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Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Caras amigas, caros amigos
Os problemas da tradução são ao mesmo tempo problemas do nosso modo de proceder como projecto comum de teoria crítica. Numa situação de transformação social global e de crise fundamental também nós temos a responsabilidade de nos examinarmos quando elaboramos e difundimos uma crítica do capitalismo radicalmente nova para além do marxismo tradicional. Uma vez que grande parte dos textos de diversos tipos traduzidos em português, espanhol, francês, inglês e outras línguas são textos meus, o conselho consultivo da EXIT! solicitou-me uma curta tomada de posição sobre questões de tradução e questões da situação social com aquelas relacionadas.
Em primeiro lugar gostaria de salientar que é um objectivo muito importante nas traduções ultrapassar a casualidade e a oscilação dos conceitos utilizados e criar nas diversas línguas uma terminologia comum da crítica do valor-dissociação. Seguramente continuará a haver sempre divergências de opinião sobre o correcto significado das palavras e em alguns casos poderá, até, haver diversas versões lado a lado, todas elas correctas, se exprimirem diversas nuances, que talvez só noutra língua se possam exprimir com um único conceito. Decisivo, porém, é que tenha lugar uma discussão continuada sobre o assunto, o que exige um grande esmero. No Brasil sucessivamente me foi dito e mostrado com exemplos que textos e declarações meus, apenas superficialmente traduzidos, contêm grandes equívocos e deturpações, chegando por vezes ao ponto de dizer o contrário do que fora dito, ou ficando confusos de todo. Por isso fiquei muito feliz quando começou a desenvolver-se a comunicação entre tradutoras e tradutores de diversos países, no contexto da nossa elaboração da teoria e tendo em vista o projecto dum glossário. Lamentaria muito se essa actividade e discussão fossem abandonadas.
Um problema neste caso é talvez a rapidez. Aqui devia valer a velha divisa: „Antes menos, mas melhor". Penso que um único texto cuidadosamente traduzido, que passou por uma discussão, tem mais eficácia que dez textos traduzidos apressada e superficialmente. Em todo o caso esta é a experiência por que passei repetidamente no Brasil. Além disso, vale para a tradução o que vale para a própria escrita do texto, que a nossa responsabilidade para com o futuro da crítica radical nos obriga ao maior cuidado e rigor, o que já inclui a mordacidade. Isto parece-me muito mais importante do que a difusão rápida. Pois os resultados têm que ser duradouros e não dar outra vez rapidamente em nada. A durabilidade, porém, só é possível se demorarmos o tempo necessário.
Isto inclui também que os textos traduzidos não sejam difundidos descontroladamente e sem consulta. O que nada tem a ver com controle administrativo, mas com um necessário exame em conjunto. Em regra uma troca de ideias nos dois sentidos leva a acordo sobre a forma definitiva do texto. O que significa que tem de haver o correspondente esclarecimento e, por conseguinte, há que aceitar algum inevitável atraso. Não é por isso que o processo histórico nos foge; e também não deveríamos deixar-nos levar pela Hybris e fazer como se o curso social das coisas dependesse do facto de pormos um texto em circulação uma semana ou um mês mais cedo ou mais tarde. A repercussão social das intervenções teóricas e publicísticas nunca é assim imediata, antes passa sempre por complexos processos de mediação, que não se regem pela velocidade de difusão do maior número possível de textos.
Naturalmente que a questão também passa por saber quais os textos são prioritários, ou até se são para difusão. Ao longo dos anos foram-me solicitadas, quer na Alemanha quer no Brasil, todo o tipo de entrevistas, sobre as quais nunca tenho o mais pequeno controle. O que significa que, na maioria dos casos, nem sei o que as/os respectivas/os jornalistas verdadeiramente escreveram como declarações minhas, ou como foram montadas ou cortadas as entrevistas radiofónicas. Em alguns casos do meu conhecimento as entrevistas contêm declarações que eu nunca fiz; outras foram toscamente simplificadas, por vezes até conceitos centrais foram mal interpretados ou confundidos. Por isso peço encarecidamente que não sejam difundidas as entrevistas em circulação pirata, ou que pelo menos sejam primeiro postas para revisão, caso apareçam algures por aí.
Em geral, a questão parece-me ser se publicações como entrevistas são verdadeiramente tão importantes que devam ser logo agarradas, traduzidas e difundidas. Penso mesmo que também os textos por mim redigidos principalmente como pequenos e de cunho jornalístico (por exemplo para o „Neues Deutschland" ou para a „Folha de S. Paulo" e outras publicações) não são tão importantes. É verdade que os publicamos na homepage e que também eles podem ser traduzidos e difundidos se para isso houver suficiente tempo e energia; tendo, no entanto, de ser sujeitos ao mesmo exame conjunto e de forma cuidadosamente controlada. Estou porém completamente contra que estes pequenos textos jornalísticos sejam tidos como os mais importantes. Sob a forma de artigos de jornal, na maior parte dos casos é muito difícil ou mesmo impossível assinalar os contextos fundamentais. De facto a análise muitas vezes é aplaudida quando torna transparentes fenómenos escondidos ou distorcidos no discurso mediático habitual. Contudo, o pano de fundo teórico destas análises, que é o realmente importante, na maior parte dos casos fica totalmente incompreendido. Daí me parecer muito mais importante que a energia seja principalmente aplicada na tradução e difusão dos trabalhos teóricos maiores e mais fundamentais, e estes não são apenas meus, mas também de outras/os produtoras/es de teoria do círculo EXIT!
Com isto chego ao fundo de alguns problemas e tensões na nossa actividade comum até agora não tematizado com suficiente clareza. O que deve realmente definir o nosso modo de proceder? Que carácter tem a nossa intervenção na esfera pública? A resposta a estas questões depende de como avaliamos a situação da teoria crítica do valor-dissociação, da nova forma de crítica radical na sociedade. A partir da minha experiência, não vislumbro indícios de que estejamos perante uma grande „viragem", e muito menos na prática dos movimentos sociais. De todo o modo, a nova crítica social implica, como é sabido, uma crítica da própria política, como esfera institucional do sistema produtor de mercadorias. Nem essa crítica atingiu até hoje a massa dos activistas dos movimentos, que ainda pensam e agem inteiramente nas categorias políticas tradicionais, nem nós próprios sabemos exactamente o que poderia significar na prática uma nova „anti-política", para além do sistema político. Portanto não é o caso que se possa constituir já uma intervenção de grande alcance no plano da prática social em passo „rápido". Nesta situação, a impaciência e as falsas esperanças só podem prejudicar.
Mas mesmo na esfera teórica em sentido estricto não temos ainda verdadeiramente nenhuma „viragem" a assinalar. É verdade que ideias isoladas e determinadas publicações do nosso círculo alcançaram uma certa difusão; mas o novo princípio teórico ainda não é do conhecimento geral e continua em grande parte incompreendido. Nós próprios não o esclarecemos nem concretizámos suficientemente no plano teórico. Além disso encontramo-nos numa situação em que, por toda a parte do mundo, sob a pressão do pragmatismo capitalista e da crise social, o interesse pela reflexão teórica está de momento em queda. A maior parte da esquerda, mesmo da radical, está simultanemante ainda embaraçada de todo no velho paradigma do marxismo tradicional ou voltou a cair em variações de um utopismo neo-pequeno-burguês.
Nestas condições, é decisivo levar a sério a esfera da teoria como um campo autónomo e concentrar-se nele como projecto. O objectivo principal é despachar e ultrapassar os velhos paradigmas; e isto só se consegue dando prioridade às questões teóricas fundamentais. Precisamente para isso também é necessária uma discussão polémica. Não podemos de facto atingir uma „viragem" no sentido da imediata repercussão em grande escala, mas apenas no sentido de uma luta pela hegemonia teórica do novo paradigma da crítica do valor-dissociação, de uma „liderança de opinião" na reflexão essencial, uma vez que o nosso princípio teórico consegue interpretar e esclarecer os problemas globais da crise melhor que as tradicionais teorias de esquerda, que presentemente ainda continuam a ser hegemónicas na crítica social. Os nossos destinatários não são imediatamente os movimentos e instituições sociais, e portanto também não são imediatamente as massas de práticos, mas os multiplicadores nos movimentos e instituições, que com base na própria experiência elaboraram por si uma consciência dos problemas que os faz sensíveis ao novo paradigma teórico. Só através do „desvio" por estes multiplicadores poderemos no futuro conseguir que a crítica do valor-dissociação tenha uma relevância social de maior alcance. Mas isso também significa que não devemos esperar resultados imediatos.
Com isto abordamos a relevância da crise global para a práxis teórica. À medida que a crise atinge as metrópoles capitalistas, também no seio da esquerda ameaçam alastrar reacções de pânico e precipitação. Não devemos deixar-nos contagiar por este pânico. A crise é grave e atinge-nos também a nós, mas nem por isso podemos encurtar o caminho da mediação teórica. Um argumento que diz que „já não temos muito tempo" e consequentemente devíamos tomar caminhos mais curtos é vão. Pois através de simples actos de vontade, que abstraem das condições da mediação de teoria e prática, fracassamos de certeza. Actualmente na Alemanha muita gente de esquerda, incluindo gente dita crítica do valor, cai na tendência de abandonar a correr o distanciamento teórico, dizendo: agora afecta-me a mim, isto muda tudo, incluindo o entendimento da teoria, da crítica da ideologia, etc. Tais tendências levam a uma redução e diluição da crítica radical, voltando-se para conceitos inconsistentes de uma mera simulação de resistência, que se limita a acções simbólicas ou a pretensas praxis alternativas de vida. Aqui não há nada para ganhar, nem mais um bocado de pão, nem mais um bocado de conhecimento.
Neste debate sobre o carácter da nossa intervenção trata-se também de avaliar qual o carácter que tem na realidade a crise mundial. Do lado da esquerda tradicional, a maior parte das vezes objecta-se ao nosso radical princípio da teoria da crise que qualquer „teoria do colapso" seria prejudicial, fundamentalmente errónea, e que o capitalismo em si poderia continuar a existir eternamente, pois não existiria de modo nenhum qualquer limite interno absoluto. Abstraindo do fraco teor teórico do argumento, o motivo desta invectiva é ideológico, pois para a esquerda tradicional na realidade o que há a fazer é apenas continuar como dantes com os velhos paradigmas baseados no terreno acritica e ontologicamente pressuposto do „trabalho abstracto", da forma de mercadoria, do estado/política e da dissociação sexual.
Se bem entendi, amigos e amigas espanhóis levantam agora a — em todo o caso original — objecção diametralmente oposta, dizendo que na realidade o colapso do capitalismo já se teria dado substancialmente há alguns anos, e que agora teríamos apenas que nos confrontar com „acontecimentos" arbitrários. De facto é certo que com a terceira revolução industrial foi atingido o limite interno absoluto da acumulação, no sentido de que no nível de produtividade atingido já não é possível absorver rentavelmente „trabalho abstracto" suficiente. O capital „dessubstancializa-se" a si mesmo. O que porém não significa que com isso tenha desaparecido do mundo a constituição fetichista do moderno sistema produtor de mercadorias e que já só exista o arbítrio nu e cru de „acontecimentos" subjectivamente provocados. O capitalismo é a unidade de substância e forma, assim como de forma e dissociação. Quando esta unidade se rompe estamos confrontados com a história da decadência do capitalismo e não com o seu abrupto desaparecimento.
Nesta história de decadência prossegue até agora por um lado a amplamente dessubstancializada acumulação da forma, como programa de simulação financeiro-capitalista, enquanto ao mesmo tempo o stock real de capital em diminuição, mas de modo nenhum dissolvido, se reorganiza transnacionalmente através do processo da globalização. Além disso, tão pouco desapareceu a própria forma burguesa de sujeito, que neste contexto se barbariza e começa a agir com reacções irracionais. Um momento essencial neste contexto é a agravação da relação de dissociação sexual: na crise da moderna identidade masculina chega-se a um „asselvajamento do patriarcado" (Roswitha Scholz). Tudo isto sucede não para além do capitalismo e das suas formas fetichistas, mas no processo duma história de decadência e decomposição destas formas. „Colapso" no sentido de um limite interno absoluto não pode portanto ser pontual, localizável numa data, antes trata-se de certa maneira da época de um processo de liquidação, na qual os capitalisticamente constituídos mecanismos de socialização (dinheiro, concorrência, individulização abstracta) e instituições (mercado, estado, etc.) ainda continuam em vigor, precisamente quando se tornam ocos e ruinosos.
Possivelmente a ideia de que o colapso do capitalismo é já coisa do passado tem até um efeito teórico contraproducente. Pois supondo-se que juntamente com a substância do trabalho também a forma do valor e a relação de dissociação sexual já são coisa do passado, surgiria a falsa impressão de que podemos poupar-nos toda a complexa discussão teórica com fetichismo, forma da mercadoria, dissociação, etc., para, em falsa imediatez, nos ocuparmos dos „acontecimentos" aparentemente arbitrários. Na realidade, contudo, estes „acontecimentos" estão sob a égide do sistema fetichista em derrocada, não estão para além dele. Uma tal hipótese poderia levar perto das teorias conspirativas burguesas, o que de facto não é nada de novo, mas pertence à ideologia de crise há mais de cem anos.
O argumento acaba por dar entrada de novo pela porta das traseiras ao velho subjectivismo, politicismo, etc., onde (como em Antonio Negri) já só fica „vontade contra vontade", e todos os conhecimentos sobre o carácter do fetichismo e da forma do sujeito comum às classes como „segunda natureza" correm o risco de cair de novo no esquecimento. Por isso não podemos classificar os „acontecimentos" (11 de Setembro, guerra no Iraque, atentados terroristas em Madrid, Krise na Argentina, Venezuela, etc.) como actos arbitrários de poderes ou instituições „no seguimento do colapso do capitalismo", mas temos que analisá-los como processos de crise NO INTERIOR da própria forma burguesa. Trata-se da própria crise do fetichismo, da forma da mercadoria, da política e da dissociação e não dum incondicional arbítrio deles independente. Não podemos correr atrás dos acontecimentos, mas a nossa tarefa prioritária consiste em analisar o CONTEXTO global desses „acontecimentos" e elaborar a crítica teórica dos seus PRESSUPOSTOS sociais, que de modo nenhum se desfizeram no ar.
Cordiais saudações