A primavera negra do anti-imperialismo
Uma aliança não santa de transviados da modernização

Robert Kurz

5 de janeiro de 2006


Primeira Edição: Original DER SCHWARZE FRÜHLING DES ANTIIMPERIALISMUS em www.exit-online.org. Publicado na Folha de S. Paulo de 05.01.2006 com o título "O TRIANGULO DE CARTAS" e tradução de Luis Repa.

Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


É possível que sonhar o sonho de amanhã mova o mundo. Mas alguns sonhos são meros fantasmas do mundo fenecido de ontem. Grande parte da esquerda não dispõe hoje de nenhuma orientação em relação ao futuro. Em toda parte do mundo a esquerda prefere retornar aos paradigmas da política tradicional, fundamentada nos Estados nacionais. Por isso a globalização real ou é desmentida e ignorada ou é condenada. E a crítica não principia pelas categorias basais historicamente obsoletas do "trabalho abstrato", da forma mercadoria, da "valorização do valor" e das relações capitalistas entre os gêneros na nova sociedade mundial. Ela se limita a uma referência superficial ao "capital financeiro" e ao poder imperial externo dos EUA. Sob as novas condições, origina-se desse modo uma convergência de posições de esquerda e de direita, com um acento anti-semita. Pois, na história moderna, os ideólogos irracionais sempre identificaram o dinheiro especulativo aos "judeus".

No clima de uma evocação regressiva de formas historicamente decadentes da política, o antiimperialismo está vivenciando também uma primavera negra, que nada mais tem a ver com as esperanças de revolução nacional do passado. Contra o imperialismo da segurança e o colonialismo da crise ocidentais liderados pelos EUA, a esquerda politicamente empedernida propõe cada vez mais na esfera externa um contrapeso, constituído de regimes que, no processo global de crise, parecem animar a velha soberania nacional. Com isso o verdadeiro caráter desses regimes é tirado de foco. Trata-se de uma concepção puramente da política de poder, sem nenhuma consideração pelo conteúdo histórico-social e ideológico. Eis uma diferença decisiva em relação ao antigo antiimperialismo, que, se tampouco colocava em questão o moderno sistema produtor de mercadorias e, com isso, o mercado mundial, ainda assim, apesar dessa redução, havia defendido uma reivindicação ideal de emancipação. O pressuposto disso eram os espaços de manobra de um desenvolvimento nacional a ser realizado no curso da expansão capitalista. Sob as condições na nova crise mundial, não restou nada disso.

No sentido da reformulação de um antiimperialismo desvinculado das reivindicações substantivas anteriores e reduzido a uma casca vazia, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, considerado o novo portador da esperança da esquerda latino-americana, tem louvado o "triângulo da força" formado por Irã, Rússia e China, almejando com isso uma espécie de aliança contra o neoliberalismo e contra a política norte-americana das guerras pela ordem mundial, já fracassada no Iraque. Mas aí não se manifesta mais nenhuma contraposição autônoma que pudesse sustentar uma lógica interna de desenvolvimento e libertação. Mostra-se apenas o outro lado da crise global. Caracterizados como inimigos ou rivais dos EUA e da política intervencionista ocidental, esses próprios regimes são componentes do processo de desestabilização e, nesse sentido, estão inseridos na decadência da razão burguesa. O quadro comum do mercado mundial, que na história da modernização impulsionou a oposição entre o poder imperial e a "luta por reconhecimento" antiimperialista, se tornou, ao extinguir-se a potência da modernização, o campo de força de uma tendência para a barbárie que abarca todos os atores estatais.

Trata-se antes de uma aliança não santa de transviados da modernização chegada ao fim, destinada a sustentar o novo antiimperialismo de estados nacionais. Sobretudo, não se trata de revitalizar um programa econômico-político contra a globalização; o que está em jogo são os efeitos colaterais da própria globalização. O fundamento da pretensa "força" no caso dos países exportadores de petróleo — Rússia, Irã e Venezuela — não é uma perspectiva histórica independente que vá além do moderno sistema produtor de mercadorias, mas a banal duplicação do preço do petróleo, a qual levou bilhões de dólares para dentro dos respectivos cofres. Ora, o preço do petróleo não é verdadeiramente nenhum indicador de transformação social, não é nada mais que uma função no movimento do mercado mundial. Ao mesmo tempo, não se trata de uma reprodução social auto-sustentável, mas antes de um momento meramente especulativo e totalmente incerto no contexto da crise do sistema mundial.

Por essa razão, a bênção inesperada dos bilhões do petróleo tampouco consolida programas de desenvolvimento duradouro. O regime de Putin na Rússia representa tão-somente a ruína de uma ex-potência mundial da fracassada "modernização recuperadora". Os serviços secretos convertidos em Estado administram a miséria das massas desesperadas com repressão social e política, a fim de reproduzir em terreno reduzido o pesadelo de um império periférico, que agora apenas se alimenta de petrodólares. O regime dos mulás, que anseia por armas atômicas com base também nos petrodólares, devasta o Irã com o terror religioso e representa um neopatriarcado misógino. Os dissidentes e a esquerda são dizimados aos milhares; o novo presidente Ahmadinejad fez da eliminação de Israel o seu programa e denomina de "mito ocidental" a aniquilação dos judeus europeus pelos nazistas. Demonstra-se desmoralização intelectual quando Chávez aceita a loucura anti-semita e chama Ahmadinejad de "irmão". Mas também o caudilhismo messiânico do próprio Chávez apresenta traços duvidosos. A "revolução bolivariana", que na base de uma ideologia nacionalista limitada deve se tornar o paradigma para a América Latina, se encontra em e coincide com sua pessoa. As reformas sociais organizadas de forma paraestatal sem dúvida favorecem imediatamente os pobres, mas, no sentido de uma reprodução social autônoma, elas permanecem ocas e incertas, na medida em que se baseiam unicamente em uma subvenção obscura sustentada nos petrodólares. E, no contexto de uma "irmanação" com um regime como o iraniano, escurece-se o horizonte ideológico desses esforços.

Por outro lado, a suposta "força" da China se encontra em uma relação recíproca precária com a nova riqueza especulativa do petróleo dos países exportadores. Pois é precisamente a industrialização chinesa voltada à exportação que contribuiu essencialmente para a explosão do preço do petróleo. Em poucos anos a China se tornou, depois dos EUA, o segundo maior consumidor do petróleo. No entanto o que aparece como ofensiva chinesa na exportação representa ainda menos a função de um programa de desenvolvimento nacional; é antes o maior efeito colateral da globalização até agora. Essa corrente de exportações se fundamenta na maior parte nos investimentos de conglomerados ocidentais (em primeiro lugar, dos EUA e da União Européia), que, no curso de seu outsourcing global, fizeram da China a plataforma e a placa giratória das cadeias transnacionais de criação de valor. Por isso a China registrou também, depois dos EUA, o segundo maior afluxo de investimentos diretos estrangeiros. Ou seja, nenhum vestígio de autonomia nacional, somente o resultado do salário extremamente barato e da ausência de direitos de escravas que trabalham nas zonas de economia exportadora, na maioria jovens e aquarteladas. Ao mesmo tempo esses investimentos permanecem insulares. A reprodução social na área maior é ameaçada pelo colapso por parte desse mesmo desenvolvimento. É dessa maneira que se constituíram na China os paradoxos de um capitalismo de minoria desenfreado e transnacional, protegido pelo teto político do aparato de poder, comunista à moda antiga e paternalista. Com ações policiais e militares, uma burocracia corrupta trata de aplacar as contradições sociais que dilaceram o país.

Sob essas condições, o vago projeto de uma aliança antiimperialista de países exportadores de petróleo com a China é uma quimera. É provável que nada de uma tal aliança se realize, pois as respectivas posições no mercado mundial são totalmente distintas e até opostas. Na mesma medida em que a China se tornou o novo eldorado para o outsourcing dos conglomerados transnacionais, os investimentos diretos na América Latina foram reduzidos. O México, que ainda nos anos 90 era, no quadro do Nafta [acordo de livre comércio entre EUA, México e Canadá], uma região preferida de investimento para os conglomerados norte-americanos, já está ressequido nesse aspecto. A proximidade com os EUA já não vale a pena, visto que o trabalho chinês é ainda muito mais barato. Um destino semelhante ameaça agora os demais países latino-americanos. Também as esperanças nos grandes investimentos chineses na Argentina e o no Brasil se frustraram rapidamente.

Em vez disso, nesse meio tempo as mercadorias baratas das indústrias chinesas (na realidade, produtos do outsourcing transnacional dos conglomerados dos EUA e da União Européia) inundam os mercados latino-americanos. Certamente que as exportações latino-americanas para a China também aumentaram. Mas, em primeiro lugar, trata-se aqui de quase somente matéria-prima. Com isso, se reproduz via globalização apenas a antiga relação de dependência entre centro e periferia em nova configuração. Em segundo lugar, as exportações para e as importações oriundas da China estão em desequilíbrio completo. Em 2005, as exportações do Brasil para a China subiram 9%, as importações, por sua vez, 50%. O crescente excedente de importações provenientes das zonas chinesas de economia exportadora vai de artigos de fogos de artifício, brinquedos, tecidos e sapatos, até eletrônica, automóveis, aviões, aço e produtos químicos. A América Latina se vê ameaçada, dessa maneira, por uma nova desindustrialização.

O projeto de uma aliança antiimperialista entre os países exportadores de petróleo, a "revolução bolivariana" e a China se revela inteiramente frágil quando o último elo da concatenação global é inserido na análise. Assim como a nova riqueza do petróleo depende da industrialização exportadora transnacional da China, esta depende do consumo dos EUA. Aqui se fecha o círculo. É unicamente o fluxo de exportação totalmente unilateral que atravessa o Pacífico o que sustém o pretenso crescimento. A inundação dos mercados latino-americanos é apenas um efeito colateral da inundação dos mercados norte-americanos com as mercadorias oriundas da China. O consumo norte-americano, por sua vez, se funda essencialmente no afluxo de capital monetário transnacional, ou seja, em endividamento. Os EUA são há muito tempo o país com o maior endividamento externo do mundo. A solvibilidade desse endividamento é garantida, no entanto, justamente pela posição dos EUA como a última potência mundial, sobretudo em razão da máquina militar sem igual.

As políticas social e externa dos países exportadores de petróleo, subvencionadas com petrodólares, dependem portanto, em última instância, justamente da conjuntura que une a solvibilidade e o poder militar do próprio inimigo imperial. Que contradição! Na verdade, Chávez precisa orar para que a potência má dos Estados Unidos continue intacta, já que, do contrário, o castelo de cartas dos sonhos políticos difusos desmorona. É provavelmente o momento irracional mais profundo dessa constelação, que provoca o obscurecimento ideológico do suposto novo antiimperialismo, até chegar nas afecções anti-semitas. Isso comprova uma vez mais que a luta pela emancipação social deve ser conduzida somente por um movimento transnacional vindo de baixo, sem o resseguro nacional da política do poder. O carisma antiimperialista com base nacionalista nos nichos econômicos incertos da globalização não pode pretender nenhuma sustentabilidade.


Inclusão: 28/12/2019