguem obter nos canais oficiais da política. A orientação estatizante na consciência das massas, tal como na esquerda, constitui um travão nesta questão, porque desta forma o problema é delegado no Estado. Seria necessário, em vez disso, um movimento social de massas já não meramente simbólico, com vontade e capacidade de paralisar a empresa capitalista mesmo na crise. Em segundo lugar, e verdadeiramente decisivo, tal movimento não pode mais ficar dependente do critério da capacidade de financiamento capitalista, o qual pressupõe uma acumulação de capital com êxito. Ele tem de explicar que os interesses vitais são inegociáveis e assumir-se conscientemente como "não responsável" perante o critério sistémico da financiabilidade. Se, de qualquer modo, o resultado da política da administração da crise é a inflação, só assim se pode conseguir capacidade de acção. Isto é condição para se perceber que a política tradicional de reforma com base na acumulação de capital, ou invocando o seu sucesso ("participação no êxito do crescimento"), se tornou obsoleta e, não por acaso, virou em contra-reformas socialmente repressivas. Assim fica excluída também uma política de esquerda como parteira e equipa reformadora de uma acumulação de capital reestruturada. Só pode tratar-se de um movimento de transição, que desenvolva uma nova consciência da inconsistência das condições capitalistas de vida e pretenda ir para além delas.
10. Assim fica também na ordem do dia a reinvenção do socialismo. Na realidade, a ameaça de que nós “também podemos fazer diferente" e lutar por uma sociedade para além do capitalismo foi sempre o catalisador e a força penetrante das reivindicações imanentes. No passado, uma crise económica mundial da dimensão da actual teria sido inevitavelmente motivo de actualização da passagem para o socialismo. Se esse objectivo, hoje, parece inconcebível para a maioria da esquerda, isso tem a ver, naturalmente, com a queda do socialismo real burocrático de Estado. Esta final foi celebrada mesmo na véspera do carnaval da abertura para a “liberdade”, cuja inverdade a esquerda não quer reconhecer. Já na ideologia do movimento operário clássico e, por maioria de razão, sob as coerções da "modernização atrasada", na periferia do mercado mundial, o conceito de socialismo se reduziu à nacionalização das categorias capitalistas, em vez de fixar como objectivo a sua abolição. O fracasso desta redução historicamente condicionada, porém, não foi processado criticamente, mas sim afirmativamente. Agora envergonha-se esta "chegada" ao capitalismo, cujos critérios (como a independência das “empresas”, as concessões à concorrência, a "liberdade” de formação de preços etc.) já tinham sido objecto de reformas no socialismo real e, muito antes do fim desta formação, já há muito tempo se tinham tornado paradigma do carácter inultrapassável das categorias capitalistas entre a esquerda ocidental.
11. Portanto, a orientação estatista da esquerda também não tem nada a ver com o objectivo historicamente falhado de um Estado dos trabalhadores, na base do trabalho abstracto ontologizado; pelo contrário, a esquerda está completamente obstinada com o Estado actual, tal como já antes o fizera a social-democracia nos anos vinte do século passado, para acabar aterrando em Godesberg e depois, com Schröder, no plano Hartz IV. O que resta é, por um lado, um keynesianismo de esquerda enfeitado com um pseudo-marxismo, que nunca passou de um “pacote de salvamento” ideológico da valorização do capital e que foi posto de parte pelas instituições capitalistas na década de oitenta. Se a sua revitalização é reclamada por partes da esquerda, na alegre esperança de renovação de uma reforma da política, tal não passa de uma ilusão, porque o novo keynesianismo de crise apenas pode executar a administração repressiva da crise e mais não representa que a continuação do neoliberalismo por outros meios. A questão premente do planeamento social dos recursos só aparece de uma forma perversa, como nacionalização da crise. Por outro lado, apresenta-se como complementar do keynesianismo de crise da "esquerda" o programa de uma “economia solidária” que, ultrapassando o contexto da socialização capitalista em estruturas alternativas particulares (pequenas cooperativas, comunas de auto-exploração, ajudas de bairro, hortas de subsistência, moedas alternativas regionais, etc.) propaga a ilusão num modo de vida e de produção “diferente” sobre a terra queimada do capital, programa este que poderá vir a ser assumido pela administração de crise. Outro aspecto das orientações alternativas de vistas curtas consiste em retomar a velha ideia de uma "democratização” empresarial. Mas uma co-gestão sob condições de crise mais não é do que tornar os empregados co-responsáveis pela subsistência na concorrência (fracasso no mercado das empresas ocupadas pelos trabalhadores na Argentina, corte voluntário de salários na Opel e na Arcandor).
12. Todos esses sucedâneos da transformação, ou do socialismo, falham basicamente o problema da "síntese social", feita pela forma geral da reprodução como forma do valor e da mercadoria, a qual só existe por causa da forma de mercadoria da força de trabalho. Um novo conceito de socialismo só pode ser conseguido na medida em que for rompida a internalização das formas de vida capitalistas através da forma de mercadoria da força de trabalho, do trabalho abstracto, da lógica de valorização e da forma de mercadoria da reprodução. Historicamente está na ordem do dia uma auto-administração social, para lá deste contexto social e formal, como planeamento consciente da aplicação dos recursos de toda a sociedade (recursos naturais, tecnologia, conhecimento), já não baseada na contabilização de unidades de trabalho abstracto; incluindo as infra-estruturas e os momentos da reprodução que não assumem a forma de mercadoria e que têm sido delegados nas mulheres. Tal objectivo de transformação socialista que vai mais longe precisa dum período histórico para se estabelecer; mas, simultaneamente, também é um pré-requisito para se poder mobilizar a resistência às restrições da administração de crise. Tal objectivo pode tornar-se compreensível na prática à medida que o decurso da crise económica mundial leve à desactivação de recursos vitais, em proporções nunca vistas, por falta de rentabilidade e de capacidade de concorrência ou de financiamento, apesar de existirem os meios materiais necessários. Se a crítica de esquerda do capitalismo quiser sair do desmoralizado combate de retaguarda e recuperar a ofensiva, ela precisa de quebrar essa casca e saltar por acima da própria sombra histórica.