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Nota Prévia: Este texto constitui a versão escrita de uma apresentação efectuada a 15.11.2005 em Brunnen, Suiça, nas Jornadas Anuais da INTEGRAS (Schweizer Fachverband für Sozial- und Heilpädagogik) [Associação Profissional de Pedagogia Médica e Social]. O texto não desenvolve ideias novas, mas consegue dar, ainda assim, uma perspectiva sobre as afirmações standard na análise da crítica do valor e da dissociação, de outro modo só possível de encontrar espalhada em diversos artigos ou no contexto da argumentação mais extensa dos livros. Os sub-títulos são de responsabilidade da redacção da INTEGRAS. As apresentações desta jornada serão publicadas brevemente em brochura. Original UNRENTABLE MENSCHEN. Ein Essay über den Zusammenhang von Modernisierungsgeschichte, Krise und neoliberalem Sozialdarwinismus, in www.exit-online.org (19.01.2006).
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
É incontestável: a divisão da sociedade aprofunda-se e assume proporções dramáticas; simultaneamente, as instituições que devem tratar e administrar o social definham e paralisam devido a restrições financeiras. O problema pode apresentar actualmente aspectos diferentes em cada país, de acordo com a sua situação económica no mercado mundial, as tradições nacionais e as relações estruturais; mas a tendência de fundo é em todo o lado a mesma. Se uma ordem social agrava permanentemente o catálogo das suas exigências e exclui cada vez mais seres humanos, tal constitui um indício de que ela atingiu os limites imanentes na sua constituição fundamental, como modo de produção e de vida. Trata-se, pois, de uma crise estrutural das formas que constituem a base da sua reprodução, cegamente pressupostas por norma. Por isso esta crise, como problema social total, não pode ser explicada nem vencida por nenhum ponto de vista duma actividade específica, dum interesse particular ou duma instituição particular. Torna-se necessária, por assim dizer, a vista aérea panorâmica da crítica social, para encontrar uma orientação na "nova intransparência [Unübersichtlichkeit]" (Habermas).
Em primeiro lugar estamos perante uma grande confusão após a derrocada do socialismo. O fim do conflito de sistemas e da guerra-fria foi interpretado como vitória definitiva do capitalismo ocidental; prometia-se uma nova idade do ouro de prosperidade, através da abertura a todo o mundo do mercado, num sistema mundial universal unificado. Entretanto é tão violenta a desilusão, com sempre novos cortes sociais, crises económicas, guerras civis por todo o mundo e barbárie crescente, que se tornou necessária uma explicação diferente. Não são os pontos diferentes, mas sim os pontos comuns de ambas as sociedades do pós-guerra que são essenciais para se conseguir entender este desenvolvimento.
Todas as sociedades modernas são sistemas produtores de mercadorias, independentemente de o serem numa constituição mais regulada estatalmente (socialismo de estado, keynesianismo) ou na forma do mercado mais desenfreado (capitalismo de concorrência neoliberal); e o seu sistema de referência comum é o mercado mundial. O mercado universal, porém, não existe por si, mas é a esfera funcional dum fim-em-si social irracional, que consiste em fazer do valor mais valor para fazer do dinheiro mais dinheiro (valorização do capital ou acumulação de capital). Só através deste fim em si que no fundo lhe está subjacente é que o mercado se tornou universal, enquanto a produção de mercadorias nas sociedades pré-modernas tinha apenas carácter marginal e a vida era reproduzida na sua maior parte sob outras formas. Karl Marx apreendeu esta diferença em duas simples fórmulas da relação de mercadoria (M) e dinheiro (D). Enquanto simples forma de nicho nos poros das sociedades agrárias a relação funcionava segundo a fórmula M-D-M. O dinheiro limitava-se aqui ao papel de mediação, estando os objectos da necessidade em forma de mercadoria no princípio e no fim da transacção. Na modernidade inverte-se a relação, que aqui funciona segundo a fórmula D-M-D’. Os próprios objectos concretos da necessidade são apenas o "meio" para a valorização do capital-dinheiro, isto é, para a transformação de valor (D) em mais valor (D’). Isto significa que a satisfação das necessidades é rebaixada a um simples subproduto da valorização e torna-se dependente desta. A produção desliga-se dos laços sociais da vida, como "economia empresarial" e autonomiza-se como processo sistémico anónimo face aos seres humanos, que deixam de ter qualquer controle sobre a reprodução da sua própria vida.
O mecanismo interno desta "economia desvinculada [herausgelösten]" (Karl Polanyi) reside na exploração de energia humana ("trabalho"). Nas sociedades pré-modernas a abstracção trabalho era negativamente conotada, como nome colectivo originariamente para as actividades dos dependentes (escravos). Apenas na modernidade o trabalho foi positivado e universalizado. Aqui o trabalho funciona como "substância" (Marx) do valor e da valorização. O dinheiro não é senão a representação de um quantum de trabalho. Contudo, a actividade nesta forma correspondente à autofinalidade sistémica é também desvinculada dos conteúdos da necessidade e portanto indiferente face a estes; por isso se trata de "trabalho abstracto" (Marx). É indiferente se se fabrica bolachas de chocolate ou granadas de mão, o importante é que a energia humana abstracta como "dispêndio de nervo, músculo e cérebro" (Marx) possa ser transformada em dinheiro (mais-valia). À autofinalidade da valorização corresponde a autofinalidade do "trabalho abstracto"; a infindável acumulação de valor não é senão a infindável acumulação de trabalho morto (passado). Do trabalho tem que se fazer sempre de novo trabalho. Sob estas condições o mercado já não representa nenhuma troca entre produtores independentes. Ele não passa da esfera da realização da mais-valia, isto é, da retransformação de "mais trabalho" em "mais dinheiro". Por isso a "liberdade do mercado" é ilusória; esta liberdade tem por base a relação coerciva do "trabalho abstracto". Aqui a coerção já não é pessoal (como por exemplo na relação de senhor e servo), mas uma coerção sistémica anónima de se vender a si mesmo como "máquina de dispêndio" de energia humana abstracta (força de trabalho) na "economia desvinculada".
Todas as actividades, "atitudes" e comportamentos que são necessários para a reprodução da vida, mas que não podem ou dificilmente podem ser incluídos no sistema do "trabalho abstracto" e da economia da valorização desvinculada foram historicamente dissociados deste e delegados nas mulheres como "trabalho de amor" sem custos (o chamado trabalho doméstico, a assistência, o acompanhamento, a dedicação, o desempenho de funções de amortecimento socio-psíquico etc.). O sistema da economia desvinculada é, portanto, desde logo, simultaneamente um sistema de "dissociação sexual [geschlechtlichen Abspaltung]" (Roswitha Scholz). Daí que a dissociação é uma categoria da totalidade, tal como a valorização e o "trabalho abstracto"; a relação social total apresenta-se assim como uma relação social complexa, intrinsecamente fragmentada. A relação de dissociação não se limita a uma determinada esfera (por exemplo, a família), mas apresenta-se transversal a todas as áreas da reprodução, incluindo o próprio "trabalho abstracto". A "economia da valorização" é definida como "estruturalmente masculina". Entretanto, no processo da modernização, também as mulheres foram cada vez mais usadas como reservatório de força de trabalho. Não, porém, no sentido de uma libertação, mas como dupla subordinação, ao "trabalho abstracto" e aos momentos dissociados em boa medida considerados de menor valor e secundários ("dupla carga"). Até hoje as mulheres têm sido em regra mais mal pagas na economia da valorização, continuam a ser pouco representadas nas funções de direcção e simultaneamente todo o "trabalho de amor" continua a ser considerado da sua competência em todos os domínios.
Este breve esboço da conexão sistémica que está na base de todas as variantes do moderno patriarcado produtor de mercadorias (pois esta é a designação mais precisa da sociedade da valorização, incluindo a relação de dissociação) revela só por si um monstruoso desaforo. No entanto este foi interiorizado e transformado em normalidade inquestionável no decurso dum longo processo histórico. Os seres humanos têm que ser "rentáveis" no sentido do fim em si do sistema; só assim a existência está garantida. Estas exigências foram impostas nos primórdios da modernidade desde o século XVI e no capitalismo primordial dos séculos XVIII e XIX com coacção sangrenta e contra uma longa resistência dos movimentos sociais. Na primeira metade do século XX, na época das guerras mundiais industrializadas e das crises da economia mundial, o moderno patriarcado produtor de mercadorias já parecia fracassar nas suas contradições internas e dissolver-se no caos e na barbárie — com manifestação extrema no sistema de aniquilação de seres humanos especificamente alemão do anti-semitismo exterminador ou nacional-socialismo.
Mas depois da segunda guerra mundial houve o "curto Verão" do milagre económico. O desenvolvimento das forças produtivas forçado pela concorrência libertou potencialidades nunca sonhadas, que haveriam de tornar possível uma "civilização do capitalismo". Apesar da racionalização a necessidade de "trabalho abstracto" cresceu como nunca antes, porque os bens industriais de luxo, antes limitados a uma estreita camada (automóvel, electrónica de uso doméstico e de entretenimento etc.), entraram no consumo de massas e os mercados alargaram-se bruscamente. Só então é que as mulheres foram integradas no trabalho profissional da economia da valorização em grande escala social. O consumo de massas, incluindo o turismo de massas etc., transformou-se numa espécie de quase religião. O fim em si irracional do sistema parecia reconciliar-se com as necessidades, ainda que numa forma adaptada, sob muitos aspectos destrutiva (transporte individual, destruição do ambiente etc.). Outro subproduto do boom do pós-guerra foi a imparável construção do estado social e de infra-estruturas públicas, com um elevado standard de educação, trabalho social e cuidados médicos para todos. É verdade que a realidade desta "época dourada" da sociedade de valorização do valor e dissociação, designada "fordismo", do nome do fabricante americano de automóveis Henry Ford, se limitava aos países do núcleo industrial ocidental, mas luzia ainda assim uma perspectiva de "desenvolvimento", também para o resto do mundo.
Ainda que o desenvolvimento das forças produtivas sob a pressão da concorrência do mercado universal seguisse, depois como antes, o ditame de transformar trabalho em mais trabalho, e ainda que o brilho do "milagre económico" tenha começado a esmaecer já desde os anos setenta, o potencial da produtividade foi desde então celebrado como "máquina de civilização". Recaíram no passado as muitas gerações queimadas sob péssimas condições no "trabalho abstracto". Até a libertação da mulher das suas atribuições tradicionais parecia ser conseguida em grande medida, apesar da "dupla carga", uma vez que elas podiam cada vez mais "ganhar o seu dinheiro", as tarefas domésticas eram consideradas susceptíveis de robotização com a electrónica e muitos dos domínios dissociados haveriam de ser resolvidos em sectores comerciais ou em instituições públicas financiadas pelo Estado.
Porém, desde os anos oitenta que a terceira revolução industrial da microelectrónica transtornou gravemente os planos de todas estas esperanças positivas. Desde logo era o mesmo desenvolvimento da produtividade, que obteve tão grandes sucessos na história do fordismo no pós-guerra, que constituía simultaneamente a condição da crise. Pois quanto maior a produtividade, tanto menor a "substância do trabalho" por mercadoria, e portanto tanto menor o valor a que se chega no processo da valorização. A contradição está em que cada empresa individual não "realiza" imediatamente no mercado a mais-valia que criou dentro das suas quatro paredes, realiza sim uma parte da mais-valia social total. Esta parte é definida através da concorrência, onde uma empresa obtém tanto mais êxito quanto mais barata conseguir fazer a sua oferta. Ora o meio para isso é o aumento da produtividade. Desde modo, contudo, entram em contradição o meio e o fim sociais: uma empresa consegue apropriar-se duma parte tanto maior da mais-valia social total quanto mais contribuir para, através da elevação da força produtiva, esvaziar e socavar a produção de valor enquanto tal. Esta contradição chegou a manifestações explosivas sucessivas nas crises históricas. Contudo ela pôde ser sempre suplantada porque a queda do valor e com ele da mais-valia por mercadoria, com a redução da substância de trabalho, era mais que compensada pela simultânea expansão da quantidade de trabalho total, com o alargamento dos mercados; com sucesso na era fordista do pós-guerra, como se viu.
Na revolução microelectrónica, contudo, esta compensação já não funciona. O potencial de racionalização é agora tão grande que continuamente se torna supérfluo mais trabalho do que aquele que pode ser absorvido adicionalmente na valorização, através do aumento da produção de mercadorias. Apesar do aumento da quantidade de mercadorias, diminui rapidamente a substância de trabalho social "válida" no standard de produtividade da microelectrónica e consequentemente a crise assume carácter estrutural. Nas regiões periféricas do mercado mundial, na zona do socialismo de Estado do Leste e da "desenvolvimento atrasado" do Sul, tal situação já conduziu à derrocada social, precisamente porque a microelectrónica não pôde ser aplicada com êxito por falta de força de capital e por isso a respectiva produção caiu abaixo do standard de produtividade mundial (tornando-se, portanto, "não rentável" e deixando de ter capacidade de concorrência). Esta situação foi interpretada como falhanço próprio das variantes do socialismo de Estado, em vez de como parte de uma crise mundial da terceira revolução industrial, apesar de o mesmo problema há muito se ter feito notar também no Ocidente, como desemprego estrutural de massas; e precisamente por causa da forçosa aplicação da microelectrónica.
Desde então a crise atingiu profundamente os centros ocidentais. Cada vez mais seres humanos se tornam "não rentáveis" e são excluídos; por todo o lado partes inteiras dos países ficam abandonadas, enquanto a economia empresarial se globaliza num terreno de rentabilidade que se reduz. Na falta de produção de mais-valia real, o capital dinheiro refugia-se simultaneamente numa economia de bolhas financeiras. Já não é a venda de mercadorias que é decisiva, mas são os ganhos diferenciais na circulação de títulos financeiros que suportam uma valorização tornada fictícia. Empresas e partes de empresas são tratadas como pedaços de carne para trinchar (fusionite e batalhas por aquisições, sem investimento real). Na interpretação popular, o complexo causal é na maior parte dos casos posto de pernas para o ar, responsabilizando erradamente pela miséria, em tom anti-semita, uma espécie de "praga de gafanhotos" de especuladores, como se o problema não residisse nas próprias contradições do sistema produtor de mercadorias. A expansão dos mercados, no contexto do poder de compra em queda por falta de capacidade de utilização com êxito de "trabalho abstracto" rentável, transforma-se em capacidades excedentárias globais, que são sucessivamente desactivadas. É absurdo: pelo facto de a produtividade se ter tornado "demasiado elevada" e de poderem ser fabricados muitos bens com pouco trabalho, cada vez mais seres humanos são rebaixados a um nível de pobreza ainda há pouco tempo inimaginável. A divisão da sociedade aprofunda-se cada vez mais; até a classe média está a ser entretanto apanhada pelo turbilhão da crise.
Não se trata, porém, apenas da desmontagem das capacidades de produção não rentáveis mas, na senda desta tendência negativa, também o Estado se transforma cada vez mais numa simples administração do estado de emergência, porque já não consegue regular a economia empresarial globalizada e porque lhe estão a faltar as receitas. Há um consenso neoliberal suprapartidário em quase todos os países, que executa e legitima ideologicamente a crise do sistema, apenas e só contra os seres humanos. Agora se vê que as "aquisições civilizatórias" do período do pós-guerra não são auto-sustentáveis, mas tinham que ser alimentadas com uma valorização conseguida do "trabalho abstracto". Na mesma medida em que este regride, também a civilização social é obrigada a recuar. É precisamente sob as condições do desemprego de massas e da nova pobreza que o Estado social é desmontado e abandona os seus filhos. Estruturas inteiras definham e são reduzidas a poucas "regiões metropolitanas". O Estado desfaz-se dos serviços públicos, como um nobre arruinado se desfaz das pratas da casa. A privatização significa em regra redução à capacidade de pagamento privada e portanto o fim das estruturas universais. Os caminhos-de-ferro deixam linhas ao abandono, os correios fecham estações. No sistema de ensino expande-se o ensino para duas classes (conceito de elite), nos serviços de saúde a medicina de segunda classe. Agora diz-se de novo e sem qualquer cerimónia: tens de morrer mais cedo porque és pobre. Na maior parte dos casos são as camadas inferiores da pirâmide social as mais duramente atingidas pelas restrições financeiras nos serviços públicos, como é o caso das instituições de trabalho social, de prestação de cuidados aos deficientes, aos sem abrigo e aos idosos, porque dispõem dos lobbies mais fracos.
Após os despedimentos em massa nos sectores comerciais e industriais, a crise do Estado social e dos serviços públicos resultante da crise da valorização conduz, também nos sectores antes geridos pelo Estado, a uma "disponibilização" similar de empregados, que vão engrossar o exército dos caídos. Um número cada vez maior de seres humanos vê-se obrigado à prestação de serviços baratos e à venda ambulante, ao empresariado de miséria etc., na esfera da circulação. As mulheres são particularmente afectadas. O discurso sobre o fim do patriarcado é desmentido. Por um lado o Estado e a economia delegam novamente as tarefas financeiramente exauridas do tratar e do cuidar no amplo "trabalho de amor" voluntário feminino. Por outro lado as mulheres também são desproporcionadamente afectadas pelo desmantelamento dos serviços públicos. Sendo certo que as mulheres nos países ocidentais igualaram os homens no que respeita a habilitações académicas, o seu emprego, contudo, concentrou-se em grande medida nos serviços públicos, precisamente os que agora são reduzidos. Elas sofrem massivamente a desvalorização das suas qualificações. Em parte os seus lugares são ocupados por mães solteiras, tratadas com particular dureza pela administração social, que são obrigadas a trabalhar sem qualificações ou com qualificações diferentes. Estas, por sua vez, têm que deixar os filhos em centros de acolhimento, em que na maior parte dos casos trabalham migrantes leste-europeias, ainda mais mal pagas. Também a pobreza pública é em primeira linha uma pobreza feminina. A crise da economia da valorização e do "trabalho abstracto" é simultaneamente uma crise da identidade masculina; no quotidiano da crise cresce dramaticamente a violência (familiar) masculina contra as mulheres, enquanto se fecham centros de acolhimento e casas de apoio às mulheres.
Quais as consequências do agravamento das condições da crise? Na generalidade, pode dizer-se que mais cedo ou mais tarde todos somos não rentáveis. Isso é verdade, mas há nesta abstracção uma cilada argumentativa, pois assim não são consideradas as diferenciações internas. Quanto mais a crise se agrava, mais se agrava também a concorrência universal, que é instrumentalizada pela administração da crise para jogar uns contra os outros os diversos grupos de caídos. Há divisão social não apenas entre os vencedores em número cada vez menor e os perdedores em número cada vez maior, mas também entre os próprios perdedores. Ainda ocupados e desempregados, mulheres e homens, jovens e velhos, herdeiros em perspectiva e filhos de indigentes, saudáveis e doentes, não incapacitados e incapacitados, nacionais e estrangeiros defrontam-se mutuamente ao nível da pobreza; e trata-se de ver "quem é que ainda se safa". Temos que nos confrontar com uma hierarquia de não rentabilidade atravessada por precárias lutas pela partilha. Mesmo no fundo dessa hierarquia encontram-se os absolutamente abandonados, que já nem maus e criminosos podem ser: doentes mentais, incapacitados psíquicos e físicos, dependentes de assistência e doentes terminais. São em série os repetidos escândalos em lares de idosos e de internamento, causados também pela desqualificação do pessoal, em número reduzido e sob a pressão dos custos e do serviço.
Mesmo no centro das democracias ocorrem uma descivilização e uma desumanização estruturais, que até agora se julgavam bem longe, na periferia do mercado mundial, donde de qualquer modo já foram copiadas em grande parte. Não se trata de nenhum pessimismo, mas de uma realidade social em expansão. Sob tais condições, as clássicas reacções de crise e ideologias de crise do sexismo, do racismo e do anti-semitismo encontram-se na ofensiva por todo o mundo, transversais a todas as camadas sociais. Os demónios do século XIX e princípio do século XX regressam em forma modificada; não em último lugar na forma de uma mentalidade social-darwinista, que tem as suas raízes no liberalismo clássico e que por isso pode manter hoje a bênção neoliberal na forma completamente desenfreada. "Survival of the fittest" é a palavra de ordem repetida de novo e já nada discretamente. A lógica de base subjacente reza que não é o patriarcado produtor de mercadorias declarado lei natural que chega ao fim, mas sim o interesse vital e o direito à vida dos seres humanos não rentáveis. Regressa com novas honras a teoria da "superpopulação" do liberal hardcore Thomas Malthus do princípio do século XIX.
Não foram apenas os nazis que inventaram a divisa assassina da "vida que não merece ser vivida" e a levaram às últimas consequências, pelo contrário, ela ganhou fôlego a partir de uma larga corrente de pensamento social-darwinista, na qual, até à primeira guerra mundial e mesmo depois, se incluem, além dos liberais, grande parte da esquerda e da social-democracia (o que hoje é completamente ignorado). É por isso que o consenso neoliberal suprapartidário pode hoje prosseguir novamente o velho consenso social-darwinista até ao meio do centro social, e mesmo no interior da esquerda parlamentar: uma base legitimadora tácita para as tendências de descivilização da administração da crise e das forças que com elas fazem a co-administração. Elementos deste pensamento encontram-se não apenas entre os bandos da direita radical, que na Alemanha já insultam os incapacitados como "devoradores de recursos" e os derrubam das cadeiras de rodas, mas também no aparelho da administração social e entre os quadros da classe política democrática. Entre os seus antepassados inclui-se, por exemplo, o social-democrata austríaco Rudolf Goldscheid, que antes da primeira guerra mundial inventou o conceito de "economia de seres humanos" e recomendou ao Estado uma "criação rentável de seres humanos", pelo que não deveria ser alimentado o material humano incapacitado. Precisamente na época de uma crise do "trabalho abstracto" e das sobrecapacidades da hiperprodução é que é hoje mobilizada de novo a ilusão deste revigoramento físico. A aparente suplantação do darwinismo social pertence à filosofia do bom tempo do passado milagre económico, que agora se enterra silenciosamente.
Que possibilidades de resistência existem, face a esta grande tendência avassaladora de descivilização? Obviamente já não basta uma limitada política de lobbie dos enfraquecidos serviços sociais. É um facto que não existe um puro determinismo objectivo da crise e que em cada situação dada podem ser usadas as margens de manobra imanentes para "conseguir algo". Mas isso já só funciona em ligação com um amplo movimento social, que seja capaz de começar a suplantar a concorrência universal e a impor um conjunto de exigências, mesmo que com estas não se supere a crise, a qual radica nas contradições sistémicas do "trabalho abstracto" e da sua estrutura de dissociação sexual. Para que um tal movimento em geral possa ser possível é necessária uma pequena guerra tenaz também no dia a dia, contra o pensamento social-darwinista, sexista, racista e anti-semita, em todas as suas variantes. Quando a resistência imanente encontrar a perspectiva de outro modo de produção e de vida, para lá do patriarcado produtor de mercadorias e portanto também para lá do antigo socialismo de Estado, as formas de desenvolvimento da crise podem abrir-se para além disto, para uma nova sociedade. Esta abertura só é possível através da simultânea abertura do horizonte mental a uma nova crítica social radical — em vez de se deixar consumir completamente pelo dia a dia da crise.