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Primeira Edição: Original GRAU IST DES LEBENS GOLDNER BAUM UND GRUN DIE THEORIE. Das Praxis-Problem als Evergreen verkurzter Gesellschaftskritik und die Geschichte der Linken in revista EXIT! Krise und Kritik der Warengesellschaft, 4/2007 [EXIT! Crise e Crítica da Sociedade das Mercadorias, 4/2007] ISBN: 978-3-89502-230-2, editora Horlemann Verlag, Postfach 1307, 53583 Bad Honnef, Tel 0 22 24 — 55 89, Fax 0 22 24 — 54 29, http://www.horlemann-verlag.de/
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
SUMÁRIO: 1. O mal-estar na teoria 2. Adorno sobre pretensões de práxis reduzida e sobre “pseudo-actividade” 3. “Práxis teórica” e interpretação real do capitalismo 4. Tratamento da contradição e “práxis ideológica” 5. Capitalismo como transformação do mundo: crítica afirmativa e crítica categorial 6. Teoria da estrutura e teoria da acção 7. “Modernização atrasada” e o postulado de uma “unidade inseparável” entre teoria e práxis 8. Razão instrumental 9. A viragem da teoria da acção. Marxismo ocidental e “filosofia da práxis” 10. O “marxismo estruturalista” e o politicismo da teoria da acção 11. O pêndulo de Foucault. Do marxismo de partido à ideologia do movimento 12. O regresso do “sujeito”. Metafísica dos direitos humanos e falsa autonomia 13. Somos tudo. A miséria do (pós-)operaismo 14. Da capitulação da ideologia auto-referencial do movimento a um novo conceito de “práxis teórica” Bibliografia
“Os curtos relâmpagos das ‘Teses sobre Feuerbach’ atingem com a sua luz todos os filósofos que deles se aproximam, mas qualquer pessoa sabe que um relâmpago curto ofusca mais do que clareia, e que não há nada mais difícil do que situar uma luz relampejante no espaço da noite que ela rompe. Um dia certamente será necessário esclarecer o enigma dessas onze teses.”
Louis Althusser, Pour Marx
Na crise mundial da 3ª Revolução Industrial, a crítica radical do capitalismo encontra-se perante um desafio sem precedentes. Para poder continuar a ser ela mesma, para fazer jus ao nome, ela tem de se despedir de si na sua forma conhecida, distanciar-se, suplantar-se e ir além de si mesma. Pois, tal como o capitalismo realmente esbarra num limite interno absoluto, também a crítica até ao momento tecida contra ele torna-se obsoleta e revela-se parte integrante do seu próprio objecto.
Em resposta a esta nova situação histórica, desenvolveu-se a partir da década de 80, como é sabido, uma abordagem teórica da transformação da teoria de Marx e que dá pelo nome de “crítica do valor”. Na sua perspectiva, tanto o movimento operário ocidental como os próprios socialismos do Leste e do Sul ainda faziam parte da história da ascensão e imposição do capitalismo. Tanto a reflexão teórica como a acção prática moviam-se sob a capa do moderno sistema produtor de mercadorias, a forma fetichista do valor. O marxismo do movimento operário assumira a ontologização desse contexto da forma da Modernidade a partir da filosofia iluminista burguesa. Particularmente o “trabalho” (“trabalho abstracto” em Marx), como substância da forma do valor, assumiu ao longo desse processo um estatuto trans-histórico. Na crise mundial da 3ª Revolução Industrial, o “modo de produção baseado no valor” (Marx) esbarra em seu limite interno absoluto, precisamente pelo facto de minar a sua própria substância, o “trabalho”, tornando-o obsoleto. As determinações supostamente ontológicas revelam-se historicamente limitadas e decrépitas.
Tomando como ponto de partida essa teoria crítica radical, a nova reflexão transformadora gerou uma crítica da forma do valor e da mercadoria, uma crítica que devia necessariamente abranger a ontologia marxista do trabalho. A tal facto está forçosamente associada uma profunda ruptura na fundamentação da acção transformadora da sociedade: nesta evolução, a crítica do valor enquanto crítica do trabalho, embora precise desenvolver-se a partir da imanência capitalista, já não pode assumir qualquer critério ontológico de identidade, nem qualquer critério positivo de interesse. Como Ontologia Negativa (cf. Kurz 2004), como crítica da ontologia capitalista, o seu objectivo é uma “ruptura ontológica”. Tanto as ideias como as acções da nova crítica são essencialmente negatórias, como digestão da experiência de sofrimento no capitalismo de crise, enquanto as determinações positivas só podem ser desenvolvidas a partir de tal negação, por meio dum movimento histórico de mediação, mas não como uma estipulação a priori.
Todavia, a nova elaboração teórica da crítica do valor referia-se primeiramente às determinações da forma geral do moderno sistema produtor de mercadorias, sem reflectir sobre a sua conotação sexual. Contudo, o marxismo do movimento operário “herdara” do protestantismo e do Iluminismo não apenas a metafísica moderna do trabalho, como ontologia do trabalho e “ethos do trabalho”, mas também a relação entre sexos a ela associada dum patriarcado objectivado em tais formas, no qual foram dissociados os momentos da reprodução social que não dão certo no valor, tendo sido determinados em larga escala como “femininos” e atribuídos às mulheres. Respondendo a isso, a crítica do valor continuou a desenvolver-se ao longo dos anos 90 no sentido da crítica da relação de dissociação associada ao valor. Segundo essa reflexão, a dissociação é “co-originária” à relação de trabalho abstracto, isto é, ela não consiste num aspecto secundário nem derivado. Constitutivos do capitalismo são não apenas as formas político-económicas com aparência sexualmente neutra do moderno sistema produtor de mercadorias, mas também, num sentido mais amplo, a relação de dissociação-valor como Sexo do Capitalismo (Scholz 2000), ou patriarcado produtor de mercadorias.
Isto tem uma dupla consequência. Por um lado, abre-se uma nova dimensão epistemológica, pois toda a história da teoria desde o Iluminismo, incluindo o marxismo, está confinada no quadro de uma falsa universalidade assente na relação obnubilada de dissociação. A linguagem moderna da teoria, com seu aparelho conceptual, está ligada a esse quadro, ou seja, move-se num horizonte de conceptualização androcentricamente universalista. O alargamento da crítica do valor à crítica da dissociação encerra, portanto, a tarefa de rebentar o quadro conceptual moderno. Isto levanta enormes problemas de exposição, ainda longe de estarem resolvidos. A dificuldade também se reflectiu na pesada nomenclatura dupla da nova elaboração teórica a partir de então, expressa como crítica da dissociação-valor [Wert-Abspaltungkritik].
Por outro lado, esta teoria da dissociação-valor implica também um alargamento análogo da crítica para além do feminismo praticado até hoje que, à semelhança do movimento operário, se limitara ao campo de acção da relação fetichista moderna. Pelas razões acima apontadas, aplica-se aqui, na fundamentação da acção transformadora, a mesma ruptura fundamental que na crítica do trabalho: a crítica da dissociação-valor já não é um mero ponto de vista de identidade sexual ou de interesse, no invólucro da forma dado, mas visa o rompimento desse invólucro e, por conseguinte, a suplantação do patriarcado da Modernidade objectivamente inscrito nas formas gerais e abstractas da sociedade.
Revela-se aí, na elaboração teórica e na determinação da acção transformadora, uma relação tensa entre crítica do valor universalista-androcêntrica (portanto limitada, incompleta) e crítica da dissociação-valor, uma relação que ainda tem de ser resolvida. Essa diferenciação tensa da própria elaboração teórica da dissociação-valor é acompanhada do desejo de auto-afirmação das teorias sociais de esquerda já anacrónicas. Foi assim que se formou um campo complexo de confrontação teórica. Todavia, a tal confrontação sobrepõe-se a colocação do problema referente à dimensão da acção, que já não é meramente interior à teoria. Deseja-se que a crítica teórica se torne crítica prática. Este telos imanente a toda a teoria crítica aplica-se também à crítica da dissociação-valor, mas precisa de ser novamente determinado na perspectiva da “ruptura ontológica”. Independentemente disso, a questão da dimensão da acção também é apresentada externamente como “exigência de práxis” categórica. Não é tanto a nova teoria crítica que está voltada contra a práxis social dominante, mas antes o postulado indeterminado de uma chamada relação entre teoria e práxis que é “levado para dentro” desta teoria, totalmente à velha moda e sem reflexão. A pretensão de práxis embebe a elaboração teórica e ela própria se torna teoria quando da teoria se aproxima, distorcendo-a e tornando-a quase irreconhecível.
Este postulado volta sempre a ser colocado; ele caracteriza tanto o marxismo tradicional e seus actuais remanescentes como, de outra forma, as actuais teorias pós-modernas. Durante muito tempo, a elaboração da teoria crítica da dissociação-valor, por sua vez, poupou o “problema da práxis” ou o nível da acção; não por falta de sentido de um “activismo” qualquer, mas por falta de abordagem do tema dentro da própria reflexão teórica que se cansara na redefinição da sua relação para com a dimensão da acção sob as condições modificadas. Pois “práxis” não é pura e simplesmente o agir, mas sim, ao mesmo tempo, também é um conceito teórico a ser reflectido histórica e criticamente. Para isso é preciso uma determinação teórica que se distancie coerentemente do entendimento tradicional da “relação entre teoria e práxis” que foi feita sob medida para os perfis de exigência de acção no invólucro da forma capitalista. Em primeiro lugar seria necessário evidenciar teoricamente o que isso realmente significa, bem como a ruptura que pode ser realizada através disso, uma ruptura que realize a quebra com a ontologia do trabalho, a forma da mercadoria e a relação de dissociação sexual, também relativamente a esta problemática.
Sob a pressão da pretensão de uma práxis irreflectida que é transmitida com o novo conteúdo da crítica, todas as questões e confrontações interiores à teoria deixam de ser apreendidas em seu próprio significado; o “problema da práxis” sobrepõe-se à elaboração teórica e fixa o horizonte desta, não acontecendo o inverso. Corre-se o risco de não passar de palavras a afirmação de que a teoria, enquanto teoria, é um momento imprescindível precisamente em relação a uma transformação histórica prática, que realmente toque as bases da ordem dominante e não reduza a “ruptura ontológica” a uma mera frase.
A necessidade de aliviar-se “de qualquer maneira” na prática e de um activismo que não quer receber e continuar a exercer a teoria enquanto tal, mas que a quer “realizar” de forma imediatamente prática, e que a apreende em geral a priori num “horizonte de aplicação” parece ser tão forte como a necessidade de urinar. Assim sendo, deter-se “na” teoria provoca um mal-estar semelhante a uma bexiga cheia, mesmo quando ainda não se empreendeu nem se apreendeu muito do ponto de vista teórico. Antes de se entregar à nova problemática da reflexão, antes de desenvolver um pensamento teórico em geral, já não é possível segurar-se e já se quer passar a “vias de facto”, o que geralmente acaba por sujar a roupa. O importante é que seja “prático”. Uma tal incontinência no tocante à tão invocada relação entre teoria e práxis aponta para um entendimento truncado, e arraigado no marxismo tradicional, um entendimento que sempre liga a reflexão teórica a uma “capacidade de acção” ou a uma práxis já pré-estabelecida. A teoria crítica deverá então ser, por um lado, um “manual de instruções para a acção”, merecendo, nesse sentido, gozar de estima; mas, por outro lado, como algo inferior e não-autónomo perante a ominosa “práxis”, ela só deverá ter validade na relação de aplicação.
Para esse entendimento, sempre se torna necessário recorrer ao célebre trecho das Teses sobre Feuerbach do jovem Marx (11ª tese): “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de formas diversas; agora é preciso transformá-lo” (Marx 1983, escrito no ano de 1845, p. 7). Trata-se agora de saber que importância tem a teoria crítica como teoria nessa transformação, pois o próprio Marx era antes de tudo um teórico, e suas obras são tudo menos uma “manual de instruções para a acção” no sentido de qualquer “possibilidade de realização” directa. A 11ª Tese sobre Feuerbach é frequentemente colocada num contexto em que corresponderia mais a uma interpretação de filosofia de vida da famosa sentença do “Fausto I” de Goethe: “Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, e verde é a árvore dourada da vida” (Goethe 2000, 1ª ed. 1828, p. 57). Claro que é precisamente Mefistófeles que, com tais palavras, leva ao engano um estudante ingénuo. Sob essa óptica, tratar-se-ia apenas de um agir capitalista por todos conhecido, mas que é ambíguo, se tiver de ser empregado como critério precisamente para o telos de uma “ruptura ontológica”.
Se hoje partimos de um limite interno absoluto do capitalismo, ou patriarcado produtor de mercadorias, então, pelo contrário, pode dizer-se nas palavras de Hegel que “uma forma de vida envelheceu” e deixou de ser “verde”. Este último atributo caberia, sim, precisamente à nova crítica teórica a ser desenvolvida, sem respeito pela práxis dominante tornada cinzenta. Só na aparência a paixão irreflectida pela “práxis” constitui um trunfo do marxismo ontológico, tradicional ou com carga pós-moderna, o qual retira da cartola respostas que se tornaram imprestáveis, legitimando assim um falso activismo. Quanto mais as contradições sociais se acentuam na nova dimensão da crise, menos elas podem ser expressas no antigo campo conceptual. Nesta situação de nada adianta, invocando a premência dos problemas da crise (“Não temos mais tempo”), tornar a buscar uma sentença do “Fausto I” de Goethe: “Já foram trocadas bastantes palavras, deixem-me agora, finalmente, ver também actos” (id., p. 8). Aqui, sintomaticamente, o porta-voz é o director do teatro, e precisamente hoje, após o fim do movimento de modernização, a pretensão de práxis reduzida e a necessidade de actos da esquerda estão desembocando, a olhos vistos, apenas na encenação performativa. Precisamente assim é que já não é possível abordar criticamente a dura realidade de crise no início do século XXI. As piruetas da pretensão de práxis tradicional já são apenas confrangedoras. Na situação mundial modificada, torna-se necessário trazer à baila o conceito de práxis até agora vigente, reapresentar a 11ª Tese sobre Feuerbach à luz da crítica da dissociação-valor e submeter a sua interpretação a uma crítica da ideologia.
Em muitos aspectos, a teoria crítica de Adorno constitui uma transição do marxismo do movimento operário para a crítica da dissociação-valor, ainda que o próprio Adorno não tenha dado o passo decisivo. Isso também vale para a relação entre teoria e práxis no entendimento comum da esquerda, sendo que se trata sobretudo de esboços e observações incidentais, em que Adorno se volta contra o costumeiro e incontinente “mal-estar na teoria”. Na véspera do movimento de 68, em suas prelecções sobre Dialéctica Negativa de 1965/66, Adorno chamou apreensivamente a atenção para a miopia destrutiva da exigência categórica do “devir prático” imediato: “É um grande perigo que o pensamento da práxis, por sua vez, agora se torne uma prisão do pensamento teórico; que todos os pensamentos possíveis sejam interrompidos com a seguinte chamada de atenção: Sim, para que serve isso na prática, o que é que posso fazer com isso? Ou até mesmo: pois, com essas conjecturas estás até a impedir o caminho de alguma possível práxis. Por exemplo, sempre se voltará a ver que, tratando-se dos terríveis limites de uma práxis política intervencionista qualquer nas relações de produção e, de modo geral, nas formas sociais a estas adequadas, — sempre se voltará a ver que, caso assim o afirmemos, imediatamente nos virá uma resposta acompanhada daquele gestus de ‘sim, mas...’, que considero um dos maiores perigos em assuntos do intelecto: Sim, mas aonde é que vamos parar, a pensar assim? Sendo assim nada mais será possível, só nos resta baixar os braços! E eu diria: O momento que hoje parece residir na aplicação, na aplicação ininterrupta da Tese sobre Feuerbach é exactamente aquele momento de que a própria teoria deve ser agrilhoada pelo terminus ad quem” (Adorno 2003, p. 77 s.).
Adorno insiste, portanto, em que não se entenda a 11ª Tese sobre Feuerbach como se a teoria crítica devesse ser subsumida em pretensões não-declaradas de acção e desse modo “ficar presa”. Para ele, a dialéctica de uma relação assim truncada consiste em que a reflexão teórica não se possa expandir e desenvolver, precisamente em seu próprio âmbito e em sua própria lógica, tão amplamente que se tornasse parte integrante de uma transformação realmente libertadora do mundo. No pensamento de Adorno, a pretensão de práxis reduzida na teoria não representa, de modo algum, o “concreto”: pelo contrário, aqui a própria “práxis” torna-se um elemento abstracto, torna-se a “práxis em geral”, que é confrontada irreflectidamente com a teoria enquanto tal. Mas, na qualidade de reivindicação meramente abstracta, ela contradiz o seu próprio conceito, como deixa claro Adorno na citada prelecção sobre a Dialéctica Negativa: “Mas o que aqui quero dizer, quando não aplico o conceito de práxis como muitos fazem e como certamente deve ser um tanto atraente para muitos de vós, é que não gostaria de deixar confundir a práxis com a pseudo-actividade; e que quero evitar, portanto, que os senhores o façam — não pelo facto de eu posar como autoridade, mas pelo simples facto de que reflexões que hoje apresentei penetrem um pouco nas vossas mentes, e que os senhores, a partir de si mesmos, também as executem um pouco; que os senhores não pensem que é pelo facto de se fazer “algo” de uma maneira qualquer (por exemplo, como um organizer, como é chamado esse tipo de indivíduo nos E.U.A., juntando pessoas quaisquer, promovendo agitações e fazendo coisas desse tipo) que consequentemente se faria algo essencial eo ipso. Em qualquer actividade é preciso ter presente a relação com a relevância, com o possível potencial que ela contenha em si. É que nos nossos dias, porque a actividade decisiva encontra-se impedida e porque, por outro lado, por motivos que já lhes dei a entender com frequência, está paralisado o próprio pensamento, torna-se muito fácil a práxis impotente e casual, como uma espécie de substituição do que não acontece. E quanto mais profundamente se sabe que realmente não é a verdadeira práxis, mais obstinada e apaixonadamente a consciência se agarra a tal práxis” (Adorno 2003, p. 83 s.).
Naturalmente, não se deve esquecer em que situação histórica Adorno formulou esta crítica a pretensões de práxis reduzida. Eram os últimos anos do “milagre económico” fordista após a Segunda Guerra Mundial, um tempo de calmaria político-social na RFA, sem um movimento social com momentos transcendentes, com o qual a teoria crítica em geral pudesse estabelecer uma relação. Havia, quando muito, engajamento “político-partidário” na ala esquerda da social-democracia, no Partido Comunista (KPD) ilegalizado e em outros grupos marxistas tradicionais, bem como no contexto do trabalho de formação sindical. A referência que Adorno faz a uma “verdadeira práxis”, ao reivindicar implicitamente “alguma outra coisa” perante os modelos em fim de linha do movimento operário e do marxismo de partido, pode ter um momento legítimo nesse contexto; mas parece assumir aí um discurso utópico, pois é tão pouca a possibilidade de haver uma “verdadeira” práxis quanto uma “verdadeira” teoria, no sentido de algo definitivo. Uma elaboração teórica crítica e um agir da crítica prática, entendidos sempre em relação com a constituição capitalista, são antes de tudo ambos processos, um movimento da imanência para a transcendência, com saída em aberto. Aí surgem pontos de mudança e rupturas deles resultantes, mas que também não instituem nenhuma “verdade definitiva” de teoria e práxis.
Em todo caso, o termo faz todo o sentido de outro modo, como se pode ler a partir da problemática aludida por Adorno referente aos “terríveis limites de uma práxis intervencionista”: ou seja, que a práxis só pode ser “verdadeira” enquanto tiver como meta a transformação do modo de socialização capitalista negativo e destrutivo, ao passo que toda a práxis que coloca seu telos debaixo desse modo de socialização torna-se “inverdadeira”, por não se aproximar absolutamente do limiar de uma transformação realmente emancipatória do mundo. Acaba por permanecer, bem de acordo com o termo de Adorno, uma “pseudo-actividade”, que possivelmente ainda gostaria de bronzear-se e estender-se à luz da Tese sobre Feuerbach.
É precisamente a dificuldade de intervenção crítica e transcendente no tocante ao contexto totalitário da socialização que hoje conduz, mais do que nunca, ao “mal-estar na teoria”, pois é precisamente este nível que representa o objecto da reflexão crítica na nova elaboração da teoria crítica da dissociação-valor. Os indivíduos ávidos de “devir prático” imediato vêem-se colocados pela crítica da dissociação-valor diante de uma parede negra impenetrável, porque aqui já não pode haver a mera extrapolação de uma prática pré-estabelecida dentro das formas dominantes. Por isso, a orientação para a práxis reduzida gostaria de delegar de volta à teoria, de acordo com os padrões arraigados, essa dificuldade imanente de intervenção para além das categorias capitalistas até agora ontologizadas; e exigir da teoria uma forma e um modo de apresentação em que o problema, que é um problema inevitável da própria práxis, fosse teoricamente eliminado num golpe de magia, de modo que então tudo acontecesse através de uma “aplicação”, como que “por si mesmo”, de forma pretensamente prática, à semelhança do famoso homenzinho retratado num anúncio dos cigarros HB nos anos 70.
Nesta questão, continua válida para a actual situação, e particularmente para ela, a conclusão apresentada por Adorno naquela prelecção: “E por isso gostaria de registar as minhas reservas contra a pergunta precipitada acerca da práxis; a pergunta do ‘controlador de passaporte’, que agora já não exige de toda práxis a justificativa teórica — o que certamente também está errado –, mas que, inversamente, já exige o visto a todo e qualquer pensamento: Sim, o que é que podes fazer com isso? Penso que uma conduta desse tipo não fomenta a práxis, mas lhe cria obstáculos. E ainda diria que a possibilidade de uma práxis correcta, por sua vez, pressupõe em primeiro lugar a consciência integral e completamente não-reduzida do carácter limitado da práxis. Se tomarmos como medida directa do pensar a sua possível realização, então será agrilhoada a produtividade do pensar. Provavelmente poderá tornar-se prático apenas aquele pensar que não seja restringido pela práxis à qual deva ser directamente aplicado. Tão dialéctica, a meu ver, é a relação entre teoria e práxis” (Adorno 2003, p. 84).
Deve-se observar que Adorno aqui também tira a conclusão inversa, ou seja, refuta não apenas o “visto” da pretensão imediata de práxis reivindicada para a teoria, mas também a imposição de se exigir de toda práxis a “justificativa teórica” de maneira igualmente imediata. Em condições de vida capitalistas, e mais ainda em condições de crise novas como hoje, constantemente aparecem zonas de atrito que fazem surgir diversas formas de confrontação (até mesmo destrutivas e carregadas de ideologia negativa), nas quais são descarregados os confrontos internos e os absurdos estruturais deste tipo de socialização. Mas a luta por interesses de vida no capitalismo, que enquanto tal não pode absolutamente ser negada, não é per se transcendente, para além da ontologia do trabalho, do valor e da dissociação.
Precisamente aqui reside o problema para a crítica da dissociação-valor, pois ela precisa de redefinir a relação existente com essas “lutas” encontradas, que já não podem ser prolongadas de forma linear e sem rupturas em nome de uma perspectiva “socialista” para além do capitalismo, como no contexto do marxismo da ontologia do trabalho e da dissociação, e da sua “práxis” imanente à forma. Nesse sentido, a questão não é o “mal-estar na teoria”, mas, pelo contrário, o “mal-estar na práxis”; o mal-estar na submissão do pensamento crítico a necessidades de acção, sem dúvida existentes e de certa maneira legítimas, mas que inevitavelmente precisam de retroceder para trás da exigência historicamente amadurecida de se liquidar a ontologia capitalista. Exactamente por esse motivo, nos dias de hoje tais “lutas” têm tão pouca força de penetração e são tão impotentes. Daí resulta que não se pode fazer qualquer censura às necessidades de acção dadas; elas estão diante do mesmo limite que a teoria. A censura tem de ser dirigida contra a pretensão de querer torná-las, por sua vez, um limite para a reflexão teórica, como infelizmente tem acontecido até agora.
Para encontrar uma orientação no tocante ao problema teoria-práxis, uma orientação que suplante o marxismo tradicional e seus derivados pós-modernos, é necessário primeiramente esclarecer de novo a dialéctica imanente na relação entre teoria e práxis dentro da própria sociedade capitalista. Não se pode empreender a ruptura da ontologia capitalista a partir de um ponto de vista externo; em vez disso, ela precisa de ser trabalhada, e por que não dizer batalhada, a partir da imanência, mediante a negação. No capitalismo, a separação entre reflexão teórica e acção prática que, segundo o entendimento corrente, é criticada na Tese sobre Feuerbach, não é de maneira alguma uma separação absoluta e externa, mas uma separação que paradoxalmente se alojou num processo de práxis sobrejacente [übergreifend] do “sujeito automático” (Marx) e da dissociação sexual a ele associada.
A reprodução capitalista é práxis social abrangente na qual entra a reflexão teórica. Com isso, elaboração teórica no capitalismo não é nenhum “baixar os braços”, mas um agir, ainda que seja um agir sui generis que pode ser entendido como “práxis teórica”. Esta constatação, surpreendente e paradoxal para o senso comum quotidiano capitalista e também para o de esquerda, já é um tópos na reflexão da crítica social, por exemplo em teóricos como Adorno e Althusser, que em outros aspectos são tão antagónicos. Aqui o conceito de “práxis teórica” geralmente confunde-se com as próprias exigências da crítica social. Para se poder elaborar a diferença distintiva entre crítica e afirmação, é preciso em primeiro lugar determinar o estatuto da “práxis teórica” em sua imanência capitalista. Nessa medida, um aspecto essencial é o entendimento de que a própria elaboração teórica representa um momento ou um campo específico de práxis social no capitalismo.
Isso não deve ser mal interpretado, como se a diferença e a tensão entre teoria e práxis devessem ser eliminadas com um golpe de magia, numa rábula barata. A “práxis teórica” confronta-se com a práxis nas relações sociais e no “processo de metabolismo com a natureza”, mas como um factor diferente e separado da própria práxis social. Poder-se-ia falar de uma práxis social de primeira ordem (reprodução material e social) e de uma práxis social de segunda ordem (reprodução da reflexão teórica), ou ainda de uma relação entre “práxis prática” e “práxis teórica”, separadas estruturalmente entre si. Também esta formulação pode parecer paradoxal ao senso comum quotidiano capitalista, mas aponta para o paradoxo real da relação social.
Por isso se põe a questão do motivo dessa separação estrutural, dessa diferença e dessa tensão. O motivo reside em que a “práxis prática”, a acção social e a acção da produção, é fundamentalmente pré-formada através da matriz a priori da constituição fetichista; na Modernidade, através da relação de dissociação-valor, ou seja, mediante o “sujeito automático” da valorização do valor, por um lado, e a dissociação sexualmente conotada dos momentos da reprodução que nele não são absorvidos, por outro. Daí resultam padrões de acção que parecem auto-evidentes e que não se submetem per se a nenhuma reflexão: os padrões de acção da valorização do valor e da sempre simultânea acção de dissociação sexualmente conotada, padrões determinantes do quotidiano de “trabalho e vida”. É uma acção fetichista directa, isto é, as pessoas “agem antes de terem pensado” (na formulação de Marx no capítulo sobre o fetiche); elas agem em relações já constituídas e pré-estabelecidas da famosa “segunda natureza”, ainda que esse agir realmente precise de passar pelas suas consciências.
Portanto, os padrões de acção já são estabelecidos a priori sem nenhum trabalho intelectual reflexivo e consciente e, por conseguinte, são quase ontologicamente pressupostos à reflexão. O que significa isso? Em relação a determinadas coisas ou circunstâncias em separado, o pensar, enquanto “concepção”, planeamento, construção intelectual etc., “na verdade” precede o agir (ou pelo menos assim deveria ser), como estabelece Marx no célebre exemplo da diferença entre a abelha e o mestre-de-obras. No tocante à relação social fetichista da dissociação-valor, todavia, dá-se exactamente o inverso: relativamente ao seu próprio contexto social e aos seus “processos de metabolismo com a natureza”, as pessoas não são mestres-de-obras, mas praticamente “abelhas”. Por meio dessa inversão, fabrica-se uma estrutura na qual já não há unidade entre “concepção” e “execução” na acção (nem mesmo “experimental”), pois esta última é pressuposta a priori de acordo com sua forma, tal como no caso das abelhas. Sob essas condições, a reflexão (teórica) surge forçosamente como esfera subordinada à “práxis prática” e consequentemente dela separada. Por esse motivo, também se regista que as pessoas, embora ainda capazes de reflectir, desesperam-se com as consequências ecologicamente destruidoras das suas próprias acções compulsivas e apenas a posteriori susceptíveis de ser reflectidas e “trabalhadas”.
Por outro lado, assim o pensar acaba por deixar de ser um acto conceptual “livre”, para se ligar à pressuposta forma de agir “apiária” da reprodução social e material, de acordo com a sua própria forma condicionada por essa estrutura. Dessa maneira, obtém-se uma identidade entre forma de agir e forma de pensar precisamente mediante o “a priori tácito” da primeira. Isso vale tanto para o pensamento do senso comum quotidiano capitalista como para o pensamento da reflexão teórica. Na medida em que este último acontece igualmente na forma de pensar constituída, só então se constrói o conceito moderno de teoria enquanto “forma teoria”, a qual assim se torna parte integrante da socialização na forma da mercadoria e, por conseguinte, como afirma Adorno na prelecção citada, uma “forma de consciência reificada” (id. p. 83). Devido à identidade entre forma de pensar e forma de agir, surgida através daquela inversão, vem à tona então novamente uma “unidade” entre teoria e práxis, “por trás das costas” dos agentes pré-formados e, por isso, por trás das costas dos pensantes pré-formados; trata-se, todavia, de uma unidade paradoxal e arranjada de modo negativo precisamente pela separação estruturalmente condicionada.
Essa unidade paradoxal condiciona uma objectivação inconsciente, tanto do agir como do pensar (subordinado) que, de acordo com sua forma, é semelhante à da abelha, enquanto a capacidade de reflexão, de concepção ou de “mestre-de-obras” das pessoas se tornam meros apêndices secundários. Aqui a instância mediadora é a “forma sujeito”, na qual as pessoas mais uma vez reproduzem na natureza e em si mesmos o “a priori tácito” de sua forma de constituição fetichista. Ao mesmo tempo que eles, nessa forma de sujeitos agentes, transformam as coisas do mundo em meros objectos do movimento da forma pressuposta, também eles se estão transformando em objecto. Por esse motivo, na identidade negativa entre forma de pensar e forma de agir está incluída a identidade negativa entre sujeito e objecto. Não é por acaso que o conceito de sujeito, que nos parece óbvio, só surgiu no contexto de moderna constituição de fetiche. A forma fetichista do valor e do seu movimento de valorização, que vai de par com a constituição do sujeito, não surge enquanto tal, mas permanece, de acordo com Marx, “espectral”; a forma surge sempre apenas indirectamente nas coisas e relações transformadas em mercadorias, bem como nas instituições daí derivadas. Resulta daí a ilusão de que este sujeito constituído de modo fetichista bem que poderia modelar “livremente” as condições do mundo, quando ele se movimenta em sua matriz a priori e, como ainda se verá, faz uma digestão ideologicamente afirmativa das contradições daí resultantes (esta é a outra face do trabalho próprio do sujeito). A evocação frequente “do sujeito” contra a objectivação negativa, tanto no pensamento burguês como no marxista, sucumbe à (auto-)ilusão ideológica. A crítica da dissociação-valor continuou seu desenvolvimento coerente contra isso, rumo à crítica da “forma sujeito”, que representa aquela unidade paradoxal e negativa entre forma de pensar e forma de agir, entre teoria e práxis da constituição fetichista.
Porém, essa unidade negativa não pode ser entendida num sentido superficial, como parte integrante da diferenciação das diversas “esferas” sociais estabelecida pela moderna relação fetichista, em que o campo da práxis ou da reprodução da teoria surgiria simplesmente “ao lado de” outros campos, tais como a economia, a política, a cultura, a privacidade da família etc. A unidade paradoxal negativa entre teoria e praxis, precisamente na sua separação, consiste também, mais exactamente, no facto de a teoria conter em si, como seu objecto, toda a práxis de todas as esferas e da totalidade da reprodução capitalista. Enquanto reflexão separada “sobre” a totalidade social mediada consigo mesma, bem como sobre as partes e momentos desta, ela é teoria da práxis e, na verdade, de toda a práxis dominante, inclusive de si mesma (isto é, também como meta-reflexão afirmativa sobre o carácter da teoria em tais relações, da teoria enquanto momento separado da práxis social).
Como a “práxis teórica” é subordinada à “práxis prática” enquanto forma de pensar, ela reproduz em si mesma os modos de acção fetichistamente constituídos de relações sociais e de produção na forma teórica ou como expressão teórica destes. Na medida em que a teoria reproduz o contexto categorial da forma do capitalismo em si, ao contrário do senso comum quotidiano capitalista não-reflexivo e por maioria de razão reificado, isso também se passa com a relação de dissociação sexual; e também indirectamente, no aparelho conceptual da própria forma teoria, o qual obnubila as respectivas estruturas de base reais e “torna-as invisíveis” na sua intervenção, o que simultaneamente também se repercute na teoria do conhecimento. Na classificação superficial mulher = natureza, a dissociação é determinada per se como o não-conceptual, ou como um não-assunto, a que não se pode ou não se “deve” dar nenhum conceito. Neste ponto, a moderna forma de teoria é uma “forma de consciência reificada” não só no sentido das categorias reais teoricamente reproduzidas de trabalho, mercadoria, dinheiro e capital ou, por outro lado, direito, Estado e nação, mas também, ao mesmo tempo, no sentido da relação de dissociação “co-origináriamente” reproduzida na teoria, a categoria “invisível”.
A moderna forma de teoria constituiu-se como desenvolvimento continuado do protestantismo e das filosofias dos primórdios da Modernidade dos séculos XVI e XVII, principalmente no pensamento do chamado Iluminismo dos séculos XVIII e XIX — paralelamente ao desenvolvimento do capitalismo “sobre suas próprias bases” (Marx), desde o período manufactureiro e o início da industrialização. Nesta forma, como resulta do até aqui dito, ela sempre consegue ser apenas a interpretação do contexto social ontologicamente pressuposto, como é abordado por Marx na Tese sobre Feuerbach.
Mas isso não significa de modo algum que a forma teoria, enquanto “forma de consciência reificada” interpretativa, não seja per se relevante como práxis. Pelo contrário, ela tem uma função eminentemente prática, desde logo como legitimação ideal da constituição capitalista via ontologização. Mas a afirmação da matriz a priori fetichista como “necessidade natural”, “razão” ontológica ou “essência humana” não aparece aí simplesmente como argumentação externa justificadora, que também pudesse ser diferente, mas já está contida a priori na forma de pensar, no modo de pensar e nos próprios conceitos. Como legitimação a priori, ela já entra sempre no agir prático da “forma sujeito” capitalistamente constituída. Assim o capitalismo pode ser entendido inclusive como interpretação real do ser-aí [Dasein], em que a teoria interpretativa entra como parte integrante e expressão reflexiva.
Aqui não se trata apenas da legitimação a priori do contexto da forma capitalista, como o único imaginável para toda a eternidade, que praticamente sempre já deve ter existido (ainda que de maneira incompleta no passado) e que deve representar o ser humano em geral; mais que isso, a forma da teoria torna-se ao mesmo tempo a “fornecedora” de ideias para a práxis capitalista de uma interpretação real permanentenão apenas do mundo em geral, mas também do próprio capitalismo em seu desenvolvimento progressivo. Por via da sua constituição, as ciências naturais e as ciências sociais fornecem padrões de interpretação para a modelagem prática das relações dominantes no “processo de metabolismo” com a natureza, assim como nas relações sociais, com base na matriz a priori teoricamente reproduzida; eles são sempre, simultaneamente, um padrão de legitimação fundamental e um padrão de interpretação em permanente desenvolvimento, para a “práxis prática” da interpretação real do capitalismo.
Aqui houve um deslocamento de prioridades no processo histórico: se no início a reprodução teórica legitimatória da ontologia capitalista ocupava o centro, como sua “auto-certificação” (frequentemente mal compreendida quase como auto-reflexão crítica, por exemplo em Kant), com o desenvolvimento progressivo do capitalismo sobre as suas próprias bases, a produção teórica de padrões de interpretação para a “acção” prática passou a ocupar a posição principal (não raro mal compreendida como superficialidade meramente positivista, quando o positivismo na verdade representa a consequência interna plenamente coerente da auto-certificação ontológica originária). Nessa evolução, o momento legitimatório da forma de pensar não se perdeu, mas apenas se adaptou, na produção fornecedora de padrões de interpretação.
A unidade negativa assim arranjada entre teoria (interpretativa) e reprodução material e social do capitalismo, como relação entre “práxis teórica” e “práxis prática”, não se refere, porém, simples e unidimensionalmente às objectivações de pensar e agir pré-estabelecidas pela relação fetichista. Esta pré-formação precisa de passar pela consciência e não só, e por isso não se realiza de modo algum como os automatismos físicos ou biológicos. Pelo contrário, a reprodução capitalista pré-formada pela matriz a priori também é uma “contradição em processo” (Marx); uma “contradição em si” não apenas conforme sua própria dinâmica progressiva, que constantemente volta a tornar obsoleta a “velha forma” do capitalismo, mas ao mesmo tempo uma autocontradiçãoelementar, da qual resultam as crises periódicas e, por fim, o “limite interno” absoluto (Marx). Por esse motivo, “práxis teórica” e “práxis prática” sempre já estão igualmente imbricadas na autocontradição capitalista em constante processo. Esta última tem de ser reflectida como interpretação teórica e manuseada como interpretação prática.
Assim existe, por um lado, uma “coacção muda” (Marx) em relação ao agir determinado pela forma da valorização do valor ou ao agir da dissociação. Por outro lado, nesse agir interferem numa escala cada vez mais elevada os dilemas da autocontradição capitalista. Uma vez que os padrões de acção objectivados não são, de modo algum, realizados “automaticamente” como no caso das abelhas, na consciência dos indivíduos agentes também entram as contradições internas e as zonas de atrito a elas ligadas e decorrentes da reprodução fetichista, as quais os desmentem permanentemente como “mestres-de-obras”, tornando-os quase abelhas, embora não as sejam. O agir prático assim constituído adquire, com isso, uma estrutura de certo modo aporética, ao submeter-se a uma tensão permanente entre, por um lado, a objectivação apiária (“segunda natureza”) e, por outro, a consciência ou as experiências (negativas) nela contidas. Em primeiro lugar, isto significa apenas que o agir pré-formado pela matriz a priori nunca é a mera realização de uma mecânica interna do “sujeito automático” e dos momentos dele dissociados, mas sempre também o “tratamento” das contradições internas a ele associadas. A reprodução capitalista não consiste apenas, linear e mecanicamente, num agir de valorização e num agir de dissociação, mas ao mesmo tempo, inevitavelmente, num constante tratamento da contradição [Widerspruchsbearbeitung].
As exigências deste tratamento da contradição acompanham todo o processo de reprodução da “práxis prática”. Daí faz parte, por um lado, a administração de pessoas nos âmbitos da gestão empresarial e da administração pública, que hoje, após a extinção da capacidade de desenvolvimento capitalista interno, está se tornando uma administração de crise permanente e em processo de agravamento. Por outro lado, também as formas de “contrapráxis” imanente, a saber, as formas das lutas de interesses em torno de necessidades vitais que sempre voltam a ser questionadas capitalistamente, as quais desde logo nada mais são que uma componente imanente desse tratamento da contradição. Na medida em que greves, movimentos sociais, protestos e lutas pela manutenção de gratificações sociais ou contra a interrupção de possibilidades de reprodução (fábricas, hospitais), projectos alternativos de todos os tipos, acções de resistência contra a administração de crise etc. precisam de fazer parte do campo de imanência capitalista (pois de outro modo nem poderiam existir), faz-se prevalecer as necessidades vitais forçosamente nas formas capitalistas (na forma da mercadoria e do dinheiro, assim como também na relação de dissociação sexual).
Seguindo essa linha de pensamento, temos aí uma “expressão” da contradição e lidamos com um conflito permanente em torno da interpretação real do próprio capitalismo. Não é apenas entre os detentores de cargos e funções capitalistas, na política e na economia (por exemplo, keynesianos e neoliberais), que se desenvolve esse conflito; ele também se dá como conflito interno entre a administração capitalista de pessoas ou de crises, por um lado, e a “contrapráxis” imanente em diversos campos da reprodução, por outro, sendo que as contradições capitalistas são postas em acção como interpretação real. Com isso, as formas de “contrapráxis” imanente que sempre voltam a surgir no tratamento da contradição são, pese embora a sua oposição externa à administração de pessoas e à administração de crise, componente integrante da própria reprodução capitalista e permanecem, desde a origem, forçosamente particulares; só são críticas no tocante a fenómenos isolados do capitalismo e referem-se de forma “natural e espontânea” (como costumava afirmar Marx) às formas sociais pré-estabelecidas. Isso, em si, não é de modo algum emancipatório, no sentido de rebentar a ontologia capitalista. Pelo contrário: nesse caso, o capitalismo deve mesmo ser interpretado de outra maneira, de acordo com os encargos dos interesses vitais que sempre já se manifestam na forma capitalista, esbarrando assim no limite dessa matriz a priori que enquanto tal não se submete a qualquer reflexão. Por esse motivo, é precisamente através da práxis que o mundo simplesmente é “interpretado de outra maneira” em sua constituição dominante, e é exactamente isso que se repete na reflexão dos “filósofos” (teóricos), enquanto não se reconhecer e não se romper a identidade negativa entre forma do pensamento e forma da acção.
Na verdade, na medida em que a “práxis teórica” reproduz em si a totalidade da práxis social, como sua expressão teórica interpretativa (e, neste sentido, como “forma de consciência reificada”), ela também precisa de exprimir ou reproduzir teoricamente o permanente tratamento da contradição, nas formas da administração de pessoas e da “contrapráxis” imanente. Portanto, em seu âmbito específico, ela é uma parte constitutiva do debate em torno da interpretação real do capitalismo, enquadra-se nos campos de conflitos e fornece os respectivos padrões de interpretação opostos para o tratamento da contradição, de que se torna um momento particular. Nessa medida, contudo, a “práxis teórica” esbarra nos limites da matriz a priori da mesma maneira que a “práxis prática”, mesmo no próprio pensar reflexivo.
Com isso se levanta o problema da ideologização. Pode-se entender ideologia fundamentalmente como forma reflexiva de tratamento afirmativo da contradição na luta pela interpretação real do capitalismo; de certo modo, como pretensão paradoxal de “mestre-de-obras”, mas no estatuto não-suplantado e não questionado de “abelha”, em que é mantida cegamente a inversão na relação entre o agir pré-formado e o pensar (subordinado e, por isso, separado estruturalmente) que por sua vez é pré-formado pelo primeiro. Talvez se pudesse dizer que a ideologia é composta de conteúdos de pensamento reflexivos afirmativos “na” forma de pensar pré-estabelecida. Tais conteúdos só são “conceptuais” enquanto reacções destrutivas à contradição vivenciada, mas não relativamente à relação social subjacente. Esta reflexão afirmativa é formada a partir do tratamento da contradição nos diferentes campos da práxis social, inclusive na teórica. Precisamente porque, ao contrário do caso das abelhas autênticas, não são automáticas, essas realizações também sempre contêm momentos de reflexão, “imagens do mundo”, modos de imaginação, padrões de explicação etc. As pessoas precisam sempre de encontrar explicações para aquilo que fazem socialmente.
Presa nos limites da matriz a priori fetichista e brotando natural e espontaneamente, a tendência do pensar consiste na afirmação reflexiva como componente da vontade de automanutenção nessas relações; consiste, pois, no esforço de encontrar tais explicações para as relações (a “relação com o mundo” capitalista) ou de interpretar o capitalismo de tal modo que o próprio indivíduo possa consistir nisso. Daqui decorre que a matriz a priori é quase naturalizada, como é o caso de “ganhar dinheiro”, acontecendo o mesmo com as atribuições à “feminilidade” [Zuschreibungen an „Weiblichkeit“]. Ademais, o tratamento da contradição é ideologizado em processos de exclusão e inclusão no decurso da concorrência universal, por exemplo em padrões de interpretação racistas e anti-semitas que entram na luta pela interpretação real. Aqui se incluem também interpretações culturais, atribuições aos estranhos e auto-atribuições, por exemplo no ideologema da “pobreza alegre” ou em padrões dicotómicos da relação hegemónica (“Nós, as pessoas humildes”, “vocês, os que estão por cima; nós, os que estamos por baixo”), em subjectivações pejorativas (“os políticos são uns porcos”, “incapazes engravatados”) etc. Não em último lugar, no tratamento da contradição, esses padrões ideológicos de interpretação referem-se a uma leitura dicotómica do núcleo económico e de sua autocontraditoriedade prisioneira da crise que se agrava, sobretudo na confrontação entre “bom” capital produtivo (por gerar empregos) e “mau” capital financeiro especulador (por ser supostamente associado a “rendimentos sem trabalho”); no regime nazi surgia como dicotomia do capital “criador” (alemão-ariano) e do capital “rapinante” (judeu).
Trata-se, por um lado, de “ideologias do quotidiano” ou de “religiões do quotidiano” (que não devem ser confundidas com a religião como relação fetichista e de reprodução pré-moderna), de “criações de significado”, privadas ou colectivas, dos mais diferentes tipos. Por outro lado, após 200 anos de desenvolvimento do capitalismo sobre as suas próprias bases, as reflexões afirmativas da “práxis teórica”, principalmente as do pensamento iluminista e de seus derivados contra-iluministas, mergulharam no bom senso quotidiano da “normalidade”, por exemplo, a ideologia (da circulação) da “liberdade e igualdade” (democracia), a ideologia da “nacionalidade” e do Estado nacional como padrão de interpretação e quadro de referência, a “política” como forma de acção social do permanente tratamento da contradição, a ideologização da relação fetichista universal como “bem comum”, assim como hipóteses ontológicas e antropológicas fundamentais (“o ser humano” como sujeito de interesses abstractos) etc.
Pode-se concluir que o tratamento da contradição no nível da “práxis prática” em suas múltiplas esferas e mediações nunca é originário, directo e, por assim dizer, reflexivamente inocente, mas em vez disso sempre prenhe de ideologia e embebido de “teoria”, ainda que a consciência quotidiana não se dê conta disso. Na interpretação (real) permanente e “sofrida” do capitalismo, “práxis teórica” e “práxis prática” são igualmente práxis ideológica e unidas precisamente por isso. Esta “práxis ideológica” representa a verdadeira relação mediadora da unidade negativa entre teoria e práxis; constitui um componente fulcral da reprodução capitalista, uma vez que entra no agir material e social constituído fetichistamente da valorização do valor e da dissociação. Somente a partir daí é que se desenvolve toda a práxis reprodutiva, como interpretação real do capitalismo em formas de percurso concretas, cuja forma mais terrível foi, até ao momento, o nazismo; não como acidente de trabalho da história ou como “falsa superação” do capitalismo, mas como sua interpretação real historicamente específica, a partir de uma determinada forma de percurso (de maneira alguma determinada “objectivamente”) do tratamento da contradição. A digestão ideológica da contradição não faz das pessoas “mestres-de-obras”, mas sim, na pior das hipóteses, “abelhas assassinas”.
Após esta passagem sob a perspectiva da crítica da dissociação-valor, o problema da Tese sobre Feuerbach apresenta-se muito mais complexo do que sói acontecer no entendimento comum do organizer de esquerda. Mais complexo mesmo do que na formulação de Marx de 1845, que ainda está longe de analisar criticamente a reprodução capitalista e de tematizar as relações fetichistas como matriz a priori. Perante Feuerbach, faz-se valer em primeiro lugar um programa que consiste em analisar genericamente o “processo da vida real” historicamente específico no capitalismo e tomá-lo como ponto de partida, em vez de partir da “pessoa abstracta” historicamente indeterminada. A “transformação do mundo” deverá então resultar da revolução real desse modo de produção e de vida capitalista histórico real, e não de uma mera “mudança no pensar” ou de uma outra conduta da “pessoa abstracta” em relação ao mundo (como acontecia com os jovens hegelianos). Isso nada tem a ver com uma relação entre teoria e práxis transformada de forma “activista”, mas sim com um entendimento radicalmente transformado da própria reflexão teórica.
Marx certamente não formulou a sua Tese sobre Feuerbach no sentido de um incipiente “conceito de aplicação” da teoria. Pelo contrário, entendia a própria teoria precisamente como oposição ao carácter meramente interpretativo de toda a teoria burguesa, isto é, como crítica teórica. Não obstante, crítica é, nesse sentido, algo diferente de interpretação. Em Marx, por um lado ela refere-se à economia política dominante, como expressão teórica da práxis da vida capitalista historicamente específica, ou seja, precisamente como crítica desta; e, por outro lado e em ligação com isto, refere-se ao carácter interpretativo dessa elaboração teórica burguesa, como mera reprodução das categorias ontologizadas, as quais, precisamente por esse motivo, já não podem surgir como categorias históricas e consequentemente finitas.
Portanto, o critério distintivo reside em primeiro lugar no campo da própria teoria; e não se trata de modo algum da diferença entre teoria e práxis em sentido comum, como oposição externa entre reflexão teórica e acção directamente intervencionista, mas da diferença entre teoria interpretativa-afirmativa e teoria crítica. Aí está contido o telos da intervenção material. Porém, a questão é como se pode definir essa intervenção e onde ela quer chegar. Enquanto a interpretação, como forma de pensar, pressupõe de modo essencialmente positivo o seu objecto como tal, considerando possíveis apenas aquelas transformações acidentais “adjuntas a” ele, a crítica, entendida como oposição à mera interpretação, põe em xeque o seu objecto como tal e contém, por conseguinte, a negação essencial deste, e também consequentemente a negação da forma pré-estabelecida de acção e de pensamento. Todavia, entendida nesse sentido, a teoria crítica ou crítica teórica (crítica em forma teórica) precisa de ser desenvolvida em seu próprio campo, de forma tão radical que possa em geral ir além de si mesma, ingressando numa revolução radical das relações reais a serem negadas essencialmente (não apenas de modo interpretativo-acidental). Só que isso é algo totalmente diferente da subordinação da teoria crítica a uma pretensão de acção externa enquanto tal, uma pretensão não identificada no conteúdo da teoria.
Todavia, é mister que se trabalhe uma insuficiência na própria Tese sobre Feuerbach, que tornou possíveis os mal-entendidos vulgarmente conhecidos. O ponto de partida é a relação entre interpretação (teórica), por um lado, e práxis ou “transformação do mundo”, por outro. Como se viu, a reprodução do capitalismo também é sempre tratamento da contradição e interpretação real progressiva do mundo como si-mesmo — com isso, contudo, também é uma transformação do mundo ela própria permanente, e nomeadamente bem interpretativa. Ou seja: as formas categoriais do capitalismo e a relação de dissociação são pressupostas ontologicamente, e a transformação do mundo dá-se como interpretação real em processo de desenvolvimento histórico “junto a” esse e “dentro” desse contexto da forma. Ademais, ao fornecer os padrões ideais de legitimação e interpretação para isso, a própria “práxis teórica” entra nessa transformação capitalista do mundo. A oposição comum e pouco profunda entre as sentenças “os filósofos simplesmente interpretaram o mundo de maneira diferente” e “importa transformá-lo” passa completamente ao lado da crítica do capitalismo, porque não está incluído o carácter da transformação do mundo como interpretação real capitalistaenquanto práxis em si, e porque uma “práxis” por excelência indeterminada já se supõe dever contrariar a mera “interpretação”.
Não obstante, se o contrário de “interpretação” não for “práxis” em si e de forma genérica (“fazer algo”), mas sim crítica, ou mais precisamente crítica essencial, então a problemática da Tese sobre Feuerbach reside no próprio conceito de crítica. Trata-se da especificação exacta daquilo a que realmente se refere seu teor negatório. Mas com isso o próprio conceito de crítica torna-se ambíguo, da mesma forma que os conceitos de “interpretação” e de “transformação do mundo”. Na verdade, no carácter de interpretação real da transformação capitalista do mundo também está incluída uma “crítica interpretativa”. O conceito moderno de crítica deve seu surgimento originariamente à própria história da imposição e da modernização capitalistas.
Afinal de contas, capitalismo é, de certo modo, “crítica” e, mais precisamente, crítica em triplo sentido. Por um lado, ele transporta a crítica das relações pré-modernas, a partir das quais ele se desenvolveu e as quais ele denuncia como “irracionais” (ou pertencentes a um nível inferior da metafísica da “razão”). Em alguns aspectos, isso já se inicia com o protestantismo. Por outro lado, nessa nova “relação com o mundo”, o pensamento afirmativo sempre acaba por se transformar novamente em crítica, em oposição a determinadas fases da própria história da imposição capitalista tornadas obsoletas; por exemplo, na crítica do Iluminismo e das revoluções burguesas dos séculos XVIII e XIX ao regime absolutista, mas cujos aparelhos, como observou Tocqueville, foram adoptados com modificações e desenvolvidos posteriormente. Por fim, hoje pertence ao carácter de crise do capitalismo, que se encontra totalmente desenvolvido como sistema planetário e que esbarra em seus próprios limites internos, o surgimento de uma crítica dos sistemas de segurança social e das condições de enquadramento expandidas historicamente no próprio capitalismo (Estado social, infra-estruturas públicas etc.), e de uma “desasseguração” na nova situação de crise defendida pelo neoliberalismo transpartidário em nome da “liberdade” e da “autonomia do indivíduo”.
Em seu carácter legitimatório e interpretativo, afirmação e crítica são idênticas, na medida em que a crítica vise precisamente a manutenção e prolongamento do processo sistémico capitalista a qualquer preço. Nesse sentido, na Modernidade a teoria surgiu e continua a existir, mesmo entre a esquerda, mediante seu carácter interpretativo, enquanto “crítica afirmativa”. Afinal de contas, ela é reproduzida enquanto tal no entendimento truncado da Tese sobre Feuerbach, ou seja, ainda numa crítica do capitalismo que permanece modal, pressupondo ela própria ontologicamente as categorias capitalistas fundamentais. Em contrapartida, o teor metacrítico (implícito) da Tese sobre Feuerbach teria de ser radicalmente demarcado, precisamente do modus da crítica interpretativa do capitalismo. Fazendo-se tal leitura, a exigência contida na Tese sobre Feuerbach não significa uma mudança para o “devir prático” directo; significa, sim, uma viragem na própria crítica que agora, enquanto crítica da transformação capitalista do mundo, é revertida contra a sua determinação de interpretação afirmativa do capitalismo, de certo modo como exigência de uma transformação do mundo constituído fetichistamente, enquanto ruptura com a transformação do mundo como interpretação real que é dominante.
Tal crítica é muito diferente da crítica imanentemente afirmativa, a saber, é uma crítica categorial, uma crítica das próprias categorias capitalistas ontologizadas, sem esquecer a relação de dissociação sexual tornada “invisível”, uma crítica que sempre precisa de ser também crítica da ideologia. A crítica da ideologia em geral só pode vir a ser coerente como crítica categorial. Nessa medida, pode-se falar de uma “crítica de segunda ordem”, tal como ela está de facto contida na Tese sobre Feuerbach, se esta for lida à luz da crítica do fetichismo na obra posterior de Marx. Somente a partir daí tal “crítica de segunda ordem” abandona o quadro interpretativo e se torna a negação das determinações capitalistas essenciais, ao afastar-se conscientemente da “crítica afirmativa” e ao chegar à crítica categorial em forma teórica (para o que ela carece primeiramente de um conceito dessa distinção). Somente à luz dessa outra crítica também resulta a tarefa de uma transformação da “contrapráxis” imanente numa “práxis de segunda ordem”, já não de interpretação real, mas que rompe a acção objectivada da ontologia capitalista, tornando as pessoas, pela primeira vez, “mestres-de-obras” das suas próprias relações.
Ora, é óbvio que a crítica marxiana da economia política, enquanto crítica categorial da constituição fetichista moderna e, por conseguinte, enquanto crítica da ideologia na expressão teórica da sua reprodução na economia política, aborda exactamente esse “segundo nível” da crítica. Em Marx, como homem do século XIX, falta, porém, a crítica da relação de dissociação sexual e não só. Ao mesmo tempo, ele é um “teórico da modernização”, quando explica o capitalismo tanto como formação histórica “necessária” e “progressista”, na metafísica da história hegeliana virada materialista, quanto como “modelo de desenvolvimento” ainda não esgotado das forças produtivas no seu tempo. Ora, na medida em que ele, enquanto “duplo Marx”, é simultaneamente crítico do fetichismo e teórico da modernização e do desenvolvimento, vê-se também compelido a alternar entre um entendimento de crítica categorial e um entendimento de crítica imanentemente afirmativa, bem como entre um entendimento de práxis transcendente para além da relação fetichista e um entendimento de práxis de tratamento da contradição imanente (interpretação real). Trata-se de um problema que se arrasta ao longo de toda a teoria marxiana. O marxismo tradicional ou do movimento operário transformou essa contradição unilateralmente em crítica imanentemente afirmativa e em tratamento praticamente imanente da contradição, ou interpretação real do capitalismo, enquanto a crítica do fetichismo “dificilmente compreensível” passou para segundo plano. E foi precisamente essa solução unilateral que acarretou aquele mal-entendido da Tese sobre Feuerbach, um mal-entendido que, nessa medida, já se evidencia no próprio Marx.
Disso resulta, de forma insuportável para o entendimento identitário do marxismo, mas também inevitavelmente, que a “luta de classes”, enquanto suposto eixo e pivot da crítica do capitalismo, nada mais era que a “práxis histórica” do tratamento da contradição imanente no horizonte da crítica afirmativa, ou seja, uma crítica associada às determinações da forma da moderna constituição fetichista, uma crítica que se movia em tal invólucro que, malgrado todos os “momentos de excesso” frequentemente confirmados, de acordo com seu telos imanente e consequentemente com seu conceito, tinha de excluir a “ruptura ontológica”. A ligação identitária da teoria crítica à “luta de classes”, em sua qualidade de práxis processual de alcance limitado, só podia conduzir à reprodução teórica das categorias capitalistas na “luta” pela interpretação real do próprio capitalismo; a teoria associada a essa “luta de classes”, que exprimia essa luta, permaneceu para essa práxis imanente como a respectiva teoria da modernização e do desenvolvimento.
Em contrapartida, agora a crítica do valor surgida na crise mundial da 3ª Revolução Industrial, que se desenvolveu como crítica da dissociação-valor, coloca novamente na ordem do dia o nível crítico da constituição fetichista da sociedade, que ficara obnubilado ou escondido e mutilado no marxismo do movimento operário, e desfaz a contradição na teoria marxiana exactamente ao contrário. No “limite interno” histórico do próprio modo de produção e de vida capitalista torna-se inevitável a tarefa da crítica categorial do próprio contexto da forma, a qual, na história da imposição e desenvolvimento do patriarcado produtor de mercadorias, sempre podia ser adiada e revertida, em favor do tratamento da contradição imanente e da sua interpretação, no contexto da transformação capitalista do mundo. Na mesma medida em que a capacidade de acumulação capitalista começa a extinguir-se, extingue-se também essa possibilidade.
Exactamente por essa razão, os fenómenos de crise social e as contradições sociais não podem mais ser expressos na categoria “luta de classes”. Não se regista um regresso desta determinação da práxis após o final do período de prosperidade fordista; pelo contrário, ela está historicamente obsoleta, já que a própria matriz da relação fetichista moderna que a condiciona também está obsoleta. Com isso não desapareceu o tratamento da contradição imanente, nem o debate em torno da interpretação real do capitalismo em geral; mas deixou de existir, sem encontrar substitutos, o momento de um processo continuado de modernização que impregnava a “luta de classes”, como também a sua imposição em nome de uma perspectiva que implicava um “socialismo” categorialmente imanente, como auto-engano no tratamento da contradição, na interpretação real e na respectiva “contrapráxis”.
Uma vez que agora, apesar da matriz a priori pré-formadora do pensamento teórico e da práxis da produção social, os dois modos de acção precisam de passar permanentemente pela consciência e já não se realizam de modo automático, em princípio pode contar-se com a possibilidade de, no tratamento da contradição, examinar e expor à crítica os próprios padrões de acção obnubilados e constituídos na génese da forma, em cujos limites esbarram tanto a acção do pensamento como a acção da práxis. No limite interno de toda a própria práxis social dominante, essa possibilidade torna-se uma necessidade; não no sentido de um determinismo lógico ou histórico, mas no sentido da sobrevivência do ser humano e da natureza terrestre. Resta saber se a consciência reconhece que os próprios limites sociais a que está submetida fazem parte de uma conexão que, por sua vez, esbarra num limite absoluto. A consciência encerra essa possibilidade, cuja realidade, porém, não é determinada e, por esse motivo, não é derivável. Pois o romper da matriz fetichista seria, na verdade, o fim do “carácter apiário” da reprodução social; por isso, ele está cheio de medo e não surge por si só, não brota naturalmente do “mal-estar no capitalismo”. Tudo o que “brota naturalmente” em coisas sociais é uma digestão do mal-estar própria da “segunda natureza” fetichista e per se ideológica. A crítica categorial é inimiga de tudo o “que brota naturalmente”.
Para nos aproximarmos mais do conceito de crítica categorial, é preciso primeiro examinar com mais detalhe como o problema da constituição fetichista surge indirectamente na “práxis teórica”. Ele apresenta-se fundamentalmente como a oposição clássica entre teoria da estrutura e teoria da acção, uma oposição que se estende ao longo de todo o processo de elaboração teórica a partir do Iluminismo e que ainda brilha também em Marx e na conceptualidade da “luta de classes” no sentido mencionado. Em sentido muito lato, entendo esses dois conceitos de teoria como os padrões principiais da reflexão na forma de teoria burguesa, que se podem exprimir em configurações completamente distintas. Na oposição entre estes dois padrões de teoria surgem as contradições polares insolúveis da moderna constituição fetichista: a contradição e a simultânea identidade negativa entre “liberdade da vontade” e determinação, ou entre sujeito e objecto, ou ainda entre “práxis teórica” e “práxis prática”, e a mediação dessas identidades polares.
As abordagens da teoria da estrutura tomam aqui afirmativamente como ponto de partida o carácter objectivado da matriz a priori ou da “segunda natureza”, explicando a acção como derivada e determinada, enquanto os padrões da teoria da acção tomam como ponto de partida, inversamente, o carácter subjectivo da acção, entendendo as estruturas sociais como mera expressão dessa acção ou como “acção coagulada”. Ambas as abordagens estão correctas, mas com base numa incorrecção que lhes é comum, ou seja, a obnubilação da constituição fetichista e do contexto da sua forma. Poder-se-ia também dizer que se trata, em ambos os casos, de abstrair da formação historicamente específica “na” qual se pensa e se age, a fim de tomar como ponto de partida, a-historicamente, por um lado, a “estrutura” ou “objectividade” em si mesma e, por outro lado, a “acção” ou “subjectividade” em si mesma. Na verdade, as categorias de sujeito e objecto pertencem estritamente, como se viu, precisamente ao moderno patriarcado produtor de mercadorias; nestes conceitos reflecte-se o paradoxo da constituição fetichista, segundo a qual todas as acções têm de passar pela consciência e consequentemente também pelas determinações da vontade. Mas essa vontade e, por conseguinte, também o agir, encontram-se simultaneamente numa forma a priori, sempre já encontrada. Essa forma ou matriz a priori, por seu lado, volta de facto a surgir através da acção humana, mas os seus resultados autonomizaram-se inconscientemente numa impenetrável estrutura autónoma frente aos agentes.
A oposição entre teoria da estrutura e teoria da acção permanece insolúvel no carácter interpretativo da elaboração teórica, ou seja, na identidade da forma a priori de agir e pensar, pois o nível da crítica na própria constituição da forma, que só então gerará a contradição interna, não pode ser alcançado na forma da teoria enquanto “forma de consciência reificada”. Segundo a maneira como essa contradição central seja elaborada teoricamente do ponto de vista interpretativo, desenvolvem-se a partir daí diversos ideologemas que, por sua vez, se repercutem sobre a “práxis prática” e co-determinam a forma real do percurso da contradição real em processo. A “práxis prática” é em si mesma prenhe de ideologia, e sê-lo-á tanto mais quanto mais forte se revelar o efeito da “práxis teórica” sobre ela, como elaboração teórica da ideologia ou elaboração ideológica da teoria, no sentido da teoria da estrutura ou da teoria da acção.
Como “ciência interpretativa”, a teoria social burguesa é per se ideológica, porque ela per se só pode ser afirmação científica teórica ou crítica afirmativa, como reprodução teórica da ontologia capitalista pressuposta e do tratamento da contradição desta. É verdade que Marx fez uma distinção entre ideologia e “cientificidade” (entendida como reflexão “imparcial” que ele traslada para os primórdios da constituição da teoria moderna). No entanto, também essa diferenciação pertence ao “duplo Marx”, deve-se aos restos da própria parcialidade de Marx no pensamento iluminista. Não é o Marx crítico do fetichismo que faz essa distinção, mas o Marx teórico da modernização, que queria entender como “progresso” o capitalismo ainda não desenvolvido até à maturidade de crise, consoante a metafísica da história herdada de Hegel. O que Marx ainda não reflecte nesta distinção é o carácter fundamentalmente ideológico de toda a reflexão interpretativa, que surge na insolúvel oposição imanente entre teoria da estrutura e teoria da acção. No fim de contas, também as ciências naturais estão sujeitas a esse carácter, por se integrarem na constituição social fetichista e se revelarem, por isso, tão pouco “imparciais” como a teoria social.
É precisamente o modelo das ciências naturais que entrou de certo modo na reflexão da teoria da estrutura. Por analogia com a natureza, a sociedade e a história devem ser determinadas, no moderno entendimento de “leis naturais”, como processo que está sujeito a “leis” objectivas que podem ser “empregadas”, mas não negadas nem suplantadas. A acção humana é degradada à “execução” de “leis” inescapáveis. Reflecte-se aí a “jaula de ferro” (Max Weber) da matriz fetichista, a priori, pré-formadora da acção. A teoria da estrutura em sentido mais lato, dinamizada como teoria do desenvolvimento, vai desde a metafísica da história iluminista sistematizada por Hegel até ao estruturalismo e à teoria dos sistemas. Ela implica sempre uma “explicação” da sociedade e da história segundo padrões (físicos ou biológicos) das ciências naturais.
Por outro lado, a reflexão da teoria da acção faz valer a independência da consciência humana e a “dimensão da vontade” subjectiva (intencionalidade). As pessoas fazem, elas mesmas, suas relações, por isso estas deverão ser transformáveis numa conexão de acções de vontade ou de “intenções”. Desde Giambattista Vico que se proclama a compreensibilidade e disponibilidade do carácter “autopoiético” da sociedade e da história, em oposição à natureza externa não-antrópica. A teoria da acção no seu sentido mais lato vai desde o próprio Iluminismo, quando ainda não era diferenciada da reflexão da teoria da estrutura, passando pelo período romântico, pela filosofia da vida, pela fenomenologia de Husserl, pelo pragmatismo e por abordagens sociológicas afins (interaccionismo simbólico etc.), até ao existencialismo e seus derivados pós-modernos. Ela implica sempre um “compreender” a sociedade e a história num sentido subjectivo de intencionalidade, diferentemente daquele “explicar” caracterizado por uma determinação quase de ciências naturais, a partir de legalidades [Gesetzmäßigkeiten] sobrejacentes. Por essa razão, a reflexão da teoria da acção surge sempre como hermenêutica social e histórica, que no historismo alemão (Dilthey, entre outros), no contexto da alvorejante Ideologia Alemã, foi delimitada da metafísica da legalidade hegeliana, e deveria marcar a oposição entre teoria das ciências naturais, por um lado, e teoria social e histórica, por outro (“duas culturas”).
Como não pode deixar de ser numa elaboração teórica afirmativa e interpretativa, que tem sempre o contexto da forma capitalista e da dissociação como pressuposto ontológico, tanto a teoria da estrutura como a teoria da acção permanecem coladas, de forma igualmente unilateralizante, às contradições da constituição fetichista. Ou bem o nível da acção é eliminado em sua autonomia, e a acção é transformada positivamente em mera “função” de um processo estrutural autonomizado ou quase natural; ou bem, inversamente, o nível estrutural da matriz a priori é eliminado, e a acção é transformada numa soma de actos de vontade, intencionalidades e interacções. Ambas as formas de abordagem são inteira e igualmente ideológicas e consequentemente afirmativas. No processo de permanente tratamento da contradição (também teórico), elas surgem como “objectivismo” interpretativo e como “subjectivismo” interpretativo os quais, com a mesma constância, sempre estão a transformar-se um no outro, sem poderem alcançar a constituição fetichista que está na sua base.
Essa transformação mútua de ambos os padrões reflecte inconscientemente a existência da matriz a priori obnubilada e ontologizada. Assim sendo, o modelo objectivista da teoria da estrutura precisa, por fim, de “carregar como apêndice” a acção intencional dos sujeitos, já que o processo social não se executa, de modo algum, como reacções físico-químicas, deslocamentos geológicos de placas tectónicas, metamorfoses biológicas ou mesmo acção instintiva animal como na abelha. Mas permanece inexplicável por que motivo a “execução intencional” de algum modo é necessária, ela que desmente, na verdade, a nua “legalidade”. Na realidade, a activação da vontade surge então sobretudo como uma espécie de “impureza”, como fonte permanente de erro e equívoco, através da qual se executa a marcha objectiva e “conforme as leis da natureza” (apiária) das coisas sociais. A consciência humana tende a ser degradada a uma espécie de “factor de perturbação” do seu próprio contexto social. Inversamente, o modelo subjectivista da teoria da acção não pode ignorar por completo que o próprio agir se objectiva em “estruturas”. Não obstante, essa objectivação é por sua vez “carregada como apêndice” à intencionalidade, como aquela “acção coagulada” que se manifesta em instituições sociais. Mas permanece inexplicável por que motivo essa objectivação autonomizada acontece em geral, ela que na verdade nega a mera “intencionalidade”. É a simples referência, que permanece implícita, de que aqui ainda intervém algo mais, ou seja, uma constituição histórica da forma que reside numa área mais profunda que a mera institucionalização de acções intencionais.
O problema também se mostra em Adorno, na sua última prelecção sobre a Introdução à Sociologia, datada de 1968, em que ele se coloca contra a hipostasiação da teoria da acção: “Mas se os senhores tiverem examinado um pouco a sociologia..., então acharão que nem tudo aquilo que a sociologia faz agora tem a ver com agir social, mas que a análise sociológica refere-se, em grande parte, a formas reais, objectivadas, que não se podem transformar directamente em agir, portanto, a tudo aquilo que se pode designar no mais lato sentido como instituições; e aí não há nenhuma diferença entre a análise marxiana da forma da mercadoria objectiva e por exemplo o conceito de instituição social... ou de tudo aquilo que Marx chama relações de produção; a diferença consiste precisamente no facto de aqui não se tratar de um agir directo, mas sim, se quiserem, de acção coagulada, de trabalho de algum modo coagulado; e trata-se também de algo que se autonomizou perante o agir directo... Mas, desde logo, é necessário dizer... que esse agir está muito mais dependente dessas instituições e só pode ser cabalmente explicado a partir dessas instituições, do que se olhássemos para esse agir como o último substrato directo e pensássemos poder explicar o social em geral a partir do agir social” (Adorno 1993, p. 177 ss.). Segundo Adorno, uma forma de abordagem dessa natureza implicaria uma “versão subjectivista extraordinária” (id., p. 179) do entendimento.
Embora Adorno aqui teça uma crítica da redução do problema na teoria da acção, ele também chega a um conceito de “agir coagulado” e sua “institucionalização”, sem considerar as diferentes camadas profundas desse “coagular”, na relação entre constituição fetichista e desenvolvimento institucional continuado. Seja como for, isso jamais é possível no nível puramente sociológico. A análise marxiana da constituição genética da forma é algo qualitativamente diferente da análise e conceptualidade mais superficiais da institucionalização, que acontece e se transforma continuamente no processo do desenvolvimento capitalista, do tratamento da contradição e da interpretação real. As referências ao nível mais profundo do problema da constituição em Adorno são apenas dispersas, já que ele nunca abordou esse problema sistematicamente. Seja como for, na reflexão citada, permanece possível e ressalvada uma abertura para esse nível. Porém, enquanto a reflexão crítica não avançar explicitamente até esse ponto, não é possível suplantar a transformação mútua entre reducionismo da teoria da estrutura e reducionismo da teoria da acção.
Dessa forma, é possível um “estruturalismo” de ambos os lados, só que com pontos de partida distintos entre si e com conotações ideológicas diferentes. O que leva o nome de “estruturalismo” na segunda metade do século XX, em parte é mesmo arranjado pela teoria da acção, só que com a viragem para a determinação ontologizante de que o agir intencional é por sua vez determinado “sempre” “em conformidade com as leis” por estruturas objectivadas (que normalmente são equiparadas a instituições). É precisamente no estruturalismo que ambas as abordagens começam a confundir-se. Será que a estrutura objectivada é pressuposta, conforme padrões físicos ou biológicos a priori, e a acção intencional é derivada daí, ou será que, exactamente ao contrário, a acção intencional é pressuposta a priori, no sentido de um modo de ser especificamente humano, e a estrutura objectivada é, por sua vez, derivada daí? Em ambos os casos, a constituição histórica da forma da Modernidade capitalista permanece envolta em escuridão ontológica e escapa à crítica.
Esse mecanismo de obnubilação e ontologização faz de ambas as correntes da teoria da forma burguesa, tanto em sua contradição polar como em sua transformação mútua, a matriz da “práxis ideológica”. A ideologia liberal, com sua origem no Iluminismo e na fundamentação iluminista na economia política, insiste por princípio e precisamente durante as crises nas “leis naturais [Naturgesetzlichkeit]” das formas capitalistas e, por conseguinte, da história (daí resultante) da interpretação real do capitalismo e da transformação do mundo como “processo social natural” imparável, ao qual é preciso adaptar-se a qualquer preço, sob pena de derrocada. O tratamento da contradição, nesse sentido, a partir da interpretação baseada na biologia e nas ciências naturais, desagua no darwinismo social, como “lei” da luta pela sobrevivência (survival of the fittest), que também é proclamada pelas ideologias conservadoras e fascistas, e relacionada com meta-sujeitos racistas nacionalistas. Revela-se aí um momento comum do liberalismo e do fascismo/nacional-socialismo, profundamente arraigado na metafísica da legalidade fundamentada na teoria da estrutura. Por outro lado, a ideologia da teoria da acção, com base na corrente da fenomenologia, da filosofia da vida e do existencialismo, insiste, a partir da visão do sujeito intencional irreflectido, na crítica das “leis”, sem registar suas condicionantes constitutivas. Assim se proclama uma intencionalidade “heróica” ou mesmo uma intencionalidade “quotidiana”, cujo tratamento da contradição desemboca na “busca de culpados” (intencionalidades negativas, hostis). O anti-semitismo e o nacional-socialismo, podem ser assim entendidos precisamente como amálgama ideológico irracionalista de metafísica da legalidade e metafísica da intencionalidade.
Na medida em que Marx, desde as Teses sobre Feuerbach, começou a negar a moderna forma de teoria, como reprodução interpretativa da conexão capitalista da forma e de seu carácter contraditório, o autor de O Capital abria o caminho para a crítica categorial. Não obstante, esta crítica não foi tecida, de modo algum, conclusivamente. Assim como a argumentação marxiana em O capital ainda oscila entre teoria da modernização e teoria do fetiche, ela também oscila entre uma metafísica da legalidade interpretativa da teoria da estrutura, na qual é abrigada a “luta de classes” como acção intencional, e uma meta-teoria da acção que tem como alvo a crítica categorial a essa própria legalidade, cuja relevância prática Marx às vezes mencionava como “enorme consciência”. No prefácio de O capital já se pode ler, no sentido positivista de uma reflexão de teoria da estrutura, a referência à “necessidade brônzea” das “leis naturais da produção capitalista” que são comparadas às leis físicas, o que também corresponde à metafísica da história de Hegel virada materialista.
Na mesma medida em que o marxismo do movimento operário e da luta de classes mantinha em chama baixa ou obnubilava por completo a dimensão de crítica do fetichismo da teoria marxiana (e ainda em seu entendimento truncado da Tese sobre Feuerbach) também precisava de reproduzir em si mesmo a unilateralidade interpretativa burguesa de teoria da estrutura e teoria da acção, sendo de notar que a primeira manteve a superioridade durante muito tempo. Na social-democracia marxista, a transformação para além do capitalismo foi cada vez mais objectivada como “lei”. A própria crítica parecia objectivada, parecia “execução da história”: o próprio agir, o entendimento da emancipação social valia como aquilo que havia “de objectivo”, e não como a ruptura da falsa objectividade de “segunda natureza”. Também o entendimento da elaboração ideológica foi assim reduzido a uma “função” de interesses “objectivos”, com características quase de leis naturais, que simplesmente deveriam ser reconhecidos como correctos; uma redução que deveria promover uma terrível vingança com a vitória do nacional-socialismo anti-semita sobre o movimento operário alemão.
A penetração conceptual, em primeiro lugar forçosamente pesada, da problemática contida implicitamente na Tese sobre Feuerbach e até hoje não resolvida talvez possa ficar um pouco mais clara, se tomarmos como pano de fundo histórico aquela visão perante a qual se desenvolveu a interpretação reduzida, no marxismo tradicional e na esquerda. Nessa perspectiva, volto agora ao tema acima mencionado dos perfis de exigência da acção no invólucro da forma do moderno patriarcado produtor de mercadorias. Partindo da retrospectiva crítica proporcionada pela observação da nova qualidade da crise hodierna, o horizonte de acção da esquerda e dos movimentos sociais do passado apresenta-se como o problema da “modernização atrasada [nachholende modernisierung]”.
Com este termo da teoria crítica da dissociação-valor pretende-se referir o conjunto de todas as variantes do marxismo e do movimento operário tradicional na história da modernização capitalista, como elemento e força propulsora desta. Característico do perfil de exigência a isto ligado é o postulado de uma “unidade inseparável” entre teoria e práxis, retirado directamente da Tese sobre Feuerbach. Pretende-se aqui rejeitar a separação estrutural entre a reflexão teórica, como um “interpretar” meramente contemplativo “dos filósofos”, e o agir prático intervencionista. A teoria deverá ser a priori “conectada” e “integrada” na práxis histórica — a ela já pressuposta — da luta de classes, e só a partir daí poderá conseguir a legitimação.
Para esclarecer a problemática deste postulado, é necessário recapitular com brevidade o conceito crítico de “modernização atrasada”. Como já se referiu, não se tratava de romper nem suplantar a moderna constituição fetichista; em vez disso, o esforço emancipatório foi reduzido a uma “luta por reconhecimento” nas categorias da forma do moderno patriarcado produtor de mercadorias, incluindo a relação de dissociação sexual. Foi precisamente nisso que consistiu a práxis histórica da “luta de classes”. Por um lado, tratava-se da imposição de direitos burgueses e de gratificações para os trabalhadores assalariados na qualidade de sujeitos da mercadoria, do dinheiro e da cidadania estatal (direito à greve, direito de voto, liberdade de reunião, melhoria das condições salariais e laborais, medidas de amortecimento no âmbito do Estado social etc.) nos países ocidentais já industrializados. Por outro lado, as revoluções e os movimentos nacionais de libertação da “modernização atrasada” em países da parte oriental e meridional do planeta tinham como meta, com base numa terminologia marxista, a “luta por reconhecimento” como sujeitos nacionais do mercado mundial, independentes e portadores de direitos iguais. Portanto, eram essencialmente “revoluções burguesas atrasadas” (“carácter burguês” aqui não entendido no sentido sociologicamente reduzido, mas como moderna constituição fetichista da dissociação-valor). Há muito tempo que esta conexão vem sendo tematizada na teoria da dissociação-valor (v. por exemplo, Kurz 1991) e é para continuar a ser desenvolvida. Mas não é este o lugar para fazê-lo; trata-se aqui de evidenciar a relevância do esforço emancipatório voltado para uma “luta por reconhecimento” no seio da moderna relação fetichista para o entendimento da teoria e da práxis.
Na medida em que a intenção da “modernização atrasada” do movimento operário ocidental, da “luta de classes” e das revoluções periféricas possa ser decifrada como tratamento da contradição no sentido acima descrito, ela alinha-se na interpretação real do próprio capitalismo; não, porém, como tratamento da contradição “quotidiano”, consuetudinário e institucionalizado, no seio de relações fetichistas capitalistas já inteiramente desenvolvidas, mas sim como tratamento da contradição de certa maneira na história mundial, e interpretação real no contexto do processo ainda não acabado da constituição da Modernidade. Por esse motivo, aqui também não se pode falar de uma simples “pseudo-actividade” no sentido adorniano; pelo contrário, tratava-se da “transformação do mundo” sustentada para toda uma época e voltada para a subjectividade burguesa para as massas, portanto no interior do próprio processo capitalista sobrejacente de transformação do mundo. Era a contradição entre a industrialização capitalista, por um lado, e as formas de direito e de Estado já não adequadas a esta “transformação do mundo” na produção material, por outro; entre o desenvolvimento do mercado mundial, por um lado, e a deficiente formação política das nações instaladas na periferia (em função de sua participação no mercado mundial), por outro. Como último aspecto, fez-se valer o paradoxo de que a ideologia da “luta de classes” se transformou no meio de transporte para a implementação de uma relação social que só então criou, em geral, a pré-condição de si mesma, ou seja, a generalização do “trabalho abstracto”. A consequência disso é bem conhecida: a “classe operária”, como agente da “modernização atrasada”, confrontava-se com a sua própria institucionalização e via-se compelida, por assim dizer, a travar consigo mesma a “luta de classes” de forma estatizada (como teria de ficar à vista nas contradições e movimentos sociais do “socialismo real”).
Uma vez que, neste plano, se fizera a agulha dos esforços de emancipação para um tratamento da contradição imanente na história mundial, teoria e práxis tinham de surgir como “outra interpretação” das categorias capitalistas. Assim, a crítica do capitalismo tornou-se a crítica imanentemente afirmativa, como parte integrante do próprio processo de imposição do capitalismo; a ideia de “socialismo” foi aferida por ela; e precisamente por isso a crítica do fetichismo de Marx foi reduzida ou totalmente obnubilada. O que restou foi, como vimos, essencialmente a corrente de “teoria da modernização” da argumentação marxiana, ao passo que foram eliminados os momentos opostos da crítica categorial ou da “crítica de segunda ordem”, como foi exposto detalhadamente na elaboração teórica da dissociação-valor (cf. Kurz 1999 p. 154-178, p. 237-249, p. 400-403, p. 459-466). Por outro lado, no campo da “práxis teórica” isto provocou uma recaída na dicotomia de interpretação burguesa, de teoria da estrutura e teoria da acção. Por esse motivo, a objectivação da teoria da estrutura ganhou aí forçosamente um maior peso, pois tratava-se realmente da imposição ulterior “interpretada diferentemente” da “segunda natureza” moderna e da sua objectividade férrea. O marxismo da modernização confundia sistematicamente, a partir de sua intenção implícita (que lhe parecia ser a única crítica imaginável do capitalismo), a interpretação real das categorias capitalistas, no seu processo de desenvolvimento na história mundial, com a suplantação do carácter interpretativo da teoria em geral, quando a teoria marxista fora, na realidade, degradada a fornecedora de interpretações para a “modernização atrasada”.
O marxismo do movimento operário e os marxismos do Leste e do Sul do capitalismo de Estado da “modernização atrasada”, nesta constelação histórica, reportavam-se veementemente às “leis sociais e históricas”, tal como Marx supostamente as tinha descoberto; o momento crítico oscilante do próprio Marx neste processo, ou seja, a abordagem com a crítica radical de uma sociabilidade que se move em forma de leis pseudo-naturais, foi riscado no contexto da funcionalização da teoria da modernização e tornado irreconhecível em benefício de um positivismo das categorias objectivadas. No âmbito da actividade científica “do socialismo real”, que não passava (como tudo o mais) de um estereótipo estrutural das respectivas instituições burguesas apostrofado com o adjectivo “socialista”, esse entendimento positivista foi recebido por gerações de “cientistas socialistas” em fórmulas francamente rituais sobre as “leis objectivas” da economia e da história. Assim dizia um popular manual soviético sobre Leis objectivas e direcção científica da sociedade: “As leis do desenvolvimento social foram descobertas e formuladas pela primeira vez na história do pensamento humano pelos clássicos do marxismo-leninismo... Tal como as leis naturais (!), estas leis expressam determinados contextos e relações” (Jermolajew 1973, p. 30).
Também não é melhor a argumentação sobre o tema formulada pelo cientista-vedeta da RDA, Jürgen Kuczynski. Em seu tratado sobre “leis sociais”, louva os fundadores da economia política burguesa precisamente pelo facto de terem reconhecido as “leis naturais” da reprodução (económica), incluindo todo o posterior desenvolvimento capitalista: “A lei económica é tão perspicaz, clara e inflexível em seu efeito como uma lei da natureza. Pois, se alguém se lhe opõe, ela derruba o adversário — ora de uma maneira, ora de outra... É como uma lei natural que se impõe em todas as circunstâncias — ainda que não seja tão claramente reconhecível” (Kuczynski 1972, p. 10). Aquela intencionalidade humana em relação às próprias relações tem de surgir assim como a mera “execução” de objectivações; um tal pensamento compreende a “... participação das pessoas de certo modo como factor objectivo (!) — e também como factor subjectivo que fomenta ou impede conscientemente a imposição das leis” (id., p. 12). A intencionalidade reduz-se, portanto, a uma simples função de princípios pressupostos que funciona, mais ou menos, de acordo com o grau de compreensão da “legalidade”. Esbate-se expressamente em grande medida a diferença entre natureza e sociedade: “Distinguimos entre leis da natureza e leis da sociedade — sem termos o direito, todavia, de exagerar essa diferença” (id., p. 14).
Com este arrazoado, Kuczynski pode invocar Engels que, em seu ensaio Ludwig von Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, também positivara a analogia com a natureza: “Dessa forma, os choques entre as inúmeras vontades e acções individuais produzem no domínio histórico um estado que é inteiramente análogo ao que reina inconscientemente na natureza... Mas onde o acaso joga à superfície, sempre será dominado por leis internas e ocultas, e a única coisa que interessa (!) é descobrir essas leis” (Engels, 1969, 1ª ed. em 1886, p. 56). Pelo menos o Marx do capítulo do fetiche deixa entrever que, pelo contrário, o que interessa é romper, seja como for, estas leis e consequentemente a “legalidade” objectivada da sociedade, pois o “descobrimento” delas deveria então coincidir com a crítica a um tal estado de coisas, caracterizado pelo facto de as pessoas não “governarem” a sua própria conexão social (não é por acaso que Marx menciona isto por analogia com a metáfora do “mestre-de-obras”). Aqui Engels é realmente “marxista” naquele sentido em que Marx não o queria ser, pelo menos aquele “outro” Marx da crítica do fetichismo para além da teoria da modernização.
Não obstante, é de certo modo surpreendente que Engels aqui fundamente o seu “estruturalismo” ontologizante (o objectivo claro da formulação é que devesse ser “sempre” assim) de forma extremamente intencional e com base na teoria da acção. Em primeiro lugar, ele não se refere de modo algum a “leis naturais” a priori da sociedade, mas ao facto de “leis ocultas” só surgirem a partir do “choque” das “acções individuais” intencionais, como resultante destas, portanto, a partir de “acção coagulada”. Tal resultante deverá, porém, acarretar um “estado inconsciente análogo à natureza”. Aqui já se desvanece a oposição imanente entre o modo de proceder da teoria da estrutura e o da teoria da acção, tal como se deveria repetir em toda a elaboração teórica posterior em variantes sempre novas, embora a problemática tenha sido elaborada depois com mais clareza do que na formulação “ingénua” de Engels, sem que, todavia, pudesse ser resolvida. Engels aqui só mostra que pensa sem qualquer quebra na moderna forma da teoria.
E, pese embora a fundamentação realmente na teoria da acção, o resultado pode ser incorporado bem candidamente (não apenas em Kuczynski) na determinação pela teoria da estrutura de um entendimento quase científico-natural, sem se falar de meras “institucionalizações” da “acção coagulada”, mas de “leis” mesmo, as quais apenas ainda precisariam de ser “descobertas” e depois “aplicadas”. É o que também já acontece no escrito de Engels Do socialismo utópico ao socialismo científico, onde se diz a respeito do futuro socialismo: “As pessoas então utilizarão (!), com total conhecimento da matéria, e consequentemente dominarão as leis que regem a sua própria acção social, com as quais se têm defrontado até ao momento como leis naturais estranhas e que dominam estas mesmas pessoas” (Engels 1976, escrito em 1880, p. 226). Aí não se anuncia, portanto, a suplantação da “segunda natureza”, mas a “utilização de suas leis”, não se anuncia a crítica da objectivação, mas a sua “dominação” através de “conhecimento” positivo “da matéria”. Passados quase 20 anos da primeira publicação de O capital de Marx, Engels continua obviamente sem ser tocado pela compreensão da constituição fetichista da história e alegremente ontologizado à toa, ao não determinar o “choque” das “acções individuais” intencionais e a resultante objectivada destas como modo de vida especificamente capitalista-moderno, declarando, pelo contrário, tal resultante objectivada como “lei natural” universalmente válida, também para todo o futuro.
Assim não se deve apenas à constituição “do socialismo real” nas categorias fetichistas modernas não-suplantadas, mas também já se deve ao próprio marxismo do movimento operário no horizonte da modernização do século XIX, que Kuczynski em parte ontologize, em parte historize a “legalidade social”, sem conseguir criticá-la enquanto tal: “As leis da sociedade em parte têm efeito eterno (!), são comuns a todas as sociedades, e em parte têm efeito por um breve espaço de tempo, em geral determinado pela duração de uma formação social específica” (id., p. 16). O que deverá ser “eterno” é, obviamente, sobretudo a categoria da substância capitalista, o “trabalho”, a cuja abstracção nominal, como princípio trans-histórico, se agarrou a ontologia marxista do trabalho, extinguindo assim até o teor crítico radical do conceito marxiano de “trabalho abstracto”. Se o “trabalho” ontologizado no marxismo do movimento operário do século XIX ainda fora pensado na perspectiva de uma suplantação meramente abstracta e positivista da forma do valor (justamente em Engels, por exemplo no Anti-Duhring), nas relações de reprodução “do socialismo real” até a forma fetichista do valor surgia, consequentemente, como princípio ontológico. A intencionalidade do planeamento, que supostamente se estendia para além do capitalismo, foi reduzida à moderação e ao “comando” da burocracia estatal ou à “utilização consciente” das categorias fetichistas não-suplantadas; um contexto que, logicamente, mais uma vez foi interpretado como “lei” de uma espécie de “socialismo das abelhas”.
Partindo deste contexto, agora também fica claro por que e como a respectiva interpretação da Tese sobre Feuerbach pôde levar ao postulado de uma “unidade” a priori “entre teoria e práxis” no marxismo do movimento operário. Isso era inevitável, pois, no contexto da “modernização atrasada”, como tratamento da contradição na história mundial, a unidade capitalista paradoxal entre “práxis teórica” e “práxis prática”, como identidade negativa de forma da acção e forma do pensamento, tinha de ser reproduzida na continuidade da “ciência burguesa”, precisamente em sua separação. É parte constituinte da essência de toda a “cientificidade” moderna o facto de ela levar a natureza transformada em objecto à forma de “leis”, transpondo estas para a própria sociabilidade real objectivada. O “socialismo científico” suplantou o pensamento utópico apenas no sentido da “crítica afirmativa” da teoria da modernização. Ali onde volta a ser objecto de um pensamento por ela constituído, a sociabilidade fetichistamente objectivada reproduz-se na “práxis teórica”.
O postulado de unidade a priori entre teoria e práxis mais não podia ser, portanto, do que a vinculação da teoria (marxista) às categorias e aos critérios da matriz ontológica, às supostas “leis naturais” de sociabilidade ontológica e histórica, que se moveram para um estatuto trans-histórico ou, em todo caso, não criticável por um tempo inimaginável. Mas, se a crítica categorial deixar de existir, também deixará de existir a tensão entre teoria crítica e “contrapráxis” imanente na resolução das contradições capitalistas, já que o mesmo a priori é determinante de ambos os lados. Dessa maneira, o postulado da “unidade inseparável” entre teoria e práxis reflectia apenas a ênfase especial que as intenções da “modernização atrasada” e da “luta por reconhecimento”, como “segunda volta” da constituição capitalista, precisavam de dar à execução consciente das “leis”. Isso deixa claro que o postulado desagua precisamente no contrário da Tese sobre Feuerbach, na medida em que esta seja entendida no sentido da crítica categorial.
No desenvolvimento histórico do movimento operário e da “modernização atrasada”, essa ligação e essa “prisão” da teoria na identidade objectivadora de forma da acção e forma do pensamento figuravam como o célebre “primado da política”. A elaboração teórica era subordinada às “exigências políticas” do tratamento prático da contradição, tal como elas resultaram dos processos de juridificação, formação do Estado e da nação. A “luta por reconhecimento”, como sujeitos do direito e do Estado, e por auto-afirmação nas formas de “trabalho abstracto”, mercadoria, dinheiro e dissociação tornou-se o politicismo relacionado com o Estado, sob a forma de cujo telos surgiu a “formação do Estado” da classe operária, da libertação nacional etc. As supostas “leis próprias” do socialismo assim entendido na verdade deveriam consistir em nada mais que “planeamento” e “comando” das próprias categorias básicas.
Com isso a “questão do poder” passou para o centro, entendida como canalização política dos esforços de emancipação, para chegar às “alavancas de comando” do poder estatal. As diferenças entre democratismo social ocidental e leninismo oriental aconteceram no seio deste paradigma; e, se o foco de interesse estiver voltado para a sua crítica histórica, tais diferenças podem ser amplamente ignoradas. Em ambos os casos, a “forma política” burguesa, enquanto forma de tratamento da contradição, tornou-se a instância central da “transformação do mundo”, para submeter as categorias ontologizadas do moderno patriarcado produtor de mercadorias “diferentemente interpretado” a uma regulação político-estatal supostamente amigável para com as pessoas, sem suplantar as categorias enquanto tais. Como movens desta instância política interposta, figurava o partido político (partido operário, partido do trabalho etc.).
A “prisão” da teoria crítica na reprodução teórica interpretativa das relações fetichistas surgia, por isso, como a sua inclusão na forma da política, e o postulado da “unidade inseparável” a priori entre “teoria e práxis”, como a submissão externa, institucionalizada, da “práxis teórica” à “práxis política” do partido, tal como sinalizava o famigerado slogan “o partido tem sempre razão”. A elaboração teórica perdia o carácter crítico e o valor próprio; a “práxis teórica”, tal como a “contrapráxis”, era reduzida a uma “militância partidária”, a um “partidarismo” em sentido bem cruamente politicista no contexto do tratamento da contradição imanente. Ela transformava-se, abandonava a elaboração teórica crítica e voltada para o todo da socialização capitalista negativa, para ingressar na mera teoria da legitimação de uma acção “política” externa, pré-estabelecida; e, por conseguinte, para ingressar na justificação teórica da respectiva “linha de partido”, numa função de razão de partido.
Enquanto teoria da legitimação da “modernização atrasada”, a “práxis teórica” do marxismo teve de coagular numa forma historicamente específica de “práxis ideológica”. Todo o pensamento imanentemente teórico, continuado até aos limites da forma da teoria interpretativa, sempre voltava a ser tolhido administrativamente, por ironia precisamente em nome da Tese sobre Feuerbach, como ficou claro, por exemplo, na capitulação de Georg Lukács perante a pretensão partidária. O marxismo da “modernização atrasada”, que se restringia à corrente da teoria da modernização da argumentação marxiana, era um “marxismo de partido” para o qual a via da crítica categorial permanecia vedada. A saída desta constelação estava pré-programada como colapso da legitimação ideológica, logo que todo o sistema global do moderno patriarcado produtor de mercadorias começasse a esbarrar no seu limite interno absoluto na 3ª Revolução Industrial.
Como “forma de consciência reificada”, a “práxis teórica” do marxismo de partido de diferentes tendências era uma forma de “razão instrumental” (Horkheimer 1985, 1ª ed. 1947). Em nome do postulado da práxis de uma “transformação do mundo” categorialmente imanente, a “práxis teórica” foi transformada num mero instrumento para fins pré-estabelecidos a priori, os quais, em si, já não podiam ser submetidos a qualquer reflexão. Essa redução da teoria a relações pré-estabelecidas de meio e fim é o resultado inevitável de todo o pensamento na moderna forma de teoria, que sempre se extingue no positivismo, no qual sempre se extingue a dicotomia existente entre reflexão com base na teoria da estrutura e reflexão com base na teoria da acção, caso não seja transformada em crítica categorial. Precisamente como “ciência positiva” (institucionalizada) com a marca de Engels, o marxismo de partido teve de fazer o caminho de toda teoria burguesa, como refere Horkheimer no prefácio da edição alemã da sua Crítica da Razão Instrumental: “A razão vem a si ao negar-se a própria qualidade absoluta de razão em sentido enfático, entendendo-se apenas como mero instrumento” (Horkheimer 1967).
Mas em que sentido a “razão”, entendida como pensamento reflexivo, se torna “mero instrumento” na Modernidade? O carácter instrumental resulta do carácter interpretativo da forma da teoria, na medida em que esta se torna a já referida fornecedora de ideias para a interpretação real do capitalismo, o tratamento da contradição e a transformação interpretativa do mundo, como “competência” positivista. O fornecimento de padrões de interpretação para o handling da matriz a priori e de sua autocontradição em processo é per se instrumental para um fim pressuposto a priori, o processo de fim em si mesmo da relação de dissociação-valor. Deve-se fazer uma distinção analítica entre isto e o carácter legitimatório da “razão” para esse fim em si mesmo enquanto tal que, porém, é igualmente interpretativo e consequentemente instrumental, num outro nível da reflexão, a saber, no nível da constituição desta relação. Em sua reprodução teórica meramente interpretativa, contudo, não se pode reconhecer a “reflexão” dessa relação, pois tal significaria tornar a relação fetichista enquanto tal objecto do pensamento, o que geralmente apenas é possível como crítica deste objecto. Todavia, uma vez que reproduz este objecto como forma de pensamento / modo de pensamento e conceptualidade, e assim podendo ser em si apenas legitimatória, a forma da teoria moderna permanece instrumental também ao nível da constituição. Por essa razão, na “práxis teórica” como parte integrante das relações de reprodução, fundem-se o momento fundamentalmente legitimatório e o momento positivista-interpretativo continuado. Aqui também fica claro que toda a relação de “utilização” ou “transformação” da teoria faz parte per se da interpretação real do capitalismo e consequentemente possui per se carácter instrumental, pois “utilização” sempre pressupõe leis quase naturais a serem reconhecidas.
Com o seu conceito de “razão instrumental”, Horkheimer vai ao ponto nevrálgico do problema, embora ele mesmo não chegue de modo algum a uma crítica categorial da moderna constituição fetichista. Na verdade, ele tematiza o problema muito na generalidade: “Este tipo de razão pode ser chamado de razão subjectiva. Esta tem a ver essencialmente com meios e fins, e também com a adequabilidade de modos de procedimento a objectivos mais ou menos aceites e que supostamente se entendam por si sós. A ela pouco importa se os objectivos enquanto tais são razoáveis” (Horkheimer 1985, 1ª ed. em 1947, p. 15; itálico de Horkheimer). Mas Horkheimer permanece na determinação superficial de uma relação de meio e fim, sem olhar para a “natureza” histórica ou para a essência daqueles objectivos ou fins “aceites”, sem analisar seu estatuto categorial como matriz a priori da reprodução, e sem indagar por que motivo a “razão”, enquanto “razão subjectiva”, é degradada, nessa constituição de pensar e agir, à condição de mero instrumento de um fim cegamente pressuposto.
Horkheimer falha a crítica categorial ou “crítica de segunda ordem” porque declara o outro lado da mesma relação, a mera reprodução afirmativa da falsa objectividade, como “razão objectiva”, a qual “alguma vez” teria servido de base a toda filosofia e agora estaria positivistamente liquidada: “Grandes sistemas filosóficos, tais como os de Platão e de Aristóteles, a escolástica e o idealismo alemão, tiveram seu fundamento numa teoria objectiva da razão. Seu objectivo era desenvolver um sistema abrangente, ou uma hierarquia de todo o ser, inclusive o ser humano e seus fins. O grau de razoabilidade da vida de um ser humano podia ser determinado conforme sua harmonia com essa totalidade. Sua estrutura objectiva, e não apenas o ser humano e seus fins, deveria ser o critério de todas as ideias e acções individuais” (Horkheimer, id., p. 16). Por um lado, aqui é unificada trans-historicamente uma filosofia de “razão objectiva” que, apesar de todos os momentos de continuidade, pertence a constituições históricas totalmente distintas, e confrontada abstractamente com o positivismo e o pragmatismo da “razão instrumental” subjectiva. Por outro lado, deixa-se de considerar que aí sempre se tratava da (respectiva) “razão objectiva” de relações fetichistas, tratando-se na Modernidade da reprodução teórico-filosófica da falsa objectivação destas relações num pensamento objectivador.
Ao constatar que “esse conceito de razão” nunca teria “excluído” a “razão subjectiva”, mas tê-la-ia determinado como “expressão restrita de uma razoabilidade abrangente” (id. p. 16), Horkheimer apenas designa o dilema de matriz e intencionalidade a prioriinscrito em todo pensamento e acção fetichistamente constituídos, dilema que é reproduzido idealmente na moderna dicotomia de teoria da estrutura e teoria da acção. E quando ele aponta que o postulado de “razão objectiva” ainda estaria voltado para determinar reflexivamente os próprios objectivos e fins, em vez de pressupô-los cegamente e de “formalizar” instrumentalmente o pensamento, Horkheimer está a esquecer que aí, do ponto de vista histórico, se tratava precisamente da reprodução afirmativa da objectivação fetichista, como “fim enquanto objectivo”, reprodução à qual a intencionalidade designada como “razão subjectiva” deveria estar submetida. A diferença apresentada por Horkheimer consiste simplesmente no facto de que só na constituição e imposição histórica das relações fetichistas modernas a própria “objectividade” destas foi justificada e postulada como “razão objectiva”, ao passo que, com a continuação, elas puderam ficar consolidadas com a quotidianidade pressuposta de “trabalho e vida”, cuja reflexão ulterior tinha de parecer desnecessária e até mesmo perigosa.
De certo modo Horkheimer faz menção disso, mas no tocante ao contexto interno e de modo não-crítico: “No fundo, a actual crise da razão consiste no facto de o pensamento, num determinado nível, ou ter perdido a capacidade de conceber uma tal objectividade em geral, ou ter começado a contestá-la como se ela fosse uma ilusão” (id., p. 18). Pois bem, na verdade é precisamente isto: ao longo do seu processo de imposição, a reflexão meramente reprodutora da objectividade fetichista como “razão objectiva” extingue-se na medida em que se “realiza” como transformação capitalista do mundo; e a reflexão continuada neste nível é contestada “como ilusão”, exactamente porque já não se pode dar um abanão na razão moderna constituída como relação fetichista, porque já é pressuposta como “necessidade natural” e como “lei objectiva”. Isso é assim precisamente porque não se tratava de uma “concepção” livre e sem pressupostos, no sentido do “mestre-de-obras”, mas da legitimação ideal de um processo de constituição essencialmente cego, em cuja forma de percurso esse pensamento legitimatório na verdade ingressou activamente, mas não no sentido de se constituir um pressuposto para as concepções intelectuais. É precisamente por essa razão que o próprio pensamento objectivador, em sua identidade formal com o agir constituído fetichistamente, “veio a si” agora como “razão instrumental”, como simples meio para o “fim” da reprodução das ideias outrora ainda carecido de “auto-certificação”.
Horkheimer ainda pretende entender o dilema no sentido do conceito de Dialéctica do Iluminismo, de certo modo como nostalgia iluminista: “Destinar à razão uma tal posição subordinada está em clara contradição com as ideias dos precursores da civilização burguesa, dos representantes intelectuais e políticos da classe média ascendente, que declaravam unanimemente que a razão desempenha um papel dirigente na conduta humana” (id., p. 20). Mas o resultado não pode ser medido nos seus próprios pressupostos, nem o efeito positivista e pragmático pode ser criticado em nome da “razão objectiva” que é a sua própria causa. Isso ainda fica mais claro quando Horkheimer começa a entoar uma apologia trivial de Kant: “Na verdade, seria cometer uma injustiça contra Kant, caso se quisesse responsabilizá-lo por esse desenvolvimento. Ele tornou o conhecimento científico dependente de funções transcendentais, não de funções empíricas. Não liquidava a verdade equiparando-a às acções práticas de verificação, nem ensinava que o significado e o efeito são idênticos. Em última instância tentou estabelecer a validade absoluta de determinadas ideias per se, ou seja, em função delas próprias” (id., p. 49 s.). Mas a transcendentalidade de Kant é precisamente a cifra filosófica para a relação de dissociação-valor, e essa “verdade” negativa na realidade não podia ser equiparada “às acções práticas de verificação”, não podia ser determinada como meio para outra coisa, mas apenas como o fim supremo, como fim em si “do sujeito automático”. A “verdade” kantiana reproduz idealmente a “validade absoluta” da moderna constituição fetichista, isto é, o significado desta que teve de ser “estabelecido” e que não podia ser idêntico ao mero “efeito” prático. O sujeito da transcendentalidade kantiana inclui a “razão objectiva” da matriz a priori e a “razão subjectiva” do pensar e do agir por ela constituídos. Nessa medida, Kant bem pode ser “responsabilizado por esse desenvolvimento”, ou seja, pode ser co-responsável pela fundamentação da reprodução deste na “práxis teórica”. As suas duas críticas formam o padrão filosófico de toda a crítica afirmativamente imanente desde então, na qual se representam a relação e a contradição em processo de “funções transcendentais e empíricas”, como tratamento histórico da contradição.
É a moderna dialéctica sujeito-objecto, que em Kant surge pela primeira vez inteiramente bem trabalhada, isto é, a objectivação do mundo como interpretação ou transformação capitalista do mundo e a auto-objectivação dos sujeitos constituídos por ela; a “forma sujeito” burguesa constitui a “razão subjectiva” como agente da “razão objectiva” capitalista e, consequentemente, como instrumento ou meio desta para os padrões de acção pré-estabelecidos da matriz a priori. De certo modo, Kant pensou até ao fim o positivismo e o pragmatismo, precisamente por já pressuporem o carácter absoluto dos seus postulados, que acabaram por se tornar a “coacção muda” prática. Para a crítica categorial, não interessa opor a glória da sua própria constituição como “razão objectiva” à “razão subjectiva” instrumental como suposta forma de decadência. Pelo contrário, interessa libertar a própria intencionalidade social da “razão objectiva”.
Todavia, isso só é possível se a intencionalidade, por sua vez, não tiver de ser imediatamente mobilizada na constituição fetichista obnubilada, tal como já surge também no positivismo e no pragmatismo, e tal como é constatado por Horkheimer, sem que ele possa descortinar a razão disso: “No aspecto formalista da razão subjectiva, como é ressaltado pelo positivismo, é realçada a sua falta de relações com um conteúdo objectivo; em seu aspecto instrumental, como é enfatizado pelo pragmatismo, é sublinhada a sua capitulação perante conteúdos heterónomos. A razão está totalmente atrelada ao processo social” (id., p. 30). A obnubilação da constituição fetichista positiviza as categorias, o que aparece então, paradoxalmente, como falta de relações de intencionalidade com um conteúdo objectivo ainda susceptível de reflexão, conteúdo que já assumiu a obviedade de uma base natural; e, no pensamento e na acção instrumental de proveniência pragmática, a heteronímia desse conteúdo objectivo torna-se a condição prática, o critério do “sucesso”.
Uma libertação da intencionalidade já significaria confrontá-la com sua degradação e prisão à “razão objectiva” da constituição fetichista, e ter como meta o rompimento desta jaula. Decidir sobre o emprego dos recursos sociais comuns conforme as necessidades, seria exactamente o contrário de uma absolutização da “razão objectiva”, e também já não seria qualquer “razão subjectiva” que ainda implicasse a sua própria objectivação. Horkheimer gostaria de libertar de seu carácter instrumental a “razão subjectiva” enquanto tal, precisamente ao evocar mais uma vez a constituição objectiva da própria razão subjectiva e ao declará-la como remédio, quando na realidade se trata das duas faces de uma mesma relação que no processo histórico se fundiram entre si e que por essa razão esconderam o seu carácter instrumental conjunto. Se esta problematização em Adorno ainda se manteve até ao fim em aberto, em Horkheimer fechou-se completamente.
Ironicamente, a metafísica da legalidade do marxismo do movimento operário e do “socialismo real” parece-se com a “razão objectiva” de Horkheimer legitimada em Kant, a ponto de ambas se confundirem e terem até as mesmas raízes. De certa maneira, a intenção de “modernização atrasada” tinha de fundamentar reprodutivamente em todas as suas facetas precisamente aquela “razão objectiva” com terminologia marxista; onde, não por acaso, a “herança” do Iluminismo desempenhava um papel importante, como apontava Kuczynski, por exemplo, em relação às “leis sociais”. Mas como a “modernização atrasada” já aconteceu num alto nível de desenvolvimento do moderno patriarcado produtor de mercadorias, do mercado mundial e da industrialização, surgiu simultaneamente, por assim dizer no mesmo fôlego, a “razão instrumental” já apoiada no tratamento interpretativo da contradição, e precisamente sob o postulado da “unidade inseparável entre teoria e práxis”: portanto, na expressão de Horkheimer, de certo modo como unidade entre forma de constituição e “forma de decadência”.
A “unidade” entre razão objectiva e subjectiva na forma de mediação político-estatal também balançava para a teoria da acção, quando por vezes a intencionalidade política era tão enfatizada e tão malbaratada, como se pudesse comandar e modelar a seu bel-prazer (como um falso “mestre-de-obras”) as categorias fetichistas não-suplantadas. Não obstante, essa oposição imanente em relação à metafísica da legalidade da teoria da estrutura depressa fracassou. O debate sobre reforma, ao longo de décadas, no “socialismo real” e em outros regimes de “modernização atrasada” foi marcado pela sucessiva capitulação perante a “coacção muda” das pseudo-“leis naturais” das relações sociais, que se faziam valer mediante a matriz a priori. Dessa maneira, a referência de Kuczynski à “inflexibilidade” da “lei económica” revelou-se como self-fulfilling prophecy [profecia de auto-cumprimento]. “Ela sempre derruba o adversário”, logo que seja reconhecida como matriz a priori. Por isso a “unidade inseparável entre teoria e práxis” do marxismo de partido conseguiu, quase sem interrupção, dissolver-se no capitalismo planetário de crise, numa variedade “de trazer por casa”.
No entender da crítica radical, com isso se encerrou praticamente a interpretação reduzida da Tese sobre Feuerbach. Teoria como “manual de instruções”, o postulado de uma “utilização” ou “realização”, de uma “fusão” a priori com qualquer tipo de práxis, é, per se, razão instrumental; onde houver “instruções de uso”, tratar-se-á apenas de tratamento capitalista da contradição, cujo espaço de acção já perdeu a sustentabilidade histórica. Com isso se encerrou também, ao mesmo tempo, toda a evocação da “razão objectiva” como suposta oposição, a qual na verdade fora a primeira a programar esta marcha das coisas e que, sob as novas condições de crise, só pode repetir a mesma queda a um ritmo cada vez mais acelerado.
Na crítica de esquerda do capitalismo, produziu-se na segunda metade do século XX (já havia rudimentos desde o período entre as duas guerras) uma cisão, ou pelo menos uma diferenciação, que foi muito mais importante do que o cisma ostensivo no seio do marxismo de partido, entre a social-democracia e os bolcheviques. Para a periferia global, o processo de “modernização atrasada” permaneceu determinante até ao seu colapso na 3ª Revolução Industrial. As contradições do “socialismo real” do Leste e dos regimes de desenvolvimento “de revolução nacional” nos países do Sul foram sustentadas no horizonte ideológico das ideias de transformação tradicional pelos “partidos operários” que se tinham tornado Estados. O marxismo-leninismo dogmaticamente paralisado foi-se esboroando sob a pressão da práxis económica das “leis” da produção moderna de mercadorias e do mercado mundial, voltado para concessões tecnocráticas sucessivas feitas à lógica e à dinâmica próprias das categorias reais capitalistas não-suplantadas, até que a fachada ideológica se desfez repentinamente em fumo no ponto de viragem de 1989. Quase da noite para o dia, os dogmáticos marxistas-leninistas de fachada mudaram de pele, para neoliberais igualmente dogmáticos, só que no terreno de regimes mafiosos em colapso, nas paisagens em ruínas da “modernização atrasada”.
Nos países ocidentais desenvolvidos no capitalismo, pelo contrário, o impulso de modernização do movimento operário tradicional já começara a esgotar-se a partir da Primeira Guerra Mundial. E, após a derrota contra o fascismo e o nacional-socialismo, fazia-se notar uma total desmoralização das respectivas ideias de transformação. No fordismo do pós-guerra, a função de modernização passou então, em larga escala, do movimento operário tradicional e de seus aparelhos partidários para o Estado de regulação keynesiana, no qual sindicatos e partidos operários foram integrados corporativamente, já sem serem vanguarda histórica. A social-democracia transformava-se no sistema de partidos do “povo”, o comunismo de partido social-democratizava-se, e os funcionários do paradigma do marxismo de partido ingressavam em grande parte na “classe política” do patriarcado produtor de mercadorias.
A erosão do marxismo de partido apresentou-se, portanto, de forma singularmente oposta no socialismo real do Leste e do Sul e no Ocidente. Os regimes “socialistas” (capitalistas de Estado) “de modernização atrasada”, que só então passaram a implantar socialmente o “trabalho abstracto” e as modernas relações de “dissociação-valor”, tiveram de debater-se, ao longo desse processo, com as contradições da “economia política” não suplantada. Por esse motivo, o seu tratamento da contradição específico permaneceu até ao fim acoplado àquela metafísica da legalidade com características quase de ciências naturais e mediada pela teoria da estrutura (no sentido amplo introduzido acima), de modo que esses países, consequentemente, acabaram por desembocar “de acordo com as leis” no capitalismo de crise global. Todavia, nos países ocidentais “trabalho abstracto” e relações de dissociação-valor há muito tempo já se tinham tornado a “base natural” da sociedade; desde o início que as funções de “modernização atrasada” do movimento operário e do marxismo de partido aqui se tinham limitado ao nível jurídico-político do tratamento da contradição, no sentido de “luta por reconhecimento” (incluindo os campos de acção nos sindicatos e no Estado social); ou seja, estavam reduzidas, na terminologia truncada e mecanicista do materialismo histórico, à “superstrutura”. Nesta linha se moveu também o processo de erosão ideológica no Ocidente.
Na senda da extinção da função de modernização imanente a partir da Primeira Guerra Mundial, desenvolveu-se, primeiramente ainda no âmbito do marxismo de partido em erosão, uma formação ideológica chamada marxismo ocidental. Apesar de todas as distinções e diferenças internas, sobre as quais não é possível pormenorizar aqui, havia um aspecto caracterizador comum. Para o marxista inglês Perry Anderson, como observa em seu ensaio sobre o tema, era “o silêncio intencional do marxismo ocidental sobre aqueles domínios que tinham estado no centro das tradições clássicas do materialismo histórico” (Anderson 1978, 1ª ed. em inglês 1976, p. 71). Em primeiro lugar ele menciona a “análise das leis do movimento económico do modo de produção capitalista” (id.).
Na realidade, no marxismo ocidental fazia-se valer uma tendência de sucessivo abandono da crítica da economia política em sentido estrito. Passada a época das guerras mundiais e da crise económica mundial, extinguiam-se no Ocidente os grandes debates marxistas sobre a teoria da acumulação e da crise, sobre a “teoria económica” da transformação e do socialismo/comunismo; nestas questões só restavam ainda combates esporádicos de retaguarda sem grande importância. Tal evolução era acompanhada externamente pela prosperidade fordista do pós-guerra no Ocidente, que empurrou aqueles questionamentos para segundo plano. Esse bloco ideológico continua a produzir efeito até hoje, na crise mundial da 3ª Revolução Industrial, como “crença” da esquerda na capacidade imanente do capitalismo para se auto-eternizar. Naturalmente, o pavoroso desenvolvimento do “socialismo real”, incluindo o seu colapso, também contribuiu para obscurecer os velhos paradigmas.
O sub-reptício abandono dos “duros” questionamentos político-económicos e consequentemente da problemática da forma social básica em geral seguia, sobretudo, a lógica interna do próprio marxismo ocidental da modernização, na sua limitação à esfera jurídico-política do tratamento da contradição, em cujo âmbito se inscrevia também o seu entendimento truncado da crítica da economia política. Daí advém também o fracasso da “revolução” no Ocidente que, nesse sentido, era desprovida de objecto. Não havia quaisquer critérios para a revolução nem para a transformação de um sistema já desenvolvido de “trabalho abstracto” no contexto do paradigma da modernização imanente, ou seja, do tratamento da contradição no sentido da ideologia da luta de classes.
A viragem do marxismo ocidental foi preparada e fundamentada pela chamada “filosofia da práxis”, também designada “pensamento da práxis”, “conceito de práxis” ou “teoria da práxis”; um conceito que é representado, em diferentes aspectos, principalmente por Ernst Bloch e Antonio Gramsci, e que se efectivou de modo multifacetado. Em primeiro lugar, de modo bem marxista tradicional, “filosofia da práxis” significava reivindicar como objecto da elaboração teórica, em oposição externa à reflexão meramente “histórico-espiritual”, as relações de vida e de reprodução “verdadeiras” ou “materiais”, visando a intervenção prática. Esse é, certamente, um entendimento iniludível do “materialismo histórico”, formulado por Marx e Engels pormenorizadamente na Ideologia Alemã. E note-se que esta obra constituiu-se, ao lado das Teses sobre Feuerbach, na referência central dos filósofos da práxis. Mas assim foi amplamente obnubilida a constituição fetichista da “verdadeira” práxis da vida ou da “actividade da vida sensível” (Teses sobre Feuerbach), cujo conceito também ainda não estava de modo algum presente na Ideologia Alemã e só surge em Marx com “O capital” e seus trabalhos preparatórios. Por conseguinte, à semelhança do que acontece no marxismo de partido clássico, também se evidenciou o mal-entendido ainda ancorado nas próprias Teses sobre Feuerbach, que hipostasia de forma não-crítica a “actividade humana sensível” e a toma como campo indeterminado da “práxis” por excelência.
Mas o que havia mesmo de novo na “filosofia da práxis” do marxismo ocidental? Com sua interpretação específica das Teses sobre Feuerbach e da Ideologia Alemã, a filosofia da práxis pretendia retirar do conceito de práxis um paradigma transformado. A teoria marxiana em sentido amplo surgia aí num alto nível de abstracção como “filosofia da práxis” (do agir social) por excelência, cujo carácter teria sido até então mal interpretado. Essencial para a nova interpretação era o entendimento de que o agir deveria ser libertado do determinismo que dominara até então. Assim se expressou, por exemplo, Gramsci nos extensos Cadernos do Cárcere: “No que concerne à função histórica exercida pela concepção de fatalismo da filosofia da práxis, poder-se-ia proferir aqui um necrológio... A morte do ‘fatalismo’ e do ‘mecanicismo’ marca uma grande viragem histórica” (Gramsci 1994, 1ª ed. em italiano em 1975, escrito em 1932/35, p. 1392 s.) Com isso se proclamava um movimento de desengajamento do marxismo ocidental em relação à metafísica da legalidade até então vigente. Todavia, o problema da “legalidade” do desenvolvimento social não foi transformado em crítica categorial da constituição fetichista histórica, mas sim arquivado. Em seu lugar, o conceito de “práxis” começava então uma nova carreira, que provocaria uma transformação totalmente ilusória e por maioria de razão bem afirmativa do pensamento marxista tradicional.
Para o novo entendimento tornou-se fulcral o conceito de “economismo”. Na opinião dos “filósofos da práxis”, o marxismo até então vigente teria dado uma exagerada ênfase mecanicista ao papel determinante “da economia”. Mas essa crítica também estava ligada ao abandono da crítica da economia política em sentido estrito, constatado mais tarde por Perry Anderson (que, por sua vez, segue uma argumentação mais tradicional). Realmente pode-se ligar o “economismo” marxista clássico à ideia de que o desenvolvimento da acumulação de capital foi entendido equivocadamente como determinismo histórico imediato, na sua relação com a “economia” empírica e, na maioria das vezes, complementado pela “luta de classes” a ela acoplada. Engels já tentara uma correcção desse economismo mecanicista, ao determinar “a economia (objectiva)” como um “factor” que só seria determinante “em última instância”, mas que seria modificado e transformado nas formas de percurso real, mediante desenvolvimentos (subjectivos) políticos, ideológicos e culturais etc. Todavia, essa correcção era pouco profunda e compartilhava, no fundo, os falsos pressupostos. Isso devia-se principalmente ao facto de o problema da moderna constituição fetichista ter permanecido, para Engels, um livro fechado a sete chaves. Por isso ele também teve de fracassar na crítica do determinação “económica”, ao suavizar e modificar a metafísica da legalidade não-rompida apenas através dos floreados retóricos da determinação económica “em última instância”.
À luz de uma crítica da matriz fetichista a priori, uma crítica ligada ao “outro” Marx, a crítica do economismo clássico tem de ser vista de modo completamente diferente. Determinante não é a “economia” nem tampouco a “luta de classes” a ela associada, nem imediatamente nem “em última instância”. Em vez disso, “a conformidade com a lei” está na matriz a priori da metafísica real moderna e do contexto da sua forma, uma matriz que serve de base a toda a acção no capitalismo, inclusive ao seu tratamento da contradição, e que sempre é reproduzida nesse agir (forma da mercadoria e dissociação sexual, e a correspondente identidade de forma do pensamento, forma da acção, forma do sujeito, forma da teoria, forma da política etc. enquanto formas de reprodução). Essa constituição tem raízes mais profundas que todos os movimentos e desenvolvimento empíricos (também institucionais) “em” sua conexão. Não adianta muito querer transformar o problema na influência e penetração mútua das diversas esferas “relativamente autonomizadas” entre si, ou dos “sistemas parciais ou subsistemas” (para usar a terminologia da teoria dos sistemas). O conceito de todo, ou de totalidade social, passa a ser então a mera “soma” das esferas ou áreas parciais; o conceito de “sistema” passa a ser vazio e a representar apenas um floreado retórico.
A definição “da economia” como determinante — não interessa se imediatamente ou “em última instância” — é uma formulação completamente truncada e distorcida do problema e permanece aconceptual. A dissociação-valor constitui, sim, uma ampla categoria real básica, a partir de onde, só então, aquela “completa diferenciação” estrutural será colocada em esferas sociais “relativamente autónomas”. “A economia” em sentido empírico não determina, mas ela própria é determinada pela matriz a priorisobrejacente da constituição fetichista e pela sua “lógica”, que produz uma “legalidade” segundo um padrão quase igual ao das abelhas (também no seio da “economia”). A adequada crítica a esta “legalidade” só pode constituir-se negando o modo de socialização enquanto tal, que implica o dualismo existente entre “economia” e “política” em geral, e ao qual está ligada também a dissociação sexual.
A crítica truncada do “economismo” feita pela filosofia da práxis compartilhava, tal como Engels, o pressuposto equivocado; por isso há uma frequente repetição da referência à formulação de Engels sobre a “relativa autonomia” das esferas ou áreas parciais da socialização capitalista que, enquanto tal e em sua conexão, acabou por sair paulatinamente do campo de visão. Por essa razão, o “novo pensamento” dos filósofos da práxis não provocou uma crítica ampliada e mais profunda à matriz a priori da constituição fetichista, mediante a crítica da metafísica da legalidade e do “economismo” clássico. Em vez disso, distanciou-se dela, indo de certo modo noutro sentido, na direcção da corrente da teoria da acção da ideologia burguesa.
Foi essa a fundamental viragem para a teoria da acção, em que os debates realizados pelo marxismo ocidental ou pelos filósofos da práxis sobre a análise das “leis do movimento económico do modo de produção capitalista” deram lugar à ênfase “do sujeito”, ou ao célebre “factor subjectivo”, em ligação com questionamentos da teoria da cultura e do conhecimento e/ou epistemológicos. O positivismo da metafísica da legalidade, derivado do paradigma das ciências naturais, apenas foi substituído pelo positivismo de uma metafísica da vontade e da intencionalidade (adaptada, nos filósofos da práxis, à sociologia das classes), positivismo este originário do historismo, da filosofia da vida e da fenomenologia e/ou do existencialismo. Portanto, grosso modo, em vez da execução da legalidade histórica, havia, doravante, vontadecontravontade, em vez de acção com e conforme as “leis”, havia uma acção contra e apesar das “leis”, mas na mesma constituição da matriz a priori de relações fetichistas não-rompidas e amplamente irreflectidas. “Na verdade”, as “abelhas” já sempre devem ser “mestres-de-obras”, apenas com “concepções” contrárias, cuja origem permanece obscura.
A partir daí, faz-se luz também sobre a erosão ocorrida, em sentido contrário, no marxismo de partido dos socialismos reais do Leste e do Sul, que acabaram por colapsar, e no Ocidente. Enquanto, no Leste e no Sul, a “intencionalidade socialista” levava com força cada vez maior à matriz a priori não-suplantada, tendo por fim de capitular perante a “legalidade” desta, a viragem ocidental da teoria da acção para a “práxis” enganava-se a si mesma quanto ao problema. Isso só foi possível porque o marxismo ocidental não se encontrava sob a pressão de uma suposta transformação real (na verdade de uma implementação “atrasada” de relações de dissociação-valor) e já não se lhe colocava de modo algum o problema da transformação, mas começava, sim, a perder-se no tratamento da contradição e na interpretação real do capitalismo, na base duma formação altamente desenvolvida de “trabalho abstracto” e socialização de dissociação-valor. Desse modo, a oposição interna dicotómica da ideologia da teoria social burguesa reproduziu-se no marxismo ocidental apenas como transição para o outro pólo, o pólo da teoria da acção.
De maneira característica, Gramsci designou a Revolução de Outubro, numa célebre formulação, como uma “revolução contra ‘O capital’ de Karl Marx”. Sem qualquer intenção crítica, apenas no sentido de um suposto “triunfo da vontade”, entendido à luz da teoria da acção, sobre a metafísica da legalidade e o “mecanicismo económico”. As contradições sucessivas do desenvolvimento do socialismo real já pouco interessavam; o que interessava era sobretudo a subversão revolucionária aparentemente lograda ao nível das relações de poder na “luta de classes” (apesar das “leis” e também contra elas), enquanto a questão das formas sociais básicas começava a sair de cena, sendo percebida apenas no sentido de “instituições” jurídico-políticas.
A fórmula da “unidade inseparável” não-crítica e não-mediada entre “teoria e práxis”, que só pode desaguar sempre na ligação aos padrões de acção ontologizados da matriz a priori, precisava de ser reproduzida por maioria de razão; mas agora na versão de teoria da acção da metafísica da intencionalidade. Assim, também Gramsci postulou o “enérgico fortalecimento de uma unidade entre teoria e práxis” (Gramsci 1994, 1ª ed. em italiano em 1975, escrito em 1932/35, p. 1282). Formulação semelhante de Ernst Bloch, em seu O Princípio Esperança, acerca das Teses sobre Feuerbach: “Assim, o pensamento justo torna-se finalmente a mesma coisa que o feito da justiça” (Bloch 1968, 1ª ed. 1954-59, p. 83). É verdade que Bloch, em suas reflexões sobre as Teses sobre Feuerbach, volta-se contra a interpretação pragmático-praticista de uma “autoconsciência pseudo-activa” (id., p. 87), nessa medida uma ressonância de Adorno, e quer demarcar a relação marxista entre teoria e práxis dum entendimento burguês “...de mera ‘utilização’ da teoria” (id., p. 83). Mas com isso ele não pretende criticar a ligação da teoria a uma práxis pré-estabelecida, ontologizada, antes pelo contrário: a teoria burguesa, segundo Bloch, “...somente condescendia com a ‘utilização’ pela práxis, como faz um soberano perante o povo, na melhor das hipóteses como uma ideia para a sua valorização” (id., p. 83). Mas a “valorização” como critério já aponta precisamente para a subordinação da teoria a um fim ontologicamente pré-estabelecido, irreflectido, e não para a sua “arrogância burguesa (senhorial)”, como quer sugerir Bloch. Se a teoria, segundo o entendimento de Bloch, não deve “condescender” com a práxis, então ele com isso quer dizer que a teoria, inversamente, deveria fundir-se com a práxis (da luta de classes reformulada à luz da teoria da acção), e não que ela necessite de distância em relação ao tratamento da contradição imanente. Ao obrigar, como é o caso, a teoria à “parcialidade do ponto de vista da classe revolucionária” (id., p. 90) e ao celebrar a “principal obra” de Marx como “pura instrução para a acção” (id., p. 95), o seu próprio entendimento de teoria já se encontra num “horizonte de utilização” de razão instrumental, cuja constituição fetichista permanece inteiramente por reflectir.
Desse modo não é possível conseguir nem um conceito crítico da “forma teoria”, como “forma” burguesa “de consciência reificada”, nem uma crítica da referência legitimatória e de interpretação real vinculada a tal forma, do modo como tal referência já se encontra colocada per se em todo e qualquer postulado de uma “unidade” a priori “de teoria e práxis”, ainda mais num postulado modelado conforme a teoria da acção. Por essa razão, tal como o marxismo de partido tradicional, os filósofos da práxis permaneceram incapazes de fazer sobressair a diferença entre práxis dominante (fetichista) da vida, “contrapráxis” particular como tratamento da contradição no campo da imanência capitalista e práxis transcendente que exceda isso (arrombando a conexão constitutiva da forma). É claro que assim o conceito de crítica também não podia ser separado de seu teor imanente, herdado da história da imposição capitalista, para ser transformado em críticacategorial. Mais do que nunca a teoria permaneceu “presa” ao tratamento da contradição imanente, só que agora na viragem da teoria da acção. A práxis é a práxis é a práxis...
Naturalmente que a metafísica do trabalho, enquanto ontologia do trabalho, continuava aí sem interrupção, como observa Bloch ao fazer referência ao Marx teórico da modernização no entendimento do movimento operário, e após definir a ontologia burguesa do trabalho de Hobbes até Hegel, como “fase preliminar” de um “materialismo ainda contemplativo” ou de um “idealismo objectivo”: “Nesse contexto, Marx naturalmente deixa claro que a actividade burguesa ainda não é uma actividade completa, justa (!). Ela não o pode ser, já que não passa de uma aparência de trabalho, pois a produção de valor nunca parte do empresário, mas do camponês, do artesão, por fim do assalariado” (Bloch, id., p. 67, itálico de Bloch). É de uma impressionante candura o modo como o problema óbvio de uma ontologia do trabalho comum na Modernidade, que aponta para o facto de o marxismo do movimento operário ser parte na forma burguesa, é reinterpretado como a diferença aparente de que a ontologia burguesa do trabalho ainda não seria mesmo “justa”. Para Bloch, assim como para o marxismo tradicional, a “verdadeira” metafísica do trabalho, aquela que deverá suplantar a “aparência de trabalho”, só resultará da identificação com a “verdadeira produção de valor” por parte dos dependentes, sendo de notar, de passagem, que também surge uma ontologia da forma do valor que até é expandida a todos os camponeses e artesãos (pré-modernos).
No entanto, a ontologia do trabalho de Bloch já não implica qualquer recurso à crítica da economia política, nem à teoria da acumulação e/ou da crise, nem à problemática da transformação social, onde a metafísica da legalidade do marxismo tradicional fizera grandes esforços, para no entanto acabar por fracassar no “socialismo real” (em todo caso, tomando como referência a pretensão de uma suplantação do capitalismo). A ontologia do trabalho esconde-se agora numa ontologia da práxis historicamente indeterminada, generalizada, ampliada, a qual é adaptada à teoria da acção e a partir da qual a matriz a priori da constituição fetichista é sistematicamente reduzida. Para a problemática da transformação, na medida em que ela ainda surge, isso significa, de certo modo, recair num pensamento utópico. Mais que nunca, a relação de imanência e transcendência, que faz batota com as contradições da ontologia do trabalho, permanece indeterminada e desfaz-se nas expressões nebulosas do “utópico” (Bloch). A questão de uma verdadeira suplantação da constituição fetichista capitalista é assim malograda, com tanto maior certeza quanto alguma vez um teor “utópico”, supostamente transcendente, é capaz de tentar encontrar significados escondidos na “contrapráxis” limitada do tratamento da contradição imanente, antes de a práxis ter atingido o limiar de uma crítica categorial. Por esse motivo, os conceitos das chamadas “utopias concretas” preferidos pelos filósofos da práxis de diferentes tendências empancam forçosamente em factores particulares infundamentados, que nem chegam a arranhar o modus da socialização capitalista, ou então as formas fetichistas deste modus deverão ser reinterpretadas ou “redefinidas” de alguma forma simpática para com os seres humanos. Assim sendo, o “concreto” do utópico, ou é sempre a orientação para uma acção socialmente irrelevante nos nichos da abstracção real capitalista, ou então esta última deverá ser coberta de vestes ilusoriamente diferentes.
Mas a recaída num utopismo difuso, transbordante de metáforas sentimentalóides (por exemplo, na mobilização do conceito de “Heimat [pátria]” em Bloch), constitui apenas um aspecto parcial da viragem da teoria da acção. Maior importância e mais longo alcance tem a reinterpretação (em vez de suplantação) do politicismo marxista juntamente com essa viragem. A ligação da “forma teoria”, incompreendida em seu carácter burguês, ao tratamento da contradição imanente levou, como é sabido, à sua integração na “forma política” igualmente burguesa; e, desde logo, também entre os filósofos da práxis isso continuou a ser a política de partido. Todavia, a partir da viragem da teoria da acção e no contexto daquela crítica truncada do “economismo”, seguiram-se uma ampliação, uma dilatação e, de certa maneira, uma autonomização do conceito de política, tal como se anuncia em Gramsci: “Assim também se chega à igualdade ou à equiparação entre ‘filosofia e política’, entre pensar e agir, ou seja, chega-se a uma filosofia da práxis. Tudo é política, também a filosofia ou as filosofias..., e a única ‘filosofia’ é a história em acção, isto é, a própria vida” (Gramsci 1992, 1ª ed. em italiano em 1975, escrito em 1930/31, p. 892). Já na terminologia se revela aqui uma certa dependência do pensamento da filosofia da vida, em cujo horizonte os conceitos da Ideologia Alemã são interpretados. A imediata “equiparação entre pensar e agir” (na verdade, o “amarrar” da teoria na identidade negativa a priori da forma do pensamento com a forma da acção) deverá transformar a reflexão directamente em “história em acção”, sendo de notar que as palavras “a própria vida” surgem no lugar da crítica da constituição social. O enunciado chave é: “tudo é política”.
Com isso se torna patente a diferença decisiva em relação ao pensamento até então vigente do marxismo de partido no quadro da metafísica da legalidade. Neste entendimento, a política não era absolutamente “tudo”, mas sim, ela própria, um “meio para o fim”, ao qual a teoria, por sua vez, mais uma vez estava subordinada de forma instrumentalmente legitimatória. O “fim” deveria consistir na transformação “conforme às leis” e “historicamente necessária” (determinada) numa reprodução “planeada socialistamente”. Mas como essa finalidade permaneceu abaixo do limiar da crítica categorial e continuava a pressupor ontologicamente as formas capitalistas, ela precisava de surgir na proclamação ilusória de um comando da política e do estatismo “socialista” e/ou “proletário” sobre o contexto da forma afirmado positivistamente. Todavia, ou precisamente por essa razão, continuava a existir uma distinção de conteúdo entre política e transformação social, entre meio e fim. No sentido de uma suplantação emancipatória da moderna constituição fetichista, era um meio inviável para um fim inviável, só explicável a partir da constelação da “modernização atrasada”. Não obstante, quando a viragem do marxismo ocidental para a teoria da acção eliminou todo o questionamento, afogando-o numa crítica truncada do “economismo”, restou apenas a política, por assim dizer, “sozinha em casa”. A fórmula “tudo é política” mostra o “meio” política transformado no seu próprio “fim”, e com isso obscurecido e obnubilado o fim em si mesmo pressuposto do “sujeito automático”, ainda mais que no entendimento truncado do marxismo tradicional.
Portanto, a viragem da teoria da acção arrancou o politicismo marxista tradicional de seu ancoramento na problemática da acumulação, da crise e da transformação, para com isso o hipostasiar mais do que nunca. O floreado aconceptual da “última instância” económica já não passava de mero adereço, para definitivamente deixar de levar a sério o contexto da forma social basilar e transformá-lo em mero ruído ontológico de fundo. Restava a ênfase à “relativa autonomia” (que se tornava palavra-chave inflacionária) das esferas, áreas parciais e “subsistemas” sociais, da cultura etc. e especialmente da política. O inflacionado conceito de política tornou-se tautológico, e até mesmo autista. Simplesmente, já não se podia indagar o que a meta de uma suplantação social do capitalismo realmente deveria conter; a determinação do conteúdo foi totalmente substituída por uma metafísica da vontade e da intencionalidade fundamentada na teoria da acção. Este entendimento realmente absurdo assemelha-se fatalmente à metafísica da “determinação” heideggeriana, muitas vezes objecto de troça: “estamos soturnamente determinados, só não sabemos a quê”. A política é a política é a política...
É por isso que também se vê em Gramsci, por exemplo, o já mencionado amplo desinteresse pelas contradições da “sociedade do planeamento” burocrático-estatal soviética (que, em todo caso, foram percebidas no sentido de um democratismo superficial, sem atentar no paradoxo de um “planeamento do valor”), e a redução do interesse ao revolucionamento das “relações políticas” em sentido lato. “Tudo é política” também significava: tudo é “relação de poder”, ou “relação de forças”, até aos capilares da sociedade. O conteúdo fetichista do poder, o “sujeito automático” da valorização do valor, o “trabalho abstracto” e a relação de dissociação sexual, ou seja, o contexto da forma social, como conteúdo a partir do qual é gerado poder em geral, caíram na completa ignorância. O sociologismo tradicional das “classes”, que ainda tivera uma relação positivistamente reduzida com a problemática da forma, era agora totalmente desonerado e “desligado” disso. A metafísica da intencionalidade da teoria da acção desfez a sociabilidade em geral em relações de vontade; portanto, vontade contra vontade, como “classe contra classe” e como reconfiguração infinita das “relações de forças”, sem os pressupostos da constituição da forma e sem o objectivo de uma ruptura com essa constituição.
Nesse contexto, Gramsci cunhou um conceito muito esforçado de “hegemonia”, ou de eterna luta em torno dela, o qual engoliu a forma fetichista comum da vontade e, com isso, o conceito de relação capitalista, assim como o conceito de práxis: “A consciência de ser parte de uma determinada força hegemónica (ou seja, a consciência política), é a primeira fase de uma autoconsciência progressiva que vai além disso, em que teoria e práxis constituem por fim uma unidade... E precisamente por isso, deve-se sublinhar como o desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa, mais que um progresso político-prático, um grande progresso filosófico, pois supõe e compõe necessariamente uma unidade intelectual...” (Gramsci 1994, 1ª ed. em italiano em 1975, escrito em 1932/35, p. 1384). Consciência em geral e crítica em geral tornam-se a pura “consciência política” despida do seu condicionamento. Enquanto no “socialismo real” a política foi recuando paulatinamente diante das pseudo-leis naturais da constituição fetichista, para enfim capitular incondicionalmente perante elas, aconteceu precisamente o inverso no marxismo ocidental, em que a mesma constituição social não-suplantada se foi desfazendo ideologicamente aos poucos em “política”, e de facto ignorando sistematicamente o fatal desenvolvimento do socialismo real. A proclamada “unidade entre teoria e práxis” sob a fórmula “tudo é política” da teoria da acção transformou-se na divisa “política é tudo”. Consequentemente, mais do que nunca a teoria foi degradada à condição de teoria legitimadora de uma “práxis política” – a priori pressuposta à teoria — de tratamento da contradição imanente, mas agora uma política arrancada de seu ancoramento na constelação de “modernização atrasada” já sem razão de ser, uma política que se transformou no ponto-morto histórico de eternas “lutas” no eterno paralelogramo de “relações de forças”. Na verdade, isso também foi uma capitulação, mas uma capitulação titubeada, negada e fingida: um auto-comprometimento implícito com a moderna constituição fetichista definitivamente obnubilada, não obstante ainda troando no peito como “consciência de luta”, em que o peito emproado da classe proletária já só conseguia mostrar-se como um peito de galinha. As lutas são as lutas, são as lutas...
A viragem do marxismo ocidental para a teoria da acção e a reinterpretação tautológica do politicismo de esquerda a ela associada não teve um desenvolvimento ininterrupto, uma vez que, no pensamento ideológico da Modernidade, a metafísica da intencionalidade não consegue em geral emancipar-se da metafísica da legalidade, nem vice-versa. Por isso, o marxismo ocidental também produziu uma versão “estruturalista” após a Segunda Guerra Mundial, representada principalmente por Louis Althusser. Contudo, o chamado estruturalismo do período pós-guerra, onde teve origem a “leitura estruturalista de Marx” por Althusser, já não seguiu a metafísica da legalidade burguesa clássica, mas desenvolveu-se em paradigmas linguísticos (Saussure) e etnológicos (Lévi-Strauss). Embora aqui também se tenham revelado reduções pseudo-científico-naturais, por exemplo em Lévi-Strauss, esses “modelos explicativos” estavam simultaneamente orientados contra a metafísica iluminista e hegeliana da história. A “conformidade com a lei” já não era considerada historicamente sobrejacente, ela estava reduzida às “respectivas estruturas” e à “necessária autonomização” destas, sem componentes teleológicos.
Isso lembra as citadas formulações de Engels, cujo enunciado, todavia, agora estava despojado da metafísica da história e do conteúdo da crítica da economia política. Desse modo, a “leitura estruturalista de Marx” feita por Althusser foi predominantemente epistemológica e não de conteúdo. Nesse aspecto, pode muito bem estabelecer-se uma convergência com os filósofos da práxis, embora o estruturalismo marxista seja tratado como contrapólo, por exemplo em relação a Gramsci. A diferença reside realmente na valorização oposta do “sujeito”. Enquanto os filósofos da práxis alcançaram uma ênfase “humanista” do sujeito e uma metafísica da vontade, em oposição à metafísica da legalidade, Althusser, por sua vez, adopta uma “concepção anti-humanista”, com a tese fundamental “... de que se deveria eliminar toda a origem e todo o sujeito, e ousar afirmar como absoluto apenas o processo sem sujeito, tanto na realidade como no conhecimento científico” (Althusser 1974 a, 1ª ed. em francês em 1972, apresentado como discurso em 1968, p. 83 s.). Essa conceptualidade foi sobremaneira afirmada como recebida de Hegel, no modo como ela teria “servido de base a todas as análises de ‘O capital’” (id., p. 82), e tal conceptualidade sempre voltava a ser reforçada: “No próprio processo não existe um sujeito: mas o próprio processo é sujeito, precisamente na medida em que não tem sujeito... Se possível, elimina-se a teleologia e resta a categoria filosófica de um processo sem sujeito adoptada por Marx” (id., p. 65).
É claro que essa determinação lembra o “sujeito automático” de Marx. Contudo, na leitura de Althusser, essa categoria não é entendida criticamente, mas sim positivistamente, como uma ocorrência de certa forma “eterna” (nessa medida, mais uma vez como afirma Engels em sua formulação). A “luta de classes”, a suplantação do capitalismo, o comunismo e em geral todo o futuro voltarão então a ser um “processo sem sujeito”. A crítica do sujeito aqui não acarreta a crítica categorial da constituição fetichista, mas conduz, por sua vez, à afirmação estrita da “objectividade” de processos estruturais autonomizados, que apenas são “executados” por indivíduos, grupos e classes em acção; simplesmente, “libertados” da metafísica da história. Trata-se, pois, de uma metafísica da legalidade reduzida e “fraca” que apenas critica exteriormente toda a ênfase “humanista” do sujeito, sem lançar luz sobre a conexão interna e a identidade polar entre forma de sujeito e objectivação fetichista.
Assim, para o estruturalismo é impensável uma “ruptura ontológica”; a ontologia da práxis transforma-se, sim, numa ontologia de estruturas e processos historicamente indeterminados e autonomizados, na qual a humanidade se acha cativa para sempre. Não admira que Althusser, sem quaisquer cerimónias, classifique o capítulo do fetiche de “O Capital” como peso-morto hegeliano e aconselhe leitoras e leitores a saltá-lo. Para ele, tanto o conceito de fetiche como o de estranhamento fazem parte “do período do jovem Marx” (Althusser 1974b, 1ª ed. em francês em 1965, p. 191), cujos textos deveriam ser ignorados (uma afirmação contrafactual, pois, como já foi dito, Marx só desenvolveu o conceito de fetiche no período “maduro” da análise do capital). Portanto, a principal diferença em relação aos filósofos da práxis consiste em que o “marxismo estruturalista”, que só à primeira vista se aproxima do problema fundamental, torna explícita a capitulação implícita e titubeada da filosofia da práxis perante a constituição fetichista a priori, fornecendo-lhe mesmo a legitimação teórica.
Neste contexto, o conceito de ideologia althusseriano também é revelador. É verdade que Althusser criou o conceito de “práxis ideológica” e também estabelece uma diferença entre “ciência” e “ideologia”. Mas, em primeiro lugar, ele permanece preso a um conceito positivista de ciência natural de cunho mais engelsiano, não reconhecendo com isso a base ideológica de toda a ciência burguesa na “forma teoria”. Em segundo lugar, ele positiva a “práxis ideológica”, como expressão “necessária” de uma espécie de primeiro nível da “consciência do interesse”, assim se assemelhando muito ao marxismo de partido tradicional, que também falou frequentemente sem cerimónias de uma “ideologia proletária” positiva. Assim afirma Althusser: “Eu não condenei, de maneira alguma, a ideologia como tal: pois, como diz Marx, na ideologia as pessoas consciencializam-se da sua luta de classe e levam-na até ao fim...” (Althusser 1967, p. 10). Assim ele ignora completamente o terrível poder negativo da ideologia, onde o interesse do ser-aí capitalista, saindo do tratamento da contradição imanente, vincula-se às categorias fetichistas ontologizadas socialmente sobrejacentes, submetendo-as a uma interpretação, ou interpretação real, que vai até aos conteúdos assassinos do machismo, do racismo e do anti-semitismo.
A ontologia de estruturas e processos autonomizados traz como consequência a ontologia do ideológico: “As sociedades humanas segregam ideologia como um elemento, ou atmosfera, imprescindíveis para a sua respiração, para a sua vida histórica” (Althusser 1974, 1ª ed. em francês em 1965, p. 182). Assim se inviabiliza uma crítica coerente da ideologia, que só pode resultar de uma crítica categorial da moderna constituição fetichista. O próprio Althusser o sabe: “E para não evitar a questão mais candente: o materialismo histórico não pode imaginar que até mesmo uma sociedade comunista pudesse passar sem ideologia...” (id., itálico de Althusser). A ontologização estruturalista da ideologia reduz o problema a uma “teoria da ideologia” positiva, ou seja, a classificações sociológicas superficiais (à semelhança do que acontece na sociologia do conhecimento de Karl Mannheim). No seio do capitalismo, são precisamente as “classes” que separam suas ideologias contrárias, e só interessa fomentar e fundamentar, ou complementar cientificamente, a tendência ideológica “correcta”. Isso também combina da melhor maneira com o facto de a filosofia da práxis farejar em busca de momentos “utópicos” no eterno tratamento da contradição, o que também joga com a possibilidade de um conceito positivo de ideologia.
A leitura estruturalista do marxismo está em plena conformidade com a viragem da teoria da acção, na crítica tão reduzida como superficial do economismo clássico. Na medida em que Althusser, subtraindo a teleologia da filosofia da história, se atém a uma metafísica da legalidade reformulada no estruturalismo, esta deixa de referir-se a uma “origem económica”, para aludir a um emaranhado de estruturas e processos de diversas proveniências e das mais diversas esferas sociais. Por esse motivo, ele também postula, “... que se deve deixar para Hegel a categoria da totalidade, reivindicando para Marx a do todo” (Althusser 1977, 1ª ed. em francês em 1975, p. 65, itálicos de Althusser). O conceito positivo de totalidade de Hegel não é suplantado enquanto tal, através de crítica categorial à totalidade negativa incoerente (como foi desenvolvido pela crítica da dissociação-valor), mas simplesmente preterido a favor da categoria fenomenologicamente reduzida de um “todo” conceptualmente vazio, que nada mais pode ser senão a mera “soma” de esferas e momentos sociais parciais.
Nesse processo, Althusser bate em retirada também em direcção à formulação de Engels sobre a economia como “última instância”, que apenas indirectamente seria “determinante”. No capitalismo, tratar-se-ia, portanto, de uma “estrutura com dominante” (Althusser, 1974, 1ª ed. em francês em 1965, p. 146). Aí ele recorre ao termo “sobredeterminação”, retirado da psicanálise freudiana: a famosa “última instância” seria “sobredeterminada” (transformada e penetrada) por outras “instâncias” (políticas, ideológicas, culturais). A verdade incontestável, mas superficial, de que a forma de percurso real do processo da contradição social é co-determinada pela política e pela ideologia, não representa, todavia, nenhum conhecimento teórico, se não ficar ao mesmo tempo evidente que tanto a “economia” como a política e a ideologia etc. se referem à constituição fetichista básica da relação de dissociação-valor, a partir da qual, só então, se pode explicar o momento “determinante” de uma legalidade da forma (e de uma dinâmica de crise). Ao reduzir, tal como Engels e os filósofos da práxis, o problema à “economia” como “última instância”, Althusser apenas chega ao entendimento tautológico de que “base” e “superstrutura”, “economia” e política/ideologia “se determinam” mesmo reciprocamente (sobredeterminação), com o que ele então pode afirmar: “É o ‘economismo’ (o mecanicismo), e não a tradição marxista genuína, que põe de pé, de uma vez por todas, a hierarquia das instâncias” (Althusser 1974, 1ª ed. em francês: 1965, p. 160). A “hierarquia das instâncias”, porém, é apenas uma percepção reduzida e deformada, por falta de um conceito crítico de totalidade que o próprio Althusser nega expressamente.
O resultado é então inequívoco: “Nunca bate a hora solitária da ‘última instância’...” (Althusser, id., p. 81). Mas não é no sentido reduzido do “economismo” clássico; pelo contrário, com isso também desapareceram, na argumentação althusseriana, a totalidade negativa como tal, a lógica interna do modo de socialização, o momento determinante em geral no sentido de uma dinâmica objectiva, a fronteira interna da valorização do capital, do “trabalho abstracto” e da relação de dissociação, bem como o problema da transformação como arrombamento da constituição da forma. O que resta é, exactamente como nos filósofos da práxis, a “relativa autonomia” das esferas e dos subsistemas. A questão sobre o que a “estrutura com dominante” na verdade ainda deveria significar não é explicada no seu conteúdo conceptual e analítico; em vez disso, esta pergunta é evitada e, por sua vez, dissolvida em “práxis”. Althusser, após ter obnubilado a constituição fetichista, tal qual os filósofos da práxis, simplesmente afirma que o problema “... foi tornado supérfluo através de toda a práxis política de Lenine” (Althusser 1977, 1ª ed. em francês em 1975, p. 87). Não encontramos nada, portanto, senão a mais bela capitulação da teoria perante a práxis histórica do tratamento da contradição no sentido da “modernização atrasada”. “A solução do nosso problema teórico”, dizia Althusser, “já existe há muito tempo em estado prático na práxis marxista” (id., itálico de Althusser, p. 102). Segundo ele, só interessaria “exprimir” essa “solução” também “teoricamente” (id.).
Exactamente como nos filósofos da práxis, essa “expressão” teórica, por sua vez, também almeja, por um lado, deixar a suposta “determinante” económica ser determinante de algum modo e, por outro lado, tem por objectivo persistir na permanentemente chamada “superstrutura”, ou seja: persistir na fórmula “tudo é política” ou “política é tudo”, sendo que Althusser dá a conhecer mesmo explicitamente a seguinte referência pertinente: “Finalmente eu pude entender a grande teoria de Marx, Lenine e Gramsci: que a filosofia é fundamentalmente política” (id., itálico de Althusser p. 204). Nesse sentido, Althusser também tenta entender o estalinismo não só como mero “equívoco”, mas também como puro fenómeno da superstrutura, o que para ele “...explica de modo muito simples, teoricamente, que a base socialista pôde desenvolver-se essencialmente sem prejuízos (!) durante esse período de equívocos que atacaram a superstrutura...” (id., itálico de Althusser, p. 193). Aqui se mostra também em Althusser, de maneira mais que clara, a ignorância colectiva do marxismo ocidental perante o conteúdo da crítica da economia política, na qual se esconde o problema da constituição fetichista da forma. Por conseguinte, a leitura “estruturalista” e ignorante dos conteúdos que Althusser faz de Marx desagua também no politicismo compatível com a teoria da acção, tautológico e auto-referencial; o processo social como “práxis” ontologizada desfaz-se em “... inúmeras forças entrecruzadas, um número infindo de paralelogramos de forças...” (Althusser 1974, 1ª ed. em francês 1965, p. 89).
Assim, Althusser também oferece o seu conceito verdadeiramente elucidativo de “práxis teórica”, uma vez que não pode continuar a desenvolvê-lo até à conexão interna com a constituição da forma social. Esse conceito, segundo afirma Althusser, na verdade “possibilitou a tese da relativa autonomia da teoria..., portanto, o direito para a teoria marxista já não ser tratada como pau para toda a obra das decisões da política quotidiana...” (Althusser 1977, 1ª ed. em francês 1975, p. 55), mas destacando também especialmente que “...unitariamente ligada com a práxis política e outro tipos de práxis” (id.). Em suas diversas autocríticas, Althusser já tinha “revisto”, com pertinência, seus conceitos: “É verdade que falei na unidade entre teoria e práxis na ‘práxis teórica’, mas não abordei a questão da unidade entre teoria e práxis na práxis política” (Althusser 1967, itálico de Althusser, p. 14).
Althusser acusa-se a si próprio repetidamente de “teoricismo”, o que apenas indica que se esquivava do verdadeiro problema. Não se trata, em absoluto, de remoer as palavras “autonomia relativa” da teoria (para isso não é preciso o conceito de “práxis teórica”). A teoria não é uma “esfera” ao lado de outras na ciranda da “autonomia relativa”; pelo contrário, ela é mesmo a teoria da práxis, nomeadamente da práxis dominante, fetichista, a “expressão teórica desta. E enquanto tal deve ser usada negatoriamente, mesmo contra si própria como “forma teoria”, o que, porém, nada tem a ver com uma “unidade” a priori “de teoria e práxis”, e muito menos com uma fusão com a “política”. Pelo contrário, o que importa é criticar a práxis, precisamente a práxis do eterno tratamento da contradição na forma política. A difusa ontologia da práxis enevoa precisamente essa tarefa, e com isso amarra a teoria a esse tratamento da contradição imanente, de que não tem qualquer conceito. É indiferente se o ponto de partida é a nua metafísica da intencionalidade dos filósofos da práxis ou a “fraca” metafísica da legalidade do estruturalismo althusseriano. Através da sua crítica truncada do economismo clássico, ambas as abordagens do marxismo ocidental desaguam num politicismo tautológico, sem objectivo de conteúdo, de “lutas” eternas e eternas “relações de forças”, na jaula da matriz a priori.
A partir dos anos 60, a dissolução da crítica de esquerda do capitalismo, na linha da filosofia da práxis e do marxismo “estruturalista” althusseriano, prosseguiu na “práxis ideológica” da elaboração teórica pós-moderna, também chamada “pós-estruturalismo”. Como representante exemplar dessa linha temos Michel Foucault, cujas reflexões tiveram recepção mais forte na esquerda. Também em Foucault se encontra o postulado da “unidade inseparável” entre teoria e práxis. Assim, de modo expressivo, ele faz valer, contra a Escola de Frankfurt, “uma outra via” “que tem uma orientação empírica mais forte..., mas também significa uma ligação mais estreita entre teoria e práxis” (Foucault 2005a, 1ª ed. em inglês em 1982, p. 243).
No entanto, o antigo postulado é aí reformulado diferentemente, ao surgir a ontologia da práxis na forma das célebres “práticas discursivas”. O conceito característico de “práticas” usado por Foucault, que conheceu diversas formulações nos diversos períodos de seu desenvolvimento (por exemplo, nas definições de “episteme” ou de “dispositivo”), pode muito bem, em combinação com suas copiosas análises materiais sobre a história da constituição, da disciplinação e da interiorização da Modernidade, ser integrado numa teoria crítica da dissociação-valor; nesse sentido, fazendo uso de mais uma metáfora de Foucault, poder-se-ia falar de uma “microfísica” das relações fetichistas. Mas foi precisamente uma referência dessa natureza que Foucault não conseguiu produzir com sua abordagem; pelo contrário, ele desenvolveu um esquema teórico que conduziu para ainda mais longe de uma teoria crítica da constituição da forma histórica.
Foucault também assume a crítica do “economismo”; ele exige “libertar-se dos esquemas económicos ao fazer a análise do poder” (Foucault 1978, Prelecção de 1976, p. 72). Contudo, diferentemente dos representantes do marxismo ocidental, ele também recusava definir a “economia”, fosse como fosse, como uma “profunda e única última instância” (Foucault, Conferência de 1978, p. 36). Ao rejeitar esses floreados dos marxistas ocidentais em dificuldade, ainda usados apenas na diplomacia teórica com base na formulação evasiva de Engels, Foucault também corta a última e ténue ligação com a problemática da matriz fetichista a priori. Afinal, ele não trata criticamente a definição reduzida de “instância económica”, optando simplesmente por eliminá-la; na verdade, ele já não se interessa pelo capitalismo nem pela crítica do capitalismo. Ao surgirem em seu livro “As Palavras e as Coisas” (Foucault 1976, 1ª ed. em francês em 1966) questões sobre a crítica da economia política, Foucault, tal qual Althusser, não lida com elas do ponto de vista do conteúdo, mas apenas de forma puramente epistemológica; e doravante inteiramente desligado da teoria de Marx.
Pela sua postura, Foucault já é um “pós-marxista” de esquerda, que força o movimento pelo desengajamento do marxismo de partido, mas numa direcção que é precisamente o rumo equivocado. A sua crítica da ideologia do sujeito, que ele inicialmente compartilhava com o estruturalismo (bem como todas as suas ontologizações), e a crítica do Iluminismo que lhe estava associada, apenas têm por objectivo negar, em geral, toda e qualquer teoria abrangente dos contextos histórico-sociais; volta-se contra as “teorias globais, totalitárias” (Foucault 1978, id., p. 58), sobretudo o marxismo, afirmando: “(Toda e qualquer) retoma das categorias da totalidade teve, na realidade, um efeito de travagem” (id., p. 59). Se Althusser já renunciara ao conceito de totalidade como “hegeliano”, em vez de o transformar criticamente, Foucault, por sua vez, já nem sequer chega a distinguir esferas ou subsistemas sociais “relativamente autónomos”. Ele retira também até a casca vazia do “todo” e deseja, em vez disso, “... manter-se no campo de imanência das puras singularidades (!). Portanto: ruptura, descontinuidade, singularidade, pura descrição...” (Foucault 1992, id., p. 36).
As “instituições, as práticas, os discursos” (Foucault 1978, id., p. 58) enquanto tais já não são compreendidos “em” um contexto social sobrejacente, nem mesmo em áreas parciais, mas como singularidades, portanto, mais do que nunca, de modo positivista: “A análise das positividades... que não relaciona puras singularidades a uma espécie ou a uma entidade, mas sim a condições banais de aceitabilidade (!), desenvolve uma rede causal que ao mesmo tempo é complexa e limitada... (Por esse motivo) as relações precisam de ser multiplicadas, os diversos tipos de relações, as diferentes necessidades de encadeamento precisam de ser diferenciadas, processos heterogéneos precisam de ser observados em sua sobreposição” (Foucault 1992, id., p. 36 s.). “Não a essencialidade”, mas “condições banais de aceitabilidade”: aqui está um programa reducionista. Está rompido todo e qualquer conceito e, por conseguinte, toda e qualquer crítica de uma definição da essência social. Na verdade, já nem sequer existe qualquer sociedade (e muito menos qualquer história), mas sim apenas um emaranhado impenetrável formado por “singularidades” ou pelos chamados ensembles, na “lógica de um jogo de relações interactivas com suas margens de incerteza em constante mudança” (id., p. 38). O conceito de capitalismo tornou-se sem sentido e, consequentemente, também a crítica do capitalismo.
O que resta, como definição geral a-histórica e vazia de conteúdo, é, em compensação, o conceito de “poder”. De alguma maneira, todas as relações sempre já são “relações de poder”, que agora se desenvolvem enquanto aqueles ensembles de singularidades, e já não na oposição das “classes” (sociologisticamente reduzidas, separadas de sua conexão constitutiva) como nos filósofos da práxis. À luz da crítica do fetiche, o fluido do poder não tem fundamento antropológico (ou mesmo biológico), nem pode ser entendido como relação de vontade sem pressupostos entre classes ou grupos e baseada apenas em meios de poder externos (por exemplo armas). Poder que se exprime em dominação desenvolve-se, sim, a partir de uma história de relações fetichistas, nas quais a respectiva matriz a priori que abrange a todos os indivíduos estabelece, a partir de si mesma, uma hierarquia funcional de relações de dominação, cujos “agentes” (em Marx: “máscaras de carácter”) executam os imperativos de formas de acção pressupostas, sem serem seus portadores “conceptuais”. Mas como, em Foucault, está liquidado todo e qualquer resquício de um conceito de essência para além do marxismo, o fluido do “poder” revela-se-lhe como uma ontologia sui generis, já não fundamentada, mas pressuposta positivistamente.
Assim, tudo é sempre “poder” sem fundamentação; a “lógica de um jogo de relações interactivas” surge como um eterno “jogo do poder” no espaço das “singularidades”, nas quais também se dissolvem a política e a economia da Modernidade. Por essa razão, o quadro referencial teórico da ontologia do poder abstracto de Foucault já não é Marx, mas explicitamente Nietzsche e implicitamente Heidegger. Quanto mais os conceitos analíticos das “práticas” e as análises materiais com eles relacionadas podem ser integrados criticamente na teoria da dissociação-valor, mais intransigentemente deverá ser combatido o esquema teórico daquele quadro referencial subsidiário da Ideologia Alemã (que é, em geral, constitutivo da “práxis ideológica” pós-moderna). Afinal de contas, Foucault, com sua atomização coerente da sociedade e da história, leva ao extremo a obnubilação do contexto da forma categorial, já preparada no seio do marxismo ocidental, abandonando, com isso, o campo da crítica radical em geral; sua concepção acaba num posicionamento e numa práxis “de esquerda” com uma ontologia “de direita”.
Desse modo, para Foucault, também o conceito de ideologia e, por conseguinte, tanto a teoria positiva da ideologia como a crítica da ideologia são sem sentido e supérfluos. Se a sociologia do conhecimento ainda tinha transportado um conceito positivista de ideologia, tal como ele fora compreendido pelos filósofos da práxis e pelo “marxismo estruturalista” de Althusser, para afirmá-lo para o lado supostamente “correcto” (proletário), em Foucault, juntamente com a última referência vazia de conteúdo à forma social, também desaparece o problema da ideologia, desfazendo-se em “produções de verdade” alternantes, a cuja relatividade paradoxalmente absolutizada não subjaz qualquer objectividade constituída, nem sequer negativa. Em vez disso, trata-se ainda, apenas, de “práticas discursivas” no fluido do “poder”, nas quais, de certo modo, sempre é “verdadeiro” apenas aquilo que se impõe em processos complexos como “aceitação”, até isso ser novamente questionado e uma “outra produção de verdade” empreender sua marcha. Assim, os “jogos do poder” sempre são também “jogos da verdade” (Foucault 2005b, 1ª ed. em francês em 1984, p. 274). Na teoria crítica da dissociação-valor, o conceito de “produção da verdade” também pode ser tomado nesse sentido crítico e tornado fértil, ao mostrar, nas análises detalhadas de Foucault, os mecanismos da ideologização em todos os níveis sociais. Mas, em Foucault, tais mecanismos existem explicitamente por si, numa percepção positivista; não são mecanismos “de algo” e “em” uma referência à constituição da forma social que acabou por ser dissolvida naquelas “singularidades” de relações de poder e jogos de verdade.
Por isso, no contexto das “singularidades” descontínuas, para Foucault já só existe a possibilidade de “críticas descontínuas, particulares e locais” (Foucault 1978, id., p. 58). Esse “carácter local da crítica” (id., p. 59) significa agora, mais do que nunca, um politicismo da “práxis”, mas um politicismo ainda mais reduzido que o do marxismo ocidental, e com o mesmo mantra de uma “transformação das relações de forças” (id., p. 72), que agora já nem podem ser sequer as relações entre classes sociais ou outras meta-entidades sociais. Nesse processo, trata-se da “criação de uma relação permanente de forças” (id., p. 73) num arco de “condições de aceitabilidade” (Foucault 1992, id., p. 40) que constitui aquele “campo de imanência” das singularidades e “... para um campo de aberturas e indeterminações possíveis, de eventuais inversões e deslocamentos, o qual a torna frágil e instável” (id., p. 40).
Esse conceito de “deslocamento” fez carreira na esquerda pós-moderna. O politicismo aconceptual tornou-se então a “estação ferroviária de deslocamento” de infinitas lutas particulares e “periféricas que surgem em vez do derrube falhado do centro” (Dosse 1999, 1ª ed. em francês 1992, p. 306). Mas se já não há uma definição de essência, também já não pode haver um “centro”; em vez da definição marxista reduzida de essência social, não surge a reflexão ampliada desta última, mas a negação doravante absoluta do contexto da forma social em geral, cuja tematização é denunciada como “essencialista”. “Trata-se”, afirma Foucault, “de lutas ‘imediatas’, e isso por dois motivos. Em primeiro lugar, as pessoas criticam as instâncias de poder que estão mais próximas delas e que têm um efeito sobre cada indivíduo. Não buscam o ‘inimigo nº 1’, mas o adversário imediato. Em segundo lugar, elas não pensam que a solução dos seus problemas estaria algures no futuro (ou seja, na promessa de uma libertação ou de uma revolução, na esperança do fim da luta de classes)...” (Foucault 2005a, 1ª ed. em inglês em 1982, p. 244). Pode-se reconhecer claramente que se trata de um reducionismo da crítica no seio da metafísica da intencionalidade da teoria da acção, na qual o estruturalismo de Foucault subitamente se deverá transformar; no lugar do inimigo “central” (de classe) surgem agora inimigos “locais”, na diversidade particular de instâncias singulares de poder, em vez de se alcançar, através da crítica do sociologismo (tanto da teoria da acção como da teoria da estrutura) de relações sociais intencionais, a crítica da matriz a priori socialmente sobrejacente.
A capitulação ocidental da crítica radical do capitalismo foi assim levada a cabo no “anti-essencialismo” pós-moderno, o qual agora já não precisava de nenhum argumento para a obnubilação sistemática da totalidade social negativa. Depois de o problema do todo social — que em geral justificaria o conceito de formação do “capitalismo” — se encontrar desfeito numa ontologia a-histórica do poder, a particularização da crítica pôde ser associada sobremaneira a uma “proibição” de toda e qualquer crítica do “todo”, já não compreensível nem mesmo na fórmula conceptualmente vazia de Althusser ou da filosofia da práxis: “Foucault deixa o político fluir para a dimensão alargada de um campo de poder que se estende até às margens externas... Em todo o caso, o conceito de poder de Foucault dilui a dimensão política, quando ele a lança no infinito... Ela circula numa rede entre os indivíduos, funciona em cadeias atravessadas por eles, antes de voltar a juntar-se para formar um todo. Se não há uma encruzilhada do poder, também não pode haver um lugar de resistência contra o poder. Como ele é omnipresente, não pode ser esvaziado, ele está em cada indivíduo. Como tudo é poder em toda a parte, ele não está em nenhum lugar. A resistência contra o seu exercício deixa de ter razão de ser” (Dosse 1999, 1ª ed. em francês em 1992, p. 307 s.).
O desaparecimento das determinações da forma histórica concreta do capitalismo, bem como da “economia”, da “política” e de “instituições” em geral na ontologia do poder, torna sem valor o conhecimento sobremaneira existente de que a oposição social e o conflito social não são nada de sociologicamente externo; em vez disso, reproduzem-se, de modo abrangente, “em cada indivíduo” (por exemplo, a concorrência e as ideologizações a ela associadas). Uma vez que o “poder”, que tomou o lugar do conceito de capitalismo e do conceito de formações sociais em geral, é considerado, recorrendo-se a Nietzche e a Heidegger, permanente e intangível, ele também não pode ser criticado enquanto tal. Isso só daria certo se ele não fosse tomado por si próprio, mas se fosse reconhecido como um factor de constituição social historicamente específica. Mas uma vez que todos os gatos são pardos na noite do “campo de poder” omni-abrangente, já só há o “deslocamento” de poder no espaço das “singularidades”, isto é, de fenómenos sociais particulares. Desse modo, o inflacionamento do conceito de política (de sua “propagação infinita” sem o contexto da forma) também continua a ser mantido para além do marxismo ocidental.
Não é possível aqui promover um debate alargado com Foucault (o que permanece um desejo da elaboração teórica da crítica da dissociação-valor), mas apenas situar as suas reflexões no contexto da ontologia da práxis. E nesse aspecto pode afirmar-se que, com Foucault, o movimento do pêndulo da esquerda ocidental é forçado na direcção do paradigma da teoria da acção; e doravante consideravelmente desacoplado, de forma coerente, da crítica marxiana do capitalismo. Ao mesmo tempo, transformou a “coagulação” das acções sociais para além do institucionalismo, reduzindo-as a “singularidades” fluidas. O momento objectivista da abordagem da teoria da estrutura, que no estruturalismo do pós-guerra já estava desligado dos resquícios da filosofia da história e também do entendimento reduzido de um “centro económico”, divide-se, por um lado, na meta-objectividade “supérflua” da ontologia do poder, já não passível de ser reflectida concretamente, e, por outro lado, na objectivação descontínua de “relações interactivas” micrológicas, as quais, à luz da teoria da acção, já só são acessíveis a “deslocamentos” permanentes.
A eterna luta por “condições de aceitabilidade” em eternas “produções de verdade” de cunho particular-relativista permanece sem objectivo histórica e socialmente. Foucault forçou o amarrar da teoria ao tratamento da contradição imanente, uma vez que a questão da própria essência social foi mesmo substituída e totalmente liquidada pelos reduzidos esquemas institucionais e político-económicos do marxismo ocidental. Com isso, a tarefa de uma “ruptura ontológica” distanciou-se ainda mais. Entende-se por si só que a dissociação sexual, como determinação da essência, teve de permanecer impensável, já que ela reside no nível da constituição obnubilada da forma fetichista. A moderna relação entre os sexos pode surgir, no melhor dos casos, como mais uma “singularidade” no “campo do poder”, e Foucault interessava-se por isso, ao contrário do marxismo ocidental.
A sua transformação redutora do modus da socialização negativa em “práticas discursivas” desconexas desligou-se do paradigma da “luta de classes”, na direcção errada, na linha da viragem (flanqueada pelo estruturalismo) da teoria da acção; o problema do tratamento da contradição imanente, inclusive da “unidade entre teoria e práxis” a priori não foi examinado criticamente, mas sim atomizado. Para o tratamento atomizado da contradição, agora também já não era preciso nem partido nem solidariedade partidária; mas apenas porque estava enterrada a questão da totalidade social e, por conseguinte, da transformação social para além do capitalismo. O que era meramente implícito nos marxistas ocidentais torna-se explícito em Foucault. Com a sua oscilação mais ampla que a reformulação do estruturalismo do pós-guerra na teoria da acção (nessa medida também chamado de “pós-estruturalismo), o “pêndulo de Foucault” marcou a transição do marxismo de partido para a ideologia do movimento na esquerda. Todavia, o preço pago por essa “suplantação” foi a “localização” da crítica em fenómenos isolados descontextualizados.
Na época do desenvolvimento muitas vezes interrompido do pensamento de esquerda de Gramsci a Foucault, cujo nexo interno não foi até hoje elaborado criticamente por falta de um conceito suficiente da moderna constituição fetichista no contexto da “modernização atrasada”, houve uma posição que não deu certo na viragem da teoria da acção do marxismo ocidental (incluindo o momento estruturalista). Foi a Teoria Crítica da chamada Escola de Frankfurt, sobretudo na formulação detalhada de Adorno. É verdade que Adorno foi muitas vezes incluído no marxismo ocidental (por exemplo, por Perry Anderson). Mas essa percepção superficial não consegue ver as diferenças decisivas. Como já se fez notar, era precisamente Adorno que rejeitava à partida, no sentido da crítica radical, a “unidade” a priori “entre teoria e práxis” constante no marxismo, embora ele não tenha aprofundado o problema. Seu conceito específico de “práxis teórica” também não se restringia, como no caso de Althusser, ao postulado superficial de uma “autonomia relativa” da teoria crítica, enquanto “esfera” ao lado de outras, mas era mediado, pelo menos embrionariamente, com uma tematização da constituição fetichista. Daí também as citadas observações críticas acerca da redução promovida pela teoria da acção na sociologia. Muito menos pode Adorno ser casado com a práxis ideológica pós-estruturalista e com a ontologia do poder foucaultiana: enquanto esta tem uma referência essencial na filosofia de Heidegger na linha da Ideologia Alemã, a posição deste para Adorno era claramente entre os seus maiores inimigos.
O próprio Adorno não abordou sistematicamente o problema da matriz a priori sobrejacente enquanto tal; aqui não é o lugar para averiguar seus deficits que, nesse aspecto, em parte estão na linha da ideologia da circulação (sobre os rudimentos de uma crítica, cf. Kurz 2004). Mas a sua teoria deixou esse questionamento em aberto até ao fim e foi, nesse contexto, não apenas para além do marxismo tradicional, mas também para além do marxismo ocidental, que a tinha simplesmente deitado fora. Se, a partir de então, esse questionamento, que normalmente estava obnubilado, voltava a cintilar, quase sempre o fazia em referência a Adorno. A crítica da dissociação-valor, cuja elaboração teórica se tinha dirigido pela primeira vez fundamentalmente a esse nível, só podia compreender-se como transformação da teoria adorniana (cf. sobretudo Scholz 2000).
Esta teoria existia paralelamente aos trabalhos de Althusser e de Foucault nos anos 60; a última grande obra de Adorno, a Dialéctica Negativa, foi publicada em 1966. Quando a Nova Esquerda se formou, antes e com o movimento de 1968, os textos da Escola de Frankfurt faziam parte das referências teóricas centrais na RFA. Mas essa recepção estava esquisitamente mesclada com elementos marxistas tradicionais originários da social-democracia de esquerda (por exemplo em Oskar Negt, que até hoje ainda se lhe agarra em seu Livro do Partido) e não só. Sobretudo, a compreensível ênfase dada ao movimento deixou os protagonistas também receptivos ao recurso directo às Teses sobre Feuerbach no horizonte da viragem da teoria da acção, viragem que, por maioria de razão, permanecia totalmente irreflectida na esquerda de 68. A recepção de Adorno foi subordinada a uma pretensão de “práxis” directa e, por isso, sem respeito para com o conteúdo teórico. O problema da constituição da forma fetichista, presente mas não elaborado em Adorno, só surgia marginalmente e, na maioria das vezes, em formulações sobretudo existencialistas ou morais. Em vez disso, a pretensão de “práxis” na teoria foi desde o início virada contra a suposta mera “contemplação” da Escola de Frankfurt de forma extremamente crua.
Nesta questão, o verdadeiro debate aconteceu então com Habermas, sendo de notar que sintomaticamente não se tratou da apreensão do conteúdo do pensamento crítico na jaula do democraticamente admissível, mas sobretudo da “acção imediata”, à qual toda a reflexão teórica deveria estar ligada. É assim que Arnhelm Neususs, em sua antologia intitulada A esquerda responde a Jürgen Habermas, escreve com o contra-ataque correspondente: “É indubitável que Habermas defendeu posições muito progressivas, na medida em que o interesse era interpretar o mundo de modo diferente. Hoje é claro que o conceito de práxis por ele empregado nunca foi outra coisa senão uma categoria teórica. Se a teoria tenta tornar-se realmente prática, então ela passa a ser um aborrecimento para ele. Para ele, a transformação do mundo deve acontecer pela via contemplativa” (Neususs 1968, p. 57). Aqui, o problema da relação entre teoria e práxis é tomado de maneira inteiramente unidimensional e directa, sem nenhuma diferenciação no tocante às diferentes formas de práxis e sem reflexão sobre a relação entre imanência e transcendência. Já aqui se pode ver que a referência crítica e continuadora a Adorno (inclusive contra Habermas) foi soterrada pelo critério da “acção”.
Involuntariamente, o famoso “líder estudantil” Rudi Dutschke deixou claro que este ponto de vista da “práxis” estava ligado à viragem irreflectida da teoria da acção: “Tudo depende da vontade consciente das pessoas em finalmente tornar consciente a história sempre feita por elas mesmas..., ou seja, Professor Habermas, o seu objectivismo não-conceptualizado fulmina o sujeito a ser emancipado… eu apenas confio nas actividades concretas de pessoas práticas e não num processo anónimo” (Dutschke 1980, palestra proferida em 1967, p. 76, p. 81). Do ponto de vista da crítica do fetichismo aqui defendida, Dutschke apresenta como num livro aberto o modo como a dialéctica real capitalista de objectivação e subjectivação não é transformada criticamente, mas simplesmente é reduzida à metafísica da intencionalidade (a acusação contra Habermas, cuja teoria foi marcada em muitos aspectos pela teoria da acção, revela ignorância nesse aspecto). Essa crítica truncada ao velho objectivismo da legalidade, com o qual Habermas é identificado sem mais, não conduz à crítica da forma, nem portanto à crítica da “forma sujeito”, mas, pelo contrário, dissolve-se totalmente neste sujeito, na linha dos filósofos da práxis (Dutschke estava próximo de Bloch). O subjectivismo igualmente não-conceptualizado, apenas virado para o outro lado, “fulmina” a “práxis teórica”. Esse amarrar da reflexão às “actividades concretas de pessoas práticas” já significava o auto-bloqueamento inconsciente na “crítica afirmativa” e no tratamento da contradição, que tinha de conduzir obrigatoriamente ao exacto oposto do postulado de uma “história feita de modo finalmente consciente” e precisamente à subsequente auto-entrega a um “processo anónimo”.
O caminho para uma renovação, expansão e transformação da crítica da economia política estava barrado pela pretensão imediata de “práxis”. Na medida em que a análise do capital passou a ter importância no marxismo da nova esquerda dos anos 70, ela permanecia em grande parte um assunto da ala esquerda dos social-democratas no âmbito académico e movia-se na via do velho entendimento categorial positivista. Mas naquela época o mainstream do movimento já começava a separar pelo menos o conceito de crise da teoria de Marx e a subjectivizá-lo abertamente no contexto do procedimento truncado da teoria da acção. Dessa forma, o jovem Claus Offe afirmava contra Habermas, na antologia já mencionada: “Nesta constelação, não apenas se pode imaginar uma acumulação de sintomas de crise, sem que esta pudesse ser simplesmente prognosticada nos modelos de decurso das teorias tradicionais da crise, mas talvez também até se possa provocá-la mesmo, mediante a correcta expansão estratégica de problemas sistémicos e mediante o trabalho prático colectivo de esclarecimento por minorias políticas (!)... Mas não seria pensável que o alcance e, por conseguinte, a área de competência de teorias do tipo marxista tivesse encolhido...? Então, a aparência transformada do processo capitalista teria como consequência o facto de aqueles aspectos e tendências desse processo, dos quais inicialmente a teoria ainda pôde assegurar-se com suas próprias forças, teriam de ser constituídos hoje em dia ao nível da práxis (!). Também a relação entre análise e acção seria então circular. Sob tais condições, também se extingue simplesmente a autoridade de juízos teóricos sobre se uma situação histórica concreta é ‘revolucionária’ ou não... A tal questão só poderemos responder na trajectória de um pragmatismo disciplinado da acção (!)...” (Offe 1968, p. 110 s., itálicos do próprio Offe).
O problema, já contido naquela formulação pejorativa sobre “teorias do tipo marxista”, ou seja, a diferença existente entre teoria da modernização e crítica do fetichismo, situa-se fora das possibilidades do pensamento; o que resta é a redução da crítica da economia política à práxis do movimento, é o abafamento da reflexão teórica no “pragmatismo da acção”. Mais do que nunca, a teoria é reduzida legitimatoriamente à ideologia do movimento (“constituída no nível da práxis”), e a “crise” é separada da objectivação fetichista (virada contra Marx) e transformada em mera função da “vontade”. Uma vez que a relação capitalista de fetiche é agora totalmente relegada ao “sujeito”, a “crítica” tinha de permanecer mesmo apática, porque não estava voltada para a lógica da essência, ou seja, para o nível categorial.
No contexto do movimento europeu e mundial de 68, houve apenas duas abordagens que conseguiram avançar para esse nível categorial. Uma delas desenvolveu-se nos países de língua alemã, como tematização da “lógica do capital” por alguns, poucos, discípulos de Adorno, que se voltaram para a crítica da economia política de modo bem diferente dos representantes que dominavam na ala esquerda social-democrata (v. Backhaus 1969; Reichelt 2001, 1ª ed. em 1870). Por mais que sejam ainda meritórios e parcialmente não esgotados no tocante à crítica, esses trabalhos limitaram-se em grande medida ao nível abstracto da estrutura formal do capital, acabando por permanecer sem mediação com o desenvolvimento histórico concreto do moderno patriarcado produtor de mercadorias e com a história do marxismo do movimento operário inserida nesse desenvolvimento. Por essa razão, também só podiam ser percebidos pelas pessoas do movimento como mero “esoterismo” académico, sem constituir uma nova elaboração teórica abrangente, que também tivesse podido acarretar uma reflexão crítica da pretensão reduzida de “práxis”.
A segunda abordagem foi a dos situacionistas franceses, principalmente nos textos de Guy Debord, que (talvez os únicos) chegaram até à crítica da forma da mercadoria e da constituição fetichista moderna, de modo totalmente independente da Teoria Crítica de Adorno. Não é aqui o local (tal como acontece com as análises de Foucault) para um debate mais detalhado sobre a teoria situacionista, da qual ainda se podem “desviar” sempre algumas sugestões (para usar um termo situacionista). Interessa-nos, sim, abordar a importância que o problema da “práxis” detém nessa teoria. É verdade que os situacionistas também falaram de uma “práxis da teoria”, mas ela ficava ambígua em relação ao conceito de “práxis teórica”. Ambiguidade que consistia, em última instância, na incompletude da crítica categorial. Em Debord, a crítica da forma fetichista sobrejacente ainda estava mesclada com a práxis ideológica do paradigma da luta de classes, ou seja, do ponto de vista da crítica da dissociação-valor, ainda se encontrava misturada com a corrente da teoria da modernização presente em Marx. Por esse motivo, a limitação à “luta por reconhecimento”, ou ao processo de “modernização atrasada”, também não se apresentava como a essência da história do movimento operário, mas sim, de certo modo, como falta de cumprimento de uma tarefa ontológica do “proletariado” visando à sua auto-superação.
Os “desejos” não libertados, não realizados e amputados pelo capitalismo, por terem ficado cativos na forma fetichista em processo, ainda foram localizados num lugar social sociologicamente imanente e ontologizado (mesmo que apenas difusamente determinado), a partir de onde poderiam ser libertados, via “luta de classes”; e, por conseguinte, a forma fetichista não era reconhecida coerentemente como sobrejacente a todas as classes. No fim de contas, ficou por resolver a redução do problema à “oposição de classes”, baseada simplesmente em categorias de poder de sujeitos sociais, feita pelo marxismo do movimento operário. Desse modo, a relação entre “vontade de classe”, por um lado, e constituição fetichista a que também se submetiam os funcionários da representação do capital, por outro, só pôde ser entendida em Debord (no tocante ao capitalismo de Estado do Leste), de forma paradoxalmente imanente, como afirmação “de que a burguesia criou um poder autónomo, o qual... pode ir tão longe que consegue sobreviver sem burguesia” (Debord 1978, 1ª ed. em francês 1967, p. 56). Por isso, o desenvolvimento real do movimento operário e do “socialismo real” capitalista de Estado surgia (tal como acontece parcialmente em Adorno) como história de derrotas e de uma “recuperação” capitalista sempre nova (os situacionistas cunharam o termo recuperation).
O amarrar da crítica do fetichismo à ideologia da luta de classes também restringia a crítica situacionista do trabalho à fenomenologia capitalista no quotidiano do “trabalho abstracto”, enquanto a ontologia do trabalho como tal permanecia intacta; assim sendo, Debord falava de modo totalmente acrítico da “produção do ser humano pelo trabalho humano” (id., p. 73). Esta afirmação ontologizadora da “forma trabalho” levou coerentemente ao mesmo resultado no tocante à “forma sujeito”: “O desenvolvimento da classe proletária como sujeito”, diz Debord, “é a organização das lutas revolucionárias” (id., p. 45). Mas infelizmente: “Subjectivamente, esse proletariado ainda está longe da sua consciência de classe” (id., p. 65). Se, por essa razão, Debord denuncia explicitamente o estruturalismo como “sonho frio” e como “pensamento garantido pelo Estado” (id., p. 112), essa recusa não saiu precisamente da crítica do fetichismo, mas foi consequência, sim, das reflexões dos filósofos da práxis; de resto, na mesma medida em que Debord censura a Marx “que ele tenha criado a base intelectual do economismo” (id., p. 45).
Consequentemente, a tematização situacionista da constituição fetichista tinha de aportar, mais uma vez, ao postulado tradicional da “unidade entre teoria e práxis” a priori: Segundo esse postulado, já não seria possível “entender o desenvolvimento e a comunicação de uma tal teoria sem uma práxis estrita” (id., p. 113). E no famoso panfleto dos situacionistas Da Miséria no Meio Estudantil, já se chegava a fazer a seguinte afirmação: “Como Lukács viu com razão (mas aplicado a um objecto indigno: o partido bolchevista), a organização revolucionária é a mediação necessária entre teoria e práxis... As tendências e divergências ‘teóricas’ têm de ser imediatamente (!) transformadas na questão da organização, se quiserem apontar o caminho da sua realização. A questão da organização será o Juízo Final do novo movimento revolucionário... A dissociação entre teoria e práxis era o escolho atravessado no caminho do antigo movimento revolucionário...” (Da Miséria no Meio Estudantil, 1995, 1ª ed. 1966). Transformar “imediatamente” a teoria crítica e até mesmo divergências teóricas em “organização” de luta era um programa condenado ao fracasso, que apenas levou à auto-atomização, através de cisões e exclusões em série, e consequentemente ao “Juízo Final” dos próprios situacionistas. Ao contrário da opinião situacionista, na verdade fora exactamente o postulado da “unidade entre teoria e práxis” a priori que barrara ao movimento operário o caminho para a crítica da matriz fetichista a priori. Contra o eterno tratamento da contradição no interior do capitalismo, cujo carácter permanece indeterminado e que na verdade é negado, há nos situacionistas um maximalismo imediato da pretensão de “práxis”, que tinha de acabar a rodar em falso.
Para o novo “activismo” da ideologia do movimento, resultante da viragem do marxismo ocidental para a teoria da acção, o problema da “estrutura” e do “sistema”, como um todo, passou a ficar cada vez mais em segundo plano, o que também correspondia à conjuntura teórica de então. O Foucault tardio regressou à ontologia do sujeito; numa conversa mantida com Ducio Trombadori em 1980, ele afirmava que “... as pessoas, ao longo da sua história, jamais tinham parado de se autoconstruir, ou seja, de modificar (!) permanentemente a sua subjectividade, de se constituir numa infinda e múltipla série de diferentes subjectividades” (cit. a partir de: Brieler 2001, p. 176 s.). A ontologização do poder é agora completada com a ontologização da forma sujeito, e o momento estruturalista, não suplantado criticamente no pós-estruturalismo, simplesmente é deixado de lado sem ter sido despachado. François Dosse faz a seguinte constatação: “Realmente o sujeito está de volta... O facto de Barthes, Todorov ou Foucault terem evoluído, a partir de meados dos anos setenta, para uma problematização do sujeito, anuncia uma profunda corrente que varre as ciências sociais, para bem longe das margens em que um dia esperaram poder ancorar a sua cientificidade: as margens do sistema, da estrutura. Via-se agora que o recalcado, o sujeito, de quem se acreditava ser possível desviar-se, estava de volta. Sob diversos nomes e como portadores de também diversas metodologias, os indivíduos, os agentes, os actores, exigem atenção num determinado momento em que as estruturas se desvanecem no horizonte teórico” (Dosse, 1ª ed. em francês: 1992, p. 426 s.)
No entanto, o regresso do “sujeito” na teoria, um regresso doravante geral, indicava apenas que a sua crítica no estruturalismo permanecera reduzida e incompleta, precisamente porque o pólo oposto da objectivação fetichista não fora incluído nessa crítica, mas tão-só positivado numa metafísica da legalidade “fraca” particularizada. Precisamente por isso, o pêndulo de Foucault regressava não apenas ao pólo da teoria da acção, mas também, nessa direcção, dirigia-se coerentemente ao pólo do “sujeito”. Todavia, já não se tratava de um meta-sujeito (“classe”), como ainda ocorria nos filósofos da práxis e nos situacionistas, sendo de notar que, com o auxílio de antigas filosofias da “arte de viver”, por exemplo nas prelecções de Foucault sobre a Hermenêutica do Sujeito (Foucault 2004, prelecção realizada em 1981/82), já se anunciava o impulso pós-moderno de individualização social. “O sistema, a estrutura”, a objectividade social transformou-se então, por sua vez, no “recalcado”, de quem “se acreditava ser possível desviar-se”.
Ligada ao activismo dos movimentos, a nova ênfase do sujeito conheceu, em várias ondas, diversas formas de manifestação de politicismo inflacionado. A partir do movimento de 68, desenvolveu-se primeiramente um revivalismo fantasmagórico do marxismo de partido, como abandono provisório da ideologia do movimento na forma de seitas comunistas de cunho marxista-leninista, trotskista e maoísta, mas um revivalismo que não podia ter longa duração, já que não havia mais nenhuma relação social real para tanto. Desde o final da década de 70, os partidos-fantasmas voltaram a transformar-se em larga escala nos chamados “novos movimentos sociais” que se configuravam, de pleno acordo com o paradigma pós-estruturalista, como movimentos monotemáticos particulares e fenomenologicamente limitados (por exemplo, o movimento contra as centrais nucleares). As diversas formas de manifestação do capitalismo que eram alvo de crítica permaneceram sem nexo porque, devido à viragem da teoria da acção e ao consequente regresso do “sujeito” doravante particularizado, já não podia haver qualquer conceito crítico da totalidade negativa.
Nesse contexto também entra o novo feminismo, na forma como evoluiu com base nas primeiras abordagens no movimento de 68. Não por acaso, a relação entre os sexos, no contexto global da viragem da teoria da acção, não tinha tido qualquer importância ou apenas tinha desempenhado um papel secundário. A dissolução da antiga metafísica da legalidade marxista ficou, em todas as variantes, irreflectida na “forma teoria” androcêntrica unidimensional, cujo universalismo abstracto não fora suplantado, mas apenas (também em Foucault) particularizado e atomizado. A formulação adequada de um conceito do moderno patriarcado produtor de mercadorias só teria sido possível em combinação com uma penetração teórica da constituição fetichista, a qual, contudo, só fora tocada tangencialmente e, no fim de contas, deixada de lado. Em seu esquema teórico, o novo feminismo, apesar de muitos estudos meritórios de cunho histórico ou crítico das ciências, permaneceu aferrado ao sistema de categorias androcêntricas não-reconhecido como tal; ele próprio parecia um simples movimento monotemático, e a relação entre sexos, um objecto “relativamente autónomo” ou até mesmo uma “singularidade” no sentido de Foucault. Na prática, esse entendimento tinha como alvo um mero tratamento da contradição nas categorias capitalistas androcêntricas, e o feminismo reduzia-se a uma “luta por reconhecimento”, mais ou menos conforme o modelo do antigo movimento operário, sendo que, após as mulheres conquistarem o direito de voto, facto ocorrido há bastante tempo, restava bem pouca margem de acção (por exemplo, regulamentação de quotas etc.). Por essa razão, a crítica desse novo feminismo, por isso designada “crítica afirmativa”, logo foi compelida a esgotar-se e a encontrar o seu lugar na ordem geral da ideologia do movimento, o que hoje provoca efeitos amargos, na crise mundial do patriarcado produtor de mercadorias.
Assim como a metafísica da intencionalidade, na constituição fetichista pressuposta acriticamente, não logra separar-se de seu pólo oposto, que é a metafísica da legalidade, também o particularismo e o “atomismo” sociológico não conseguem largar seu pólo oposto, a saber, o universalismo ou “holismo”, que corresponde à matriz a priori do contexto da forma capitalista. Por esse motivo, o regresso do universal não-suplantado e androcêntrico por natureza, na forma burguesa e de maneira análoga ao regresso do “sujeito”, teve realmente de ser realizado de modo acrítico; no lugar da crítica da constituição fetichista deixada de lado, logo entrou uma nova metafísica dos direitos humanos, na qual a esquerda teoricamente desarmada começou a ligar-se clandestinamente com o neoliberalismo oficial em ascensão. François Dosse mostra um exemplo disso em Foucault: “Anteriormente ele marcara a Modernidade com a nova figura do ‘intelectual específico’ que renuncia ao universal para engajar-se especificamente nas novas situações que despontam à margem dos sistemas... Só que Michel Foucault, sob a impressão de mudanças radicais actuais, na prática deveria voltar a ligar-se paulatinamente àquela figura de que se separara, a figura do intelectual global que luta pelos valores da democracia... No final dos anos 70 e início dos anos 80, a luta de Foucault estava portanto voltada para os direitos humanos... Com esse posicionamento, ele distanciou-se claramente do seu engajamento inicial de outrora, proclamando, pronto para o combate, a sua solidariedade com os valores da democracia, que até então tinham sido considerados o supra-sumo da paliação... As intervenções de Foucault realizavam-se nas novas lutas em que os interesses estavam voltados para a solidariedade com os princípios universais dos direitos humanos” (Dosse, id., p. 410 s.).
O universalismo burguês abstracto da metafísica dos direitos humanos, que fora criticado em sua essência pelo jovem Marx de forma demolidora (mas ainda sem poder perceber seu carácter androcêntrico), preencheu, pois, o aborrecido lugar vazio de uma crítica radical teoricamente reflectida à totalidade sistémica da socialização capitalista e juntou-se às “críticas locais” atomizadas de diversos fenómenos sem a devida análise; foi o que aconteceu com o Foucault tardio através de súbitas acções de solidariedade com os boat people da Ásia, com o “movimento operário neoliberal” do Solidarnosc da Polónia e com a saída islâmica da revolução iraniana, cuja “dimensão espiritual” o impressionara (Taureck 1997, p. 115). As acções irreflectidas como “turismo de movimentos”, com a presença tanto de celebridades como de activistas, apontavam para a incapacidade de uma análise crítica do contexto em que “algo estava em movimento”; o importante era que se actuasse, de alguma maneira, “contra o poder no poder”, cuja forma histórica já não podia ser registada de maneira nenhuma.
No amálgama formado, por um lado, pela crítica particular ou pela referência superficial aos movimentos cuja relatividade histórico-social permaneceu desconceptualizada e, por outro lado, pelo universalismo dos direitos humanos, reproduziu-se a polaridade burguesa formada pelo carácter particular do tratamento da contradição e pelo carácter geral e abstracto dos ideais da circulação de “liberdade e igualdade”, por trás dos quais espreita a concorrência eliminatória. Daí veio o regresso ao parlamentarismo na forma de “listas arco-iris”, em combinação com o politicismo desapegado de qualquer crítica do contexto da forma social. No fim de contas, o resultado foi o Partido Verde, não apenas na RFA: agora já não como revivalismo do marxismo de partido, mas como partido sem marxismo, entupido com ideologia do movimento do tipo mais parco oriunda de “críticas locais” somadas superficialmente; e na RFA aperfeiçoado com interpretações de filosofia da vida e de vitalismo, na ideologia da alternativa. Esse paradoxal “partido de movimentos” logo se desfez do seu peso-morto ideológico (“democracia de base” etc.) e da militância activista inconsistente, para cair, da mesma maneira que seus antecessores do marxismo de partido, na rápida passagem à “busca da pátria” da classe política do patriarcado produtor de mercadorias. O regresso da metafísica dos direitos humanos desaguou, consequentemente, na ideologia de legitimação das guerras capitalistas de ordenamento mundial e das contra-reformas neoliberais; desenvolvimento esse em que Foucault, certamente, não teria participado.
Porém, uma vez que o longo processo da viragem da teoria da acção permanecera fundamentalmente irreflectido no marxismo ocidental, o deplorável resultado só pôde ser criticado externa e moralmente. Na medida em que a ideologia do movimento guiada pela metafísica da intencionalidade tinha continuidade paralelamente à constituição do parlamentarismo verde, ela apenas lograva conjurar o fraco “sujeito” de uma falsa “autonomia”, que na verdade permaneceu determinado de forma totalmente heterónoma. O conceito dessa “autonomia” (implicitamente concebida na teoria da acção) era, desde o início, difuso; ele transportava uma pretensão, de modo nenhum declarada, de abrir uma margem de acção directa, contra o curso das coisas capitalistas enquanto tal incompreendido (na forma de movimentos ou de contextos de vida), uma margem de acção que logo foi frustrada com o início da crise mundial da 3ª Revolução Industrial.
O facto de eu ser paranóico está longe de querer dizer
que não esteja a ser perseguido.
(Woody Allen)
A viragem do marxismo ocidental para a teoria da acção, uma viragem que na práxis ideológica pós-moderna se tinha desacoplado da teoria de Marx em geral, em vez de continuar a desenvolvê-la, deixou um esqueleto no armário, a saber, a crítica da economia política, a crítica que se ocupa com as complicadas “legalidades” da máquina social capitalista na base da constituição fetichista, a análise continuada do processo capitalista “transformador da sociedade”, na sua unidade de objectivação e tratamento (subjectivo) da contradição, incluindo ideologias assassinas. A solução aparente dessa problemática não liquidada produziu a corrente talvez mais importante da Nova Esquerda, surgida em Itália, paralelamente ao “marxismo estruturalista” de cunho althusseriano e à atomização foucaultiana da crítica: o chamado operaismo. O ponto de partida foi a situação específica da jovem população oriunda do Mezzogiorno, que afluía às indústrias fordistas do norte de Itália nos anos 60 e ainda não internalizara a disciplina fabril do “trabalho abstracto”. Enquanto os regimes de “modernização atrasada” de capitalismo de Estado, na periferia do mercado mundial, tinham imposto a chicote essa acção disciplinadora em nome de uma ideologia de legitimação “marxista”, na Itália, a partir de uma situação semelhante, desenvolveu-se uma determinada “militância operária” contra o regime fabril fordista-ocidental; uma resistência legítima, da perspectiva aqui adoptada, mas desde logo também uma forma específica de tratamento limitado da contradição, o qual, na sua imediatidade, pôde tornar-se um campo de referência teórica para intelectuais de esquerda.
O pensamento do operaismo (“obreirismo”) surgido desse modo, como ideologia de legitimação dessa militância directa, assume agora um percurso peculiar. A luta contra o regime do trabalho fordista apresentava-se como “luta contra o trabalho”; mas isso era uma embalagem enganadora. Afinal de contas, o que se visava era apenas a manifestação específica da disciplina fordista, não se tocando na moderna ontologia do trabalho enquanto tal, como no caso dos situacionistas; na verdade, a “luta contra o trabalho” fenomenologicamente limitada nunca saiu do paradigma tradicional da “libertação do trabalho” (ontológica). Partindo-se de uma ligação directa ao tratamento da contradição “do militante operário” (que, sem surpresa, deveria voltar a evoluir em breve), não era de modo algum possível uma crítica da ontologia do trabalho. O que restou foi uma práxis ideológica específica do operaismo que levou ao extremo o entendimento truncado da teoria da acção, transformando a relação de capital em pura subjectividade, e que a partir dos anos 70 passou a exercer influência em muitos países na “esquerda do movimento”.
A ideia velha e relha da ontologia do trabalho, de que a “classe operária”, como “subjectividade proletária e operária”, seria uma “exogenidade sempre presente no sistema” (Negri 1977, p. 41), ou seja, existiria simultaneamente “no interior” do capital, enquanto sujeição, e “no exterior” do capital, enquanto ontologia do trabalho, exclui à partida um conceito crítico da constituição do moderno patriarcado produtor de mercadorias sobrejacente às classes. Desligado da sua função limitada e tornado supérfluo historicamente como “luta por reconhecimento” na relação de capital, o conceito de luta de classes passa por um processo de des-historização e, de maneira semelhante à dos filósofos da práxis, recebe uma carga de mitologia do sujeito abstracto, para além de seu antigo domínio de objecto real. Agora não “há” mais nenhuma objectividade (negativa) de desenvolvimento capitalista, já só há a luta de classes “sozinha em casa”. Como diz Mario Tronti: “Também nós vimos em primeiro lugar o desenvolvimento capitalista e depois as lutas operárias. Isso é um erro. É preciso inverter o problema, mudar o sinal, voltar ao princípio: e o princípio é a luta de classes do proletariado” (cit. a partir de Birkner/Foltin 2006, p. 11). Segundo Martin Birkner e Robert Foltin em seu trabalho sobra o tema, isso seria “o elemento de ligação das diferentes nuances operaísticas..., que representa a diferença básica em relação ao objectivismo da ortodoxia marxista” (Birkner/Foltin, id., p. 24). Todavia, o objectivismo da antiga metafísica da legalidade não é criticado como entendimento positivista e consequentemente afirmativo da objectivação capitalista plenamente real; pelo contrário, tal objectivismo é simplesmente invertido imanentemente na teoria da acção subjectiva.
Isso, por si só, não é nada de novo. O operaismo, porém, dá um passo decisivo adiante do marxismo ocidental. Ele não põe de lado as categorias da crítica da economia política (e por conseguinte as categorias reais); pelo contrário, integra-as directamente na viragem da teoria da acção. As classes sociais e sua “luta” imanente (o mero tratamento da contradição no interior do capitalismo) já não surgem constituídas pelas categoriais da matriz a priori desenvolvidas e objectivadas num processo histórico, como em Marx; dá-se exactamente o contrário, pois agora considera-se que tais categorias são por sua vez constituídas subjectivamente pela “luta de classes”. Isso significa (de certo modo com base em Althusser) instituir a “luta de classes” como princípio, o qual primeiramente gerou e gera as ‘classes’ ininterruptamente, como seu ponto de partida” (Birkner/Foltin, id., p. 58). Bastante paradoxal: a “luta de classes” deverá então existir antes e independentemente das classes; ela é elevada à condição de “princípio” metafísico constituinte, tomando assim o lugar da constituição fetichista. Esse “princípio” é positivizado e ontologizado, exactamente como as antigas “leis sociais objectivas”, mas precisamente numa feição subjectivizada, que apenas recai no outro pólo da metafísica real capitalista.
A dissolução da objectivação fetichista em meras relações de vontade de “sujeitos” ontológicos, consequentemente já insusceptíveis de serem indagados sobre a sua constituição e acabando por tornar-se o a priori tácito, abrange coerentemente a própria forma da mercadoria. Assim, referindo-se à teoria marxista, surge “o famoso primeiro capítulo da primeira parte sob o título ‘A mercadoria’ como análise e crítica do poder político (!) de uma classe sobre outra” (Birkner/Foltin, id., p. 81). Aquilo a que aí se alude como posição do “marxismo autónomo” norte-americano de Harry Cleaver é válido para o operaismo como um todo. De certo modo, a crítica marxiana da economia política é violentada pela teoria da acção, e o ponto de partida da crítica marxiana da forma da mercadoria, do dinheiro e do trabalho abstracto simplesmente foi virado de pernas para o ar. O resultado é a subjectivização integral das categorias capitalistas, como finalização “coroando” a viragem da teoria da acção, celebrada pelos operaístas como “viragem copernicana” da teoria crítica. “A relevância dos momentos subjectivos”, afirma Antonio Negri, “e o surgimento do ponto de vista subjectivo de classe tornam-se agora o elemento mais importante” (Negri 1977, p. 38). Dessa forma, enquanto a constituição fetichista é levada a desaparecer do modo até aqui mais consequente, fecha-se a última via estreita para a formulação de uma “ruptura ontológica” em referência directa às categorias da reprodução capitalista (que em Foucault simplesmente são obnubiladas e emudecidas).
Na pura luta de “sujeito contra sujeito”, o sujeito metafísico “classe operária” leva, porém, uma vantagem ontológica, enquanto ontologia do trabalho; de maneira absurda, ele é nomeado demiurgo tanto da constituição como do desenvolvimento continuado do capitalismo. É “abelha” e “mestre-de-obras”, num só, para toda a eternidade. Toda a “legalidade” se dissolve em funções da “luta de classes”, quer seja a forma da mercadoria enquanto tal, o trabalho abstracto e o processo de valorização, quer seja a composição orgânica do capital, a queda tendencial da taxa de lucro etc. A “coação muda da concorrência” (Marx) desaparece como categoria sistémica sobrejacente na simples “luta de classes”; a concorrência entre os capitais e as economias nacionais é obnubilada, ou deixada de lado como mero factor perturbador, do mesmo modo que a concorrência entre assalariados/as.
A “classe operária” ontologizada, sempre vista como “lutadora”, é considerada a “força motriz” central “do desenvolvimento” (Birkner/Foltin, id., p. 82), verdadeiramente a única força motriz. Afinal de contas, o capital, como “contra-sujeito” (em vez de relação social fetichista), reage supostamente sempre apenas às “lutas”, e daí resulta “tudo”. A existência de uma inegável participação da “luta de classes” no processo de modernização capitalista, como “luta por reconhecimento” e tratamento da contradição imanente, não só é hipostasiada desmesuradamente, mas também é tomada de modo totalmente acrítico (mais uma vez à semelhança dos situacionistas) como identidade positiva imediata de imanência e transcendência. Neste constructo radica também aquele conceito de falsa “autonomia”, que desde a década de 80 grassa na ideologia do movimento.
Assim, o sujeito metafísico “classe operária” é autor não só das suas próprias actividades, mas também das de seus opositores e de todo o processo histórico-social em geral; torna-se doravante a “última instância” subjectiva, em vez da “economia” objectiva — uma interpretação não menos reduzida e unidimensional, apenas invertida. “Somos tudo”, eis como poderia ser formulada a profissão de fé desse meta-sujeito alucinado ou, melhor dizendo, paranóico; segundo o pensamento de Adorno, um assentamento no máximo da lógica da identidade, ao mesmo tempo uma deturpação clownesca da crítica marxiana da economia política e uma incrível expansão do poder de vontade sem pressupostos. De certo modo, a “classe” figura, como em Lukács, enquanto sujeito-objecto da história, só que, diferentemente de Lukács, enquanto dissolução mais ampla da objectividade histórico-social no sujeito sem pressupostos. O facto de essa “classe operária” demiúrgica, enquanto super-homem da história, ser de algum modo incorporada e subordinada ao seu próprio princípio metafísico da “luta de classes” (aquele empréstimo obtido de contrabando junto do estruturalismo althusseriano), só lembra de longe o problema da constituição fetichista, por assim dizer como “resto reificado”.
Não admira que Negri, à semelhança de Althusser, simplesmente declare sem mais a problemática fetichista obsoleta, chegando mesmo a proclamar “o fim da validade da lei marxiana do valor” (Birkner/Foltin, id., p. 88). O que resta, como generalidade social abstracta, é o eterno “paralelogramo de forças” de meras relações de poder, como nos filósofos da práxis e em Althusser; e, nessa medida, o fluido de uma ontologia do poder, como em Foucault, a qual é pensada ideologicamente emancipada das leis categoriais da forma da relação de capital. Aqui se deve lembrar que o antigo marxismo do movimento operário já reduzira a relação de capital essencialmente a um poder jurídico-político da “classe capitalista”, determinada apenas sociologicamente, sobre o sujeito ontológico do trabalho (enquanto “propriedade privada dos meios de produção” e “apropriação da mais-valia” etc.). Também aí a famosa “viragem copernicana” do operaismo pôs um ponto final na teoria da acção, quando o conceito de poder foucaultiano foi transferido directamente para a relação de capital, que em Foucault se tornara simplesmente sem interesse: um entendimento já não inserido na linha de Marx, mas na linha de Heidegger.
Há muito tempo que o antigo politicismo e “estatismo” marxista preparara essa dissolução, no contexto do entendimento positivista da economia política: a partir da concepção social-democrata do “capitalismo organizado”, criada por Hilferding no período entre as duas guerras, o Estado já não surgia como factor “relativamente não-autónomo” da reprodução capitalista, mas como “soberano” abrangente das categorias, com ilimitado poder de comando. A teoria do “estatismo integral” e da suposta eliminação da esfera da circulação, ideia criada por Horkheimer sob a impressão do estalinismo e do “Estado planificado” nacional-socialista, também caminhava na mesma direcção; embora implicitamente frustrada pela insistência de Adorno na temática da “falsa objectivação” e na problemática do fetiche. Ainda que o Estado regulador keynesiano do pós-guerra não passasse de um débil reflexo desse estatismo e logo devesse esgotar-se na nova dinâmica do mercado mundial, o politicismo de esquerda tinha prosseguido essa interpretação ideológica, até ao completo desacoplamento da crítica da economia política. No momento em que o operaismo começou a alimentar essa corrente com a ontologia do poder heideggeriana de Foucault, o Estado passou a surgir totalmente como a própria expressão directa de dominação do “poder”; e já não como “soberano” absoluto sobre as categorias da reprodução, mas como pura vontade do “sujeito” capitalista contra as “lutas operárias” e movido por estas, portanto para além de toda a objectivação fetichista.
Para Negri, com isso, o Estado, sob o postulado da dissolução da relação de capital numa luta imediata de “sujeito contra sujeito”, deixa de ser “regulador interno”, passando então a afirmar que “a sua função consiste em substituir a relação automática de capital” (Negri 1977, p. 23). O “sujeito automático” desapareceu e, portanto, também a possível crítica a tal sujeito. Segundo Negri, “valorização capitalista”, “reprodução do capital, circulação e realização tendem a identificar-se na categoria da dominação política” (id., p. 25).; o capitalismo nada mais seria senão uma forma de “dominação directa (!) do sistema estatal” (id., p. 28), e inclusive de uma “valorização política” (id., p. 47). Desapareceu também o conceito marxiano de crise: “A análise da relação entre desenvolvimento e crise ... transforma-se — sem resquícios de ilusões objectivistas — nos conceitos de uma relação inteiramente política” (Negri 1972, p. 73). Na evolução subsequente, as crises, para o operaismo, são apenas “meios específicos da luta de classes a partir de cima” (Biorkner/Foltin, id., p. 80); a crise económica mundial de 1929 é entendida, numa percepção que chega a ser grotesca, como “resposta tardia à Revolução Russa de Outubro de 1917 e às lutas de classes dos anos 20” (id., p. 80), ou seja, como função das “lutas operárias” e como reacção a tais lutas que, por sempre já se posicionarem supostamente “contra a relação de capital, conduzem-no a uma situação de crise” (Negri 1977, p. 23). Como acontece no jovem Offe, a crise surge como mera expressão do choque entre intenções de vontade subjectivas.
Consequentemente, o operaismo também dissolveu completamente a elaboração teórica nas “lutas operárias” e radicalizou o postulado da “unidade entre teoria e práxis” a priori, em vez de questioná-lo. A teoria foi reduzida à “análise operária”, “ciência operária” ou “análise militante” sociologicamente reduzida, que eternamente reflecte ou pondera de modo reflexivo os “ciclos das lutas” e a “recomposição do proletariado”, ou a reconfiguração do capitalismo daí resultante, sem poder desenvolver ainda nenhum conceito de ruptura da relação social basilar, “no interior de” cujas categorias acontecem as “lutas”. Assim, acabados os antigos debates sobre a transformação objectivista da teoria da estrutura, o conceito de “suplantação” do capitalismo ficou totalmente vazio e tornou-se apenas uma expressão desprovida de conteúdo. Das “lutas”, que ainda poderiam durar mil anos, alguma coisa havia de vir; o “sujeito” ontológico apenas precisaria de fazer-se valer o bastante, quando na verdade permanece amarrado às suas condições constitutivas. Dessa forma, a reflexão teórica ainda está ligada, para além do marxismo ocidental, à rotina do eterno tratamento da contradição, e degradada (mais uma vez com referência a Foucault) à mera condição de “meio e instrumento de trabalho”, enquanto “parte da organização da classe” (Birkner/Foltin, id., p. 8 sg.) na “contrapráxis” imanente imediata. Com isso, o operaismo também concluiu o carácter da reflexão crítica supostamente radical como “razão instrumental”, assim desmentindo involuntariamente a sua crítica superficial da “legalidade”.
Se, com a teoria da acção, o operaismo dissolveu as categorias historicamente específicas do capitalismo enquanto tais, inclusive as económicas, no sujeito e na ontologia heideggeriana do poder de Foucault, então desde logo só restou, ao contrário de Foucault e da sua atomização da crítica em “críticas locais”, e à semelhança do marxismo ocidental, o sujeito metafísico “de classe”, como única referência de toda a sociedade; o que foi inicialmente formulado à maneira do marxismo de partido e em ligação com tentativas de fundação de partidos. Porém, no processo da 3ª Revolução Industrial, a obsolescência desse velho meta-sujeito não podia passar desapercebida. Através de diversos passos intermédios, nos quais a ideologia operaísta se dispersou do paradigma de produção da fábrica para cair nas diversas “esferas sociais”, ele acabou por se transformar paulatinamente. A “adopção de teorias pós-estruturalistas”, dentre as quais se podem citar as de Foucault e de Deleuze/Guattari” (Birkner/Foltin, ibid., p. 33), complementa desde então a ontologia geral do poder, também mediante a particularização e a fragmentação do sujeito de classe, entendido outrora como “unitário”.
O “pós-operaismo”, doravante assim chamado, não suplantando o velho paradigma da luta de classes no sentido da crítica do fetichismo, mas apenas dispersando-o numa pluralidade superficial de “situações sociais” imediatas e começando a bazofiar da “iniludível multiplicidade dos sujeitos (Birkner/Foltin, ibid., p. 34), logra, por um lado, a atomização foucaultiana da crítica, a qual, por outro lado, continua sob a capa de um conceito na lógica da identidade: em sua desconexão empírica (cuja verdadeira conexão permanece, sem reflexão, na relação de dissociação-valor e na concorrência universal), as “subjectividades” sociais incorporadas indistintamente deverão ser conectadas, de modo puramente externo, no novo meta-sujeito a-histórico e difuso da chamada multitude [multidão] (Hardt/Negri 2002). Sejam migrantes africanos que se afogam no Mar Mediterrâneo em busca de possibilidades capitalistas de “trabalho”, sejam prestadores de serviço de “trabalho afectivo” com um sorriso forçado nos lábios, seja a “boémia digital” do capitalismo via Internet, sejam assalariados defendendo neo-nacionalistamente a sua existência na indústria do armamento, ou a clientela do caudilhismo baseado no petróleo de um Chávez — todos já integram sempre a “multitudeem luta”. E agora do outro lado já não se encontra o Estado (nacional), mas um Empire [Império] global com carácter igualmente difuso (Hardt/Negri 2002), sendo que o novo “imperialismo global ideal” (cf. Kurz 2003) não é analisado na dialéctica da crise entre Estado nacional e globalização capitalista na 3ª Revolução Industrial, mas surge imediatamente como expressão global directa da ontologia do poder.
Partindo dessa posição, a crítica da ideologia e até mesmo a teoria da ideologia positivista tornaram-se totalmente impossíveis, tal como em Foucault, já que deixou de existir uma referência à constituição social, que se transformou numa pluralidade de meros actos de vontade, tendo a ontologia do poder como pano de fundo. Não obstante, quando essa “multiplicidade” empírica de “subjectividades”, diferentemente de Foucault, volta a ser submetida a uma conexão com a expressão vazia da multitude na lógica da identidade, são possíveis incorporações não apenas sociais, mas também incorporações inteiramente arbitrárias do ponto de vista do conteúdo ideológico, incluindo sujeitos islâmicos assassinos. Não existe mais nenhum critério de distinção de conteúdos. Tudo o que se mexe e movimenta é “aceite” quase sem distinção: até anti-semitas “crítico-sociais” são, em caso de dúvida, filhos da grande mãe multitude! Extingue-se toda e qualquer diferenciação na falta de conteúdo do conceito de multitude. Nessa lógica aditiva absurda, consciente e explicitamente antidialéctica, é indiferente se o bárbaro atentado terrorista de 11 de Setembro foi perpetrado pela parte islâmica integrante da multitude ou se (segundo a teoria da conspiração) se trataria de uma “reacção” do Empire, que teria destruído ele mesmo as torres gémeas como “resposta” às gloriosas “lutas”: agora é mesmo a multitude que sempre faz e provoca “tudo”. “Somos tudo” — o meta-sujeito alucinadamente des-historizado tornou-se, na sua multiplicidade, definitivamente paranóico.
Se o operaismo transformara as categorias da crítica da economia política na mera subjectividade da “luta de classes” e concluíra a viragem da teoria da acção, o pós-operaismo continua nessa base o “amarrar” da teoria a uma práxis pré-estabelecida, até ao completo desarmamento perante ideologias assassinas, que brotam na múltipla “diversidade” de “subjectividades” de crise. Nesse processo, o verdadeiro ponto crucial é constituído pelo repúdio explícito do conceito de fetiche, que ameaça como último “fantasma de Marx”, após a dissolução do contexto categorial da reprodução capitalista na metafísica da intencionalidade. Dar o golpe de misericórdia nesse escândalo foi o objectivo assumido por uma outra variante do pós-operaismo, que tem como representante sobretudo John Holloway. Em seu livro Mudar o mundo sem tomar o poder (Holloway 2002), o autor em primeiro lugar põe em contraste, mais uma vez, em recapitulação, a conexão marxista tradicional de metafísica da legalidade (objectivismo), tomada do poder político e planificação estatal versus a metafísica da intencionalidade da ideologia do movimento. Não obstante, diferentemente do pós-operaismo de Negri, o autor lança mão do conceito marxiano de fetichismo, como determinação essencial das relações capitalistas, e tenta reformular esse mesmo conceito pós-operaisticamente; e recorrendo precisamente a Adorno.
Na argumentação de Holloway, o desenvolvimento do conceito de fetiche faz um percurso peculiar. Por um lado, tal como faz todo o operaismo, prolongando o conceito marxista tradicional de capital na teoria da acção, ele parte da dominação jurídico-política directa dos sujeitos capitalistas: “Isso é o capital: a afirmação do comando sobre outros na base da ‘propriedade’ do feito e, em consequência, dos meios de fazer, da condição prévia do fazer daqueles que se comanda.” (Holloway, id., p. 44). De modo bem proudhoniano, fala-se aí de “roubo” (id., p. 46) que é perpetrado contra trabalhadoras e trabalhadores. Por outro lado, quase no mesmo fôlego, ele constata lapidarmente a objectivação fetichista em sentido marxiano: “Na sociedade capitalista, o sujeito não é o capitalista... O sujeito é o valor” (id., p. 48). Ambas as afirmações se mantêm sem interrupção e sem qualquer mediação.
À semelhança dos filósofos da práxis, Holloway trabalha aí com um conceito ontológico a-histórico do “fazer” (social), cujo “fluxo criativo” foi permanentemente rompido no capitalismo pelo “poder instrumental” (id., p. 41). Esse “fazer criativo” invocado constantemente funde-se, em princípio, com o conceito de trabalho, que no fim de contas é afastado da determinação da relação fetichista. O fetiche da mercadoria surge no sentido totalmente truncado do marxismo do movimento operário como mero obscurecimento da origem da formação do valor no trabalho perpétuo: “A mercadoria assume vida própria, em que se extingue a sua origem social no trabalho humano” (id., p. 62). Como acontece em Negri & Cª, Holloway atém-se aqui à ontologia do trabalho num modo de expressão hesitante. Daí se segue uma formulação do oposto social, que segue inteiramente o entendimento jurídico-político (posteriormente, o entendimento da ontologia do poder) da ideologia da luta de classes: “O poder instrumental rompe o reconhecimento mútuo: aqueles sobre os quais se exerce o poder não são reconhecidos” (id., p. 43). Involuntariamente, Holloway aqui faz alusão à “luta por reconhecimento” nas categorias capitalistas, uma luta historicamente já sem razão de ser e há muito esgotada, que inviabilizara precisamente a percepção e a crítica da constituição fetichista.
A definição deficitária que Holloway faz do conceito de fetiche continua numa ideologia positiva do sujeito, que segue igualmente o desenvolvimento geral que vai do “sujeito objectivo de classe” do marxismo de partido para o sujeito puro e afinal fragmentado da ideologia do movimento. A crítica do sujeito do estruturalismo, insuficiente e seguindo um objectivismo meramente particularizado, mais uma vez não é suplantada pela crítica da constituição fetichista, mas simplesmente é dividida em si, visando a “salvação do sujeito”; ela na verdade era “compreensível”, mas realmente apenas foi cunhada para o conceito burguês de sujeito, enquanto “identidade” com o “poder instrumental” (id.; p. 89), e o sujeito não coincide com isso: “Se se identifica o sujeito burguês com a subjectividade como um todo, no entanto, está-se, de modo assassino (!), a deitar fora o bebé com a água do banho” (id., p. 89). Mas o que é mesmo que deve ser essa “subjectividade como um todo”? Holloway contrapõe ao sujeito constituído na forma da Modernidade um sujeito “existencial” que supostamente jaz de algum modo “por baixo”, o qual surge no lugar da “classe”; ou seja, uma espécie de ontologia do sujeito com cunho mais heideggeriano. Assim, a “forma sujeito” também é excluída do conceito de fetiche; não admira que a abordagem de Holloway, baseada na ontologia do trabalho e do sujeito, permaneça no horizonte androcentricamente universalista, e que a dissociação sexual no nível conceptual do “valor” (por conseguinte também o capitalismo como patriarcado produtor de mercadorias) seja para ele impensável. A relação capitalista entre os sexos é continuadamente escamoteada nos conteúdos e surge apenas genericamente naquele “a” do feminino usado como political correctness gramatical, qual apêndice sem importância.
Nessa linha de pensamento, o conceito de fetiche não apenas permanece androcentricamente universalista; ele também não acarreta uma análise do contexto da forma fetichista e de suas leis do movimento negativamente objectivadas, no sentido do “sujeito automático” de Marx, que Holloway cuidadosamente tenta evitar tematizar. Uma vez que é abolida a mediação entre objectivação e intencionalidade, exactamente como no restante (pós-)operaismo, o discurso das “formas fetichizadas, alienadas, definidoras do capitalismo” (id., p. 165), que todavia é um discurso elevado, permanece inteiramente vazio e indeterminado. De onde é mesmo que vêem essas “formas alienadas”? Foram imaginadas por “esquizofrénicos”, surgiram da vontade de apropriação de sujeitos de dominação não constituídos, ou será que o sujeito da autenticidade “existencial”-ontológico de algum modo se enganou a si próprio, numa espécie de acidente de trabalho histórico? Quando Holloway formula a crítica caracteristicamente com o postulado de que teríamos de “nos libertar do feitiço da bruxa” (id., p. 109) (talvez as mulheres sejam culpadas de tudo?), então com isso ele mostra apenas a sua completa falta de ideias no tocante à constituição fetichista, que enquanto tal não desperta nele qualquer interesse.
O “fetiche”, seja ele o que for, continua uma expressão vazia. No fundo, trata-se de outra coisa: segundo ele, a objectividade negativa não deveria ser analisada criticamente com a finalidade da sua suplantação histórica, mas sim “eliminada com um golpe de magia”. Para isso é agora instrumentalizada a crítica que Adorno faz da lógica da identidade e do “pensamento identificador”. Em Adorno, a lógica da identidade, violadora de todo o conteúdo e negativamente “definidora”, é derivada epistemologicamente da forma fetichista do valor (já fiz referência à redução à ideologia da circulação que aí acontece). Numa espécie de truque astucioso, Holloway tenta agora “aplicar” a crítica da lógica da identidade à própria conexão constituinte da forma: a objectividade negativa, por sua vez, não deverá ser “identificada” como tal, já que isso seria uma “abordagem de rígido fetichismo” (id., p. 101), uma “fetichização do fetichismo” (id.) Na realidade, trata-se-ia da “natureza do fetichismo em contradição consigo próprio” (id., 101). A auto-contradição em processo do capitalismo não é percebida como tal no interior da constituição fetichista (nem, por conseguinte, no interior da lógica da identidade), mas, em vez disso, passa a ser dividida, por um lado, na “forma alienada” e, por outro, na autonegação desta, que é supostamente imediata e já se abre per se “emancipatoriamente”.
Depois de ter “aberto”, desse modo, o conceito de fetiche com reduções conceptuais, Holloway prossegue o abastardamento e a retroflexão afirmativa da crítica adorniana da lógica da identidade, ao voltar-se contra toda e qualquer “separação entre a constituição e a existência” (id., p. 99): “A forma do valor, a forma do dinheiro, a forma do capital, a forma do Estado etc. não são estabelecidas de uma vez por todas no princípio do capitalismo. Pelo contrário, estão constantemente em discussão (!), são constantemente questionadas (!) como formas das relações sociais ...” (id., p. 109). A constituição histórica do capitalismo, do século XVI ao século XIX, foi realmente uma luta de imposição permeada de inúmeras rupturas, que conduziu no entanto nos dois últimos séculos a um processo de internalização, em que a constituição fetichista moderna foi ancorada como “segunda natureza”. Com falsa imediatidade, Holloway estabelece um curto-circuito entre o sofrimento incessante dessa socialização negativa e o “questionamento” supostamente permanente da mesma, já em função da mera “existência” em suas formas. O facto de ele colocar a “constituição” historicamente “combatida” num patamar imediatamente idêntico ao da “existência quotidiana” (per se já sempre suposta como “resistente”) no capitalismo há muito tempo imposto até hoje, do mesmo modo que a “experiência (...) da fetichização e da desfetichização” (id., p. 101) — isso mesmo é uma definição no mais alto grau da lógica da identidade.
Desse modo, na medida em que as categorias capitalistas são “entendidas como categorias em aberto e ininterruptamente objecto de luta” (id., p. 114), Holloway equipara a camada profunda da constituição com cada movimento superficial actual (por exemplo, transformações institucionais), ou seja, com a “transformação do mundo”, a interpretação real e o permanente tratamento da contradição imanentemente capitalistas; um contexto do qual ele não tem a mínima ideia. Ele ilude-se com a luta pela interpretação real, como se fosse precisamente um “estar em luta” das próprias categorias, o que, evidentemente, não é o caso. É o que se vê também nos seus exemplos bastante tolos: “O valor, como forma em que nos relacionamos reciprocamente”, afirma Holloway, já seria posto “em questão”, “cada vez que uma criança pega num doce numa loja sem se dar conta de que devia dar dinheiro em troca, cada vez que trabalhadores se negam a aceitar que o mercado dite que o seu local de trabalho deveria ser fechado ou que deveriam perder os empregos ...” (id., p. 109). Nem a socialização das criancinhas dentro da forma do valor, nem muito menos a “luta por postos de trabalho” tem minimamente a ver com a crítica categorial. Como no caso dos filósofos da práxis, interpreta-se ou supõe-se ilusoriamente o eterno tratamento da contradição como o “totalmente diferente”, as categorias não-suplantadas que, devendo representar sempre imediatamente o seu próprio contrário, poderiam ser arbitrariamente “redefinidas”: “o dinheiro”, afirma Holloway, “é (!) a batalha devastadora de monetarização e anti-monetarização” (id., p. 110).
Uma vez que Holloway equipara, na lógica da identidade, a auto-mediação contraditória da relação fetichista com uma contradição supostamente em constante latência contra as categorias dessa relação, ele acaba por eliminar também a mediação da crítica radical, que só pode constituir-se num contraprocesso histórico, a partir da experiência do sofrimento. Para Holloway, numa espécie de conceito heideggeriano de “existência” como “resistência directa”, “quotidianamente” a “desfetichização” a qualquer hora dá uma guinada na esquina numa “enorme tempestade de imprevisibilidade” (id., p. 118). Claro que isso só pode acontecer porque ele, apesar da declaração constantemente repetida de que não haveria nenhum “sujeito inocente” (id., p. 167, entre outras), na realidade pressupõe, como já foi assinalado, um sujeito-“existência” ontológico (quase não dá para esconder sua masculinidade) escondido “sob” as categorias, prometendo por isso a “reconstrução da subjectividade perdida” (id., p. 131).
Na medida em que a “existência” no capitalismo per se já deva trazer sempre consigo uma “desfetichização”, tanto mais Holloway desarma a crítica perante as ideologizações assassinas que emergem do tratamento da contradição “existencial”; seguindo aqui, totalmente, a linha do restante (pós-)operaismo. “O desenvolvimento actual do capitalismo”, afirma Holloway quase no fim do seu ensaio, “é tão aterrorizante que provoca uma resposta terrorista [...], resposta que, sendo bastante compreensível (!), simplesmente reproduz as relações de poder que busca destruir (!). E ainda assim esse é o ponto de partida (!), e não a rejeição deliberada do capitalismo como forma de organização (!)” (id., p. 236). Crítica radical e terrorismo islâmico ou de outro tipo, emancipação e barbárie já são quase idênticos no “grito do não” existencial (como se depreende das ininterruptas metáforas vazias de Holloway), o que de modo nenhum pode ser escamoteado com formulações-álibi.
Holloway põe um ponto final, agora realmente último, no longo processo de viragem da teoria da acção, tal como este se realizou desde os filósofos da práxis, passando pela obnubilação pós-estruturalista das categorias capitalistas até à sua subjectivização operaística, subjectivizando existencialistamente o próprio conceito de fetiche até então rechaçado. Com isso ele não rompe, como pretende, o velho dualismo de metafísica da legalidade e metafísica da intencionalidade, que designa, nas suas palavras, como dualismo de “leis objectivas” e “lutas subjectivas” (id., p. 143), ou de “determinismo e voluntarismo”; em vez disso, desterra o último “fantasma de Marx” para um voluntarismo ideologicamente radicalizado da “existência” imediata.
Dessa maneira, Holloway fornece à consciência inculta do movimento uma verdadeira teoria da hostilidade à teoria, uma vez que ele, ultrapassando o (pós)-operaismo restante, nem sequer amarra o pensamento teórico ao tratamento da contradição imanente, mas degrada-o imediatamente a “parte da expressão da nossa existência quotidiana como luta” (id., p. 125). Para Holloway, a teoria já só pode ser “reflexão directa (!) da (e não ‘sobre a’) experiência” (id., p. 37). Nesse empirismo da “existência”, “conhecimento acerca de” é per se “simplesmente a outra face do poder instrumental” (id., p. 78). Na verdade, aqui ainda se fica aquém da razão instrumental, porque a reflexão já não é sequer instrumentalizada por uma finalidade social imanente, mas sim pelo ser-assim [Sosein] imediato. Até a altura do voo de uma galinha já é considerada uma “subida” reprovável, e o esforço do conceito, que não pode coincidir com a “existência” encontrada, fica à mercê da denúncia, como pretensão supostamente arrogante de “omnisciência”. Assim se cala também a “reflexão sobre” a própria constituição social, proibindo à elaboração teórica qualquer distanciamento.
Os movimentos pós-verdes dos anos 90 ficaram presos até hoje no quadro de referência teórico do pós-estruturalismo e do pós-operaismo que, não logrando construir qualquer oposição ao universalismo burguês androcêntrico, continuam a esgotar-se na particularidade de uma “crítica afirmativa” fenomenologicamente limitada. Esses movimentos, marcados pelo desarmamento teórico pós-moderno, já são apenas órfãos de uma história das esquerdas não-compreendida e não-digerida, que celebram em events a própria impotência, precisamente por insistirem numa “unidade entre teoria e práxis” degradada.
Quando aqui ainda se fala de “capitalismo” (por exemplo, no movimento de crítica da globalização), ou se trata apenas de uma fórmula vazia e aconceptual, ou a crítica reduz-se imediatamente ao “capital financeiro”. Mas até mesmo a eventual crítica contra essa redução apenas consegue recorrer, quando muito, desamparadamente e sem mediação, aos resquícios do marxismo tradicional, uma vez que o pensamento pós-estruturalista / pós-operaístico, afogado na metafísica da intencionalidade, não dispõe de meios para tanto (e ainda menos de meios para a crítica da ideologia). O activismo roda em falso e tornou-se auto-referencial: o movimento é o movimento é o movimento...; e entretanto até já figura como “movimento dos movimentos”, que se compõe apenas de uma soma acrescida mecanicamente de pontos de vista de interesses particulares, “críticas locais” e actividades de tema único, como se pode vê-los a palrar de modo desencontrado e incoerente nos “fóruns sociais” internacionais, com centenas de milhares de participantes.
O importante é estar presente, embora isso não resulte em nada. A tão orgulhosamente evocada “diversidade” de abordagens, acções, “diferentes práticas”, modos de auto-representação e de expressão coincide com uma completa candura comum perante as categorias capitalistas e a sua determinação negativa da essência, cuja tematização como “pecado essencialista” sucumbe ao exorcismo dos caciques ideologizados pelo pós-estruturalismo e à sua grelha de percepção reduzida com base na teoria da acção. Não obstante, a soma das “intencionalidades” é igual a zero. Por isso, o “movimento dos movimentos” não consegue desenvolver qualquer tipo de poder de intervenção; reduz-se a um protesto simbólico que já nem sequer é capaz de tratar a contradição imanente real. A designação desses activismos simbólicos como “lutas” é apenas um eufemismo confrangedor. Uma vez que não chega a ser conceptualizado o conhecimento parcial de já não se poder evocar nenhum “sujeito” a priori conforme o modelo da “luta de classes”, as “diferenças” da diversidade social de “posições” no capitalismo mundial persistem, sem perspectivas, no seu ser-assim atomizado capitalistamente imanente. Não se desenvolve qualquer dialéctica entre “diferenças” encontradas e a serem levadas a sério, por um lado, e uma integração transcendente visando uma determinação de objectivos históricos comuns e uma transformação social mundial, por outro lado (cf. a este respeito: Scholz 2005).
Como a única coisa em comum é a candura teórica na diversidade da práxis dos movimentos, já não é possível construir uma unidade de acção com capacidade de intervenção precisamente na redução da teoria da acção. A antiga unidade de acção (marxista tradicional) no contexto de “luta por reconhecimento” e “modernização atrasada” já passou o prazo de validade, mas em seu lugar não pode entrar nenhuma nova determinação de objectivos com capacidade de integração. A expressão vazia da multitude apenas expressa a nulidade da desconexão de “subjectividades” parciais, que esperneiam em sua própria forma social irreflectida, como um escaravelho virado de costas. E o facto de essa forma também não ser integral, mas revelar-se (no sentido da teoria da dissociação-valor) uma forma em si com múltiplas quebras, permanece assim fora da reflexão crítica, já que o carácter fragmentário só seria reconhecível na tematização da constituição dessa forma. Até uma essência fragmentada em si é uma essência que, mesmo sofrendo uma desagregação na crise, ainda persiste na firmeza de suas categorias, se tais categorias não forem criticáveis.
No fundo, a renúncia pós-moderna, ela própria dogmática, à crítica da essência determina a imanência capitalista como inexcedível. Entretanto já se afirma isso quase abertamente. Serve de veículo argumentativo o conhecimento pós-operaístico / pós-estruturalista, parado a meio caminho, segundo o qual os próprios “dominados” estão envolvidos no “poder”, que agora já não pode ser entendido como inimigo meramente externo de um “bem” ontológico. Todavia, se Holloway exorta a que imediatamente “critiquemos a nossa própria cumplicidade na reprodução desta sociedade” (id., p. 137), então está a falar contra si mesmo, pois essa cumplicidade “é” precisamente a “existência” capitalista que per se não contém, de forma alguma, “resistência”. Na verdade, o sofrer com essa existência é digerido “naturalmente” na concorrência, em ideologias projectivas. O esforço crítico deverá evoluir a partir deste acanhamento, num processo doloroso; portanto, não coincide, de forma alguma, com a “existência”. O facto de “nós”, segundo Holloway, já sempre estarmos “contra dentro e para além” (id., p. 118) do capitalismo, apenas por “estarmos” no mundo, constitui realmente um argumento bem “para além de” toda e qualquer crítica.
O reconhecimento da própria cumplicidade, como envolvimento inevitável na reprodução capitalista (o que em Holloway não é tão inevitável, pois ele sempre traz escondido na manga o seu sujeito-“existência” ontológico que está apenas com um pé “do lado de dentro”) só pode levar a que se desenvolva uma sensibilidade nesse sentido, como por exemplo a respectiva “cultura dominante” (Birgit Rommelsbacher) ainda tem efeito na esquerda, ou como factores do “chauvinismo do bem-estar” (branco-ocidental, nacional etc.) se fazem valer nos movimentos da “contrapráxis” imanente, até como concorrência de crise. Nesse sentido, a “microfísica do poder” foucaultiana, por exemplo, pode muito bem fornecer uma abordagem para que se possam examinar as complexas relações internas nas formas do percurso capitalista. Mas já para fazê-lo é preciso um distanciamento crítico em relação à própria existência imediata, que se repele.
O conceito de concorrência universal, amplamente ignorado pela ideologia do movimento, aponta ao mesmo tempo para o facto de a “microfísica do poder” actuar num sistema de referências sociais sobrejacente e não se representar directamente a si. Não obstante, o conceito ontológico de “poder” é filtrado da conexão da condição historicamente específica da socialização capitalista negativa e reduzido àquela “microfísica”, enquanto a “macrofísica” das relações de dissociação-valor se tornou um espaço vazio. Com Nietzsche mais Heidegger e contra Marx, o difuso fluido ominosamente ontológico do “poder” toma o lugar de um conceito concreto de relação de capital. Mas com isso não se suplanta a “concepção do mundo” dicotómica do marxismo do movimento operário, que simplesmente é atomizada numa “diversidade” de dicotomias sem conexão sobrejacente, sendo que a ontologia não-suplantada do trabalho abstracto também passa por esse processo de atomização.
Fazer o reconhecimento da própria “cumplicidade” e do próprio envolvimento na estrutura hegemónica sistémica tornar-se realmente produtivo seria tomar como alvo da crítica radical não um suposto interlocutor externo na concorrência, mas a própria determinação da forma social, ou seja, a forma do valor e a relação de dissociação a ela ligada, a “forma política” e a “forma sujeito”. Mas no momento em que essa crítica categorial é rechaçada e denunciada como “essencialista”, isto é, no momento em que continuam a subsistir o inflacionamento do conceito de política e a incessante invocação do “sujeito”, a crítica permanece vã perante a “transformação do mundo” que continua a ser feita pelo capitalismo até à maturação de crise, e resvala do seu objecto tornado intangível; seus protagonistas encontram-se aí “como uma encomenda não levantada”. O resultado é a capitulação incondicional, clausulada de qualquer maneira na exposição empolada da ontologia do poder.
Quanto mais fortemente se faz valer a objectividade negativa da barreira da crise, e quanto mais brutais se tornam as digestões ideológicas à escala mundial, tanto mais parece progredir a heideggerização da esquerda. Ela própria se torna assim factor de barbarização ideológica, como produto da decomposição da “contrapráxis” imanente e da “crítica afirmativa”. Em lugar da análise crítica, surgem expressões quase teológicas (por exemplo, no falatório sobre “kairos” e sobre “o acontecimento”), em vez de um debate sobre uma nova transformação, surge a evocação da “existência” e naturalmente da “vida”, a qual de modo algum pode vir a ser uma “boa” vida aqui e agora. Esse “jargão da autenticidade” (Adorno) virado à esquerda até pode ainda admitir uma forma de “revolta” existencial a autores de atentados suicidas; já há muito tempo que ele se tornou permeável aos clichés anti-semitas.
O que dá pelo nome de “crítica do valor” não está absolutamente imune a essa tendência ideológica que é transmitida socialmente com a queda da nova classe média e a crise da identidade masculina. Susceptível a uma recaída na ideologia é precisamente uma crítica do valor ainda no universalismo androcêntrico, pela qual o problema da dissociação sexual não é assumido de modo algum, ou é-o apenas como objecto secundário, “derivado”, meramente empírico-histórico. Como até ao momento a dimensão da acção na teoria da dissociação-valor foi no seu conjunto deixada de lado, há o perigo de a antiga crítica do valor, uma crítica em seus primórdios objectivista nos termos da teoria da estrutura e ainda de modo algum suplantada, sucumbir ela própria à viragem da teoria da acção de que ainda não tomou consciência. Dessa maneira, o entendimento do universalismo androcêntrico da “forma vazia” ameaça cair, seguindo os rastos de Holloway & Cª, na evocação imediata da “existência quotidiana” com sua “qualidade de resistente” supostamente dada per se e, por conseguinte, na heideggerização ideológica. O conceito de constituição fetichista da forma permanece então uma “objectividade” externa, cujo entrelaçamento com a “existência”, enquanto existência em si ideológica, é amplamente obnubilado.
Para se fechar a porta a essa tendência, deve-se desenvolver, na crítica do fetiche, um novo conceito de “práxis teórica”, que rechace toda e qualquer “fusão” da reflexão crítica com a “contrapráxis” pré-estabelecida do tratamento da contradição imanente, ou até porventura com a “metafísica do quotidiano”. A necessária tensão entre ambos os níveis de acção tem de ser suportada. Qualquer exigência de transformar essa tensão unilateralmente em acção de intervenção prática imanente e, com isso, querer silenciá-la significa deixá-la entrar em colapso já antes de atingir o limiar de uma suplantação real do capitalismo, sucumbindo por fim à “pseudo-actividade”. Para poder romper essa constituição fetichista, tanto a “práxis teórica” como a “contrapráxis” imanente têm de passar, cada uma delas no seu campo respectivo, por um processo de transformação, até que ambos os lados vão além de si mesmos e possam fundir-se apenas no resultado. Portanto, a célebre “unidade entre teoria e práxis” não pode ser já um pressuposto, mas apenas telos imanente da crítica categorial; ela coincide com a transcendência real, ou então não existirá.
Isso não quer dizer que até lá exista uma muralha da China entre a “práxis teórica” e a “contrapráxis” imanente. O objecto de uma reflexão crítica é precisamente a práxis social, incluindo o permanente tratamento da contradição. Mas apenas se a crítica categorial se desenvolver firme e irreverentemente contra os postulados da práxis imediata, para se transformar de mera interpretação e “crítica afirmativa” em “crítica de segunda ordem”, ela terá ainda algo a dizer à “contrapráxis” imanente, e poderá contribuir para a sua transformação. Também nesta práxis nem todos os gatos são pardos; em vez disso importa distinguir que momentos se deixam abrir no tratamento da contradição para se chegar aos limites desta e ir além deles, e que momentos são mais bloqueadores. Um conceito crítico mais radical do moderno patriarcado produtor de mercadorias, o desenvolvimento de critérios para uma outra socialização (mundial) para além das relações de dissociação-valor e a análise da crise em desenvolvimento podem oferecer um quadro de orientação e o necessário “longo fôlego” para isso, e até mesmo contribuir para que novamente seja possível de algum modo um tratamento da contradição empenhado em avançar vinculado a esta orientação e que não se esgote em encenações simbólicas. Mas isso nada tem a ver com “realização” directa, nem com “aplicação” instrumental, e muito menos com “manual de instruções”.
Não em último lugar, a crítica consequente da ideologia, só possível em conexão com a crítica da constituição fetichista, pode contribuir para essa orientação, como momento imprescindível da “práxis teórica”, através da análise dos repúdios da consciência no processo da crise. Trata-se aqui de revelar de modo continuado a conexão interna entre a matriz a priori, o tratamento da contradição e as ideologizações, pelas quais é co-determinada a forma de percurso real. Isso nada tem a ver com pretensões de “omnisciência”, nem com um suposto “ponto de vista externo”, nem com um imaginário “heroísmo” da crítica teórica, como Holloway afirma repetidamente. Afinal de contas, a elaboração teórica, enquanto crítica categorial, volta-se também contra si própria, como forma de teoria interpretativa e prenhe de ideologia, ou seja, a crítica da ideologia também é um factor de transformação no seio da própria reflexão teórica, um processo não-concluído de luta para conseguir desprender-se, desde a matriz a priori das relações fetichistas até à linguagem conceptual do universalismo androcêntrico. A passagem para uma transformação real que suplante praticamente o contexto da forma da matriz capitalista deve ser entendida, em certo sentido, como o fim da forma da teoria e como o fim da forma da práxis no sentido até aqui vigente, não podendo, por isso, ser determinada pela teoria imanente, nem ser desenvolvida linearmente a partir das formas e campos de práxis existentes.
Uma verdadeira auto-presunção da reflexão teórica seria a pretensão de ainda querer “derivar” a suplantação do capitalismo, pois isso significaria mesmo uma recaída na objectivação da teoria da estrutura; todo o “derivável” permanece per se preso ao campo da imanência capitalista. Inversamente, o mesmo vale para uma intencionalidade “existencial” com base na teoria da acção e indiferente à objectivação real fetichista. Pelo contrário, a intencionalidade de transcendência tem de enfrentar precisamente a falsa objectivação dominante; e isso só é possível na medida em que a reflexão teórica, enquanto tal, é firmemente praticada de modo continuado, até para além de si mesma. Para isso é preciso uma distância consciente da teoria crítica em relação a toda a práxis encontrada.
A pretensão ilusória de esbater essa distância vem de duas direcções. Por um lado, vem dos “activistas” da própria práxis, que se indagam insatisfeitos acerca do “valor alimentar” da teoria para os seus actos e feitos aparentemente auto-evidentes. Neste caso, muitas vezes não se trata de portadores directos da resistência social nas frentes de crise da socialização negativa, mas sim de poli-activistas, “círculos” etc. de esquerda, que normalmente se encontram, eles próprios, muito mais numa relação externa em relação às lutas sociais, ou que apenas as simulam. Falham na sua possível actividade de mediação, ao agirem simplesmente como aqueles organizer de que falava Adorno. Mas, por outro lado, a falsa pretensão de práxis também vem da própria elaboração teórica, quando os seus portadores não mantêm a devida distância e anseiam por uma fusão com formas de práxis existentes, que facilmente são mistificadas. Em ambos os casos, a teoria crítica torna-se verdadeiramente supérflua, ou é transformada num mero “sermão dominical”, como uma espécie de literatura edificante para a operação de um activismo que, no fundo, também sem ela se difundiria, com a sua acção por si só legitimada, e quer ficar à vontade na sua tacanhez. A crítica teórica até pode ser hostilizada a partir de tais estados de consciência; como dizia Marx no prefácio à 1ª edição de O Capital, também para ela tem de valer o “lema do grande florentino”: Segui il tuo corso, e lascia dir le genti!
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