O desvalor do desconhecimento
“Crítica do valor” truncada como ideologia de legitimação de uma nova pequena-burguesia digital

Robert Kurz

Maio de 2008


Primeira Edição: DER UNWERT DES UNWISSENS. Verkürzte „Wertkritik“ als Legitimationsideologie eines digitalen Neo-Kleinbürgertums in www.exit-online.org . Publicado na revista EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, 5/2008 [EXIT! Crise e Crítica da Sociedade da Mercadoria, 5/2008], ISBN 3-89502-266-1, 232 p., 12 Euro, Editora Horlemann Verlag, Grüner Weg 11, 53572 Unkel, Deutschland, Tel +49 (0) 22 24 55 89, Fax +49 (0) 22 24 54 29, http://www.horlemann-verlag.de/

Tradução: Boaventura Antunes, Virgínia Saavedra e Lumir Nahodil

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Nota prévia à edição impressa

1. Da crítica do valor à ideologia de círculo digital

2. A “irmã da mercadoria” e a Internet como “máquina de emancipação”

3. Forma do valor, substância do valor e reducionismo da ideologia da circulação

4. “Troca justa” e relações de uso capitalistas

5. A alma da mercadoria em acção: do “bem pago não sério” ao anti-semitismo estrutural

6. Produção de conteúdos, custos capitalistas e “reprodutibilidade sem trabalho”

7. Trabalho produtivo e improdutivo no conjunto da reprodução capitalista

8. A caminho de uma ontologia do trabalho secundária

9. O carácter social total da substância do valor e a ideologia de capital “produtivo” e “rapinante”

10. Desvalorização universal e teoria dos estádios de uma emancipação simulatória

11. Falso universalismo e exclusão social. A ideologia da alternativa digital como eldorado dos homens da classe média transformados em donas de casa

12. O ponto de vista dos idiotas do consumo virtual

13. Auto-administração da miséria cultural

14. A expropriação dos produtores e produtoras de conteúdos como abnegação social e ressentimento

15. Térmitas e formigas azuis. A biopolítica da “inteligência de formigueiro” digital

16. Realpolitik de pauperização dos candidatos a capos da administração de crise na cultura

Nota prévia à edição impressa

Com uma certa inevitabilidade, a crítica do valor segue o caminho de todas as inovações teóricas: “diferencia-se” e cinde-se; é vulgarizada e truncada, eclecticamente amalgamada com teoremas completamente diferentes e lançada contra os seus fundadores. Circulam versões pós-modernas e de ideologia iluminista “anti-alemã”, todas elas embalagens enganadoras. Contra isso, o critério teórico da verdade está em saber se a crítica radical às categorias fundamentais da moderna sociedade de dissociação e valor é sustentada consequentemente, ou se é feita regredir em parte ou obnubilada, tendo em vista a “salvação” da ontologia burguesa ou de algum dos seus elementos (trabalho, razão a-histórica, sujeito, universalismo androcêntrico das relações de dissociação). Este torcer e virar para trás da crítica categorial, pretensamente para baixar a tensão na praxis vigente, é sempre mediado com interesses imanentes burgueses de concorrência, auto-afirmação e “sensibilidade”; interesses não em último lugar de uma juventude de classe média ocidental precarizada, que gostaria de, na sua existência específica, se tornar o umbigo do mundo e modelar toda a crítica social nesse sentido; incluindo o paradigma da crítica do valor ou da crítica da dissociação (ver sobre isso o texto de Roswitha Scholz sobre a “angústia da classe média” nesta edição da EXIT!). http://obeco-online.org/roswitha-scholz8.htm

A mais tola tentativa de degradar a crítica radical e portanto categorial em ideologia de legitimação de uma “pseudo-actividade” (Adorno) existe hoje mais ou menos em determinados postulados de “práxis” da ideologia de alternativa, que nem sequer vão além duma luta social imanente no contexto do tratamento da contradição capitalista, mas pretendem guarnecer directamente nichos pretensamente “para além da forma da mercadoria”, como uma espécie de caramanchões da célebre “vida verdadeira na falsa”. Tais desejos beatos de, perante a socialização (mundial) negativa e evitando o conflito com a administração de crise, cuidar de um “bom dia-a-dia” na comunidade de terror de grupúsculos sectários de auto-administração de crise só colheram escárnio e maldizer no contexto originário da elaboração teórica da crítica do valor. Entretanto, esta versão degradada de uma “crítica do valor para o povo” de mesquinhos biscateiros sociais obteve uma certa saída; não em último lugar também porque alguns escribas secundários da crítica do valor originária, que conseguiram usurpar a marca “Krisis” com um golpe sujo, regrediram a este nível de falsa imediatidade. Uma vez que deste modo sobressaiu um palavrório de nova pequena-burguesia de “sensibilidade” e afectação, que se tornou balofo com a confusão pseudo-teórica, esta ideologia de datcha de pacifismo social refugiou-se consequentemente no espaço virtual, onde com toda a comodidade pode tornar-se “prática” com um clique de rato.

A polémica teórica que se segue dirige-se não só contra a superficial ideologia da alternativa digital, que ilusoriamente se imagina “para lá do dinheiro e da concorrência”, mas sobretudo contra a truncagem da crítica da economia de Marx que lhe está associada, cujos problemas são contornados ou postos de lado, em vez de os colocar de novo no campo do debate teórico. Naturalmente que sempre se pode questionar se não se estará a dar demasiada importância e relevo aos representantes deste pensamento da ideologia de legitimação de uma “crítica do valor” degenerada, ao figurarem eles como objecto de uma controvérsia explícita. Os completos freaks masculinos da Internet, que consideram o seu mundo aparente a “verdadeira vida”, confundem também a importância técnica do espaço virtual na reprodução do capitalismo ou na sua crise com a potencialidade social dos respectivos “círculos”; acresce ainda que, no interior desta comunidade, a interpretação “crítica do valor” é minoritária, enquanto na sua maioria eles se vêem mais como “empresários de si mesmos” pós-modernos, e com toda a razão. Mas também é característico da Internet que meia dúzia de convencidos possa simular um verdadeiro “movimento”. Pode, contudo, justificar-se a crítica às respectivas elaborações pelo facto de o paradigma da crítica do valor ser aqui completamente mandado abaixo, ficando um cepo. Deixar passar isso em claro significaria afastar a crítica do valor das suas posições inovadoras e inferiorizá-la junto dos/as receptores/as reflexivos/as na esfera teórica.

O ensaio aqui apresentado em edição impressa já foi publicado há meses em versão digital na homepage da EXIT! e disponibilizado para livre divulgação electrónica (desde que referida e fonte e salvaguardada a integralidade do texto); sobretudo para apresentar aos círculos objecto da crítica, no seu próprio médium, a inverdade da sua ideologia do “gratuito”. Em todo o caso o público do médium impresso EXIT! não coincide com os consumidores por download. Se o texto polarizou as reacções havidas, era esse o seu objectivo. Enquanto para a parte do público interessada na continuação do desenvolvimento teórico da crítica da dissociação-valor já era tempo de se enfrentar frontalmente a ideologia da alternativa digital na sua falsa fundamentação “na economia política”, os protagonistas desta naturalmente que ficaram furiosos nas diversas mailing-lists. As contracríticas de conteúdo com que supostamente fomos ameaçados pelos vistos continuam sem aparecer até hoje; mesmo assim o “discurso” deste círculo ocorre sobretudo no estilo telegráfico de posts, que não conseguem aportar qualquer ideia, precisamente porque limitados à restrição de meia página de texto. Por isso bem pode a consciência de classe média do bonzinho excitar-se com a forma polémica e pedir o frasco dos sais. Em geral, este círculo parece ser formado sobretudo por filhos de professores do secundário, que sugerem uma necessidade de aconchego formal, enquanto à socapa levam a cabo com gosto as suas maldades concorrenciais, ao nível do “oportunismo do trabalho em rede” (Luc Boltanski) de esquerda. O nosso mundo não é esse.

1. Da crítica do valor à ideologia de círculo digital

Para se aguentar a ideia de uma crítica radical, esta tem de fugir à sedução da chamada “práxis”. Isso, evidentemente, não significa que a teoria crítica queira prescindir da revolução real da situação vigente. No entanto, uma práxis realmente revolucionadora apenas pode ser descoberta através de processos de mediação complexos, não sendo já encontrada no imediato, no dia-a-dia, na imanência existente; nem onde as contradições apenas se expressam e, embora sejam tratadas, não o são de maneira nenhuma de um modo transcendente. Todo o movimento social inicia-se como instância de “tratamento da contradição” [Widerspruchsbearbeitung] que se limita a querer reinterpretar o capitalismo; mesmo que ele próprio se considere crítico do capitalismo, sem no entanto se aproximar da crítica categorial (cf. a este propósito a confrontação de princípio com o conceito truncado de práxis no número 4 da EXIT!). http://obeco-online.org/rkurz288.htm

Isto aplica-se muito em especial a determinados movimentos parciais ou de tema único, grupos de interesse ou de afectados [Betroffenheit], ou também a meros “círculos” [Szene] da moda que se guindam a níveis de alguma notoriedade com recurso a determinados momentos habituais, ou que se movem num campo de referências determinado e delimitado. Tudo o que aqui se apresenta com optimismo como “práxis” pode muito bem ser, sob formas diversas, objecto da teoria crítica, mas não o seu ponto de referência. Procurar-se uma práxis corrente e imanente, à qual se fornece de seguida a teoria a condizer, para fins de arregimentação e pesca de adeptos, já é o fim da crítica. Deste modo, a teoria corresponde apenas ao seu conceito como forma de reflexão burguesa, incluindo aqui toda a vulgata do marxismo, designadamente como mera ideologia de legitimação e fornecedora de ideias para o eterno tratamento da contradição, sem capacidade para abalar a situação vigente.

Com o “Manifesto contra o trabalho”, http://obeco-online.org/manifest.htm a velha crítica do valor estava balançando entre aguentar a pretensão teórica da crítica e retroceder a uma “relação de aplicação” imediata, com a finalidade de satisfazer as necessidades de determinados “círculos”. Esta diferença decisiva constituiu um momento da cisão da “Krisis”, mesmo que isso não tivesse sido claro para todos de imediato. Enquanto a EXIT! se dedica à divulgação da teoria social, onde a eficácia se demonstra mais sob a forma de publicações, convites para a apresentação de palestras e recepção de conteúdos do que sob a forma de uma espécie de hostes de “adeptos” nómadas, na “Krisis” remanescente tem-se feito notar cada vez mais nitidamente uma orientação de “círculo”. O que era vendido como “abertura” reduziu, na realidade, o paradigma da crítica do valor ao fornecimento de padrões de legitimação para uma determinada empresa ligada à prática e ao movimento, a fim de delimitar alguns lotes nesse terreno pantanoso.

Dito isto, já só nas raras e insípidas formulações de álibi, mas pouco ou nada na realidade, se abordam as frentes da resistência social à administração de crise capitalista, ou seja, as formas de tratamento da contradição à escala social, com base nas quais, apenas, se poderiam desenvolver momentos transcendentes de algum alcance prático. Em vez disso, a “Krisis” remanescente tem-se reorientado cada vez mais, em parte com recurso a um conceito de “quotidiano” carregado de conotações fenomenológicas e existencialistas, em parte apoiada num entendimento truncado e coisificado de “apropriação”, para a falsa imediatidade de um meio alternativo pós-moderno, ao qual, para edificação mútua, as suas ocas palavras de ordem são devolvidas sob uma forma teoricamente refinada e acompanhadas de um jingle filosófico.

Não é por acaso que neste contexto (de resto à semelhança do que acontece com alguns pós-operaistas) adquire uma importância fulcral a referência a uma corrente que nasceu do conceito de “free software” e se apresenta sob as designações de “Oekonux”, “Copyleft” e “movimento cultural livre”. É que aqui há quem fareje a hipótese de recauchutar ideologia de alternativa da mais ordinária, que tem tanto a ver com a crítica do valor como o Nordic Walking com a insurreição armada, recauchutando-a com a bênção superior dos sectores mais avançados da alta tecnologia, enquanto se vai enfiando o problema da socialização no anonimato de meras maquinarias. Com base no computador como suposta “máquina universal” em sentido social, revitaliza-se a fé tecnicista no progresso do século XIX para propagandear para o espaço virtual um modelo de simulação de emancipação social para além da forma da mercadoria aparentemente sem esforço nem luta. Os visados são sobretudo pessoas que já se desqualificam para o pensamento crítico emancipatório pelo mero facto de se encararem a si próprios como “utilizadores” no plano social. À medida que alguns críticos do valor degeneram deste modo em verdadeiros ideólogos “do círculo” da economia alternativa digital, aprontam-se com grande gestus a “desvendar o fundamento na teoria do valor de uma crítica da economia política da informação” (Ernst Lohoff, Krisis 31, p. 51) virando-a para a “teoria da apropriação” (Stefan Meretz, Krisis 31, p. 52). É esta pretensão que agora tem de ser submetida a uma crítica.

2. A “irmã da mercadoria” e a Internet como “máquina de emancipação”

A teoria crítica ou vai até às últimas consequências ou deixa de o ser. O objecto da crítica da dissociação e do valor é, por isso, a socialização negativa do capital, que se apresenta como uma totalidade negativa, intrinsecamente fragmentada pela relação de dissociação sexual. Tem de se aguentar este ponto de vista da totalidade negativa também na análise das várias manifestações e contradições, sendo que há que suportar a tensão entre o conceito e a coisa, entre a teoria e a empiria, na acepção de Adorno. A crítica da totalidade negativa da socialização é, por isso, uma crítica categorial, isto é, uma crítica do contexto categorial, em que o capitalismo se apresenta como um patriarcado produtor de mercadorias que esbarra no seu limite intrínseco. O tratamento imanente da contradição, pelo contrário, assume invariavelmente um ponto de vista particular em que, à superfície das aparências, determinadas contradições particulares são hipostasiadas e fazem as vezes do contexto categorial ou são tomadas por ele. Os conceitos de crítica e de crise permanecem assim truncados, por se encontrarem “amarrados” ao tratamento privilegiado, teórico e prático, de um momento particular desvinculado; sempre associados aos interesses de reprodução e concorrência imanentes de determinados grupos ou “sensibilidades” [Befindlichkeiten] sociais, que ideologizam a sua situação específica e a elevam à “expressão” teórica do todo.

À primeira vista, a tematização da forma da mercadoria enquanto tal, desde sempre mediada com a relação de dissociação sexual, ou seja, com a forma de reprodução social geral, parece impossibilitar um ponto de vista particular de mero tratamento da contradição. Lohoff e Meretz, porém, conseguem a proeza de reduzir o problema da crise e da crítica da forma geral a uma suposta especificidade de “bens” bem determinados dos quais se supõe que, contrariamente a todos os outros, devido à suas características específicas, encarnam por excelência a agudização da auto-contradição capitalista e a chegada ao seu limite intrínseco.

Da “enorme colecção de mercadorias” (Marx) que constitui a riqueza abstracta do capitalismo é retirado um género especial de bens “situados no espaço imaterial” (Lohoff, ibidem, p. 15), designados como “novos bens da informação” ou “novos bens do conhecimento” (ibidem, p. 15 s.) que se apresentam como artefactos sob a forma de software. Ora, Lohoff afirma um “estatuto especial” político-económico “dos bens do capitalismo da informação” (ibidem, p. 20) que “no fundo” não poderiam ser mercadorias; pelo contrário, tratar-se-ia de “bens universais” (ibidem, p. 22). Por isso, com esses bens da informação surgiria “ao lado da mercadoria… um segundo ‘hieróglifo social’, outrora desconhecido e até à data não reconhecido” (ibidem, p. 19).

Ora, em que se sustenta a suposta diferença fundamental que elevaria os “bens universais” digitais a não-mercadorias ainda em pleno capitalismo? A fazer fé em Lohoff, a questão decisiva seria esta: “Poderá ou não o novo ‘hieróglifo social’, tal como a sua irmã, a mercadoria, ‘encarnar’ o valor?” (ibidem, p. 19). Esta questão não passa de retórica, porque o resultado já está determinado, nomeadamente que “...a diferença entre a mercadoria e o novo hieróglifo social é idêntica à que distingue o valor do não valor” (ibidem, p. 20). Assim, como já de si carecem de substância de valor, os “bens de informação digitais não (poderiam) converter-se em bens de troca, mesmo que (fossem) vendidos” (ibidem, p. 27). O carácter de mercadoria ser-lhes-ia apenas imposto pelo capitalismo, de forma externa e astuta, com recurso a construções jurídicas, quando na realidade “estão transformados em bens livres” (ibidem, p. 27).

Trata-se de uma mera afirmação, mas que subjaz a priori a toda a abordagem teórica sob a forma de um “interesse condutor do conhecimento”, sendo que o contexto justificativo remete igualmente apriori para a falta de substância de valor desses “bens universais”. Antes de me debruçar sobre o assunto com mais pormenor, há que chamar desde já a atenção para a função ideológica da tese central: como por um passe de magia, o conceito de crise e de crítica reduz-se a um sector privilegiado, que já é suposto dever ser o portador “objectivo” da dissolução da forma da mercadoria, o que quer dizer que a “crítica” se processa por assim dizer automaticamente, por intervenção do próprio capitalismo, pois este produz involuntariamente, através da dinâmica do desenvolvimento das forças produtivas, “bens” com características especiais, divergentes da “norma” capitalista, que no fundo já não seriam mercadorias, e nos quais os esforços emancipatórios deveriam concentrar-se de modo prioritário e exemplar.

O objectivismo “da teoria da estrutura” da velha crítica do valor mostra aqui as suas orelhas de burro e, de seguida, é virado para a “teoria da acção”: enquanto, na maior parte da reprodução material e social se erguem barreiras enormes contra uma “apropriação” prática e uma superação da forma da mercadoria, que apenas podem ser rompidas num processo de mediação complexo (quanto a esta matéria, Lohoff, por exemplo relativamente às infra-estruturas, apenas tem a oferecer as frases vazias da ideologia do movimento, como “Instandbesetzung” [neologismo ‘okupa’ composto de Instandsetzung (beneficiação) e Besetzung (ocupação) que justifica a ocupação de edifícios devolutos degradados pela sua recuperação — N. Tr.], como acontece na Krisis 30), no “espaço virtual” parece oferecer-se uma passagem prática através da estrada real dos “bens universais digitais”, sendo que a Internet deverá desempenhar o papel de uma “máquina de emancipação”.

Na realidade, esta “máquina” é genuinamente capitalista e parte integrante da “bela máquina” da socialização do valor elogiada por Adam Smith. É verdade que a auto-contradição geral do capitalismo, que chega ao seu limite absoluto na terceira revolução industrial, de certo modo se afirma no novo “espaço virtual”. No entanto, essa contradição, ou o seu “tratamento” no contexto de um sector isolado, não é a mesma coisa que a suplantação da forma geral, já dada e que apenas falta consumar, suplantação esta que não pode, de modo algum, ser operada num sector parcial, para a partir daí ser simplesmente “alargada” ao restante como “modelo geral”.

É precisamente o mesmo quiproquó que encontramos em Meretz, para quem “(na) luta em torno da forma de mercadoria de bens imateriais como o conhecimento, o software e a cultura ... de repente o que está em causa é o todo” (ibidem, p. 67). O “todo” é aqui concebido, à semelhança do que acontece em toda a viragem do marxismo ocidental para a teoria da acção até à ideologia pós-operaísta, como mero somatório de áreas parciais ou de particularidades, em vez de ser compreendido como um contexto de mediação social, sendo que se espera que do sector isolado dos bens de informação digitais irradie uma espécie de “teoria dos estádios” da suposta suplantação da forma da mercadoria: “Depois do software e da cultura, o terceiro passo lógico seria uma produção livre da vida social em sentido mais abrangente” (ibidem, p. 85, itálicos de Meretz). No entanto, aqui não se trata apenas das ilusões de um “círculo” particular, sob a designação por exemplo de “Oekonux”; pelo contrário, faz-se valer, no terreno do capitalismo de crise, um interesse social imanente que faz passar a sua existência específica por ponto de vista da Humanidade, e cujo carácter merece um estudo mais aprofundado. A primeira questão é a fundamentação “na economia política”.

3. Forma do valor, substância do valor e reducionismo da ideologia da circulação

A fragilidade da argumentação de Lohoff e Meretz já ressalta do facto de terem de recorrer ao constructo de afirmar que o capitalismo força os “bens universais” digitais, que supostamente não obedecem à forma da mercadoria “em termos objectivos”, a adquirirem o estatuto de mercadoria que “em termos próprios” lhes é estranho, com recurso a maquinações jurídicas “impróprias”, configurando assim o chamado paradoxo dos “artefactos universais privatizados” (Lohoff, ibidem, p. 28). Tudo isto são disparates. Nenhum bem ou objecto, seja qual for a sua qualidade, é mercadoria ou deixa de o ser “em si”. A mercadoria é uma determinada forma social que sempre comporta também uma definição jurídica. Tudo o que assume a forma da mercadoria e, por conseguinte, realmente pode assumi-la, é de facto uma mercadoria. E uma transacção no âmbito da esfera da circulação também é sempre uma transacção jurídica. Não existem mercadorias “propriamente” nem “impropriamente ditas”. O que “em si” não puder assumir carácter de mercadoria, seja lá pelo que for, também não pode ser incluído na forma da mercadoria pela porta do cavalo.

O constructo de Lohoff (e, por conseguinte, também a atribuição da substância de valor) baseia-se simplesmente num abastardamento, nos termos da teoria da circulação e em última instância da ideologia da circulação, cuja abordagem não vai além dos capítulos iniciais do 1° volume de “O Capital”. Se Marx aí analisa a génese da forma do valor e, ao fazê-lo, formula a equação “x mercadoria a = y mercadoria b” com base no trabalho abstracto como “terceiro comum”, trata-se da mercadoria como “forma celular”, no sentido de uma figura conceptual para a reconstrução teórica da lógica social subjacente; não, porém, de uma determinação definitória que pudesse ser aplicada cegamente a qualquer mercadoria individual empírica e depois, devido aos atributos específicos de determinados bens, perdesse a validade em determinadas relações de mercadorias. Há aqui também um problema de exposição na arquitectura teórica de Marx. A “forma celular” do 1° capítulo refere-se à lógica interna da reprodução capitalista como sistema global, cujas mediações apenas se tornam evidentes no decurso ulterior da argumentação (este facto também foi enganosamente mobilizado como argumento contra a crítica do valor em geral, mas Lohoff sai-se um “crítico do valor” em que esse argumento assenta que nem uma luva).

Ao ficar encalhado no capítulo inicial e ao ficar, deste modo, refém do mal-entendido de uma “definição” positivista, no que diz respeito à definição de Marx da forma da mercadoria, Lohoff retrocede a um ponto de vista que, na reflexão crítica sobre os fundamentos da teoria de Marx, há muito que se tornou obsoleto. Trata-se aqui, sobretudo, do debate em torno da crítica de uma “teoria do valor pré-monetária” (Backhaus e outros), do qual Lohoff não parece fazer a mínima ideia e sobre o qual, por conseguinte, não se debruça. Esta abordagem teórica estabeleceu com razão que a reprodução capitalista, como socialização do valor, não se ergue sobre um sistema de produção de mercadorias “simples”, ou seja, sobre uma troca imediata em espécie, sem o dinheiro como pressuposto lógico, a qual historicamente nunca existiu, mas que a forma do dinheiro desenvolvida é tida desde sempre como pressuposta. Tal significa que, no mercado capitalista real, nunca se troca “x mercadoria a” por “y mercadoria b” mas, desde sempre, mercadoria por dinheiro; isto é, só na forma do dinheiro o valor de troca pode apresentar-se como preço. Isto significa ainda que, na circulação, em que a mercadoria em geral pode “representar-se” como forma do valor de troca, a mercadoria se define como um bem (sejam quais forem as suas características) que alcança um preço sob a forma do dinheiro. Tudo o que tenha um preço e o possa realizar é mercadoria.

Para a teoria do valor, isto quer dizer que a forma do valor como forma do capital se move desde sempre na forma do dinheiro, que o valor como sistema de valorização do valor também já pressupõe a forma do dinheiro e que esta não se deve apenas a um contexto dedutivo secundário, como pode sugerir uma leitura equivocada do 1° capítulo. Nesse caso, porém, a questão que se põe é qual a relevância da análise da forma do valor de Marx no conjunto do sistema da sua exposição. A equação “x mercadoria a = y mercadoria b” não remete para a aparência superficial dos actos de troca individuais, nem para o estatuto das mercadorias empíricas individuais envolvidas, mas para a estrutura de reprodução social total subjacente do “sistema produtor de mercadorias”, com a sua lógica intrínseca. A produção e a circulação ou realização do valor constituem um todo, não porém um todo imediato, mas sim mediado de modo contraditório, estabelecendo-se como tal apenas através de fricções, precisamente porque a unidade da reprodução social apenas indirectamente se manifesta como constituída de forma fetichista, através da separação entre produção e circulação. Isto significa que não se pode pretender que a questão da substância do valor como terceiro comum atravesse, como uma simples determinação definitória à laia de uma equação matemática, todos os actos de produção e de troca individuais, mas que ela é subjacente à relação social total.

A justificada crítica às ideias de uma “teoria do valor pré-monetária”, em que um momento da exposição de Marx é mal entendido como base fundamental definitória, tem agora, por seu lado, o flanco aberto ao reducionismo da ideologia da circulação, na medida em que confunde a forma do preço do valor de troca com o todo, tentando deixar de fora o problema da substância do “terceiro comum” como determinação ontologico-transhistórica, e/ou em grande medida eliminando-o, como mera “abstracção da troca” que coincide com a forma do preço e não apresenta qualquer problema no contexto da reprodução. Lohoff comete o erro de palmatória precisamente inverso, ao pretender reencontrar, num exercício de falsa imediatidade, a lógica “substancial” da relação total em toda e qualquer forma empírica da mercadoria e em toda e qualquer transacção empírica do mercado. O que ele apresenta como uma “anomalia” absolutamente nova e inaudita (ibidem, p. 45) sob a forma dos “bens de informação” digitais é algo desde sempre realmente corriqueiro no mercado universal. No que à falta de substância do valor diz respeito, Lohoff designa mesmo a terra como a “mais importante mercadoria sem valor” (ibidem, p. 19), mas sem reflectir devidamente o problema conexo. De facto, se tomarmos como pressuposto o mal-entendido de um “teor em substância” imediato, deparamo-nos com uma misteriosa enchente de “mercadorias sem valor” (e ainda mais mercadorias sem “substância de mais-valia”), mas que têm um preço. Este fenómeno deve-se ao simples facto de a produção e a circulação ou realização do valor (da mais-valia) não coincidirem.

Relativamente à sociedade no seu todo, o capitalismo apenas é viável na presença de uma substância de valor suficientemente produtiva de capital, mas esta relação essencial não é acessível ao senso comum quotidiano, precisamente por não se manifestar de forma imediata nos actos reprodutivos empíricos. É por isso que o capitalismo tende a converter tudo e mais alguma coisa em mercadoria, se bem que nunca o consiga totalmente (sobretudo relativamente à relação de dissociação sexual e aos momentos reprodutivos que esta comporta). Ainda assim, tudo o que se manifesta no mercado sob a forma do preço e é capaz de a realizar é mercadoria; e nessa medida os “bens de informação” digitais não representam de modo algum uma “irmã da mercadoria” até à data desconhecida e não reconhecida como tal. O problema da substância social (não particular) do valor ou da mais-valia apenas se faz notar “nas costas” dos sujeitos da transacção, sob a forma das crises sociais, e não em supostas “anomalias” de formas particulares de mercadoria.

Lohoff confunde sistematicamente o facto, há muito tematizado na teoria da crise da crítica do valor, de que o chamado “capitalismo do conhecimento” ou “da informação” não pode gerar uma nova era de acumulação real (ou de criação de mais-valia substancial) com um suposto carácter de não-mercadoria dos seus “artefactos da informação”. Meros símbolos, como logótipos de marca ou a “capa” vazia do nome de uma empresa, podem assumir a forma do valor e obter um preço real, tal como lotes de terreno na lua e mil outras supostas “anomalias” (onde também se incluem, por exemplo, os produtos da “indústria financeira”). O problema da substância do valor suficiente ou insuficiente inscreve-se num plano completamente diferente do plano da manifestação da forma da mercadoria no mercado universal.

4. “Troca justa” e relações de uso capitalistas

Significativamente, o verdadeiro ponto de partida da argumentação de Lohoff nem sequer é o problema da substância que, embora invocado a priori, só depois é desenvolvido argumentativamente em termos legitimatórios, mas sim uma espécie de ponto de vista “moral” do sujeito da mercadoria, ou do consumidor, no plano da circulação. Lohoff pergunta, com ar matreiro: “Será que também a difusão de bens de informação se processa como troca, e será que a relação entre comprador e vendedor obedece às leis da troca de equivalentes?” (ibidem, p. 17). Também esta questão é puramente retórica. Pois Lohoff já sabe que neste caso a sagrada lei da troca de equivalentes é infringida: “Acontece que, para que os bens entrem numa relação de troca mútua e assumam o carácter de bens de troca, têm de se cumprir duas condições em simultâneo. Por um lado, cada um dos proprietários de bens tem de ter nas mãos, findo o acto da troca, o bem que antes da troca pertencera ao seu homólogo. Por outro lado, ambos os intervenientes na troca têm de ficar definitivamente sem aquilo que levaram ao mercado. À segunda condição fundamental correspondem os utilizadores que gastam o seu dinheiro em software comercial ou em ficheiros de música ou de vídeo, mas não os vendedores desses produtos” (ibidem, p. 17). Como assim? “Os produtores de bens de informação”, segundo Lohoff, “não precisam de voltar a produzir o seu bem para venderem o resultado do seu trabalho de informação, para além de a fulano, também a beltrano e a sicrano e a mais mil milhões de outros clientes potenciais. Produzem uma vez e vendem muitas vezes. Algo assim não é uma troca, e o objecto que deste modo é comercializado não é um objecto de troca nem, portanto, uma mercadoria” (ibidem, p. 18).

Esses porcos especuladores da Microsoft e companhia! “Os clientes”, exaspera-se Lohoff, “cedem o bom do seu dinheiro (!) de uma vez por todas aos fornecedores, os quais, por seu lado, ficam na posse daquilo que dão em troca! A transacção monetária não medeia, de modo algum, a mudança de mãos dos bens correspondentes, mas limita-se a aumentar o número de pessoas autorizadas a usarem o mesmo produto de forma legal” (ibidem, p. 17). Uma vez mais, Lohoff confunde aqui a simples troca de equivalentes “x mercadoria a = y mercadoria b” com a relação capitalista universal de mercadoria–dinheiro, em que a circulação de modo nenhum medeia a “mudança de mãos” de dois bens. Aqui não se troca um casaco por linho, nem berlindes azuis por vermelhos, nem o dinheiro se limita a mediar a “mudança de mãos” entre dois produtores realmente independentes (não socializados), segundo o esquema mercadoria–dinheiro–mercadoria, como nas relações de mercadoria pré-modernas em mera “forma de nicho” (Marx) que, em termos qualitativos, se distingue fundamentalmente das relações capitalistas de mercadoria como estrutura de reprodução socializada. Pelo contrário, a circulação que obedece à lógica abrangente de dinheiro–mercadoria–dinheiro medeia a realização da mais-valia, como movimento de fim-em-si do valor reacoplado a si mesmo (“sujeito automático”). Por isso, a relação mercadoria–dinheiro no mercado capitalista é algo completamente diferente da mera “mudança de mãos” de dois bens.

O próprio Lohoff vê-se obrigado a admitir que aqui se troca mercadoria (que supostamente é uma não-mercadoria) por dinheiro, e não porventura um bem por outro, sem contudo se dar conta dessa diferença. No entanto a mercadoria-dinheiro como “equivalente geral” não é uma mercadoria como outra qualquer; não é um equivalente como na equação casaco = tecido, antes medeia a equivalência num processo complexo que de modo algum se resume à mera soma dos “actos de troca”. Na reprodução capitalista a equivalência das relações de mercadoria estabelece-se como processo relativo à totalidade da sociedade, “atrás das costas” dos sujeitos do mercado, e por isso de uma forma mediada por fricções, e não imediatamente em cada relação de troca individual dinheiro-mercadoria. Lohoff, pelo contrário, assume o ponto de vista da circulação simples e da simples troca de equivalentes, que em Marx não passa de um momento analítico (inicial) no conjunto da exposição. Tendo em conta o nível de reflexão no âmbito da crítica da economia política, a argumentação sobranceira e armada em “original” de Lohoff é simplesmente confrangedora.

Isto diz respeito não só ao carácter do dinheiro na circulação capitalista, mas também ao carácter das mercadorias. Figuram aqui como mercadorias não só bens materiais ou imateriais, mas também relações de uso; afinal o próprio Lohoff não fala em proprietários de outra mercadoria (ou então confunde esta com a função do dinheiro em termos capitalistas), mas em “utilizadores”. Aqui o que se vende não é um bem, mas o direito de uso de um bem, o que constitui uma ocorrência perfeitamente habitual no mercado capitalista, em mil variações. Lohoff faz por sacudir a água do capote tentando construir, com recurso ao exemplo da relação de arrendamento, uma diferença essencial entre direitos de uso exclusivos e não-exclusivos: “Contrariamente ao vendedor, o senhorio não entrega a mercadoria ao seu inquilino de uma vez por todas, mas troca-a por períodos, com um determinado prazo de tempo. No entanto — e aí é que está — o inquilino adquire por esse prazo definido contratualmente um direito de dispor exclusivo que exclui outros do uso. O senhorio ou proprietário pode de facto alugar o mesmo automóvel ou a mesma casa a várias pessoas diferentes, mas apenas a uma de cada vez, e não a um número indeterminado de clientes ao mesmo tempo. O proprietário de um bem universal, porém, encontra-se nesta feliz situação e assim demonstra o que ele não é: proprietário de mercadorias” (ibidem, p. 29, destaques de Lohoff).

Independentemente dos supostos “bens universais”, não custa nada encontrar direitos de uso transaccionados como mercadorias e de modo nenhum vinculados a semelhante “exclusividade”. Os concessionários de uma piscina ou de uma praia com determinadas infra-estruturas, a título de exemplo, também não vendem um direito de uso exclusivo. Não vendem a água ou a piscina, mas o seu uso, e sem concederem qualquer tipo de exclusividade. O mesmo acontece com os proprietários de cinemas. Eles não vendem o filme, mas o seu visionamento, e esse uso tão-pouco é exclusivo. O mesmo se aplica à “televisão paga” através de descodificadores. Em todos estes casos, e noutros semelhantes, os clientes cedem o seu “bom dinheiro” aos fornecedores, e estes mantêm em seu poder aquilo que põem à disposição, nomeadamente o equipamento utilizado. O seu uso é igualmente cedido, para além de fulano, a beltrano e a sicrano, ainda que não o seja, por falta de espaço, ao mesmo tempo a “mil milhões” de outros clientes potenciais; mas esta é apenas uma diferença de grau e não essencial, já que por princípio o uso pode ser vendido a muitos utilizadores ao mesmo tempo e a um número quase aleatório ao longo do tempo. Na medida em que aqui são empregados funcionários, se amortizam os bens de uso (piscina, projector, edifício etc.) e se obtém um excedente, também aqui estamos perante um processo de valorização, segundo os critérios da economia empresarial; a questão de saber se este gera uma produção real do valor ou da mais-valia social total coloca-se num plano completamente diferente e não invalida minimamente a real forma de mercadoria do uso na circulação.

5. A alma da mercadoria em acção: do “bem pago não sério” ao anti-semitismo estrutural

A venda de direitos de uso, tanto exclusivos como não exclusivos, tem evidentemente por pressuposto a privatização jurídica dos bens de uso correspondentes, independentemente de terem sido produzidos ou não (por exemplo, licenças de pesca etc.). De modo completamente independente da qualidade específica dos próprios bens ou da utilização de bens, a privacidade jurídica formal tem de se apresentar numa “delimitação” que pode passar por cercas materiais ou virtuais, pela barreira das caixas (na piscina ou no cinema, tal como no supermercado), por detectives humanos ou virtuais, câmaras de vigilância, etiquetas com “sistema anti-furto” incorporado etc. A “Administração Digital dos Direitos” da indústria de computadores e de software atacada por Meretz (ibidem, p. 74), que deve assegurar a possibilidade de venda monetariamente mediada na circulação dos bens de informação digitais como mercadorias, através de medidas técnicas incorporadas, ou então por leis de propriedade intelectual respaldadas no monopólio estatal da violência, integra-se neste catálogo geral da contenção e dos mecanismos de controlo; e não tem nada a ver com um carácter especial de não-mercadorias destes bens que, contrariamente a todas as outras mercadorias, já “em si” se encontrariam para além da forma social.

Se Meretz e Lohoff, neste contexto, criticam a “ideologia da escassez” da economia política, a crítica aplica-se à produção de riqueza capitalista no seu todo que, como produção específica de “riqueza abstracta” (Marx), implica uma restrição das necessidades e da sua satisfação, independentemente dos recursos materiais e humanos. A distinção entre bens que “em si” não são universais e outros que “em si” são supostamente universais obscurece este facto social geral e é ideológica; ela reduz inadmissivelmente o problema a um tipo específico de bens ou de usos, quando se trata de um problema da produção de riqueza abstracta em geral. Até fica implícito que a forma da mercadoria continuaria a ser “normal” e de algum modo “conforme” no caso dos bens chamados não universais, e que apenas se depararia com limites objectivos e subjectivos no caso dos “bens universais”, propositadamente construídos de modo truncado e erróneo sob o ponto de vista da economia política.

Na realidade, é a riqueza abstracta enquanto tal que se torna obsoleta, ao embater no limite interno histórico do capitalismo. A crise geral da valorização da acumulação real, no plano da sociedade no seu todo, gera uma crise social não menos geral, em que cada vez mais pessoas se vêem privadas da satisfação das suas necessidades, e isto em relação a todos os bens necessários, começando pelos materiais. É a contradição agudizada entre as potencialidades de produção de riqueza material e imaterial e as restrições exacerbadas da forma social, que fragiliza a “consciência da ilicitude” e faz parecer legítimo para os excluídos o “furto formigueiro” em sentido lato. O facto de isto se repercutir de certo modo na consciência e se reflectir na prática em furtos maciços de lojas e ocasionais pilhagens (facto já tematizado pelos situacionistas) deve ser analisado em termos teóricos também como parte dessa fragilização, e não porventura negado com uma adaptação “de esquerda” da moral de pagamento burguesa, por exemplo com a justificação de que não estaria aqui em causa a socialização capitalista na sua totalidade. No entanto, isso não pode iludir o facto de que uma resolução assim “imediata” no quotidiano da contradição que se agudiza ainda está muito longe da perspectiva de uma “apropriação” e assim também de uma revolução radical do próprio contexto de reprodução social (o conceito de “apropriação”, reduzido à circulação, da ideologia do movimento, que há muito assombra de modo mais ou menos caricato os últimos moicanos da “Krisis” e do folhetim vienense “Streifzüge”, carece ainda de um tratamento teórico próprio, que aqui apenas pode ser esboçado).

Como é sabido, no contexto da crise mundial da terceira revolução industrial, a actuação quotidiana da contradição na superfície do mercado não só convocou uma “indústria da moral” capitalista, destinada a reanimar a “consciência da ilicitude” fraquejante, mas conduziu também a um reforço jurídico e técnico dos mecanismos de contenção. Isto, por seu lado, diz respeito a todo o espectro dos bens de consumo e das relações de uso, e não tem nada a ver com um suposto carácter de não-mercadoria específico dos “bens de informação”. Quando Meretz aduz que “... qualquer sistema DRM (Digital Rights/Restrictions Management, vulgo: “protecção contra cópia” — N. Tr.) introduzido no mercado é cracado em pouquíssimo tempo” (ibidem, p. 77), tal remete apenas para a especial dificuldade técnica do controlo e da contenção no espaço virtual, mas não para o facto de os “bens de informação” terem já em si um carácter transformador da sociedade, constituindo uma excepção à forma geral. E mais: esta argumentação também restringe ideologicamente o “problema da apropriação”; é que, se o carácter de mercadoria ainda passa por “normal” e “conforme” no caso dos bens não digitais, isso implica também uma correspondente cisão da legitimidade no que respeita à periclitante “consciência da ilicitude”.

Este carácter ideológico da argumentação logo se revela, não só na linguagem, mas também no contexto justificativo. Enquanto se supõe corresponder à “justiça na circulação” que os compradores larguem o seu “bom dinheiro” por uma mercadoria tangível, no caso dos “bens de informação” a “justiça” parece ferida de morte porque, no mero uso desses bens, nenhum equivalente substancial imediato corresponde ao “bom dinheiro” (de repente, o dinheiro é qualificado de “bom”). “Os fabricantes de bens de informação digitais”, diz Lohoff armado em alma indignada da mercadoria, “podem algo que nenhum fabricante de mercadorias sérias alguma vez pôde ou poderá, algo estritamente incompatível com relações de troca: eles estão em posição de vender o mesmo produto, o mesmo toque de telemóvel ou o mesmo software as vezes que quiserem, sem por isso irem a tribunal por fraude (!)!” (ibidem, p. 17 s., itálicos de Lohoff).

Aqui se vê o objectivo ideológico da construção, basicamente errada sob o ponto de vista da economia política, dos supostos “bens universais” por oposição a mercadorias “normais”, construção associada à redução da perspectiva à “circulação simples” ou à equiparação imediata de “x mercadoria a = y mercadoria b”. Ulrich Wickert manda saudades: “O honesto é parvo”. Lohoff assume o papel do sujeito da circulação, burguês até ao tutano, que não compreende o verdadeiro contexto da reprodução capitalista (o que é bastante fraco num “teórico”), para depois, nas transacções do mercado, se sentir continuamente ludibriado e “defraudado”, farejando em toda a parte uma infracção à “justiça na circulação”. Enquanto a produção de mercadorias capitalista como tal se desmoraliza (como se pode depreender da vulgarização da corrupção e de escroquerias quase desesperadas a todos os níveis) por esbarrar na sua própria lógica, o moralista da mercadoria Lohoff abre uma contradição entre produtores de mercadorias “sérios” em si (porque os refere a uma “mudança de mãos real” sob o ponto de vista ideológico de bens dotados de substância de valor) e fornecedores “pouco sérios”, “fraudulentos”, que supostamente se limitariam a fingir o carácter de mercadoria dos seus bens no mercado.

Esta elaboração ideológica da alma da mercadoria é depois ainda “nobilitada” no plano da elaboração de conceitos. Não sem um amor-próprio vaidoso e de todo despropositado, Lohoff anuncia: “A realidade histórica sempre se reflecte também no uso dado à língua, no quotidiano e na conceptualidade teórica. Como, até à revolução da micro-electrónica, todos os bens transaccionados no mercado tinham o carácter de bens de troca, o conceito de mercadoria estabelecido podia aplicar-se a ambos sem qualquer problema. Com a emergência de bens de informação digitais, porém, os dois conceitos começam a divergir, e isso provoca uma confusão terminológica (muito própria de Lohoff, R.K.). Para a resolver introduzi um novo conceito de nível superior que se destina a designar a totalidade dos bens produzidos em regime capitalista e transaccionados no mercado: o bem pago [Bezahlgut]” (ibidem, p. 19). Este “novo conceito superior” de “bem pago” já terminologicamente adere à redução à circulação que subsume, por um lado, bens de troca “reais” dos fabricantes de mercadorias “sérios” que supostamente valem o “bom dinheiro” e, por outro lado, esses não-bens de troca ou não-mercadorias “não reais” que se arrogariam, de modo “pouco sério” e “fraudulento”, o carácter de mercadoria, tendo de ser “pagos” apenas devido a manigâncias jurídicas.

Tudo isto, já ao nível superficial do arrazoado da circulação, não passa de anti-semitismo estrutural. É que a ideologia pequeno-burguesa clássica da circulação simples e da troca imediata de equivalentes contém na sua estrutura o lugar-tenente da permanente suspeita de “fraude na circulação”, da “troca desigual” etc. que desde os primórdios do capitalismo foi equiparado ao “judeu”; identificação essa que se tornou um lugar-comum da História das ideologias e que já não pode ser desculpada pela suposição de uma inconsciência inocente (e muito menos num “teórico”). Um dos clichés anti-semitas mais antigos da Modernidade é o que afirma que o “judeu” é um agente da circulação fraudulento. O que no século XIX era imputado, por exemplo, aos “intermediários judeus”, agora é imputado, de forma “actualizada”, aos fornecedores de bens de informação digitais. Aqui se vê quais são os resultados quando, como que por capricho, a suposta “luta em torno da forma da mercadoria” (Meretz) se centra num sector parcial separado, que deve ter ultrapassado a forma da mercadoria “automaticamente”, e essa ideia já à partida é rebaixada a ideologia da circulação.

6. Produção de conteúdos, custos capitalistas e “reprodutibilidade sem trabalho”

Se a ideologia pequeno-burguesa clássica da “troca justa”, tendo como pano de fundo um abastardamento e truncagem da crítica da economia política sobre relações de equivalência imediatas, constitui o verdadeiro fulcro da argumentação de Lohoff e Meretz, o problema a ela associado da substância do valor e da sua “localização” não tarda a ser desenvolvido ulteriormente de modo igualmente truncado. Um elo intermédio neste processo é a tematização apenas tangencial da relação geral entre o “trabalho” ou, em termos gerais, o “esforço” e a forma do valor. Neste elo intermédio nada estranho da argumentação, a “ausência de valor” dos bens de informação especificamente digitais começou por ser simplesmente imputada à sua “duplicabilidade praticamente sem esforço” (Meretz, ibidem, p. 73) ou, de um modo ainda mais explícito, à sua “reprodutibilidade sem trabalho” (Lohoff, ibidem, p. 31).

Já aqui se manifesta novamente a conotação ideológica de uma clássica crítica pequeno-burguesa e truncada de momentos retirados do contexto da reprodução sob a forma da mercadoria ou da socialização do valor: a raiva da ética protestante e, em especial, da consciência de porteiro alemão aos “rendimentos sem trabalho” manda saudades. Nesta medida estamos claramente perante uma situação análoga à caça aos rendimentos especulativos “sem trabalho” de transacções financeiras na circulação que, como é sabido, constitui uma característica essencial do anti-semitismo estrutural. Em analogia com semelhantes transacções, cujo “esforço”, sem dúvida de algum modo existente, passa por “sem trabalho” e por isso por “pouco sério”, também se pretende identificar a “reprodutibilidade sem trabalho” dos bens de informação digitais com uma espécie de segundo plano da especulação, porque aqui haveria gente a “enriquecer sem trabalho” pela venda de meros direitos de uso com um clique de rato. A ideologia da troca imediata e “substancial” de equivalentes ou a acusação de esta se encontrar “ferida” é agora imputada a uma “base de produção sem trabalho”. Diga-se de passagem que aqui se anuncia, contrariamente a toda a “crítica do trabalho” esgrimida, a passagem com pezinhos de lã para uma nova ontologia do trabalho sui generis, como ainda se mostrará.

Antes de me debruçar sobre o alargamento deste já suspeito elo intermédio da argumentação da “reprodutibilidade sem trabalho” às condições de reprodução social total da “substância do valor” em Lohoff e Meretz, pretendo sujeitar este enunciado nu e cru a uma crítica imanente, uma vez que a problemática a ele associada ainda vai revelar-se de alguma importância no que se segue. A definição de uma “reprodutibilidade sem trabalho” apenas é possível se os bens de informação digitais forem retirados de todo o processo de produção e reprodução em cujo contexto se inscrevem. Também Lohoff e Meretz sabem evidentemente que aquilo que aí se reproduz “sem trabalho” tem, antes de mais, de ser produzido. Pressupõe-se, portanto, sempre um “trabalho de informação” implicado na produção desses bens digitais, o qual talvez não seja apenas efectuado por programadores sentados em casa ao computador, mas cuja produção, por seu lado, tem em parte pressupostos muito dispendiosos que, por sua vez, passam pelo dispêndio de trabalho. Para que tudo isto possa sequer ocorrer são necessários, além do mais, enormes aglomerados de infra-estruturas, que desde logo têm de ser produzidos e permanentemente mantidos: redes de telefones, redes de cabo, redes de emissores UMTS (cujos eventuais efeitos negativos sobre a saúde remetem para um aspecto qualitativo do contexto digital global imposto pelo capitalismo, que ainda nem sequer foi tematizado). Além disso, este contexto está associado a um consumo de energia igualmente dispendioso.

Para que não haja mal-entendidos: aqui ainda nada se disse sobre a relação em que este “esforço” total, que engloba as referidas quantidades de “trabalho abstracto”, se encontra com a substância social de valor e de mais-valia, e sobre se aqui ocorrem “transferências de valor” ou não etc. O que é certo é que esse esforço, independentemente do seu teor em substância do valor, se repercute à superfície do mercado como custos sob a forma do dinheiro, custos que são integrados nos bens de informação “reprodutíveis sem trabalho” através de diversos contextos de mediação. Sejam estes bens de informação substancialmente e enquanto tais “sem valor” ou não (o que já em si é uma determinação definitória falsa e truncada), em caso algum podem ser “sem preço”. Aqui mais uma vez se manifesta a ideologia da equivalência imediata, como se uma “ausência de valor” específica pudesse ser retirada do contexto da socialização do valor e representada de imediato como “ausência de preço”.

Na realidade não existe uma “ausência de valor” isolada, porque a “desvalorização do valor” nem sequer se representa em bens ou relações de uso individuais, mas apenas como processo social total. Teremos de voltar a isso com mais pormenor quando falarmos das relações de reprodução que abrangem o capitalismo na sua totalidade. Se Lohoff e Meretz já resolveram o carácter da socialização no plano da circulação numa mera soma de relações de equivalência, eles repetem o mesmo no plano da produção e da reprodução, como resolução num mero somatório de momentos “com trabalho” e “sem trabalho” imediatamente individuais. Mas, como se trata de um contexto de mediação que não pode ser fatiado em momentos individuais isoláveis, e que se apresenta sem excepção sob a forma de custos e preços, a forma dinheiro da mediação não pode ser desligada de bens ou usos específicos, enquanto todo o resto se mantém.

Isso ainda se torna mais claro quando Meretz fala de “bens de informação, conhecimento e cultura “ (ibidem, p. 54) como supostos “bens universais” em sentido lato, o que ele acaba por especificar como “software, conhecimento, música, filmes, textos” (ibidem, p. 83). Isto é uma referência a que aqui não se trata apenas dos bens digitais do software e do seu contexto de reprodução tecnológico e infra-estrutural como “trabalho” ou “esforço”, mas que estes artefactos técnicos são, ao mesmo tempo, “portadores” de um conteúdo, também ele incondicionalmente associado ao “carácter universal”. Agora já é meridianamente claro que estes conteúdos culturais, no sentido mais lato, têm desde logo de ser produzidos antes de se tornarem “reprodutíveis sem trabalho”.

Para obscurecer adicionalmente este estado de coisas, Lohoff e Meretz aplicam um proverbial truque saloio ao equipararem simplesmente a produção de conteúdos específica ao “conhecimento humano” em geral. Para isso voltam ao argumento da exclusividade ou não exclusividade da “capacidade de utilização”. Lohoff não se coíbe de referir o seguinte: “Ninguém deixa de ter à sua disposição o teorema de Pitágoras só porque outra pessoa está a recorrer a ele nesse preciso momento” (ibidem, p. 26). E Meretz remata a condizer: “Os bens são rivais no que diz respeito à sua utilização se a utilização por uns restringir ou impedir a utilização por outros. Não são rivais se da sua utilização não resultar qualquer restrição ao respectivo uso por outros. Exemplos: O pão é exclusivo e rival quanto ao seu consumo... O recurso à lei de Ohm, pelo contrário, não é rival, nem eu posso ser excluído do mesmo “ (ibidem, p. 53). Já pus em evidência a inconsistência teórica e o teor ideológico deste argumento no plano da circulação. Agora levanta-se a questão da sua relevância no que à “reprodutibilidade sem trabalho” diz respeito.

No caso do teorema de Pitágoras ou da lei de Ohm, ela é de facto evidente sem quaisquer condições prévias; este “conhecimento humano” geral encontra-se “livre de limitações espacio-temporais” (Lohoff, ibidem, p. 26), porque a sua produção já é histórica (e em parte muito anterior ao capitalismo), não requerendo mais qualquer “esforço” na actualidade. Ao invés, a actual produção específica de conteúdos de música, filmes e textos encontra-se numa situação fundamentalmente diversa. A sua “reprodução sem trabalho” pressupõe, à semelhança do que acontece com o software e as respectivas condições de reprodução, um “esforço” actual que se situa no contexto da reprodução capitalista e assim de modo algum livre de limitações espacio-temporais.

A produção de um filme pressupõe múltiplos “trabalhos” do realizador, dos operadores de câmara e dos actores, sem esquecer os figurantes, que têm todos de ser pagos, porque caso contrário nenhum filme se produziria; do mesmo modo, as máquinas, os cenários etc. têm associados a si um os “custos” correspondentes. O mesmo se aplica em princípio à produção de conteúdos de música, textos etc. Uma vez mais, o que está em causa à partida não é a relação com a substância social do valor ou da mais-valia, mas sim, à superfície do mercado, trata-se de custos, sob a forma de dinheiro, que têm de reflectir-se nos produtos, sob a forma de preços. Nem a “reprodução sem trabalho” digitalizada da produção de conteúdos pode ser dissociada como “ausência de preço” isolada, como ainda veremos com base em implicações ulteriores. Como já referimos, trata-se aqui apenas de um elo intermédio da argumentação ideológica, cuja confusão “em termos de economia política”, no entanto, ainda aumentará com a sua extensão à relação de reprodução capitalista global.

7. Trabalho produtivo e improdutivo no conjunto da reprodução capitalista

Uma vez que também Lohoff e Meretz sabem que “reprodução sem trabalho” de software e de conteúdos culturais, no sentido mais lato, pressupõe algo como “trabalho de informação” e “trabalho de conteúdo” (sendo que eles ainda assim omitem no conjunto da reprodução dos bens de informação digitais tanto os agregados infra-estruturais como o consumo de energia), eles chegam sem surpresa, no que respeita à definição do carácter deste “trabalho” ou deste “esforço”, ao velho problema do trabalho “produtivo” e “improdutivo” em Marx e na teoria económica; o que é flanqueado por um ensaio sobre o tema (Peter Samol, “Arbeit ohne Wert [Trabalho sem valor]”, Krisis 31). Assim se atinge o nível do conjunto da reprodução social e das suas mediações. Lohoff atribui o trabalho de informação e de conteúdos a uma “produção social do conhecimento” (ob. cit., p. 39). Invocando as respectivas passagens de Marx nos “Grundrisse”, em que Marx fala de “actividades de tipo geral” [allgemeinen Gattungsgeschäften], Lohoff chega à afirmação geral de que “os trabalhadores do conhecimento” simplesmente teriam “… o mesmo estatuto do ponto de vista da teoria do valor que os juízes ou os soldados, desempenhando assim um trabalho improdutivo em sentido capitalista” (ob. cit., p. 39).

É sabido que as considerações de Marx sobre trabalho produtivo e improdutivo são incompletas e inconsistentes; assim sendo, prestam-se a interpretações bastante flexíveis. A falta de clareza reside sobretudo no facto de que Marx, em vários fragmentos dedicados ao tema, parece dar uma determinação definitória, com base em alguns “trabalhos” empiricamente palpáveis, referentes a capitais concretos ou ao Estado. Aqui nos deparamos novamente com o mesmo problema, que já se fez notar ao nível da circulação, como uma falsa imediatidade da definição de substância e da relação de equivalência. Contudo, já não se trata aqui de um mero problema de exposição da arquitectura teórica de Marx, mas possivelmente de uma inconsistência real, na medida em que nos fragmentos de texto de Marx sobre esta questão surgem de facto definições positivistas. Sobre isto há que dizer, em primeiro lugar, que a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo não se pode estabelecer de forma definitória, com base em determinados “trabalhos” particulares, mas apenas em termos de teoria da circulação, ou seja, com referência ao conjunto da reprodução capitalista. Esta ideia já era essencialmente o fundamento do meu ensaio “Die Himmelfahrt des Geldes [A ascensão do dinheiro aos céus]” http://obeco-online.org/rkurz101.htm na velha Krisis (nº 16/17, 1995), mas até à data não sofreu qualquer desenvolvimento ulterior.

Samol toca nesta questão apenas superficialmente, através da ainda simples e há muito conhecida relação entre trabalho na produção e trabalho na circulação, em que este último “não (seria) resolúvel em trabalho produtivo” (ob. cit., p. 103), e com a advertência de que “trabalho produtivo e improdutivo… se apresentam fortemente misturados nas empresas das infra-estruturas” (ob. cit., p. 110), sem no entanto examinar sistematicamente (do ponto de vista da teoria da circulação) o problema da mediação. Em vez disso, e tal como Lohoff, baseia-se antes numa definição positivista, com base em “tipos de trabalho” que supostamente são claramente identificáveis. Contudo, o mesmo “trabalho” pode ser produtivo ou improdutivo, não só no sentido de que seja ou não suporte de produção de lucro de um capital individual, mas também no interior da própria produção de lucro. O que no caso dos capitais da circulação ainda se pode solucionar com relativa facilidade, como sendo alimentados pela massa de mais-valia social total, noutros casos é menos claro, apresentando-se “misturado” ou ambivalente. Isto remete novamente para o problema da reprodução capitalista total, que não se pode resolver numa simples soma de trabalhos “contabilizáveis” com clareza como produtivos ou improdutivos. Por exemplo, mesmo trabalhos de fabrico industrial, na aparência claramente produtivos, também podem ser improdutivos, se não chamarem a si qualquer procura com capacidade de pagamento; isto não é de modo algum um problema de realização de um valor em si existente, mas o que acontece é que foi produzido muito pouco valor no conjunto da sociedade (o que apenas se torna visível no contexto de mediação), situação que então se “vinga” em determinados capitais individuais, ou que nas crises se repercute também no conjunto da sociedade. O mesmo se aplica à produção de valor aparentemente real, seja de automóveis, de casas ou outra, gerada apenas por “rendimentos” provenientes de bolhas financeiras.

Uma vez que Lohoff e Samol não expõem nenhum desenvolvimento com base na teoria da circulação e relacionado com o conjunto da produção, mas em primeira linha forçam definições positivistas de uma supostamente clara “imputabilidade” [Zurechenbarkeit] (o que, como se assinalou, já se deve ao ponto de partida assente numa relação de equivalência imediata, ideologicamente construída no plano da circulação), posso ficar-me por enquanto por aqui. Antes de entrar na importância do “trabalho do conhecimento” de facto improdutivo na argumentação de Lohoff, é preciso assinalar a inconsistência desta do ponto de vista imanente em três pontos. Trata-se de uma diferença que Lohoff em parte deixa indeterminada, em parte simplesmente define erroneamente, a saber, da diferença entre a) “trabalhos” que não acrescentam qualquer valor, b) “trabalhos” que acrescentam valor mas não produzem mais-valia e c) “trabalhos” que produzem mais-valia real (sendo que no caso destes últimos se trata da criação de mais-valia substancial e não da mais-valia meramente formal de um capital individual alimentado a partir da massa de mais-valia social total, como acontece nas empresas da circulação). A diferença entre trabalho produtivo e improdutivo em Marx está relacionada clara e exclusivamente com a produção real (substancial) de mais-valia, o que de facto é lembrado por Lohoff, mas não é mantido.

O primeiro ponto refere-se à produção geral de conhecimento, no sentido de “actividades de tipo geral”, em Marx. Na medida em que, no caso destas “actividades de tipo geral”, não se trata da actividade de juízes, carrascos ou outros amáveis portadores de actividade geral, mas de “produtores de conhecimento” no sentido mais lato, Lohoff faz a mesma falsa generalização que já ocorrera de modo particularmente primário no caso do teorema de Pitágoras e da lei de Ohm. Ele não distingue entre produção de conhecimento em geral, por exemplo nas universidades ou em departamentos de investigação dita fundamental, por um lado, e produção específica de conhecimento para determinados bens, por outro. Na verdade, a primeira pode igualmente assumir a forma da mercadoria, por exemplo quando um instituto de investigação privado vende um conhecimento genérico, mas trata-se, relativamente ao conjunto da produção, não de um conhecimento incorporável em determinados bens, mas de um conhecimento geral que em si não pode aportar qualquer valor, entrando sempre apenas nas condições gerais da produção de mercadorias cientificizada.

Diferente é o caso na produção específica de conhecimento para determinadas mercadorias, que entra nestas e não em quaisquer outras. Um momento da argumentação de Marx consiste exactamente nesta diferenciação entre a produção geral do saber como “actividade típica” e a produção de saber que entra numa mercadoria específica. Tudo o que entra na produção específica de mercadorias como “trabalho” acrescenta valor. Porém, para o capital o que está em causa não é o valor puro e simples, mas apenas a mais-valia. Estamos aqui perante um problema particular da produção de conhecimento que entra numa determinada mercadoria específica, o que se pode exemplificar com as actividades de construção de um novo modelo de automóvel (projecto). Este “trabalho” de construção é tudo menos uma “actividade de tipo geral”; ele pertence de certo modo ao “conjunto do trabalho” de um capital individual, numa produção de mercadorias perfeitamente determinada no âmbito da economia empresarial, mesmo que ele por si não se integre no processo imediato de fabrico. Contudo, a sua incorporação apenas mediata não está no mesmo nível de generalidade que as “actividades típicas” [Gattungsgeschäfte] da produção de conhecimento, mas permanece em certo sentido imediata, designadamente em relação ao processo do conjunto da economia da empresa de produção de uma determinada mercadoria.

Ora, o problema para a produção de valor consiste em que este acrescento de valor ligado à produção do “projecto” é insignificante no conjunto do trabalho da economia da empresa, e por uma simples razão: este “trabalho” esgota-se com o acabamento do projecto; ele não é repetitivo, no sentido em que não se repete sem cessar como no trabalho de fabrico para a produção de milhões de automóveis de acordo com esse “projecto”. Na quantidade total de “trabalho” da economia da empresa, a quota-parte do “trabalho do conhecimento” aí incorporada continua portanto muito reduzida. Isto, porém, constitui neste plano um problema quantitativo, e não um problema qualitativo, relativamente ao “carácter de generalidade” do “trabalho de conhecimento” específico desta economia empresarial.

O mesmo se passa com a produção de “bens de informação” digitais. Também este “trabalho” entra, na forma de determinado software que é produzido em determinadas empresas, num produto-mercadoria específico, e não tem de modo nenhum “carácter de generalidade”, como por exemplo o conhecimento matemático, ou até a descoberta da lei de Ohm etc. O facto de que este software possa então ser usado para fins diferentes, sejam estes por sua vez de produção de mercadorias ou não, é outro assunto, e não tem nada a ver com o carácter específico de mercadoria deste software produzido por uma determinada empresa. A diferença, no entanto, consiste em que neste software já não se acrescenta qualquer trabalho de fabricação repetitivo, que a massa de trabalho total e a sua capacidade de acrescentar valor se mantém portanto extraordinariamente reduzida, diferentemente do que acontece na produção de automóveis. Isto, porém, apenas se manifesta sob a forma da contribuição indirecta para a quantidade de trabalho produtivo de valor em toda a sociedade, e assim para a massa de valor ou de mais-valia, enquanto a produção deste software específico como mercadoria bem pode revelar-se lucrativa para a respectiva empresa.

Lohoff, agora, com o seu conceito erróneo de “bens universais”, pensa poder arvorar-se em conhecedor afirmando: “... Robert Kurz argumenta em termos objectivamente erróneos, em ‘A internet como fábrica de sonhos do novo mercado’ (Jungle World 16/2000). Aí ele concede às pretensas mercadorias da informação um valor, batendo em retirada para uma argumentação meramente quantitativa. Como obra de ‘poucos especialistas’ a produção de software e de outras mercadorias de informação não traria nenhuma ‘criação de valor adicional digna de referência’” (ob. cit. pág. 34). Esta afirmação de Lohoff deve-se apenas à sua confusão entre produção de conhecimento social geral e produção de conhecimento específico na economia empresarial, incorporado em mercadorias materiais ou imateriais. No último caso trata-se efectivamente de um problema quantitativo. De certa maneira mesmo o co-autor de Lohoff, Samol, tem consciência disso e diz a propósito: “Admita-se que a elaboração de, por exemplo, software, consome muito tempo. Mas em relação às possibilidades da sua replicação quase gratuita, à possibilidade da sua rápida divulgação e à ampla variedade da sua aplicação, os custos de produção continuam a ser incrivelmente diminutos. A quota-parte do trabalho em cada cópia torna-se assim quase homeopática. Cada cópia isolada representa, por outras palavras, um valor que praticamente tende para zero” (ob. cit. pág. 112).

Isto está de facto correcto mas, em primeiro lugar, Samol concede assim de forma indirecta que, no que respeita ao carácter do valor da produção de software na economia empresarial, se trata de um problema quantitativo. Em segundo lugar, porém, este problema surge tão-só num contexto relativamente ao qual tanto Lohoff como Samol passam sistematicamente ao lado, a saber, a reprodução do conjunto do capital. Isto também não estava ainda completamente claro no meu artigo de então na Jungle World. O que, como foi dito, do ponto de vista da economia empresarial se pode apresentar como produção de mercadorias lucrativa, revela o seu carácter “homeopático” apenas no plano da massa de valor social total. Neste nível, não só a parte correspondente na obtenção de valor real é simplesmente desprezível mas, e sobretudo, esta pequena produção de valor não pode gerar qualquer substância de mais-valia (e é por isso improdutiva neste decisivo sentido capitalista), porque os custos de reprodução da correspondente força de trabalho qualificada tendem a ser mais elevados do que a sua capacidade de obtenção de valor. Contudo, o que Samol refere não se apresenta de imediato na economia empresarial, mas apenas no contexto da mediação social (e neste contexto de novo indirectamente, como tentativa de baixar os custos de reprodução desta força de trabalho, através do outsourcing ou do seu puro e simples desaparecimento, por via da racionalização da actividade de programação, através de programas programadores). Mas a própria argumentação limitada e truncada de Lohoff é criticável já do ponto de vista imanente; ela resulta apenas da afirmação ideológica de que toda a produção de conhecimento em geral deve ser declarada não-mercadoria, para poder pretensamente desligá-la da estrutura de valor e preço do conjunto da sociedade e isolá-la do ponto de vista da “teoria da apropriação”.

O segundo ponto diz respeito à parte indirecta da produção de conhecimento de facto geral na criação de mais-valia social total e merece umas breves palavras. Lohoff força no caso um ponto de vista há muito tempo conhecido da teoria da crise da crítica do valor: “O progresso científico eleva as forças produtivas da sociedade em geral e multiplica assim a produção material de capital, mas não multiplica a sua criação de valor” (ob. cit. pág. 40, itálico de Lohoff). A célebre “força produtiva ciência [Produktivkraft Wissenschaft]” elevaria portanto apenas a produtividade material, sendo que as forças produtivas daí resultantes, diz Lohoff com a ajuda de uma citação das MEGA, “... não afectam de imediato o valor de troca” (ob. cit. pág. 40). Isto, porém, não passa de meia verdade e como todas as meias verdades é particularmente inverídica. Pois a “força produtiva ciência” em geral não acrescenta qualquer valor e naturalmente também não afecta “imediatamente” o valor de troca. Mas entra “mediatamente”, ou seja de modo indirecto, precisamente no contexto que Marx elaborou em “O Capital” como produção de mais-valia relativa.

É que, embora o crescimento da produtividade material não só não traga qualquer valor, antes faça diminuir, pelo contrário, o valor do conjunto das mercadorias individuais, ele diminui simultaneamente os custos (em valor) da mercadoria força de trabalho, o que, sob determinadas condições, eleva a parte relativa do capital na obtenção de valor total. Por isso a tematização da “força produtiva ciência” como potencial de produção de mais-valia assume um lugar central nas argumentações da teoria da crise que negam categoricamente a existência de um limite interno absoluto da acumulação real; já ao longo da história da teoria e hoje particularmente orientada contra a teoria da crise da crítica do valor. Lohoff avança agora com a artimanha de apresentar um tratado sobre “O valor do conhecimento” com a pretensão de “fundamental” (mesmo do ponto de vista da teoria da crise) e, na circunstância, obnubilar completamente a conexão entre “conhecimento” e mais-valia relativa; uma vez mais, um atestado de pobreza para um “teórico”.

Este contexto já desempenhou um papel fundamental no “texto primordial” da teoria da crise da crítica do valor, o meu ensaio “Die Krise des Tauschwerts [A crise do valor de troca]” (Marxistische Kritik 1, publicado 1986, portanto há mais de 20 anos), cuja argumentação foi adoptada pelo próprio Lohoff ainda nos anos 90. Daí que, perante o seu actual arrazoado, tenhamos de falar claramente de uma regressão quanto à teoria da crise. A argumentação da crítica do valor até aqui havida quanto à mais-valia relativa era no entanto de certo modo insuficiente, porquanto não era definida com precisão suficiente a relação entre o capital singular e o conjunto do capital no âmbito da produção de mais-valia relativa. O mais tardar com o desenvolvimento do conceito de mais-valia relativa em “O Capital”, torna-se porém claro que a categoria da mais-valia em geral só pode ser determinada a partir de um contexto de mediação do conjunto da sociedade, e não a partir de uma “imputabilidade” imediata relativamente à produção singular de mercadorias. Em vez de empreender o desenvolvimento necessário, Lohoff, com a sua argumentação regressiva, risca completamente este contexto de mediação; mais uma vez devido à sua intenção ideológica de pura e simplesmente construir isoladamente a “ausência de valor” e o suposto carácter de não-mercadoria da produção de conhecimento. Enquanto fala de uma “dessocialização da riqueza comum” (ob. cit., p. 42) da produção de conhecimento no plano juridicamente reduzido da propriedade, ele próprio opera uma dessocialização teórica do contexto de mediação de facto complexo, que não pode ser subdividido em momentos singulares “com valor” e “sem valor”.

O terceiro ponto diz respeito a uma inconsistência teórica em Samol, que só indirectamente tem algo a ver com a produção de conhecimento, de certo modo mesmo em contra-corrente com a linha geral da argumentação, e que aqui será referida apenas para não passar em branco. Samol refere-se à privatização de infra-estruturas públicas, ou seja, à sua transformação em empresas lucrativas de economia empresarial: “De facto uma tal transformação da educação, da assistência, da cultura, da saúde etc. em mercadorias vendáveis transformaria as respectivas actividades em trabalho produtivo. Mas tais serviços, pela sua natureza, só até certo ponto podem ser exercidos como valorização de capital. Falta sobretudo a procura com poder de compra” (ob. cit., p.116). Isto está correcto apenas no plano da aparência superficial, a que por vezes os comentários jornalísticos têm de se circunscrever, mas não é admissível no âmbito de uma reflexão teórica. Como já referimos acima, a falta de procura com poder de compra tem de ser imputada em última instância à insuficiente produção social de mais-valia, da qual originariamente resulta todo o poder de compra.

Uma vez que na “cultura” em sentido lato se inclui, por exemplo, a produção de conhecimento comum universitário, segundo a argumentação de Samol, em caso de privatização, esta seria de imediato “transformada em trabalho produtivo”. O que está em clara contradição com o conceito de Lohoff da pura e simples “ausência de valor” e do carácter de não-mercadoria da “produção de conhecimento” no seu conjunto. De facto, a produção de conhecimento comum privatizada seria transformada imediatamente em “trabalho” produtivo apenas no mesmo sentido que, por exemplo, nas empresas da circulação, isto é, apenas formalmente, sendo porém alimentada realmente a partir da massa de mais-valia social total. A sua contribuição indirecta para a produção social de mais-valia relativa ocorreria, em todo o caso, tanto na forma pública como na privada, enquanto a questão da “falta de poder de compra” para a produção de conhecimento comum privatizada diz respeito à falta de produção de mais-valia social total, que é transversal a todos os domínios (em caso de subida suficiente da massa de mais-valia social absoluta também poderia surgir suficiente “poder de compra” para o acesso ao conhecimento comum privatizado). A confusão que aqui espreita deve-se mais uma vez à supressão do contexto de mediação e à limitação à “imputabilidade” singular definitória que depois, sem conexão com a própria argumentação de fundo, de repente vai parar directamente à tradicional redução da teoria da crise a um simples “problema de realização”.

Referi-me aqui de um modo um pouco mais circunstanciado à inconsistência imanente do arrazoado de Lohoff, que no entanto remete sempre de novo para a reprodução do capital no seu conjunto, que não se pode representar como simples soma de momentos individuais isoláveis e definitoriamente separáveis, mas que tem uma qualidade própria, à qual estão subordinados os momentos mediadores de produção e circulação imediatamente individuais e a partir da qual, apenas, estes podem ser esclarecidos. Isto também se aplica ao carácter capitalistamente improdutivo da produção de conhecimento, sob qualquer ponto de vista, independentemente da forma pública ou privada e do carácter geral ou empresarial do conhecimento. Pois também os momentos da produção de conhecimento, “sem valor” pura e simplesmente ou relativamente à criação de mais-valia, fazem parte das condições objectivas da reprodução capitalista, porque no caso contrário nem sequer chegariam a existir. A sua aparentemente imediata “ausência de valor” em si tão pouco se pode separar da estrutura social valor-preço como a sua “reprodutibilidade sem trabalho”. Pelo contrário, eles manifestam-se necessariamente sob a forma de “faux frais” (custos mortos), tal como evidenciado por Marx há muito tempo.

Custos mortos, porém, são algo diferente de “ausência de custos”; eles não têm em si nada a ver com uma ausência da forma da mercadoria, mas têm de ser necessariamente representados na forma do dinheiro e do preço. É correcto, e na teoria da crise da crítica do valor não é absolutamente nada de novo, que com a progressiva socialização os “faux frais” crescem por razões objectivas, enquanto simultaneamente baixa a massa de mais-valia real do conjunto da sociedade. É esta discrepância crescente que constitui precisamente o limite interno absoluto da valorização. Trata-se, no caso, de um estado de crise que abrange toda a sociedade, e que só poderá ser suplantado através duma transformação social total, mas não através da divisão entre mercadorias “normais”, com substância de valor, e não-mercadorias supostamente “anómalas”, sem substância, enquanto “bens universais” que em si já estariam para além da forma dominante. Lohoff, com o seu percurso da ideologia da equivalência imediata na circulação, passando pela “reprodutibilidade sem trabalho” dos artefactos do conhecimento, até ao carácter “improdutivo” e contudo necessário do trabalho de informação, de conhecimento e de conteúdos, não ganhou nem um milímetro de terreno. Por isso o constructo puramente ideológico dos “bens universais”, na viragem (para a teoria da acção) da “teoria da apropriação”, conduz a consequências absurdas e verdadeiramente bárbaras, como ainda se verá. É o que implica em última instância qualquer ideologia de alternativa imanente, e a ideologia pós-moderna dos “bens de conhecimento livres” não constitui excepção.

8. A caminho de uma ontologia do trabalho secundária

Antes de levar até ao fim a crítica da temerária pretensão de Lohoff de ter produzido o “fundamento na crítica do valor de uma crítica da economia política da informação”, torna-se necessário um excurso sobre a modelação do conceito de trabalho associada a isso. Na sua referência ao conceito de Marx de “actividades de tipo geral”, no qual ele inclui erroneamente a produção de conhecimento em si, Lohoff recorre ao conceito de “trabalho geral”. Diz que Marx definiria a “criação de novo conhecimento” “como trabalho geral... e não como trabalho privado” (ob. cit., p. 40). Esta é, no entanto, a interpretação de Lohoff, que assenta numa completa confusão. Marx diferencia claramente entre a generalidade social da “força produtiva ciência”, por um lado, e a produção privada pelas empresas de mercado, por outro, relativamente à reprodução social total, não porém relativamente à forma social das actividades individuais. Tal como os “faux frais”, enquanto improdutividade capitalista, “ausência de valor” ou generalidade não estão por isso para além da forma da mercadoria, do dinheiro nem portanto do preço, o mesmo se aplica também aos “trabalhos” com eles relacionados.

Também as actividades relacionadas com a “força produtiva ciência” geral, tal como todos os trabalhos produtivos em geral, independentemente do facto de serem prestados na forma estatizada ou da economia empresarial, são “trabalhos privados”, no sentido em que a força de trabalho é trocada por dinheiro, tendo portanto um preço. Este carácter privado da forma é forçosamente continuado, independentemente de surgir como salário do trabalho, remuneração professoral, honorários ou rendimento de miséria de um empresário de miséria que a si mesmo se esfola, e independentemente de estar relacionado com trabalho do conhecimento geral ou específico, ou com trabalho improdutivo em geral. Toda a actividade que se transforma em dinheiro ou se troca por dinheiro é, pela sua forma, trabalho privado e por isso trabalho abstracto. A categoria do trabalho abstracto não tem nada a ver com a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo, ela é sobrejacente enquanto forma. Por isso também o trabalho do juiz, do carrasco, do soldado (este até enquanto “forma originária” proto-moderna), do programador, do professor de Harvard ou do escritor é, segundo a forma, tão trabalho abstracto como o do operário fabril no pavilhão da fábrica.

Uma vez que o capitalismo, diferentemente das formações pré-modernas, tem o carácter de socialização negativa, a diferença entre trabalho produtivo e improdutivo, entre valor e não-valor, também não se pode representar como diferença entre trabalho (“privado”) abstracto e trabalho (“geral”) não abstracto. As categorias da forma da mercadoria são necessariamente sobrejacentes na forma do dinheiro também relativamente às actividades da reprodução. Isto vale, de outra maneira, também para as actividades sexualmente conotadas dos momentos dissociados da reprodução. Estes, de facto, não se podem representar como trabalho abstracto, mas constituem o reverso obnubilado do trabalho abstracto e pertencem por isso, como tais, ao mesmo contexto histórico específico de socialização negativa; eles não constituem qualquer “resto ontológico” de ausência da forma da mercadoria, ainda susceptível de ser ocupado positivamente. Todas as actividades ligadas à socialidade oficial mediada pela forma da mercadoria, independentemente do plano económico, político ou jurídico, independentemente de serem “actividades de tipo geral” ou produção capitalista privada, independentemente de estarem relacionados com os “faux frais” ou com a produção de mais-valia real, todas elas só podem ser trabalho abstracto e integram o contexto da “financiabilidade”.

Uma vez que Lohoff, no plano de abstracção equivocado, aduz uma diferença conceptual entre “trabalho privado” e “ trabalho geral”, que para ele corresponde à diferença entre trabalho produtivo e improdutivo, ele aproxima-se inesperadamente de uma diferença ontológica, que ameaça derivar numa ontologia do trabalho secundária. Neste ponto assalta-o um certo escrúpulo, uma vez que se lhe atravessa no caminho o seu velho Adão como pretenso crítico radical do trabalho: “Já o termo por mim utilizado de ‘trabalho geral’ não deixa de ser algo problemático. A partir dele poderia entender-se, mal, que no caso de trabalho de informação estaríamos perante uma actividade imediatamente social. Não é isso que se pretende. Na sociedade capitalista estas actividades são evidentemente tão tacanhas, alienadas e determinadas pela forma como qualquer outro trabalho. A diferenciação ‘trabalho geral — privacidade separada’ pretende assinalar uma contradição interna no interior do mundo da práxis social associal. Lida do estrito ponto de vista da crítica do trabalho (!), trata-se no caso da expressão ‘trabalho abstracto’ até de uma elaboração conceptual paradoxal, uma vez que a transformação da actividade em trabalho já implica a desvinculação dessa actividade do contexto social” (ob. cit., p. 39).

Este combate de retaguarda em nota de rodapé, porém, não é totalmente digno de crédito. O escrúpulo repentino aponta para uma inconsistência na argumentação teórica. Pois, uma vez que Lohoff contrapõe ao conceito de “trabalho privado”, como sinónimo de trabalho abstracto, o conceito de “trabalho geral”, ele de modo nenhum se limita a arranjar uma “contradição interna” em termos meramente lógicos no interior do trabalho abstracto, mas executa um salto entre planos, que lança o “trabalho geral” para fora da categoria do trabalho abstracto. Poderia não ter sido “pretendido”, mas é isso que se passa. Lohoff limita-se a notar que a lógica da sua argumentação o levou a uma reconstituição da ontologia do trabalho após a forma da mercadoria, que o desmente como “crítico do trabalho”. Se ele quisesse realmente fazer jus ao escrúpulo que o assaltou, iria até à destruição de toda a sua cadeia argumentativa, o que tanto mais o assusta. Assim ele prefere escamotear o problema numa formulação-alibi.

De facto, das premissas do conjunto da sua argumentação decorre necessariamente uma ontologia do trabalho secundária. Pois se os bens digitais de conhecimento e de informação como tais e em si já devem representar uma ausência de forma da mercadoria no meio do capitalismo, e se apenas de modo jurídico e exterior lhes é estampada uma pseudo-forma da mercadoria, então também o “trabalho geral” que lhes está agregado tem de representar como tal e em si já uma actividade fora da forma da mercadoria no meio do capitalismo, actividade que já não seria trabalho abstracto e à qual a “determinação da forma” apenas seria outorgada de modo jurídico e exterior. O conceito “trabalho” recebe assim pelo conteúdo como tal, juntamente com o atributo “geral”, o estatuto de um conceito de transformação positivo, em vez de um conceito de imanência negativo. Numa bela analogia com a metafísica do trabalho do marxismo tradicional, só pode tratar-se autenticamente de “libertar” o “trabalho geral” como tal do seu invólucro capitalista. No essencial, trata-se de uma metafísica pós-moderna do “trabalho geral”, em que a velha ontologia do trabalho simplesmente é transportada para o “capitalismo da informação”.

Isso não oferece dúvidas em Meretz, que não é atormentado pelos escrúpulos de Lohoff: “Os bens livres são não apenas sem valor, mas também sem a forma da mercadoria, porque são produzidos como bens universais livres: o trabalho geral encontra no bem universal livre a sua forma adequada” (ob. cit., p. 87, itálico de Meretz). Pois então. Na “produção livre” de “bens universais livres” por “indivíduos livres” para além da forma da mercadoria encontra o “trabalho geral” a sua “forma adequada” (o que fica mesmo sublinhado em itálico). A categoria “trabalho” está salva para os próximos mil anos, ainda que apenas numa imaginação ilusória. Meretz pode assim revelar sem mais o segredo da ontologia do trabalho de toda a economia da alternativa digital, porque no contexto do “Oekonux” a adopção meramente formal da “crítica do valor” já era sempre truncada quanto à crítica do trabalho (devido, também, ao ponto de partida na “psicologia materialista” da ontologia do trabalho de Holzkamp, que no entanto não pode ser responsabilizado pelas interpretações de Meretz).

Obviamente que uma “crítica do valor” sem crítica do trabalho (ou com uma crítica do trabalho inconsequente, truncada e cindida) já não é “crítica do valor” nenhuma. Se fosse realmente um teórico da crítica do valor e não um ideólogo da legitimação, Lohoff vere-se-ia obrigado a tematizar abertamente e a resolver a contradição fundamental que grassa no círculo “Oekonux” entre a crítica do trabalho e o conceito positivo de trabalho. A sua notória e até penosa necessidade de se consagrar como “teórico chefe” legitimatório de uma “práxis” imanente não declarada de um certo “círculo” leva-o, porém, a andar apenas de algum modo à volta da profunda contradição. Se já o ponto de partida fundamental do arrazoado de Lohoff demonstra uma queda da crítica do valor na ideologia pequeno-burguesa da circulação simples e das relações de equivalência directas, também o “resto de crítica do trabalho” só pode ser desamparadamente emplastrado, na esperança de que ninguém note e de que a inconsistente formulação de álibi ofereça cobertura suficiente.

Em todo o caso, faz parte da imagem de marca da “Krisis” residual escamotear, tapar e falsear “político-teoricamente” as contradições de conteúdo; com a secreta consciência de que não se pode obter nem mais um vaso de flores na esfera da teoria social, e de que se trata apenas de auto-afirmação abstracta de posição, numa azáfama de “círculo” e de movimento, que teoricamente não toma as coisas tão a sério, porque o objectivo é sobretudo a legitimação. No mesmo sentido aponta também o crescente abandalhamento categorial da crítica do trabalho na revista vienense “Streifzüge”, onde o potencial crítico relativamente ao trabalho abstracto se simplificou numa invocação folhetinesca da “ociosidade” e numa queixa moralista contra os critérios burgueses do serviço e da concorrência, o que de algum modo sempre está “correcto”, mas sem suficiente definição das categorias teóricas se transforma em tagarelice culturalista. Não pode deixar de se referir que a metafísica do “trabalho geral” já tem uma longa história no pós-operaismo de Negri, que há muito se vem também referindo positivamente ao “free software” e ao “movimento cultural livre”. Aqui se insinua, pé ante pé, a “pós-operaização” dos representantes duma “crítica do valor” truncada que, de tanta abertura para todo o lado, já mal conseguem mexer-se, assim demonstrando, apenas, como se vão tornando supérfluos.

9. O carácter social total da substância do valor e a ideologia de capital “produtivo” e “rapinante”

Quanto à pretensão de Lohoff de uma “crítica da economia política da informação”, mantém-se como ponto-chave a questão de saber como verdadeiramente os supostos “bens universais”, “sem valor”, se conseguem representar “mentirosamente” como “bens pagos” no sistema valor-preço do conjunto da reprodução capitalista, e porque hão-de passar então os utilizadores pelo sofrimento de ter de entregar o seu “bom dinheiro” pelas supostas não-mercadorias. Uma vez que Lohoff pensa poder reduzir o problema da criação do valor, ou da mais-valia, a definições ao nível da empresa singular e ao nível da mercadoria singular, o pretenso mistério da transformação de não-valor em valor apenas pode operar-se na circulação. Este problema já tem antecedentes na antiga teoria da crise da crítica do valor. Tratava-se aí de esclarecer a contradição que consiste em que o capitalismo, através do desenvolvimento das forças produtivas e da libertação sucessiva de força de trabalho que acompanha este processo, está a cortar o ramo em que se encontra sentado. Isto não pode ser tratado, simplesmente, como falta de consciência dos agentes capitalistas sobre o carácter do seu próprio modo de produção, mas tem de ser esclarecido a partir do mecanismo interno da estrutura da reprodução social, que se executa “nas costas” destes agentes.

Já no citado “texto primordial” de teoria da crise de 1986, foi definido o contexto em que, por meio da concorrência, na circulação, são precisamente aqueles capitais que socavam o sistema no seu conjunto, através da racionalização da força de trabalho, os mesmos que conseguem puxar a si, através do embaratecimento dos produtos, uma parte mais que proporcional do poder de compra da sociedade, e assim realizar uma parte maior da mais-valia social, cuja produção no seu conjunto diminui, precisamente através da contribuição substancial deles mesmos. Por outras palavras: produção e realização de mais-valia divergem. Os capitais de modo nenhum se apropriam da mais-valia produzida dentro das suas quatro paredes, mas sim de uma parte da mais-valia do conjunto do capital, cuja dimensão é determinada na circulação, através da concorrência, na qual cada um se vai impondo precisamente pelo empenho em secar a fonte da mais-valia social total. No entanto, as consequências desta observação para a teoria do valor, no que respeita ao conceito de reprodução global do capital, nunca foram elaboradas com mais detalhe.

Lohoff e companhia retomam agora estas ideias no contexto da sua limitada argumentação, naturalmente sem fazerem referência à fonte original. Contudo, metem-se em sarilhos, como vamos ver, pois mobilizam apenas a insuficiência da abordagem da teoria da crise na velha crítica do valor, omitindo os potenciais de desenvolvimento de que esta ainda dispunha. Lohoff fala da “situação feliz” do capital de inovação, ao “apropriar-se do valor existente fora das suas instalações” (ibidem p. 41). Este raciocínio é agora transferido para a “situação feliz” do capital-informação, ao valorizar os seus produtos “sem valor”: “para o capital individual é naturalmente irrelevante se fica a dever a sua participação na massa de valor social à própria criação de valor ou se consegue participar do valor criado noutro lugar” (ibidem p. 51). Também Samol fala, no contexto de trabalho improdutivo, da apropriação “da mais-valia produzida noutro lado” (ibidem p. 105). Meretz afirma igualmente que os “bens universais privatizados” estariam “por causa do seu carácter sem valor e não-mercadoria... apenas na posição... de gerarem uma participação na massa de valor produzida noutro lado” (ibidem p. 56).

Da maneira como o problema aqui é formulado, afirma-se novamente a redução definitória positivista da substância do valor, com imputabilidade e “possibilidade de localização” directas, que agora se desenvolve no plano dos mecanismos da reprodução capitalista global apenas até à sua plena reconhecibilidade. Já acima fiz algumas observações sobre o assunto, pois não é possível esclarecer a questão das relações de equivalência na circulação, nem a definição conceptual de trabalho produtivo e improdutivo, sem se recorrer ao contexto interno do conjunto do sistema, que é algo diferente da mera soma de momentos singulares iguais adicionáveis. Agora trata-se de definir com mais precisão este problema, relativamente ao carácter social total da massa de mais-valia e da sua realização na forma do dinheiro, e de continuar a desenvolver a argumentação ainda insuficiente da velha teoria da crise e da acumulação da crítica do valor, corrigindo-a num determinado ponto deixado pouco claro.

Isso só pode acontecer em confronto com uma reflexão que se fez valer contra a elaboração teórica da crítica do valor, particularmente de Michael Heinrich, e que em determinado ponto de vista continuou a desenvolver a crítica da “teoria do valor pré-monetária” de Backhaus entre outros. Heinrich afirma que a teoria do valor de Marx ainda estaria ligada à economia política clássica burguesa, na medida em que arrastaria consigo um entendimento “naturalista” do valor, inconsistente do ponto de vista do conjunto da produção capitalista. Pela forma de argumentação, trata-se de uma abordagem semelhante à por mim apresentada no sentido da crítica do valor, com a definição do “duplo Marx”. Contudo Heinrich refere-se aqui a algo diferente, à própria análise da forma do valor. Misturam-se aqui em Heinrich dois momentos, um certo e outro errado. O momento certo diz respeito precisamente à pretensa “imputabilidade” e “possibilidade de localização” directas da substância do valor, que servem de base a toda a argumentação de Lohoff e Cª.

Heinrich aponta, em primeiro lugar, para a questão que verdadeiramente constitui a revolução teórica de Marx face à economia burguesa clássica: “Adam Smith confrontou-se no princípio com um único acto de troca e questionou como se pode definir aqui a relação de troca; Marx, pelo contrário, vê a relação de troca individual como parte de um determinado contexto social total... e pergunta então o que significa isso para o trabalho despendido por toda a sociedade” (Michael Heinrich, Kritik der politischen Ökonomie. Eine Einführung [Crítica da economia política. Introdução], Stuttgart 2004, p. 44, itálico de Heinrich). Isto atinge até à medula também Lohoff, cujo arrazoado fundamental se revela como recaída no ponto de vista da economia política burguesa. Heinrich retira agora a consequência chave para o entendimento da substância do valor do marxismo tradicional: “O discurso sobre a substância do valor foi sobretudo entendido de modo quase material, ‘substancialista’: o trabalhador ou trabalhadora teria despendido um determinado quantum de trabalho abstracto e este quantum acumular-se-ia agora como substância do valor em cada mercadoria e tornaria cada coisa individualmente um objecto de valor” (ibidem, p. 47, itálico de Heinrich). Também aqui Lohoff é atingido até à medula, uma vez que esta “imputação” está no cerne da sua argumentação.

Na medida em que se trata da “possibilidade de localização” pretensamente imediata da substância do valor em cada mercadoria individual, foi aqui elaborado um decisivo ponto de vista da crítica. Heinrich volta a lembrar repetidamente que o valor não pode voltar a ser imputado substancialmente a cada mercadoria individual. E ele estabelece a sua versão do “duplo Marx” no facto de que Marx, por um lado, levanta o contexto da mediação social total, mas, por outro lado, com a expressão de um “valor individual” volta a cair repetidamente no entendimento “naturalista” de uma “possibilidade de localização” individual e imediata. Assim, acaba por fracassar também a tentativa de transformação valor-preço; um problema que, por isso, ficou sem solução no marxismo (Lohoff fica ainda abaixo disto, pois como vimos não passa do capítulo inicial do 1º volume de “O Capital”).

Mas Heinrich mistura o momento certo desta crítica com um momento errado, na medida em que traz a terreiro um segundo conceito de suposto entendimento “naturalista” de Marx e dos marxistas. Ele nega a definição marxiana de trabalho abstracto como redução consumada ao dispêndio de energia humana (na relação de validade social), ou seja, de “nervo, músculo e cérebro”. Também isto seria (à semelhança do entendimento de Rubin já nos anos 30) uma errónea definição “fisiológica-naturalista” e por isso supostamente trans-histórica. Assim, porém, o próprio Heinrich regride ao ponto de vista da economia política burguesa, que não tem qualquer conceito de trabalho abstracto. A redução consumada do chamado trabalho concreto ao dispêndio abstracto de energia humana na relação de validade social é especificamente capitalista e de modo nenhum trans-histórica. Ao denunciar o conceito marxiano de substância como “naturalista” também deste ponto de vista, Heinrich elimina o problema da substância enquanto tal, pois então já não se pode declarar em que consiste verdadeiramente também o contexto da mediação social total do valor, de acordo com o seu conteúdo. O valor reduz-se assim para ele à relação de troca, no fundo à relação de preço, enquanto a mercadoria individual em si não pode representar qualquer objectividade do valor abstracta. Daí que ele fala expressamente da única “teoria do valor” vigente, a “da circulação” (ibidem, p. 51). Dissolve-se a unidade consumada, conseguida através de fricções, de produção e circulação, ou realização do valor; o valor torna-se apenas o filho da circulação, essência e aparência coincidem (como no pensamento pós-moderno em geral). Tal como os anteriores críticos das “teorias do valor pré-monetárias”, também Heinrich se vira para a ideologia da circulação, de maneira específica.

Ora, como se pode resolver a contradição entre, por um lado, a correcta crítica à “imputabilidade” e “possibilidade de localização” directas da substância do valor em cada mercadoria isolada e em cada acção de mercado, ou relação de troca isolada (como na teoria burguesa, no marxismo e de modo particularmente grosseiro em Lohoff) e, por outro lado, a ainda assim necessária definição do trabalho abstracto como substância do valor, enquanto dispêndio de energia humana? Isso só é possível se o próprio problema da substância for tratado como contexto de mediação social total, em vez de determinação de grandeza individual. Deste ponto de vista, a divergência entre produção e circulação coincide com a divergência entre objectividade do valor substancial e abstracta e determinação da grandeza respectiva. Por outras palavras: a substância da mais-valia (é apenas desta que se trata e não da substância do valor em geral) também relativamente à sua produção só pode ser concebida como globalmente social, e não como soma do dispêndio imputável a cada empresa de uma determinada quantidade despendida de “nervo, músculo e cérebro” (nesta medida, na polémica com Heinrich é exigível também uma correcção a outro texto fundamental da antiga crítica do valor, o meu ensaio “Abstrakte Arbeit und Sozialismus [Trabalho abstracto e socialismo]” in: Marxistische Kritik 4, 1987; aí a objectividade do valor de cada mercadoria ainda era posta como idêntica à determinação da sua grandeza e não era ainda elaborado o problema da mediação social total, apesar de ser correcta a crítica a Backhaus noutros aspectos).

No plano de cada capital individual apaga-se a diferença entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. Não se pode ir lá e medir nos dispêndios individuais de trabalho (por exemplo em unidades de tempo) que mais-valia substancial produzem exactamente. O que significa que a diferença entre capital inovador e capital medianamente produtivo ou, por outro lado, entre capital produtivo e improdutivo em geral, não representam porventura casos especiais em que é “apropriada” massa de mais-valia produzida noutro lado. Pelo contrário, fundamentalmente divergem cada dispêndio capitalista individual de trabalho abstracto e cada realização capitalista individual de mais-valia na circulação. O dispêndio capitalista individual de trabalho abstracto constitui à partida uma parte indeterminada quanto à sua dimensão da substância de mais-valia social total, que se mantém igualmente indeterminada quanto à sua dimensão total enquanto não se realiza.

Nenhuma mercadoria individual, seja de que espécie for, “incorpora” portanto uma determinada quantidade de trabalho abstracto produtivo despendida, por assim dizer, para si “pessoalmente", mas sim, na forma do preço da circulação, sempre uma determinada parte da quantidade de trabalho abstracto produtivo despendida no conjunto da sociedade. Uma vez que esta representação do valor já ocorre sempre na forma do dinheiro, como processo mediado no conjunto da sociedade, e não porventura como transformação de cada quantidade de trabalho utilizado em cada mercadoria individual na forma do valor, a quantidade de valor no fim “incorporada” em cada mercadoria individual na forma do dinheiro não tem nada a ver com o facto de na sua produção enquanto coisa-mercadoria ter sido despendido nenhum trabalho, trabalho improdutivo ou trabalho produtivo (ou ambos à mistura). Esta é também a razão porque a equação x casaco = y tecido só pode ser uma cifra conceptual para a relação de equivalência social das mercadorias no seu conjunto e não uma relação de equivalência imediata para cada acto-transacção no mercado. Se um casaco custa 20 euros isso não significa, de modo nenhum, que o casaco represente por exemplo 2 horas de trabalho aplicado nele individualmente, em que os 20 euros teriam de corresponder como equivalente a 2 horas de trabalho. O postulado da equivalência só é válido no sentido de que a quantidade de valor social total e a quantidade do preço social total têm de corresponder. O facto de uma coisa nunca poder bater certo com a outra repercute-se em contradições e fricções no conjunto da produção; por exemplo em bancarrotas, processos de dívida e de desvalorização, crises conjunturais e estruturais e, finalmente, como limite interno absoluto neste plano, se por falta de suficiente substância em geral já não é possível estabelecer qualquer equivalência valor-preço para o conjunto da sociedade, nem sequer aproximada. Só agora, a partir da perspectiva do processo do conjunto da reprodução capitalista acima exposto, se torna definitivamente claro quão espantosamente é ingénua do ponto de vista teórico a descoberta de Lohoff dos “bens universais”, em si sem a forma da mercadoria, por não disporem de substância de valor “individual”.

Não existe qualquer “valor individual”. O carácter do trabalho abstracto, como redução ao dispêndio de energia humana, e da mercadoria individual, como objectividade de valor abstracta (relativamente à sua qualidade socialmente válida), em nada é prejudicado; apenas a sua grandeza é indeterminada, porque determinável somente como unidade conseguida na fricção de produção e circulação (realização) da mais-valia, no contexto da reprodução social total. Por isso também a substância do valor não pode aparecer, quanto à sua dimensão, como soma contabilizável de dispêndios de tempo de trabalho, mas apenas na forma de aparência do valor de troca, na forma do preço e respectiva realização como soma de dinheiro. Por essa razão também não é possível qualquer transformação valor-preço contabilizável. Diga-se de passagem que este contexto mostra também a impossibilidade de um socialismo como contabilização do tempo de trabalho (como, por exemplo, em Engels), em que a forma fetiche do valor deveria ser apenas representada por assim dizer “naturalmente”, como contabilização de unidades de tempo de trabalho assumida e então supostamente “planeável”, o que acabaria por ser a quadratura do círculo, ou a impossível consumação “consciente” da mediação do fetiche.

Ainda que com isto não fique esgotado o contexto de argumentação quanto a este problema, pretendo aqui deixar provisoriamente a coisa como está, o que também é perfeitamente suficiente no que respeita à crítica a Lohoff e Cª (uma discussão mais detalhada será incluída no livro ainda em elaboração “Tote Arbeit. Die Substanz des Kapitals und die Krisentheorie von Karl Marx [Trabalho morto. A substância do capital e a teoria da crise de Karl Marx]“. Para a velha teoria da crise da crítica do valor significa isso que o carácter social total da realização da massa de mais-valia tem de ser consequentemente estendido à sua produção; que esta massa não se apresenta como soma da mais-valia incorporada nas mercadorias individuais, mas sim como o conjunto da massa social invisível, que é realizada pelas mercadorias na venda, independentemente do dispêndio específico de trabalho em si mesmas. Fica então sem objecto a conversa sobre a substância do valor que “aqui” falta, e sobre a “apropriação” de substância do valor produzida “noutro lado”. Para corresponder à pretensão de teoria crítica do valor, Lohoff teria sido obrigado a debater-se em profundidade com a argumentação de Heinrich. Na sua ânsia de pontuar como glamorosa starlet intelectual de party, no teoricamente chato “círculo” da alternativa digital, ele esquivou-se contudo a este debate com a crítica de Heinrich, que destrói o seu arrazoado logo pela raiz. Como sempre, porém, esta falta de desenvolvimento teórico não leva a um simples ficar parado numa reflexão anterior insuficiente, mas a uma regressão brutal, como ainda se verá.

Lohoff é aqui suficientemente descarado para, por seu lado, se demarcar em crítica aparente do entendimento “naturalista” do valor: “Desde sempre que domina nas ciências económicas uma ideia naturalista de valor. A criação de valor é entendida não como forma de relacionamento social, mas como qualidade supra-histórica da coisa” (ibidem, p. 30). Esta crítica ao conceito burguês positivista de valor da economia política, contudo, não tem nada a ver com a crítica interna de Heinrich a um entendimento “naturalista” do valor no marxismo (e residualmente também em Marx), que se relaciona a) com a imputabilidade individual do trabalho abstracto em cada mercadoria como determinação da grandeza do valor e b) com a caracterização do trabalho abstracto como dispêndio de energia humana (nervo, músculo e cérebro). Lohoff não se debate com a última crítica, errada, nem com a primeira, certa. Trata-se de um processo típico em Lohoff: os conceitos são agarrados associativamente (“entendimento naturalista”) ou mesmo criados (“bens universais”) para sugerirem profundidade teórica, enquanto no próprio assunto opera a completa confusão ou a simples ignorância. Lohoff julga já ter atingido uma “interpretação do valor ricardiana-marxista” (ibidem, p. 34), ao rejeitar a contabilização do trabalho de informação improdutivo (em termos capitalistas) como “conjunto do trabalho produtivo”, que se encontra em alguns autores. A primeira e justa crítica de Heinrich ao “entendimento naturalista” refere-se, porém, a algo completamente diferente, ou seja, à imputabilidade individual do dispêndio de trabalho e à possibilidade de haver valor ou grandeza de valor em cada mercadoria. Neste sentido, o entendimento de Lohoff é ele próprio claramente naturalista, “ricardiano-marxista”. Como já se mostrou, com base na chamada de atenção de Heinrich para o verdadeiro carácter da revolução teórica de Marx, a economia burguesa clássica, no seu conceito de valor, parte sempre do acto individual de produção ou de troca, enquanto Marx parte da estrutura do conjunto da reprodução social (escorregando, porém, em parte, para um conceito de valor “individual”, como resto da teoria do valor burguesa, o que leva a inconsistências). Toda a argumentação de Lohoff se baseia numa recaída consequente na concepção “ricardiano-marxista”, correspondente ao conceito de valor burguês clássico, da “possibilidade de localização” e da “imputabilidade” individual do dispêndio de trabalho produtivo singular à mercadoria singular.

A antiga teoria da crise da crítica do valor já partia do carácter social total da realização da mais-valia, enquanto a “possibilidade de localização” da produção de mais-valia ainda ficava por esclarecer e em aberto. Contudo, já então era perfeitamente claro que toda a mediação se passava no interior do “sistema produtor de mercadorias”. Tratava-se, portanto, dos mecanismos da produção e realização da mais-valia, e de modo nenhum de um antagonismo entre mercadorias “reais” e outras no fundo não-mercadorias. Uma vez que Lohoff constrói agora este antagonismo, ele não estende o carácter social total da mais-valia à sua produção, mas, pelo contrário, dissolve também a realização desse carácter social na circulação, com o antagonismo entre mais-valia “séria “ e “não-séria”. A queda ideológica num anti-semitismo estrutural, que já tinha arrebitado as orelhas na ideologia da “troca justa” relativamente à equivalência directa e com base na “reprodutibilidade sem trabalho” dos bens de informação, torna-se agora definitivamente manifesta no plano do capital e do conjunto da sua reprodução.

A conhecida crítica truncada do capitalismo, reduzida ao “capital financeiro” improdutivo, sem trabalho e especulativo, alarga-se agora ao “capital da informação”, que introduziria com manha o conteúdo de valor e o carácter de mercadoria nas suas supostas não-mercadorias. Nos “círculos” correspondentes já há muito que paira o conceito de uma “renda de informação” “injusta”, especulativa, análogo ao conceito do rendimento “injusto” das transacções financeiras especulativas. Em vez de submeter tais ideias à crítica da ideologia, Lohoff pretende fornecer-lhes uma adequada teoria de legitimação “crítica do valor”. O conceito de “renda de informação” improdutiva ter-se-ia arrastado até agora “sem grande pretensão teórica” (ibidem, p. 51) e agora o pretensioso Lohoff recupera o tempo perdido: “O trabalho de informação tornou-se o fundamento de um novo tipo de renda, a renda de informação. No caso dos capitalistas da informação, considerando o sentido estritamente categorial, não se trata de capitalistas, mas de uma variante particular de rentistas” (ibidem, p. 50). Isto inclui uma “posição privilegiada” (ibidem, p. 51) na reprodução capitalista, uma vez que seria “apropriada mais-valia produzida noutro lado” por estes rentistas da informação. Já não é preciso qualquer deformação denunciatória para reconhecer aqui uma variante da contraposição ideológica entre capital “produtivo” e capital “rapinante”.

Enquanto a “Krisis” residual, a partir do velho fundo da crítica do valor ainda critica (em todo o caso apenas superficialmente) a crítica truncada do “capital financeiro”, Lohoff criou agora, com pretensão teórica, uma segunda espécie de “gafanhotos”. Aqui se pode reconhecer a analogia com a metáfora dos “gafanhotos” também num aspecto mais amplo. A crítica truncada ao “capital financeiro” supõe, como é sabido, numa inversão de causa e efeito, que os “especuladores” bloqueariam os investimentos reais e a acumulação real através da construção de bolhas financeiras, razão pela qual o “bom dinheiro” teria de ser novamente guiado para a via produtiva através da intervenção política, para assim finalmente criar os maravilhosos “postos de trabalho”. A “teoria” de Lohoff das “rendas de informação não sérias” implica uma inversão análoga relativamente aos rendimentos improdutivos supostamente usurários do capital-informação: se as autênticas não-mercadorias que são os bens de informação “sem valor” enquanto falsa imputação individual fossem finalmente tornadas “sem preço” e os rentistas da informação perdessem a sua posição privilegiada, então estes também já não poderiam “apropriar-se” de qualquer “mais-valia produzida noutro lado”. Assim se matariam facilmente dois coelhos duma cajadada: os desgraçados “utilizadores”, finalmente, já não teriam de aplicar o seu “bom dinheiro” em não-mercadorias sem substância, e a acumulação real, libertada da carga improdutiva das “rendas de informação”, poderia ganhar novo espaço de manobra, ou pelo menos a crise poderia ser amortecida um bocadinho. Assim se mostra, sem margem para dúvidas, até onde tem de levar forçosamente um entendimento truncado da “substância do valor”, cuja abordagem se limita à (errada) interpretação definitória do 1º capítulo de “O Capital”. A supressão da mediação levada a efeito por Lohoff continua a transformar a reflexão teórica em ideologia.

10. Desvalorização universal e teoria dos estádios de uma emancipação simulatória

Agora, em suplemento à crítica ao abastardamento feito por Lohoff da crítica da economia política, é preciso um aditamento de crítica à pretensa “teoria da apropriação” de Meretz. Já acima fiz notar que a teoria da crise da “desvalorização do valor” ou “dessubstancialização do capital” só pode ser exposta como processo social total e não é possível expô-la como momentos isolados de dadas situações separáveis, que se poderiam descrever como a diferença entre, por um lado, “bens universais”, não-mercadorias, “sem valor”, particulares, ou seja, tornados possíveis na forma da mercadoria apenas com batota jurídica e, por outro lado, mercadorias de algum modo ainda “reais” ou “sérias”. O que deverá ter-se tornado fundamentalmente compreensível na passagem através de toda a estrutura da reprodução capitalista da massa social de mais-valia.

Nesta perspectiva, porém, o limite interno absoluto da valorização aponta para que todas as mercadorias, seja qual for a sua natureza, se tornam tendencialmente cada vez mais “sem valor”. Se não existe sequer a possibilidade de contabilizar individualmente a substância do valor (o trabalho abstracto individualmente despendido) e a forma do preço da mercadoria, além disso a realização da mais-valia na circulação diz respeito a uma massa de substância social cada vez mais reduzida. As mercadorias individuais, sejam materiais ou imateriais, sejam bens ou relações de uso, só podem relacionar-se com um quantum da massa social de mais-valia através da concorrência na circulação, na forma dos preços realizados, quantum esse que não tem nada a ver com a quantidade de trabalho produtivo despendido em cada caso. Porém, se a massa total de mais-valia obtida socialmente, enquanto tal, se reduz para aquém de uma determinada medida, a parte que cada mercadoria pode representar e realizar na forma do preço torna-se necessariamente, enquanto tal, “homeopática”. Isto significa ainda que a crise ou limite da valorização é idêntica à crise ou limite do dinheiro. A relação de equivalência de quantidade de valor e quantidade de preço, válida apenas no conjunto da sociedade, já não é susceptível de construção, nem sequer aproximadamente e com atritos, não por terem porventura deixado de funcionar os mecanismos da mediação (situação em que se tornaria possivelmente necessária uma regulação política), mas porque o padrão de referência social está em vias de extinção e o mecanismo de mediação começa a rodar “substancialmente” em falso.

O processo de socialização que se consuma na forma negativa capitalista atinge aqui um ponto historicamente culminante, sob o signo da crise. Esta socialização, enquanto cientificização da produção, enquanto colocação em rede dos momentos individuais da economia empresarial por todo o lado (e entretanto globalmente), e enquanto aumento das exigências de infra-estruturas, levou a que, por um lado, se derretesse a quantidade de trabalho produtivo do ponto de vista capitalista (produtor de mais-valia substancial) a nível de toda a sociedade (hoje: a nível da sociedade mundial), enquanto, por outro lado, através do mesmo processo aumentava relativamente a quantidade de trabalho improdutivo do ponto de vista capitalista ao nível de toda a sociedade (e não apenas na forma de “trabalho científico” improdutivo). Por outras palavras, já não é possível representar na forma capitalista negativa o grau de socialização historicamente atingido. Se pretender de algum modo utilizar-se a expressão, então todos os bens sem excepção se transformam em “bens universais”, que pressupõem este processo de socialização. E todos os bens são igualmente forçados ainda e apenas jurídica e externamente à forma da mercadoria, a qual se torna sem substância social.

Isto verifica-se há muito tempo também no plano do dinheiro, que se “dessubstancializou” e se transformou em constructo jurídico, num processo secular, visível na crise do dinheiro desde a Primeira Guerra Mundial. Também neste plano se torna claro quão ridícula é a ideologia de Lohoff da equivalência imediata nas relações de troca no mercado capitalista, cuja “violação” ele pretende fixar numa mercadoria individual específica. A crise da equivalência entre quantidades de valor e quantidades de preço ao nível de toda a sociedade e a crise do dinheiro com aquela relacionada, apresentam-se hoje como desacoplamento estrutural da superstrutura financeira relativamente à acumulação real, situação onde ocorre um entrelaçamento em que o dinheiro das bolhas financeiras é reciclado na produção de bens reais. De tal modo que também uma parte crescente da produção de mercadorias, segundo Lohoff ainda “substancial”, “séria” e sólida, se transforma em manifestação de trabalho improdutivo. A equivalência entre valores e preços a nível de toda a sociedade foi enquanto tal “dessubstancializada” e é construída de modo cada vez mais simulado, o que tem de se repercutir em sucessivas crises financeiras.

Porém, não é possível separar a socialização em momentos individuais díspares, e também não é possível separar a socialização da dissociação-valor em mercadorias e supostas não-mercadorias, situação em que seria possível construir um contexto de emancipação específico, desvinculável, como campo especial. O modus de socialização negativa só pode ser suplantado enquanto tal, ou seja, no seu todo. O problema da mediação coloca-se neste plano e não é desvinculável em “processos de apropriação” separados. Torna-se necessário, portanto, um movimento social a nível de toda a sociedade (a nível da sociedade mundial), que lute a partir da imanência do tratamento da contradição e que tome por alvo o modus de socialização também no plano social (em vez de num qualquer plano particular). Só na medida em que um tal movimento se desenvolver podem surgir momentos de “desacoplamento” da forma dominante. Estes “momentos”, hoje ainda não previsíveis, só seriam tais como processo de movimento e revolucionamento de toda a sociedade em primeira linha relacionados com a reprodução material, não porém como “campos” isoláveis, que por si pudessem supostamente já assumir a ausência da forma da mercadoria. A “teoria dos estádios” de Meretz, à qual Lohoff forneceu uma absurda teoria de pseudo “economia política”, passa completamente ao lado da problemática da mediação; é o que se pode desde já dizer.

Se todos os bens no fundo já só permanecem cativos na forma da mercadoria exterior e juridicamente, por causa do grau atingido pela socialização e da sua maturidade de crise, então não há razão nenhuma para declarar campo de emancipação de primeira linha e exemplar precisamente o “espaço virtual”. A particular dificuldade técnica em manter precisamente aqui os mecanismos de protecção jurídica (o que atinge assim apenas o plano do consumo de mercadorias) não aponta de modo algum para que se possa abrir neste lugar particular a porta para a emancipação da forma da mercadoria. Antes pelo contrário, este privilégio infundado pode ser imputado à consciência simulatória pós-moderna, que gostaria de simular também a libertação da forma dominante, analogamente ao processo de simulação da valorização do valor que roda em falso; e, como é evidente, o “espaço virtual” presta-se muito bem a isso. A divisa de idiotas chapados “download é comunismo” está exemplarmente não para o revolucionamento real, mas para as ilusões do sujeito de crise pós-moderno abstractamente individualizado, cada vez mais incapaz de relacionamento e de organização, que se limita apenas a expressar a obsoletude desta socialização negativa, mas não a pode dominar. Em vez de enfrentar o carácter deficitário da própria constituição e visão do mundo, procura-se a saída mais barata, que se imagina poder encontrar em casa, frente ao monitor do computador.

Também na forma como os debates sem fim nos “círculos” envolvidos andam à volta de uma simples modulação das “relações contratuais”, em que a forma dominante deva ser “alterada pela coopeeração” (Meretz) pelas “licenças livres” de diversos modos, se mostra que, apesar de uma tematização da forma do valor grosseira e agarrada à aparência (uma “crítica do valor” à moda de Lohoff teoricamente completamente decadente surge aqui apenas como legitimação), não se trata do modo de socialização da reprodução material e social. Este arrazoado coloca-se, sim, numa tradição de anarquismo vulgar, que estrebucha no problema da socialização, no eterno empurrar para cá e para lá das modalidades de contratos, propriedade e coordenação formal. Apesar de todos os protestos em contrário, no sentido de que de modo nenhum se trataria apenas de uma transformação jurídica e da questão formal da propriedade, é precisamente esta redução que constitui o cerne de toda a abordagem. Não admira que aqui surjam sempre novas contradições (a cujo carácter regressarei com mais detalhe), se a forma geral não deve ser suplantada enquanto tal, mas “em primeiro lugar” nos bens particulares supostamente em si já sem a forma da mercadoria, uma vez que se gostaria de avançar para tornar estes bens “sem preço” e “livres”.

Como a forma geral se mantém em todos os outros bens, e uma vez que não é possível cindir a reprodução social, o constructo tem de recair cada vez mais no problema do contrato formal e da propriedade. Aqui se constitui uma zona cinzenta entre a ideia de “associações livres” de determinadas pessoas, por um lado, (sendo que o que quaisquer pessoas fazem livremente entre si afecta tão pouco o problema da socialização como uma associação do hobby do satanismo) e a ideia de uma intervenção social, por outro lado, no sentido de que uma suposta ausência de forma da mercadoria e “ausência de valor” dos “bens de informação” se devem representar como “ausência de preço” para toda a gente. Isso pressupõe novamente a negação do estatuto jurídico como “bens pagos”, por exemplo quando se propaga a “quebra” dos mecanismos de protecção (o que enquanto tal só é possível no “espaço virtual) e a “apropriação” de certo modo sem luta destes bens a tarifa zero. Ora, não é possível negar a relação social isoladamente, num determinado sector, sem com isso negar a reprodução social de determinados grupos de pessoas, que dificilmente aceitarão isso de boa vontade. Veremos ainda a maneira inconfessável como Meretz pretende passar por cima desta questão.

Todo o constructo cai por terra, não só porque a forma geral, por um lado, “em primeiro lugar” continua de pé para a maior parte da reprodução e, por outro lado, simultaneamente, deve ser suplantada isoladamente para o sector específico da produção de conteúdos científicos e culturais (uma contradictio in adjecto, pois uma forma geral não pode, segundo o seu conceito, ser “superada” parcialmente) e isto leva a fricções insuportáveis, tanto no “plano contratual” como no que diz respeito à reprodução social. O que cai por terra é sobretudo a “teoria dos estádios” de Meretz, também no que respeita à completa incompatibilidade do “espaço virtual” com a reprodução material em geral. Entre a pseudo-suplantação da forma da mercadoria, ilusória e puramente ideológica, através da intervenção aparente meramente virtual, e a suplantação de facto desta forma-fetiche, no “processo de metabolismo com a natureza”, abre-se um abismo intransponível; não há qualquer via de cá para lá.

Entre os ideólogos da alternativa digital faz furor a este propósito a utopia tecnicista de uma super-“máquina universal”, com a qual se poderia finalmente de algum modo “fazer download” também de bens alimentares, roupas e quaisquer bens materiais em geral. Esta ideia tola, da qual não me posso aqui ocupar em detalhe, é um típico produto das alucinações pós-modernas, em que o espaço virtual se transformou na realidade autêntica e deve ser “mais real que a realidade”; mais uma vez uma analogia com o virtualismo da economia das bolhas financeiras, com a qual se difundiu a falsa esperança de que o crescimento seria agora apenas “financeiramente induzido”, e poderia ocorrer na circulação tão bem como na produção de mercadorias criadora de mais-valia real (atrás disto já está sempre à espreita a ideologia do anti-semitismo estrutural e manifesto, que antecipa o possível fracasso).

Para a fantasmática consciência de “utilizador” (“faço download, logo existo”), a emancipação social deve funcionar sempre como uma espécie de “download”, situação em que também só é necessária uma organização virtual. O não-compromisso pós-moderno de autistas sociais, na sua literal imaginação, faz desaparecer por igual movimento social, organização, luta e transformação social na aparelhagem anónima de “máquinas universais”. Aqui exprime-se apenas o estádio final da individualidade abstracta em vias de enlouquecer, não a sua suplantação. Para as gerações futuras, a mania da Internet e do telemóvel poderá dar a imagem de macacos que aprenderam a abrir e fechar cadeados, e que agora, excitados e aos berros, fora de si de alegria, se entregam dia e noite a essa tarefa, admirados com a própria inteligência.

11. Falso universalismo e exclusão social. A ideologia da alternativa digital como eldorado dos homens da classe média transformados em donas de casa

Neste ponto, coloca-se a questão de qual a “sensibilidade” social que aqui se afirma e como actuará ela em termos de “ideologia da apropriação”. A economia da alternativa digital apresenta-se ideologicamente com pretensão “universalista”. O “ser humano universal” deve corresponder à “máquina universal” no âmbito da sociedade global. Isto deveria ser motivo de alarme, porque, na história moderna da ideologia, por detrás de pretensões “universais” escondeu-se sempre um ser altamente tacanho, que estiliza a sua posição, a sua sensibilidade e a sua visão do mundo específicas como sendo o “ser-se humano” em geral, como apontou Marx, por exemplo, na atitude da pequena-burguesia proudhoniana do século XIX, a qual é agora reformulada digitalmente de acordo com os tempos; e, na verdade, não só na fundamentação “na economia política” como ideologia da circulação simples e da equivalência directa. Uma pretensão falsamente “universal”, por trás da qual se esconde um imanente e tacanho ponto de vista social, na realidade acarreta sempre consigo a exclusão de pessoas e grupos sociais que, objectiva e subjectivamente, não podem partilhar esse ponto de vista. Numa primeira aproximação ao ser social da ideologia da alternativa digital, esta exclusão implícita será demonstrada em quatro planos.

Em primeiro lugar, refiro-me aos pressupostos sociais de todo o constructo, os quais de modo nenhum estão distribuídos uniformemente a nível mundial. Não é por acaso que Lohoff e Meretz praticamente não levam em consideração os agregados infra-estruturais nem o consumo de energia, como pano de fundo dos supostos “bens universais”. Não se trata apenas de um problema “de economia política”, no respeitante ao dispêndio de trabalho e aos gastos, mas trata-se também de um problema social, do chamado desnível de desenvolvimento no capitalismo de crise globalizado. Na maior parte da periferia do mundo capitalista, as condições infra-estruturais restringem-se apenas às cidades capitais e vias da exportação necessárias às “ilhas de produtividade”, enquanto em toda a estrutura do interior essas condições faltam totalmente ou estão degradadas e desactivadas (um processo que, em alguns aspectos, já atingiu até os centros do capitalismo). Pessoas que não dispõem de energia eléctrica, naturalmente também não têm telefone nem consequentemente possibilidade de acesso à Internet. Além disso, faltam também condições para uma educação adequada. Mas o que urge mais é o acesso à água potável limpa, que falta cada vez mais em larga escala (até em grande parte do suposto “modelo” China). Criar tais condições exige todavia debates sociais, os quais nunca, mas nunca, poderão acontecer no “espaço virtual”, como ficou patente agora no conflito mundial à volta da privatização do abastecimento de água. Até pelos seus pressupostos ideológicos, os amadores da alternativa digital não dão a mínima importância ao assunto. O conceito de "estádios" de Meretz implica a exclusão de grande parte da humanidade actual; trata-se de uma posição de vistas curtas de brancos metropolitanos e dos seus derivados nas zonas de exportação da periferia.

Em segundo lugar, a ideologia da alternativa digital ignora também amplamente o desnível social nos próprios centros do capitalismo. O afastamento cada vez maior entre ricos e pobres gera uma consequente desigualdade de possibilidades de acesso aos “bens de conhecimento”. A crescente pobreza maciça na RFA retira a cada vez mais gente as condições materiais e energéticas necessárias para a utilização de bens “imateriais”. Pessoas às quais se corta a energia eléctrica por falta de capacidade de pagamento, facto entretanto tornado um fenómeno de massas segundo as estatísticas municipais, não podem obviamente ter o prazer de usufruir dos bens tendencialmente “livres”, que supostamente já não têm a forma da mercadoria. E, usando a terminologia absurda da administração de crise, famílias “socialmente vulneráveis”, a cujos filhos foram cortados os materiais pedagógicos gratuitos e que não sabem como chegarão ao fim do mês sem passar fome, não poderão facilmente, como é óbvio, adquirir, poupando à boca, um computador e seus equipamentos — segundo Lohoff, de modo nenhum uma máquina universal "livre”, mas uma sólida mercadoria “real” e um “sério bem pago”. Ao longo do processo de empobrecimento, da redução do nível geral dos salários e da precarização do trabalho, desenrolam-se também inúmeros conflitos sociais, insuficientes e eles mesmos ideologizados como “tratamento da contradição”, os quais, por sua vez, de modo nenhum se movimentam no “espaço virtual”. Para a crítica da dissociação-valor é prioritário relacionar-se com eles de forma analítica e crítica, nomeadamente também no que diz respeito aos combates de retirada e à co-gestão da crise dos sindicatos, bem como ao anti-semitismo estrutural que grassa por aí, como também a uma tacanhez nacionalista nas elaborações ideológicas. A focagem no “espaço virtual”, bem como no fantasma dos pressupostos “bens universais” digitais, deixa identificar não apenas um ponto de vista branco metropolitano, mas também um ponto de vista tacanho de determinados segmentos da classe média (sendo que a sua própria precarização é elaborada, na “ideologia da apropriação” de Meretz, de uma forma absolutamente perniciosa, divisionista e barbarizante, como ainda se mostrará).

Em terceiro lugar, a tendência de exclusão, implícita na ideologia da alternativa digital, tem também uma componente cultural. Todas as pessoas que não podem ou não querem enquadrar-se no modo de vida, na visão do mundo e na forma de acesso dos macacos-“utilizadores” são excluídas do “universalismo” digital. O factor tecnológico tem aqui também o seu papel. O complexo de “máquinas universais” e de “bens informacionais” digitais, optimistamente designado como “nova técnica cultural”, supostamente já não na forma da mercadoria, pede um conhecimento de acesso tecnicamente tacanho, que ameaça sobrepor-se a todos os conteúdos e transformar-se num fim em si mesmo (daí a metáfora dos macacos e dos cadeados). Trata-se também de um problema de “economia do tempo” (tema ao qual voltarei noutro contexto, a propósito da “ideologia da apropriação”). Se o dispêndio de tempo aumentar pelo menos para um “elevado” conhecimento de acesso, esse tempo terá que ser subtraído ao tempo livre destinado a outros objectivos de conteúdo relevante, finalidades ou interesses. A tacanhez tecnicista expressa-se também numa alegria infantil ou justamente simiesca pela suposta superioridade de “know-how”, que vai normalmente de par com uma crescente pobreza de conteúdo, embora um ou outro caso possa apresentar-se diferente. É de enfatizar, também, que a maioria destes bem equipados “utilizadores” possuem sobretudo um conhecimento de jogar e carregar no botão e, no que concerne à informática e às suas bases, em geral um conhecimento literalmente de banda estreita, para não falar da dimensão filosófica das novas tecnologias. Esta limitação corresponde realmente às restrições neoliberais contra os estudos das ciências humanas, sociais e culturais nos estabelecimentos académicos e ao crescente favorecimento do “conhecimento funcional” na consciência da sociedade. O autoproclamado “homem universal” digital é um homem funcional, em segmentos das novas classes médias, enquanto ficam excluídas pessoas com exigências intelectuais e artísticas “fora de moda”, que organizam o seu tempo disponível de outro modo.

Em quarto lugar, e por último, a tendência de exclusão da ideologia da alternativa digital também se reflecte em termos de género. Tal como mais de 90% das famílias monoparentais são constituídas em torno de mulheres, assim também mais de 90% dos “utilizadores” obstinados são homens. Obviamente que esta tendência não é por mero acaso. A socialização das mulheres, que assenta na relação da dissociação sexual do patriarcado moderno produtor de mercadorias, é, ontem como hoje, mais “afastada das técnicas” e mais orientada para relações sociais e pessoais mais imediatas, ainda que também aqui num ou noutro caso concreto possa ser diferente. Não só no seio das ideologias neoconservadoras à moda de Schirrmacher, mas também na realidade de crises e face ao desmoronamento do Estado social, as “virtudes femininas” são reforçadamente activadas, como recurso gratuito para compensar os deficits catastróficos no acompanhamento, no zelo e na assistência aos desamparados. Os debates prementes sobre estas atribuições do sexo feminino, que já há muito deveriam ter acontecido, muito menos podem ser levados a cabo no “espaço virtual”; para já nem falar nos cuidados com os idosos e os enfermos, bem como nos afazeres com crianças pequenas ou com adolescentes depravados, que não podem realizar-se com um simples “download”. A focagem numa economia da alternativa digital, sem falar do absurdo da sua “economia política”, é essencialmente uma questão de autistas da sociedade masculina digital, que como “círculo” se mostra totalmente indiferente às atribuições sociais da relação de dissociação sexual na crise. Pode acontecer que a “praxis” pessoal de alguns homens seja diferente, contudo a ignorância ideológica permanece e as mulheres são estruturalmente excluídas desta “perspectiva de apropriação”. São principalmente os homens “transformados em donas de casa” (Cláudia v. Werlhof) da classe média precarizada que, mais uma vez, pressentem uma supremacia fálica e querem gozá-la no “espaço virtual”.

Por conseguinte, se se questionasse quem é o destinatário da ideologia da alternativa digital na sociedade, uma definidora de perfis sociológicos poderia delinear as características gerais da “sensibilidade” procurada da seguinte maneira: uma variante pós-moderna específica do sujeito masculino branco ocidental (MBO), mormente o homem da classe média transformado em dona de casa pelo capitalismo, com particular ênfase para o Techno-Freak mediático semi-culto e para o “utilizador” maníaco com difusa pretensão de “esquerda” (ver o artigo “Der Mai ist gekommen [O Maio chegou]” de Roswitha Scholz, na Exit! nº 2). Este perfil de uma certa espécie de homenzinhos ambiciosos, na fauna social do capitalismo de crise, pode ser traçado ainda com mais precisão, com base nas consequências da “ideologia da apropriação” de Meretz.

12. O ponto de vista dos idiotas do consumo virtual

É possível representar a definição da “sensibilidade” social virada para a ideologia da alternativa digital também num nível que não remete para nenhuma “situação” específica, mas sim para uma cisão da alma da mercadoria em geral, que ainda assim é possível de certo modo agregar sociológica ou psicossocialmente a um tipo ou “círculo”. Já na fase fordista do capitalismo, apesar do casamento de então entre o trabalho abstracto e o “produtivismo”, verificou-se um deslocamento do centro da vida para o “lazer” compensatório e para o consumo de mercadorias. A “ideologia do consumo” também foi, embora de uma forma muito superficial, uma questão repulsiva para o movimento de 68. Na consciência pós-moderna, porém, deu-se um volte-face nesta orientação. “O consumidor como dissidente” era o topos central da ideologia da esquerda moderna pop (Diedrichsen). Este deslocamento é historicamente específico, mas também pode ser derivado de uma contradição interna do sujeito da mercadoria como tal. Por um lado, o trabalho abstracto e a forma da mercadoria da reprodução social são reconhecidos e interiorizados, por outro lado, as restrições ao consumo a eles associadas são tidas como um escândalo e digeridas nas ideologias da “justiça distributiva". O sujeito da mercadoria prende-se à sua forma social, não admitindo, porém, qualquer limitação ao seu consumo, limitação que, por sua vez, está em contradição com as capacidades sociais de produção de riqueza material e imaterial. Este ponto de vista, enquanto dissociado da forma social de reprodução, torna-se constantemente ridículo.

Agora, a ideologia da alternativa digital mobiliza particularmente o ponto de vista dos consumidores de mercadorias. O sujeito do consumo aumenta a sua lascívia com o facto de a informação digital não poder ser tecnicamente subordinada aos mecanismos capitalistas de cerceamento, como os bens materiais. Com isso o ponto de vista isolado dos consumidores não é ultrapassado, mas cimentado. A ideologia que torna estes bens isoladamente “sem preço” como supostos “bens universais” é uma autêntica ideologia de consumidores. O consumo de mercadorias deve, enquanto tal, ser “libertado” num determinado sector, independentemente das outras condições de reprodução social, o que é novamente uma contradictio in adjecto. Todo o constructo se encosta ao ideal pós-moderno que considera o consumo o verdadeiro campo da socialização. Esta ilusão exprime-se agora em que a forma da mercadoria deverá ser suplantada pelo consumo, aparecendo os bens de informação digital como presa supostamente fácil.

Sempre que aqui se fala de uma maneira optimista da “produção”, trata-se exclusivamente da noção de um “processamento” secundário de bens de consumo (digitais), similar, por exemplo, à “televisão interactiva” ou à “participação dos ouvintes” via telefone no Dudelfunk (ouvintes de rádio que transmitem informações sobre o trânsito, leitura de títulos por locutores amadores etc.), onde se pretende criar uma falsa identificação de “comunidade” mediática. A ideologia do “consumidor como dissidente” é agora completada com a ideologia do “consumidor como produtor”. A acção “activa” do consumidor que se desligou do contexto real da reprodução social deverá ser redefinida como um “momento de produção”. De facto, trata-se nada mais do que brincar com “bens de conhecimento”, os quais não foram criados por este método (o que se aplica sobretudo aos conteúdos de arte, música, filmes e textos). O processo institui-se sob o nome de “remix”, uma expressão muito apropriada, cujos pormenores mais abaixo aprofundarei. Realmente trata-se aqui de uma mera simulação de “criatividade”, sem que verdadeiramente se aprofunde seja o que for. Na velha crítica do valor e do trabalho, ainda se considerava uma objectiva ironia perversa do capitalismo do lazer e dos serviços que o “consumo” se transformasse em “trabalho”. Actualmente este facto negativo é idealizado para o “espaço virtual” como sendo um positivo “consumo produtivo”, o qual já deve ser tido como o quase “completamente diferente”, enquanto pretenso “desacoplamento” da forma da mercadoria.

O quanto a ideologia do consumo digital continua presa aos tão evocados, porém pouco ou nada apreendidos, conceitos de “forma vazia” e subjectividade da mercadoria fica bem patente, não em último lugar, na completa indiferença face aos conteúdos. Trata-se da “liberdade” de consumo de conteúdos em geral, isto é, da “liberdade de acesso” puramente formal. Das “liberdades” abstractas do software livre, agora com pretensões de se estender a conteúdos culturais num sentido mais amplo, faz parte “a utilização livre para qualquer (!) fim” (Meretz, idem, p.81) bem como “a livre reprodução e distribuição de cópias” (idem, p.81). Isso significa, por um lado, tal como já frequentemente referido, que, por exemplo, extremistas de direita, racistas, anti-semitas e sexistas podem “livremente” lidar com (apossar-se, reinterpretar e até modificar) textos e produtos culturais de esquerda, por exemplo no sentido de estratégias de frente transversal. Aliás, é de notar nos representantes da economia da alternativa digital um completo laxismo e tolerância quanto à crítica da ideologia, que na verdade também são referências evidentes do anarquismo vulgar. Porque a “liberdade” formal de produção e de consumo de opiniões é venerada como o mais sagrado de todos os bens, e até em parte tecnicamente integrada em plataformas e fóruns da Internet, são abertamente tolerados teóricos da conspiração, “fascistas mundiais”, bem como outros ideólogos que constituem um perigo público, ou contestados sempre num discurso cortês e simpático, quando o único argumento adequado seria o “taco de basebol” (Woody Allen). Mas os conteúdos são como tais coisas irrelevantes, o importante aqui é a “liberdade” formal “para qualquer fim”.

Por outro lado, o vazio de conteúdo destes programas da pseudo-emancipação digital significa naturalmente também que a propagada “gratuitidade” das supostas não-mercadorias, como liberdade de consumo, vale para todos e para tudo de modo puramente formal. O neonazi tem pois a “liberdade” de descarregar gratuitamente o seu tão cobiçado rock nazi, o violador de crianças a sua pornografia infantil e o canibal de horas vagas o seu vídeo de faca e alguidar; e sempre a coberto do princípio da “livre utilização para todos os fins”, todos e mais alguns. Os “lutadores da liberdade” digitais, Lohoff e Meretz, podem reunir aparentemente a mais ampla clientela possível e imaginária, porque ao fim e ao cabo todas e todos são consumidores dos media; e quem é que dirá não, se tudo é gratuito e se tudo isto ainda é derivado “da economia política” pelo maior “teórico” desde Aristóteles? O que aqui é formalmente ideologizado é, em última análise, a posição do idiota do consumo digital, que quer obter a sua chupeta virtual. Para uma crítica radical da dissociação-valor, este ponto de vista é mais ou menos tão central e urgente como a legalização da cannabis.

Exemplos como o rock nazi ou a pornografia de maneira nenhuma são fenómenos marginais. O palavreado acerca dos bens de informação simplesmente como “bens do conhecimento” num sentido positivo é tão inadequado como a expressão lançada por Helmut Kohl das “paisagens florescentes”, referindo-se às perspectivas económicas da Alemanha Oriental. É claro que isto não é menos válido para produtos impressos do que para produtos de informação digital. Ambos são “bens mediáticos” técnicos, através dos quais se pode divulgar tanto um conhecimento real ou uma reflexão crítica, como lixo da pior espécie ou simples disparates. Sob as condições de crise, a tendência em todos os media do capitalismo vai no sentido de minimizar ou praticamente eliminar todos os conteúdos críticos e exigentes em favor do “titty-tainment”; e isto tanto nas editoras, como na rádio, na televisão ou até, claro, na Internet. Enquanto para a crítica social emancipatória é especialmente fulcral analisar esta tendência da forma da mercadoria na cultura e, contra ela, fazer valer o critério do conteúdo (também contra a privatização e a subjugação da produção cultural a pontos de vista da valorização imediata), a ideologia da alternativa digital esmera-se somente na pura liberdade formal de consumo e no “livre acesso” para “qualquer fim”.

É verdade que o conhecimento real pode apresentar-se também em formato digital, mas ele não surge automaticamente no movimento em si da comunicação e do consumo digitais. Quando se encontra algo dotado de substância, por exemplo na enciclopédia da alternativa digital Wikipedia, (em muitos casos, porém, esta deve ser consumida com algum cuidado; e ela também não possui critérios de acesso totalmente “livres” para publicação de conteúdos, em parte até com razão), este alimenta-se de uma produção de conhecimento que, como tal, não assenta de forma alguma num mero “consumo produtivo” no “espaço virtual”; motivo pelo qual, aliás, o fundador da Wikipédia se retirou, demarcando-se assim de uma ideologia de criação imediata e espontânea de “conhecimento” através de consumidores amadores “activos”.

O problema do “livre” consumo digital de conhecimento está na reprodução material das instâncias de suporte no interior das relações capitalistas, que não se pode desacoplar isoladamente da “financiabilidade”. No âmbito dos empreendimentos académicos, principalmente na área das ciências naturais, mas não só, existe frequentemente, nas editoras e revistas especializadas, um dualismo entre edição em papel e publicação digital. A base material sob condições capitalistas é assegurada no âmbito académico através da cobrança de taxas (licenças de campus), por exemplo com a possibilidade de “download” nas bibliotecas. Mesmo no caso de muitas publicações impressas, o acesso a textos digitalizados é efectuado, parcial ou totalmente, através de um portal com taxas obrigatórias. Mas dado que estas restrições podem ser “quebradas” e contornadas, o dualismo de edições impressas e digitalizadas torna-se cada vez mais problemático.

O regozijo dos ideólogos da alternativa digital sobre este assunto é, no entanto, totalmente descabido, dado que as demais condições do capitalismo continuam invioladas, porque desta forma só é posto em causa o suporte material das publicações de produção de conhecimentos, as quais nunca são isentas de custos. É natural que aos produtores de conhecimento dos empreendimentos académicos, enquanto forem sustentados pelo Estado, não lhes pareça problemática a forma digital das publicações. Coloca-se aqui, no entanto, a questão da verificação de qualidade e do acompanhamento da redacção (que também no âmbito das editoras se degrada crescentemente). Esta prática corrói igualmente a capacidade de reprodução material das editoras académicas e das revistas especializadas. A digitalização não conduz per se à “liberdade” no domínio universitário, pelo contrário, ela leva a uma banalização e a uma restrição material na “produção de conhecimento”.

Na produção de teoria crítica fora do âmbito académico, o problema torna-se ainda mais agudo, porque não se dispõe da cobrança de taxas da agremiação académica. Justamente aqui, a existência de uma homepage (nunca sem custos) com acesso “livre” a textos fica dependente da capacidade de existência de uma publicação impressa. Tanto quanto sei, não existe nenhuma revista teórica ou editora de esquerda credível completamente digitalizada, que permita um livre acesso total, porque assim rapidamente desapareceria da face da terra. Por este facto, muitos são os textos importantes que não aparecem no “espaço virtual” (quando muito, só muitos anos após a sua publicação, quando os livros ou revistas já há muito estão esgotados e não está prevista qualquer nova edição). O próprio Lohoff fornece um exemplo irónico, uma vez que a sua elaboração “da economia política”, por razões inconfessadas que desmentem a sua ideologia de “bens universais livres”, tem de ser comprada em versão impressa, enquanto na homepage do “Krisis” residual só foi publicada uma versão reduzida, para os robertos do consumo do Readers-Digest digital.

A ideologia dos bens digitais de consumo “livre” evoluiu em muitas cabecinhas de “utilizadores” para um autêntico dogma da praxis cultural quotidiana. Por princípio, só querem tomar conhecimento do que se possa obter gratuitamente por “download”. Isto também é válido justamente para produtos de conteúdo teórico (textos). Para grande parte do círculo da alternativa digital “de esquerda” tornou-se, ao que parece, uma desonra comprar um livro ou uma revista. O bloqueio ideológico é também um aspecto da consciência de descompromisso pós-moderna; curiosamente, para muitas destas pessoas, o acto de assinar uma revista ou comprar um livro, ainda que sintam um certo interesse pelo conteúdo, é uma espécie de “atentado à liberdade”, como se isso fosse um comprometimento que ultrapassa os limites, como se com tal atitude assinassem uma confissão, enquanto o “download” gratuito parece condizer mais com a sua a auto-soberania imaginária.

Naturalmente que seria tecnicamente possível digitalizar por exemplo textos ou livros teóricos, contra a vontade dos autores e das editoras, e divulgá-los ilegalmente na Internet. Isto seria, por si só, um esforço, em que os ideólogos de consumo digital de “esquerda” ainda não se meteram, pelo menos em larga escala. É claro que o resultado só poderia ser o colapso da base material da respectiva produção de conteúdos (incluindo a homepage em causa) e ela caminharia para a paralisação, porque no capitalismo não pode haver “liberdade de custos” para os próprios produtores. Independentemente desta opção destrutiva e em conexão com o dogma dos consumidores “livres” dos círculos de “utilizadores”, já há muito que se assiste à morte lenta da cultura teórica da esquerda. A agonia lenta das pequenas editoras, revistas e livrarias que restam na esquerda fala claramente por si

Todo o programa do “livre” consumo de produtos de conteúdo, exclusivamente através de “download”, está associado a uma redução e unilateralidade da percepção. Uma vez que os “utilizadores” ideologizados, na grande maioria, são ou tendem a ser não-leitores dogmáticos da produção de conteúdos não digitalizados, o que acontece sobretudo é que se cinde a recepção e discussão da produção de teoria crítica. Por um lado, temos um grupo que conhece e elabora também o fundo teórico apenas acessível na forma não digital e, por outro lado, temos um grupo que consciente e primordialmente só toma conhecimento de textos digitalizados e que assim, necessariamente, sob as condições materiais existentes das publicações da crítica teórica no capitalismo, apenas poderá obter conhecimentos fragmentados, dado que a digitalização completa e de acesso gratuito significaria o fim exactamente das pequenas editoras da esquerda (e não só delas). Isto não significa que, inversamente, se esteja a pregar a abstinência da Internet, pois também nessa forma digital estão contidas informações relevantes; contudo a ideologia da “liberdade de consumo”, do ponto de vista dos “utilizadores”, é literalmente barata e ignorante.

13. Auto-administração da miséria cultural

Já há muito que se sabe que a concepção de “free software” nada tem a ver com a suplantação da forma da mercadoria, mas que, pelo contrário, ela mesma está inserida no contexto da valorização capitalista e contém os seus próprios aspectos comerciais. Ela encontra-se tão pouco fora da forma social como a chamada pirataria de produtos de marca, por exemplo, de sapatos de ténis ou outros produtos de uso (na qual Meretz, significativamente, já gostaria de discernir algo de positivo). O próprio Meretz sustenta que, “…‘desvalorização’ através de libertação no contexto da produção de mercadorias”, significaria, “desde logo, simplesmente uma redução de custos” (idem, p. 81). Por “custos” entende-se, naturalmente, aqueles na forma dinheiro e cuja redução seria em primeira linha um benefício para o capital e para o Estado, enquanto para os produtores imediatos esse benefício é mais do que duvidoso.

Com o alargamento deste conceito à produção de conteúdos culturais, essa dúvida torna-se certeza negativa. Constata-se aqui que, para estes bens específicos e também para os seus produtores, se abre uma lacuna no sistema de reprodução, porque aqui não simplesmente os custos são reduzidos em conexão com a repetida entrada na circulação mercadoria-dinheiro, mas porque para estes produtos, ao contrário do que acontece com o software, a entrada na circulação é pura e simplesmente negada. Na sua “Teoria de Estádios”, Meretz enaltece isso como sendo o segundo passo na suplantação da forma da mercadoria. No entanto, dado que todos os bens materiais permanecem ainda “com seriedade” na forma da mercadoria e também como “rivais“, como para ele acontece não por acaso com o “pão”, este suposto “passo emancipatório” tem consequências desastrosas imediatas para os produtores de conteúdos e deverá ocorrer com toda a seriedade à sua custa.

Também neste aspecto, toda a concepção se situa na linha descendente de degradação social dos produtores de cultura no capitalismo de crise. Por todo o lado, os orçamentos para a cultura sofrem cortes nas rádios e editoras, programas com qualidade tornam-se cada vez mais raros, artistas, bem como autore(a)s são transformados em empresários de miséria. Esta precarização da produção de conhecimento em sentido lato não é criticada de forma radical nem é apresentada como um momento da barbarização na crise, mas, muito pelo contrário, ela é afirmativamente convertida pelo “movimento livre da cultura”, em uma espécie de autogestão da miséria cultural, mais ou menos na forma de “Licenças CC” (“Creative Commons License”). Aquilo que se reflecte em tais visões, mais não é do que o problema de já não poder ou dificilmente poder reintegrar produtos de conteúdo cultural na circulação mercadoria-dinheiro, mas ao mesmo tempo ter de conseguir de algum modo a própria reprodução social e a base material para esta produção de conteúdos. Porque o “pão” continua a custar dinheiro, tal como os meios de produção de cultura.

 O modo como principalmente o(a)s artistas em situação precária procuram salvar-se (esta é uma coerção brutal gerada pelo capitalismo de crise e de maneira nenhuma um “desacoplamento emancipatório”) é descrito por Meretz como ambivalente mas, ainda assim, como sendo o (primeiro) passo no sentido certo: “um estudo entre artistas revelou duas razões principais para a utilização de licenças CC: os direitos de autor (“copyright”) tradicionais são demasiado complexos e caros na sua aplicação, e com as licenças CC pode-se tirar melhor proveito dos efeitos do trabalho em rede, para a melhor comercialização da própria obra criativa. Também neste caso podemos observar o efeito ‘desvalorizar para valorizar’.... O resultado revela-se paradoxal. Sobre a base da lógica de valorização, a mercadoria perde a sua forma com a escassez, é libertada e com isso desvalorizada de facto, para ainda obter uma espécie de ‘rendimento secundário’ proveniente de doações, receitas de publicidade, venda de produtos relacionados com o meio, execução de eventos ao vivo etc.” (idem, p. 82).

Precisamente por o sector cultural ser esmagado pela crise e o(a)s artistas serem directamente remetido(a)s para o mercado totalitário, ele(a)s transformam-se forçosamente em palhaços de interlúdio da concorrência universal, que já não podem viver das suas obras, mas apenas podem ir sustentando a sua vida miserável com efeitos secundários comerciais. Mas o que no campo da arte ainda permite algo semelhante a um rendimento monetário precário raia o impossível no que concerne à produção de conteúdos em textos. “Fundraising” é a terminologia utilizada para a mendicidade junto de “mecenas” ou fundações comerciais etc. Já hoje a publicação de teoria crítica não sobrevive sem subsídios financeiros de associações de apoio ou de pessoas individuais interessadas (“doações”). Tudo isto, obviamente, não é um passo rumo à “desacoplagem”, mas sim um indicador da precariedade social em que se encontra a produção de teoria crítica. E isto é tanto mais válido para as outras formas de “rendimento secundário“, as quais são uma realidade na vida precária no meio artístico, mas que se tornam totalmente absurdas quando se trata da produção de textos teóricos. Estamos mesmo à espera que as publicações da “Krisis” residual ofereçam anúncios para carroças de luxo da Daimler ou de preservativos (“receitas oriundas de publicidade”), T-Shirts estampadas com retratos de Meretz a preço de pechincha (“venda de produtos relacionados com o meio”) ou realizem “festas populares de crítica do valor” (“organização de eventos ao vivo”), nos quais Lohoff, na tenda da cerveja, puxa a si o entretenimento de um público pândego, mantendo-o preso aos seus lábios ao ler-lhe as suas obras de “Economia Política” .

Uma vez que esta espécie de “rendimento secundário”, mesmo precarizado, é algo utópico para a produção de textos, Meretz dirige o seu olhar “emancipatório” para os artistas de vida miserável na América Latina: “Em torno das licenças CC surgiram formas absolutamente novas de subsistência. Assim, nas favelas do Brasil é produzida diariamente música, que é gravada em CDs e exclusivamente vendida no comércio ambulante de rua” (idem, P.82). Sejamos sinceros: exactamente assim é que nós imaginamos a emancipação da forma da mercadoria, nomeadamente como modo de vida dos míseros empreendimentos de vendedores ambulantes, que procuram impingir à população não menos miserável os seus produtos, prensados (ou gravados) por eles próprios. Ali temos a pura “forma embrionária” da verdadeira liberdade de indivíduos livres e da verdadeira livre produção de bens livres. É verdade que o pequeno comércio universal, em conexão com a correspondente ideologia da circulação, é uma trave mestra que sustenta a vida nas favelas; porém, é mais sob a forma de latas de coca-cola, atacadores de sapatos ou até talvez ratazanas grelhadas. Felicidades e bom apetite. Situemo-nos então e coloquemos a precarização e a miséria, enquanto tais, como “factores de emancipação”, segundo Meretz, ainda que seja um tudo-nada “dentro de relações mercadoria-dinheiro” (idem, p. 83), contudo não podemos ser dogmáticos, na verdade já é um “bom passo em frente” rumo aos excelentes “caminhos de saída do capitalismo”, como Meretz sabe indicar com rigor conceptual: “…’eliminação dos intermediários’ assim é referida na comunidade a ampliação da cooperação através da construção de redes ponto a ponto, o que já não necessita (!) da esfera autonomizada da ‘economia’, diria eu” (idem).

 Foi para isto que nós fizemos todo o esforço de elaboração teórica, para pôr em destaque a autonomização do valor como “sujeito automático” frente aos seus suportes humanos e para determiná-la como um momento essencial da constituição fetichista! Se o comércio auto-organizado de rua “já não necessita da esfera autonomizada da economia”, então podemos realmente poupar-nos o esforço do conceito. Que o dinheiro, com o qual são realizados actos de troca, que na óptica de Lohoff certamente são “sérios”, só possa originar-se e ser a expressão dessa “esfera autonomizada”, provando que “a economia” controla, pois, também a informalidade da rede do comércio de rua, já quase não tem importância, porque Meretz já está mesmo “para além de” em todos os aspectos. Contudo, talvez o dinheiro ainda seja capaz de “ser eliminado pela cooperação”, de maneira que a suposta situação primitiva em que “x da mercadoria a = y da mercadoria b” seja reconstruída com toda a liberdade, por exemplo na forma de troca natural de CDs auto-gravados por batatas auto-roubadas, ou por sexo de miséria auto-determinada à beira da estrada. Lohoff teria literalmente a sua “real mudança de mãos” de dois bens substanciais e a “economia autonomizada” estaria definitivamente perdida; não haveria mais fetiche, em lado nenhum.

Meretz está totalmente inebriado com as suas perspectivas auto-descobertas: “Fenómeno de crise e novas formas de subsistência e autonomia locais para além do ‘trabalho assalariado normal’ estão intimamente ligadas. No Brasil, talvez como em muitos outros países em vias de desenvolvimento, as condições para o ressurgimento de autonomia local são favoráveis (!): a crescente disponibilidade de computadores e de acessos à Internet coadunam-se com uma cultura tradicional de partilha” (idem, p.83). Infelizmente, a miséria em massa ainda não avançou na parte ocidental da Europa central tanto como no Brasil e talvez seja esse o motivo pelo qual nós, aqui, ainda não disponhamos dessas “condições favoráveis” para aquilo que sempre foi o objectivo da “crítica de valor”, para a suplantação do capital mundial, nomeadamente “subsistência e autonomia locais” — ou sou eu que estou a confundir alguma coisa? Nós apenas temos que nos esforçar um pouco mais para conseguir avanços na miséria, para que, em “condições favoráveis”, saibamos apreciar a alegria transcendente da subsistência local.

 Que sob tais “condições” haverá, por maioria de razão, uma “crescente disponibilidade de computadores e de acessos à Internet”, Meretz sabe-o simplesmente porque sim. Basta olhar para o Uganda para compreendermos isso. E quanto às paisagens florescentes nos bairros degradados e nas favelas, estes apresentam ainda outra “condição favorável”, a saber, a dominação por uma máfia terrorista do tráfico auto-organizado de mulheres, armas e drogas; com efeito, também já para “além do Estado” e, juntamente com a grande quantidade de pequenos comerciantes de rua, constituem, ainda que de uma forma desigual, um segundo pilar de uma reprodução que, segundo Meretz, “não necessita mais dessa esfera autonomizada da economia” (quando na realidade já há muito tempo se tornou um factor significativo do mercado mundial e do capital financeiro). É provável que, neste contexto, se procure também a “cultura tradicional da partilha”, uma invenção da máfia dita fraterna, como é sobejamente conhecido.

Se Meretz idealiza assim a vida nas favelas, então ele alinha na propaganda do “pensamento positivo”, que é impulsionada sobretudo pela administração da crise e pelos seus músicos do coro mediático: estás mal, sentes-te cada vez pior? Não te lamentes e, sobretudo, não te defendas, não reivindiques coisa alguma, pelo contrário, aceita a tua precarização como uma “oportunidade”! Tal como a falência total ou a queda no programa social Hartz IV, o cancro nos pulmões ou a perda das duas pernas num acidente de viação, também a precarização da produção de conteúdos e a barbarização cultural são, acima de tudo e principalmente, uma “enorme oportunidade”; portanto há que agarrar, ser-se grato e tirar o melhor partido da situação… Se quiséssemos reduzir estas perspectivas de “apropriação” a um denominador comum social, que contivesse em si os já acima desenvolvidos conceitos de uma variante do sujeito masculino branco ocidental (MBO) e da classe média precarizada, então ter-se-ia de designá-las como a ideologia de um auto-afirmativo empresariado ambulante de miséria, que já “assumiu” sub-repticiamente as suas condições de vida no capitalismo de crise.

 É claro que para Meretz isto é apenas o primeiro passo. A idealização de licenças CC, passando por angariações de fundos (fundraising) etc. até ao empresariado de miséria dos vendedores de rua, representa, de certa forma, uma espécie de propedêutica para a verdadeira vida após a forma da mercadoria, em pleno capitalismo de crise. O facto de aqueles “rendimentos monetários secundários” precários continuarem ainda demasiadamente na forma da mercadoria é, pois, o motivo pelo qual Meretz os designou como “ambivalentes”. Por fim também a venda ambulante de CDs auto-gravados se tornará obsoleta, se os seus conteúdos se puderem reproduzir à vontade e ser descarregados da Internet. Com isso extingue-se a possibilidade de ainda se gerar “rendimentos secundários” por esta via. “Na verdade” isso de facto também não deve existir; o salto para o “reino da liberdade” aqui e agora, sob todas as demais condições de resto “normais” do capitalismo, só poderá ter êxito se não se obtiver mais rendimentos monetários com a produção de conteúdos. E é assim que o ponto de vista ideológico é desenvolvido até à plena identificabilidade.

14. A expropriação dos produtores e produtoras de conteúdos como abnegação social e ressentimento

Recordemos a fundamentação “na economia política” altamente original de Lohoff, segundo a qual os pretensos “bens universais” se transformariam em “bens livres”, dado que não poderiam “incorporar” qualquer substância de valor. Para se conseguir aguentar esta definição, baseada na ideologia da circulação primitiva, como assinalado, o trabalho de informação e de conteúdos, apesar de tudo necessário, foi definido como improdutivo do ponto de vista capitalista, o que é verdade; mas, no entanto, o mesmo se aplica também a uma enorme quantidade de outros tipos de trabalho abstracto, no contexto da reprodução capitalista. Para os artefactos de informação digital, bem como para os conteúdos a que servem de suporte, (“conhecimento, música, filmes, textos”), pretende-se agora que esta definição de “trabalho improdutivo”, que de modo nenhum está circunscrita a este sector, signifique assim de repente uma específica ausência da forma da mercadoria de “bens universais”, cuja passagem aqui e agora ao estatuto de “sem preço” supostamente se impõe ao abrigo da “teoria da apropriação”, ao passo que permanece intacto o capitalismo, que pretensamente ainda fabrica mercadorias “de forma séria”. As consequências para a reprodução do trabalho de conteúdos e de informação, sob condições de uma reprodução capitalista de resto inalterada, são não simplesmente absurdas, mas também bárbaras e eliminadoras.

Se Lohoff disparata com conotações de anti-semitismo estrutural acerca dos “rentistas da informação” e Meretz denuncia “a actuação selvática da indústria de música e filmes” (idem, p. 80), porque esta quer impedir que os consumidores-“utilizadores” beneficiem de bens de conteúdos sem preço, então isso é claramente uma variante da crítica truncada do capitalismo; obviamente que por baixo da mão acresce um novo e segundo nível de desmazelo ideológico. Os “detentores do capital” da Microsoft, da Bertelsmann ou de um consórcio de Hollywood não são naturalmente os produtores directos de conteúdos ou de informação, mas representantes de um capital monetário circulante (geralmente sob a forma de acções). Ainda que a actividade de produção deste sector específico apenas numa ínfima parte tenha adoptado a forma do trabalho assalariado das fábricas ou dos escritórios, os seus fornecedores de produtos de informação ou de conteúdos, embora sejam freelancers, ou seja, trabalhadores independentes (e isto abrange não só programadores ou designers, mas também jornalistas, publicitários, actores, artistas etc.) são na realidade trabalhadores dependentes, pois dependem dos seus honorários (“pão”) para poderem reproduzir-se. O que acontecerá, agora, com esta massa muito significativa de produtoras e produtores de conteúdos e de informação no mais lato sentido, se os seus produtos, enquanto supostos bens universais, tiverem de ser tornados “sem preço” aqui e agora, não o sendo, porém, os bens de que necessitam para a sua reprodução material (e como meios de produção)?

Meretz tomou “amorosamente” em mãos este(a)s produtore(a)s para, aceitando eles este estádio passageiro da vida “rico em oportunidades”, os conduzir como empresários de miséria a um manifestamente simpático abismo, para o qual eles agora devem saltar de braços bem abertos, quais anjos da emancipação da forma da mercadoria. O “tiro certeiro”, por assim dizer, a apoteose da “oportunidade”. No seu texto, do qual aqui principalmente nos ocupamos, Meretz (bem como Lohoff) trata esta consequência no campo do implícito, sem a enfrentar explicitamente. Mas é cada vez mais claro onde se quer chegar, seja em diversos fórunsna Internet, seja em mailing lists da ideologia da alternativa digital, nos quais faz as suas diatribes uma “crítica do valor” reduzida, desacreditada, enfim, uma crítica de valor degradada até à irreconhecibilidade (como, por exemplo, em www.keimform.de). Aí se levanta repetidamente o problema da reprodução dos produtores directos de conteúdos e dos seus meios de produção.

Assim, no contexto do “movimento de cultura livre”, o autor Dmytri Kleiner, co-fundador de uma “firma (!) de telecomunistas”, procura explicar a diferença entre capital de informação e capital do saber, por um lado, e produtore(a)s directo(a)s de informação e de saber, por outro; uma analogia um pouco desajeitada da contraposição feita pelos marxistas do movimento operário entre trabalho assalariado e capital (http://www.keimform.de/2007/08/14/copyfarleft-und-copyjustright). Ainda assim, aborda-se aqui o carácter dependente da produção de conteúdos (“improdutiva” do ponto de vista capitalista). A tentativa de “solução”, correspondendo ao carácter próprio da nova pequena-burguesia do “movimento de cultura livre”, vai ser procurada novamente ao nível do formalismo do contrato, na medida em que, por exemplo no âmbito das licenças CC, possa ser considerada de algum modo a diferença entre a representação do capital e o(a)s produtore(a)s imediatos para, sem querer, não se cair no erro de ao invés de ser o capital o expropriado do seu potencial de exploração, serem o(a)s produtore(a)s o(a)s expropriado(a)s do seu rendimento já de si precário. Permanece um mistério como poderá isto acontecer perante um cenário de “ausência de preço” dos bens de informação e dos conteúdos.

Meretz, numa tentativa de fazer desaparecer o problema enquanto tal, desvaloriza imediatamente esta discussão como sendo do foro “do marxismo do movimento operário” (http://www.keimform.de/2007/08/16/copyfarleft-eine-kritik). Para ele não existe qualquer diferença entre representação do capital e actividade por conta própria aparentemente autónoma ou empresariado de miséria, enfim, tudo é simplesmente “valorização” (conceito este, aliás, de que ele não conhece o significado exacto, que para ele também não é importante). Quando agora o “desvalorizar para valorizar”, como ele gosta de designar os “rendimentos secundários” dos empreendimentos de miséria, tiver realizado o seu serviço como estádio transitório e também cair, então virá à luz do dia a verdade de que a “humanidade” deverá ser um “bocado mais” libertada da ideologia da escassez e da forma do dinheiro, na medida em que o(a)s produtore(a)s directo(a)s de conteúdos, de conhecimento e de informação, sob condições que continuam de resto completamente capitalistas, são inteiramente “libertados” da possibilidade de obter um rendimento monetário, mesmo apenas precário, através do seu trabalho. À pergunta tímida de um interveniente, sobre como os músicos profissionais, por exemplo, se poderiam reproduzir, retorquiu Meretz insolentemente que eles teriam de fomentar a sua subsistência através de empregos como “taxistas ou qualquer outra coisa” (idem), enquanto a sua música passará de ora em diante a ser um “bem livre”, com o qual eles podem graciosamente tornar feliz a humanidade. Este despautério declarado como equivalendo à “emancipação da forma da mercadoria” já nem merece qualquer resposta argumentativa. Músicos profissionais (e outro(a)s produtore(a)s de conteúdos) não são necessariamente sempre seres etéreos, gentis e de natureza não violenta. De modo que Meretz, se continuar a semear a sua propaganda da expropriação dos produtores, poderá muito bem vir a colher uma reacção que talvez o possa levar, por sua vez, a ter de recorrer aos serviços da polícia, da justiça e quiçá aos serviços públicos de saúde. A sua construção ideológica da “teoria dos estádios” não é uma contribuição para a abolição da forma da mercadoria, mas sim uma contribuição para a “guerra civil molecular” (Enzensberger).

Dado que não vivemos sob condições comunistas, mas sim sob condições de capitalismo de crise, a realização da utopia particular de Meretz, dirigida directamente contra os(as) produtore(a)s de conteúdos culturais, não “libertaria” os seus bens mas, pelo contrário, levaria em grande medida a respectiva produção à paralisia. Este é também um problema de “economia de tempo”, porque a escassez sistemicamente gerada de todos os bens materiais vai perdurar por tempo imprevisível. Se o(a)s produtore(a)s de conteúdos nem sequer no comércio de rua podem vender os seus produtos, mas devem muito gentilmente (sempre dentro do capitalismo de crise, bem entendido) oferecê-los à humanidade, então o tempo disponível para a produção de conteúdos sofrerá uma quebra repentina e tenderá provavelmente para zero, porque será totalmente consumido pelo tempo que necessitam para outras actividades de miséria, com os quais terá de ser ganho o “pão”, como bem “rival”.

A “condução de táxis” seria uma ocupação já bastante elevada numa favela; regra geral, os ex-músicos, por exemplo, mais depressa vendem café ou fósforos na rua do que CDs por eles próprios gravados com a música que eles hoje em dia praticamente não podem produzir ou, se podem, é em condições bastante limitadas. Mais ou menos o mesmo aconteceria com a produção de textos, como sabem todos aqueles que já alguma vez escreveram um livro. A ilusão de que através de total amadorismo forçado, sob condições de agravada luta de sobrevivência pelo “pão”, a “criatividade” graciosa pós-laboral terá pés para andar, só pode ser mantida por alguém que conseguiu um part-time fácil num aparelho sindical ou numa qualquer fundação e herdou um apartamento da avó. O que restaria, em geral, seria uma produção de conteúdos ao nível dos tempos livres e do lazer, mas já nem sequer nas condições fordistas de trabalho normal e de segurança social; nas condições actuais de crise a consequência seria a asfixia de todo o potencial de conteúdos, que seria sacrificado na luta renhida pelo “pão”.

A única razão “teórica” pela qual os trabalhos de conteúdos, de informação e de conhecimento não deveriam desde já ser remunerados consiste, bizarramente, no facto de se tratar de um trabalho capitalistamente improdutivo em termos de “economia política”. Contudo e uma vez que esta disposição, segundo Lohoff nos esclareceu, se aplica também a juízes, soldados etc., bem como a milhares de outros empregos na reprodução capitalista, a lógica que aqui se afirma tem de ser pensada até ao fim. Seria mais ou menos assim: enquanto “críticos do valor” supõe-se que de algum modo queremos, mais dia menos dia, abolir o dinheiro. Ora, não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, mas também não é caso para adiar o assunto para um futuro distante. Afinal queremos já aqui e hoje desfrutar um pouco do pós-forma da mercadoria. Por algum lado tem de se começar. Comecemos então por abolir “em parte” o dinheiro, na medida em que suprimimos os rendimentos monetários do(a)s trabalhadore(a)s “improdutivo(a)s”. Tentar tal medida com os juízes ou com os soldados seria pretender demais, até porque não é muito fácil chegar até eles; tentar com a maioria do(a)s outro(a)s “improdutivo(a)s” seria igualmente difícil. Agora, com o(a)s produtore(a)s de conteúdos e de informação poderia já ser mais fácil, porque, logo que os seus produtos sejam digitalizados, já praticamente estão disponíveis para “download”. Genial e, como tudo o que é genial, incrivelmente simples. Juntamente com os supostamente especulativos rentistas da informação (já de si retratados como bastante “judeus”), também o(a)s fornecedore(a)s de conteúdos, dependentes, são colocado(a)s em privação total do malvado dinheiro (apenas é “bom” para os consumidores de mercadorias, que já não o querem gastar em reles produtos de conteúdo). 

Por muito absurdo e até desconexo que possa parecer este “contexto argumentativo”, ele contém em si uma certa dose de realidade negativa. É que, mesmo se o entendimento da economia política burguesa não consegue discernir teoricamente entre trabalho produtivo e improdutivo, ele reflecte ainda assim praticamente o problema da expansão relativa do trabalho improdutivo na sequência da cientificização da reprodução e da simultânea diminuição da massa de mais-valia substancial absoluta. Esta relação impõe-se à superfície como um crescente dilema de “financiabilidade”. A resposta da ideologia de crise neoliberal transversal aos partidos e da administração prática de crise do capitalismo consiste, entre outras coisas, também na liquidação tanto quanto possível do trabalho improdutivo, de modo a economizar de facto este rendimento monetário. Isso atinge, como é do conhecimento geral, uma grande parte das infra-estruturas públicas. Especialmente em áreas como assistência, acompanhamento, ensino, cultura, educação etc., enquanto não são privatizadas em “filetes”, dever-se-ão substituir crescentemente os trabalhos pagos por trabalhos “voluntários”, por conseguinte, não pagos. A cultura é em larga medida liquidada ou então torna-se não remunerada, com as inevitáveis perdas de qualidade, as quais são implicitamente aceites. Meretz e o seu “movimento de cultura livre” não passam de lançadores de modas ”alternativos”, na linha da ideologia de crise neoliberal.

A questão que se coloca, agora, é como uma tal mistura de disparates teóricos e de colagem disfarçada à lógica da administração de crise não só se pode transformar em projecto “emancipatório”, mas também encontra parcialmente terreno fértil junto daqueles contra cuja reprodução social esta ideologia da alternativa digital é dirigida; ou seja, junto de um determinado tipo de produtore(a)s de conteúdos e de conhecimento, que já foram relegados para o nível de freelancers precários. Esta situação só é explicável através da psicologia social da precarização pós-moderna, que segue de par com uma determinada mentalidade. Nesta perspectiva poder-se-ia primeiramente dizer que na alma cindida da mercadoria, como já referimos, a alma de consumidor se sobrepõe à alma de produtor. Os netos do já falecido fordismo, socializados na era da economia de bolhas financeiras, têm talvez como nenhuma outra geração uma forma já interiorizada de estar na vida aferida pela orientação para o consumo de mercadorias. Agora supõe-se que até o consumo será de algum modo produção e a produção na forma que continua capitalista será de algum modo consumo, portanto também uma espécie de chupa-chupa. O lema geral pós-moderno, segundo o qual a situação é desesperada mas não é grave, contém ainda força de irradiação, apesar da crise galopante. A própria precarização nunca pode ser completamente a sério; de algum modo, ela é uma espécie de “jogo” ou de “filme”, para além de que os “velhos” podem sempre passar para cá uns patacozitos.

O sentido consumista infantil está em conformidade com a já acima mencionada quase total incapacidade de organização. Pessoas que já consideram um encontro pessoal, com hora e local marcados, como uma coacção estalinista também não são capazes de qualquer resistência social no mundo real, mas apenas, quando muito, de uma pseudo-organização no “espaço virtual”, sem qualquer comprometimento real. Em contrapartida desenvolveu-se um enorme potencial alucinatório. A existência como empresário de miséria ainda é enaltecida com uma auréola de “liberdade” e de “independência”. A auto-exploração aparenta ser uma auto-realização e parece que a “oportunidade”, segundo Meretz, surge ao virar da esquina. A auto-afirmação alucinatória como auto-desmentido voluntário e auto-negação social faz parte da aceitação incondicional das situações de crise, das quais ainda se gostaria de retirar o “capital cultural” (Bourdieu).

Com isso não se exclui o veneno da concorrência universal, muito pelo contrário. A auto-negação deverá aplicar-se a todos. Em termos de produção de conteúdos culturais, ninguém quer dedicar a sua vida aos conteúdos, pelo contrário, é preferível que a produção seja antes consumo; e, como os próprios produtores não acreditam na pretensão dos conteúdos, os resultados são a condizer, querendo-se, mesmo assim, ser o maior, mesmo se da produção dos consumidores praticamente já não se consegue extrair qualquer rendimento monetário. É precisamente essa a razão pela qual floresce o ressentimento contra todos aqueles que ainda se conseguem reproduzir, mesmo que só parcialmente, através da produção de conteúdos, para a qual naturalmente é necessário algo mais do que a ideologia de meros “produtores”-consumidores. Se assim é, aplique-se o Hartz IV a todos(a)s os(a)s produtore(a)s de conteúdos sem excepção! É esta a lógica que se esconde por trás de todo este modo de pensar. E é exactamente esta mistura de abnegação social e ressentimento maldoso que, no seu cerne, constitui o objectivo da elaboração ideológica de Meretz e Lohoff.

15. Térmitas e formigas azuis. A biopolítica da “inteligência de formigueiro” digital

A ideologia da “produção” dos consumidores refere-se quase exclusivamente a produtos de conteúdo cultural no “espaço virtual”. É neste sentido que Meretz afirma do “movimento cultural livre”, com um gestus como se com isso a produção de mercadorias fosse “incipientemente” alavancada: “Ele não visa uma luta na esfera da circulação de mercadorias, mas constrói a sua própria base produtiva” (ibid. p. 81). O que é inverídico sob diversos pontos de vista. Em primeiro lugar, toda a pseudo-fundamentação “na economia política” aponta claramente, desde logo, para libertar os supostos “bens universais” do sistema valor-preço da reprodução capitalista, de resto pressuposta, e torná-los sem preço, ou seja, grátis para os “utilizadores”. Trata-se aqui em primeira linha precisamente de uma “luta na esfera da circulação”, do ponto de vista dos consumidores, à custa dos/as produtores/as imediatos/as. Em segundo lugar, o “movimento cultural livre” visa, como é óbvio (e como resulta do próprio texto de Meretz), não a suplantação da produção de mercadorias em geral mas, pelo contrário, manter a produção precarizada de conteúdos na forma da mercadoria de algum modo ainda capaz de sobreviver, sob condições de concorrência agudizadas, por meio das “receitas monetárias secundárias”. É precisamente o que parece ser o ponto de vista dominante no espaço anglo-saxónico, enquanto a pseudo-reinterpretação “crítica do valor” à moda de Meretz, com suas horripilantes contradições, não parece ser abraçada pela maioria das pessoas neste contexto.

Em terceiro lugar, porém, desmente-se mesmo a “base produtiva” supostamente “própria”, uma vez que aqui se faz referência apenas à “produção” secundária dos consumidores, que deixa na sombra os seus reais pressupostos de produção. O que se aplica também à própria produção de conteúdos culturais. Nas amplas “liberdades” inclui-se, segundo Meretz, não em último lugar “a possibilidade de remisturar e difundir as peças derivadas” (ibid. p. 81). A expressão “remisturar” já aponta para o estatuto não autónomo da suposta “base produtiva própria”. Fica claro donde provém o que pode ser “remisturado” e “difundido como peças derivadas”. Neste contexto, finalmente e em quarto lugar, está elucidativamente a indicação de que “a esfera proprietária” deve ser “eliminada pela cooperação” (ibid. p. 81). Se se trata sobretudo de “dar a volta” à “propriedade” (copyright), então isso significa ainda que toda esta encenação se desenrola em primeira linha na circulação e que pouco tem a ver com uma “base produtiva própria”. Fica ainda em aberto a que espécie de “propriedade” se deve “dar a volta” no caso.

Na medida em que aqui se trata de um simples acordos internos dentro do “movimento cultural livre”, reflecte-se aqui apenas uma precariedade que em parte resulta da restrição do capitalismo de crise à empresa cultural, mas em parte resulta também da própria pobreza de conteúdos dos “produtores”-consumidores digitais. Se as pessoas abdicam “entre elas” do copyright, para apesar de tudo obterem “receitas monetárias secundárias”, em grande parte dos casos tal deve-se mais à miséria do conteúdo do que a virtudes emancipatórias. Aqui há que voltar a referir a mentalidade da prole da classe média precarizada. Sob as condições da prosperidade fordista, como na história do pós-guerra, a maioria deles teriam provavelmente e de modo muito banal sido professores, empregados superiores, funcionários etc., tal como os seus pais, que lhes teriam celebrado a pretensão de burguesia culta (em todo o caso então já periclitante) antes de mais no plano do tempo livre e do hobby. Porém, uma vez que eles agora estão degradados em “freelancers” precarizados, que simultaneamente foram socializados na ideologia do consumo, eles têm de fazer destacar a pretensão de burguesia culta há muito abandonada com tanto mais veemência, armando-se em super-“criativos”, que são “no fundo” todos grandes artistas, teóricos etc. e pela sua própria vida já candidatos ao prémio Nobel, simplesmente por ser um direito que lhes assiste.

Esta mentalidade, naturalmente, está em desacordo com a ideologia do consumo, bem como com a insuficiência a ela associada do “saber”, ele próprio já precarizado. Pessoas que, por exemplo, apenas superficial e fragmentariamente tomam conhecimento de teorias e de história da teoria para “participar na discussão” deficilmente conseguirão fazer algo digno de menção como autodesignados “produtores”-consumidores. Não se aplica a toda a gente, mas (mesmo segundo afirmações dum ideólogo do digital como Norbert Bolz) é um fenómeno amplamente divulgado entre estudantes, “freelancers” e na “geração estagiária”. Na ideologia “remix” a fraqueza dos conteúdos torna-se agora a força alucinatória de um “colectivismo” virtual de “produção de conteúdos” digitais pelos consumidores. Para isso foi criado o conceito de “inteligência de formigueiro” (Swarm Intelligence), uma metáfora biologista sintomaticamente tomada da pesquisa entomológica; as térmitas tropicais, entre outras, devem servir de exemplo.

Na medida em que se entra aqui no problema duma organização da reprodução material e social posterior à forma da mercadoria, que já não funciona de acordo com um plano central “de cima”, trata-se de uma embalagem enganosa. Uma vez que se abre um abismo entre a ideia da ideologia da alternativa digital para o “espaço virtual” e as exigências de um “processo de metabolismo com a natureza” (e também de reprodução social) posterior à forma da mercadoria, o conceito de “inteligência de formigueiro” também não pode dar qualquer indicação para a suplantação da reprodução na forma da mercadoria. Trata-se também de uma zombaria, ilustrar com a “inteligência” colectiva das térmitas a desejada consciência social no emprego dos recursos comuns, em vez da cega constituição de fetiche. Não por acaso o conceito foi adoptado da pesquisa entomológica em primeiro lugar para o domínio da chamada “inteligência artificial” (como é sabido um expressão falaciosa, uma vez que os computadores não têm consciência, tal como não têm pedras lascadas nem cavilhas) e procedimentos apoiados por computador. Se esta conexão é agora transportada para um supostamente novo “conceito de socialismo”, então trata-se apenas de uma indicação do carácter tecnocrático de tais ideias, que pretendem que a consciência social se dilua na aparelhagem computorizada (no caso de Hardt/Negri, de resto, acompanhadas de uma horripilante positivação da “biopolítica emancipatória” para máquinas-seres humanos). Faz lembrar as “formigas azuis” da China maoista. Não há qualquer progresso em substituir a centralização da burocracia estatal por uma mera descentralização dum Estado de térmitas, na base da “inteligência artificial”, em que os indivíduos humanos têm de se integrar “biopoliticamente”.

É um escárnio acabado se os ideólogos da alternativa digital pretendem agora reclamar a “inteligência de formigueiro” para a produção “remix” de conteúdos culturais e teóricos. A negação da individualidade e o auto-reconhecimento como “formigas azuis” de uma “produção” de conteúdos pelos consumidores constitui apenas o reverso de uma nada justificada hiper-pretensão de “criatividade”, que não passa de um cheque sem cobertura. Os conteúdos que aqui podem realmente surgir em regra não são nada que qualquer termiteira das melhores não pudesse realizar (ou também qualquer ligação de computador artilhada em que só tenham sido introduzidas coisas pobres em conteúdo). Por isso, atrás do espírito de formigueiro digital espreita na verdade o ponto de vista de não limitar o processo do “remix” à livre associação de “produtores”-consumidores, mas de alargá-lo coercivamente a toda e qualquer produção de conteúdos pré-existente. Os verdadeiros produtores imediatos de conteúdos culturais, teóricos etc. devem ser expropriados, não só através da transformação dos seus produtos em “livres” (sem custo) no plano do consumo, mas também através do desbloqueamento dos seus conteúdos para a canibalização do “remix”, no plano da produção.

Trata-se de prosseguir o conhecido procedimento do “copy and past”. Tal como pessoas, que por si nem sequer seriam capazes de escrever um ensaio liceal de nível médio, conseguem apresentar trabalhos de licenciatura e doutoramento, colando textos obtidos por download da Internet e mal os disfarçando pela reformulação, agora, no contexto da ideologia da alternativa digital, o simples “copiar” é propagandeado como acto emancipatório. É assim que alunos do secundário, chochos mas pretensiosos, imaginam a “libertação”. O cúmulo do atrevimento é quando tal procedimento é trazido de par com a luta contra a exploração, por exemplo dos conhecimentos de botânica das populações camponesas e indígenas da periferia pelos conglomerados farmacêuticos ocidentais, que patenteiam depois para si este conhecimento roubado. Na realidade, os ideólogos do “remix” assumem eles próprios aqui o ponto de vista do explorador, uma vez que poupam amplamente o esforço do conceito, da investigação e da famosa “criatividade” para absorverem produtos individuais de outros, enfeitarem-se com plumas alheias e ainda fazer passar tudo isto por uma espécie particular de “criatividade”. O simples roubo de ideias, o plágio, a omissão de referências e de citações e a sistemática desonestidade intelectual em geral são promovidos a “luta” emancipatória contra a “propriedade intelectual”. Para eles já todos os “conhecimentos da humanidade” são livres, quase como a Lei de Ohm e o Teorema de Pitágoras.

Não é por acaso que Meretz simpatiza até certo ponto com a “pirataria de produtos”, pois ele gostaria de alargar o procedimento à pirataria dos conteúdos culturais e intelectuais. Qualquer “utilizador” semi-lido e semi-sabido, mas pretensioso até à ponta dos cabelos, pode sentir-se um pequeno “corsário vermelho”, quando em casa, à frente do monitor do computador, vivencia as “aventuras da apropriação” e explora desenfreadamente conteúdos alheios para ainda lhes acrescentar uma pitada própria. É também neste sentido que se deve entender o que se diz na contracapa da Krisis 31, que a questão de “uma nova apropriação emancipatória do conhecimento” deveria “ser recolocada”, ou quando Meretz fala sobre o assunto no sentido de que se abriria “aqui também um acesso à questão de formas alternativas de actuação” (ibid., p. 56). O que aqui se faz passar por “emancipação” na apropriação do conhecimento, sob as condições do capitalismo de crise, acaba por ser uma economia de pilhagem cultural e intelectual.

Estes “produtores”-consumidores não estão para lá da concorrência, nem estão para lá da reprodução capitalista, ainda que façam de conta que sim e pretendam denunciar a crítica às suas sem-vergonhas como “ponto de vista de proprietário intelectual”. Já o problema das “receitas monetárias secundárias” demonstra que o que está em causa não deixa de ser dinheiro e reputação. E dificilmente será de supor que a produção-“remix” composta de elementos furtados se mantenha devidamente no interior de estruturas que se encontram “no além”. Na realidade, desenrola-se entre os “freelancers” precarizados uma impiedosa batalha concorrencial, em que o plágio se converte em meio de combate. Se o caso então é esse, se através da exploração de produtores/as de conteúdos já se pode participar com um produto “remix” na circulação mercadoria-dinheiro, então quer dizer que se aceita esta; afinal, não se pode andar sempre com a teoria dos “bens universais” debaixo do braço.

16. Realpolitik de pauperização dos candidatos a capos da administração de crise na cultura

Contudo, não há dúvida que a desesperada ideologia “remix” não pode contribuir com nada de essencial para a reprodução social dos seus portadores. Trata-se de uma espécie de “tratamento da contradição” imanente e sem perspectivas, orientado para tudo menos para uma crítica do modus da socialização capitalista, a qual não pode ser conseguida simplesmente em falsa imediatidade. Esta falsa imediatidade revela-se também em relação ao problema do poder que assegura o modus capitalista. Meretz pretende ver-se livre desta questão encostando-se de modo evidente a Holloway: “Não há qualquer possibilidade de simplesmente e apenas ‘tomar o poder’ para curar o mundo. Trata-se, sim, de no velho mundo, construir, constituir um novo. No caso ‘constituição’ é um conceito cambiante — tal como, por exemplo, a ‘construção de uma contramediação’ ou outros ‘substitutos’” (ibidem p. 85).

Já em Holloway a “questão do poder” é inadmissivelmente identificada com a ideia do marxismo tradicional de alcançar as “alavancas de comando” do poder de Estado, ou de erguer um “Estado operário” alternativo. Negar a “forma Estado” não significa, porém, que esteja arrumada a “questão do poder” para uma transformação para além da forma da mercadoria. “Poder” é um momento da constituição fetichista, mas que de modo nenhum coincide com “orientação estatal”. Precisamente se é preciso romper com o poder da forma estatal, é preciso no processo de transformação um contra-poder não estatalmente orientado, que rompa o modus da socialização capitalista (não é previsível que tal possa acontecer sem violência ou sem luta em geral). Uma “constituição diferente” tem de passar pela “questão do poder”, não pode surgir em coexistência pacífica “ao lado” do modus fetichista dominante. Por isso a “construção de uma contra-mediação”, para além do “tratamento da contradição” imanente (ele próprio de modo nenhum “livre de poder”), é algo fundamentalmente diferente de uma constituição-aparência “sem poder”, de pseudo-suplantação particular da forma da mercadoria num “campo de praxis virtual” isolado.

Não se trata, de modo algum, de uma mera questão teórica. Não é por acaso que Meretz definiu como pressuposto da “emancipação” o cair na miséria sem queixume, quando postulou de modo positivista: “É precisamente com esta questão que se deparam os movimentos emancipatórios: que fazer se as nossas previsões batem certo? Se perante os nossos olhos se desmorona tudo aquilo de que vivemos?” (ibidem, p. 83). Teríamos então apenas de nos acomodar sem luta e sem poder às condições de crise, e de fazer o melhor dessa “oportunidade” para o “completamente diferente”. Aleluia. E assim se torna a própria administração de crise capitalista interessante como potência de “emancipação”. Meretz dirige o seu olhar “emancipatório” novamente para o Brasil: “O governo brasileiro apoia o processo de desacoplamento (!) através da construção de centros de cultura locais (‘pontos de cultura’). Por detrás desta iniciativa está uma avaliação ambivalente (!), mas perfeitamente realista (!): ‘o emprego é uma espécie moribunda do século XX... Também não haverá mais qualquer segurança social’, assim falou Cláudio Prado, director do departamento para a cultura digital no ministério da cultura brasileiro, na conferência ‘Feiticeiros de OS’, em Setembro de 2006, em Berlim.” (ibidem p. 83).

É notável que um representante da administração de crise do Estado brasileiro possa afirmar num congresso de ideólogos da alternativa digital, tão seca como cínica e afirmativamente, que simplesmente “não haverá mais qualquer segurança social”, para então, aplaudido por Meretz, propagandear uma Realpolitik da queda na miséria. O governo de Lula, no Brasil, no qual muitas esquerdas depositaram esperanças ilusórias, seguiu os passos dos seus antecessores em todas as questões essenciais, corrupção incluída. Não tomou senão medidas cosméticas, quer na reforma agrária quer na política social, enquanto o aparelho policial e da justiça avança, como sempre, contra a resistência social dos movimentos; o programa neoliberal de privatizações também soma e segue. Meretz ignora completamente o carácter deste governo e namora com a sua propaganda de “auto-ajuda”, que pressupõe a aceitação das condições do capitalismo de crise. Isto mostra em que sentido avançará também cá na terra a ideologia da alternativa digital.

Faz lembrar o há muito falido movimento alternativo dos anos 80 na RFA quando, sob uma situação de crise muito menos avançada e num nível de reprodução social mais elevado, foram tornadas possíveis vidas em nichos culturais (“tachos alternativos”), com a ajuda de subsídios das autarquias, que poucos anos depois se desmoronaram. Já então houve “espertalhões” da ideologia da alternativa que com frequentes e inconfessáveis toca-e-foge levaram a água ao seu moinho, na hora da distribuição dos reduzidos recursos dos “tachos alternativos”, e deitaram a mão aos comandos da distribuição dos subsídios. Perante uma crise social entretanto muito mais desenvolvida, também no sector cultural, uma Realpolitik de miserabilismo ameaça produzir estruturas semelhantes, com restrições e condições concorrenciais agravadas, no que respeita á atribuição das ajudas estatais de miséria. Meretz, Lohoff e companhia, sem se torcerem, apresentam-se como potenciais kapos da administração cultural de emergência, que atrevidamente é ideologizada como “suplantação parcial da forma da mercadoria”.

É um escárnio à crítica do valor que Meretz queira de divisar a luz da emancipação ao fundo do túnel da crise precisamente em tais contextos: “A socialização real, porque prática, de uma grande parte da riqueza social (!!) é um ponto de partida muito mais oportuno para desenvolvimentos emancipatórios para além da mercadoria e do dinheiro (!!) do que a tradicional delegação do poder de acção próprio fixada na política e no Estado...” (ibidem p. 84). Só se pode assinalar como piada de mau gosto o fantasiar “da socialização prática de uma grande parte da riqueza social” na “liberdade de consumo” que vai de par com a barbarização cultural, quando até o “pão” continua a figurar como “bem pago sério”. O capitalismo é em si mesmo uma socialização negativa altamente prática que aqui não é de maneira nenhuma rompida. Mais: o que é uma completa deturpação é precisamente festejar o namoro com a Realpolitik de miséria da administração estatal da crise, no contexto de estruturas de pobreza locais de subsistência e de auto-ajuda mais que modesta, como alternativa á “fixação tradicional na política e no Estado”; afinal uma tal “perspectiva” é, ela própria, orientada pela política e pelo Estado, como salta à vista de todos (veja-se o exemplo brasileiro).

A verdadeira alternativa à fixação na política e no Estado é um movimento de resistência social contra a administração de crise, precisamente no que diz respeito à reprodução material e cultural; só a partir deste movimento o “tratamento da contradição”, em confronto com os encerramentos de empresas e de serviços, com as privatizações e as restrições sociais, pode transformar-se em crítica e suplantação da forma da mercadoria (incluindo a necessária crítica da ideologia). No domínio cultural, não é o campo de jogos da “produção” dos consumidores, com as suas implicações destrutivas, que constitui o terreno ou o “campo da praxis” de uma transformação social, mas sim a resistência prática contra a administração de crise na cultura, por exemplo nos confrontos em torno da gratuitidade do material didáctico, das propinas, das universidades de “elite”, e na crítica da ligação agravada dos conteúdos do saber com a valorização em falha, na resistência contra a “economificação” e privatização da produção científica, incluindo a degradação neoliberal das ciências literárias, culturais e sociais.

O que Lohoff e Meretz apresentam não é a degradação da forma da mercadoria, mas a degradação da crítica do valor. A fundamentação “na economia política” revela-se sem suporte e teoricamente penosa; a invenção de uma “irmã da mercadoria” não passa de involuntariamente cómica e de uma sátira real à elaboração teórica da crítica do valor. Simultaneamente, esta caricatura da crítica do valor transforma-se no pântano ideológico do anti-semitismo estrutural, uma vez que se abre um segundo plano de crítica truncada do capitalismo, análoga à crítica truncada do “capital financeiro”, nomeadamente dos “rentistas da informação”, como subespécie de “gafanhotos”. O arrazoado de Lohoff desmente amplamente a crítica feita pela crítica do valor ao sujeito e ao trabalho, que ele pelos vistos nunca tinha entendido bem. Ele tem agora novamente o seu “ponto fixo” na pretensa objectividade de supostos “bens universais”, que já estariam para além da forma da mercadoria, e o seu sujeito-em-si na figura dos economistas da subsistência na “alternativa” digital, que deve tornar-se “para si”.

Eis um verdadeiro sujeito de crise pós-moderno, que estiliza como transformação social a liberdade formal de consumo digital; recuperadores e chupistas na concorrência de crise cultural e intelectual, que se promovem a “produtores”-consumidores “emancipatórios” para além da forma da mercadoria; incapazes de resistência à administração da crise e, em vez disso, conformando-se com ela como “Realpolitik” de vidas auto-afirmativas de classe média precarizada. E tudo isto, também, ainda como promessa amigável de uma vida correcta, boa, esplêndida, num enganador “sem valor”, “além”, amén. É preciso qualificar como uma vergonha o facto de se ter chegado a esta maneira kitsch de “crítica do valor” a partir da pretensão de crítica radical.

P.S. Deverá ter ficado claro para as leitoras e leitores que ocorreu aqui uma profunda ruptura quanto ao conteúdo no seio da chamada crítica do valor, ruptura que já não pode ser escondida com a simples invocação de supostas desavenças pessoais, e há muito tempo estava delineada. Trata-se de saber se a teoria da dissociação-valor mantém a pretensão de crítica radical, ou se ela deriva para ideologia legitimadora da economia alternativa. Trata-se de uma diferença quanto à totalidade. Há quem espere que uma elaboração teórica barata da “crítica do valor”, por um lado, sirva no curto prazo as necessidades da ideologia do movimento e, por outro lado, sirva de saco de pancada para os representantes reflectidos de uma crítica da economia política conotada com o marxismo do movimento operário, que assim pretendem rejeitar a abordagem da crítica do valor no seu conjunto. A elaboração teórica da crítica da dissociação-valor, representada pelas autoras e autores da EXIT!, ergue-se contra isso e não poderá ser ignorada.

A discussão de conteúdos não acaba aqui e terá que ser alargada a tendências semelhantes no pós-operaismo. Desta vez limitei-me deliberadamente aos textos de Lohoff e Meretz. Em próximas abordagens será de incluir não apenas a posição de Sabine Nuss (que, sob um certo ponto de vista, acaba por ter razão contra Lohoff e Meretz), mas também a variante neoliberal da ideologia do digital, por exemplo o caso de Holm Friebe e Sascha Lobo com o seu bestseller “Wir nennen es Arbeit [Chamamos a isso trabalho] ”, bem como o constructo pós-operaista do “trabalho imaterial” e da “auto-valorização” (autovalorisazzione) de Negri.


Inclusão: 31/03/2020