A Substância do Capital
O trabalho abstracto como metafísica real social e o limite interno absoluto da valorização

Robert Kurz


Segunda parte: O fracasso das teorias da crise do marxismo da ontologia do trabalho e as barreiras ideológicas contra a continuação do desenvolvimento da crítica radical do capitalismo
Sujeito e objecto na teoria da crise. A solução aparente do problema em meras relações de vontade e de forças


Se voltarmos a passar em revista todo o debate histórico, duas realidades chamam a nossa atenção. Por um lado, a fobia à ideia de um limite interno da valorização do valor não se encontra realmente associada às conjunturas sociais da economia e da política, de crise e prosperidade. A chamada teoria do colapso foi desde o início um escândalo e um incómodo extremo, tanto durante os pachorrentos tempos das notabilidades marxistas do império Guilhermino, como na época de catástrofes das guerras mundiais e da crise económica mundial, e mais ainda na era de prosperidade do pós-guerra, e por fim também hoje de novo na crise mundial da terceira revolução industrial. O escândalo manteve-se e mantém-se independentemente de experiências históricas específicas, e a ideia de um limite absoluto imanente nem sequer no meio das maiores catástrofes da história mundial se tornou hegemónica no discurso marxista mainstream.

Por outro lado, porém, é gritante a falta de profundidade da reflexão teórica em todo este debate, a rapidez com que se passa por cima da questão do conceito da dinâmica capitalista e o pouco que se tem em vista todo o instrumentário conceptual já apresentado por Marx. A crítica não é tanto desenvolvida de um modo imanente e fundamentado na coisa em si, nomeadamente nas contradições internas da reprodução capitalista no âmbito de um processo histórico dinâmico, mas pretende-se sim passar autenticamente ao lado da coisa, para chegar quanto antes a outra coisa completamente diferente. O grande escândalo ainda nem sequer é a ruptura iminente com a ontologia do trabalho marxista, que afinal não se vê em lado nenhum, uma vez que mesmo as teorias do colapso de Luxemburgo e Grossmann nunca abandonam esse terreno. Em todo o caso deverá ter havido um vago pressentimento deste problema, que transformou esse horror vacui do marxismo do trabalho face à perda de substância em motivação inconfessa.

Outra coisa, porém, é desde logo plenamente evidente e ocupa um amplo espaço em todo o debate: nomeadamente o que é sentido como uma ameaça e um desaforo, que um colapso objectivo da valorização devido às suas próprias contradições internas poderia, por assim dizer, roubar o emprego ao proletariado, à maravilhosa classe operária, lançando-a no desemprego, não só no sentido da reprodução imediata, mas igualmente como sujeito histórico. É esta a causa mais profunda da fobia à ideia de colapso. Aqui, no essencial, nem sequer se trata de uma questão da reflexão crítica da economia, no contexto da teoria da crise marxista, mas de uma coerência ideológica básica, que só pode ser apreendida com recurso à crítica ideológica e não à teoria da crise.

Com efeito, já Otto Bauer, no debate em torno da teoria da acumulação de Luxemburgo, nomeara o sujeito proletário como uma espécie de testemunha principal contra a lógica do colapso: "O capitalismo não fracassará perante a impossibilidade mecânica de realizar a mais-valia. Sucumbirá antes à indignação que infunde às massas populares. O capitalismo desmoronar-se-á, não apenas quando o último agricultor e o último pequeno-burguês em todo o mundo forem transformados em trabalhadores assalariados e, assim, não subsistir à disposição do capitalismo mais nenhum mercado a desbravar; será abatido muito mais cedo pela crescente indignação da classe operária que se encontra em constante crescimento, e que é formada, unificada e organizada pelo mecanismo do próprio processo de produção capitalista" (Bauer 1913, citado seg.: Rosa Luxemburgo 1923/1914, p. 481).

O argumento do sujeito de vontade proletário como deus ex machina deve decidir o debate da teoria da crise, que, agudizada em teoria do colapso, é denunciada como "objectivista e determinista". Ora, o facto de esta recriminação ser dirigida precisamente contra Rosa Luxemburgo, que ao mesmo tempo se tinha destacado como teórica da espontaneidade proletária, da greve de massas e do activismo revolucionário contra a lei da inércia reformista da social-democracia, constitui na verdade uma piada de mau gosto. Pelo que Rosa Luxemburgo não tarda em ripostar a Otto Bauer, atirando-lhe à cara o seu oportunismo, por altura da catástrofe da guerra mundial. Logo um semelhante teórico da mais infame afirmação do domínio capitalista havia de pôr em acção o "sujeito de classe revolucionário"! Ainda assim aqui espreita o problema por resolver da relação-sujeito-objecto na sociedade burguesa moderna.

Rosa Luxemburgo argumenta de modo antes de mais defensivo, quando na sua Anticrítica se refere a este problema: "O esquema da acumulação de Marx — se for bem entendido — precisamente na sua irresolubilidade, é o prognóstico exacto da ruína economicamente inevitável do capitalismo como resultado do processo de expansão imperialista... Poderá esse momento alguma vez tornar-se realidade? No entanto tudo isto não passa de uma ficção teórica, precisamente porque a acumulação do capital é um processo não apenas económico, mas antes político... Aqui, como noutros momentos da História, a teoria faz o seu serviço completo se nos apresentar a tendência do desenvolvimento, o ponto final lógico para o qual ela aponta objectivamente. Este tão-pouco pode ser alcançado como em qualquer período anterior da História pôde o desenvolvimento social desenvolver-se até às últimas consequências. Tanto menos precisa de ser alcançado quanto mais a consciência colectiva, desta feita encarnada no proletariado socialista, intervier como factor activo no cego jogo das forças. E a concepção correcta da teoria de Marx oferece a esta consciência, também neste caso, as propostas mais férteis e o incentivo mais vigoroso" (Luxemburgo 1914, ibidem, p. 479, itálico de Luxemburgo).

Evidentemente o problema não fica resolvido com estas observações. A tendência para o colapso não poderia antecipar-se ao proletariado e substituir-se a ele, antes que o mesmo conseguisse levar à prática a sua "intervenção activa"? Por outro lado: será que o proletariado apenas pode intervir porque tem pelas costas esta tendência objectiva? Não poderia ele alcançar a emancipação social de um modo plenamente independente de semelhante tendência? A relação entre sujeito e objecto permanece por esclarecer; apenas se torna evidente que tal relação deve existir e que, exactamente na sua indefinição, pode ser instrumentalizada contra a teoria do colapso. Tal também tem algo a ver com a frequentemente apontada debilitação da auto-consciência humana pelas grandes teorias científicas e sociais da modernidade. Se o iluminismo entronizara, por um lado, o sujeito autónomo como demiurgo de si mesmo, a reflexão crítica, por outro, infligiu-lhe uma queda tanto mais dolorosa. Como é sabido, já Copérnico tinha banido o ser humano do centro do Universo; Freud negou-lhe a plena consciência psíquica de si mesmo; e em Marx o fetichismo do sistema produtor de mercadorias acaba também com a subjectividade politico-económica como último fundamento do desenvolvimento socio-económico. Estas observações já há muito que se tornaram o topos dos discursos da teoria social. Como é do conhecimento geral, o estruturalismo e a teoria dos sistemas prosseguiram afirmativamente nesta senda, onde o sujeito já é apenas uma sombra de si próprio, ou o mero "ambiente" de um contexto sistémico auto-referencial.

Se descermos deste patamar, que ainda não teve oportunidade de desempenhar nenhum papel de relevo nos debates marxistas da teoria do colapso, o problema parece desde logo diminuir um tanto de dimensão. Face à sua concepção especial da "acção do sujeito", não dava jeito nenhum à social-democracia um colapso, um cataclismo da sociedade. Pois a sua ideia era que o grau cada vez maior de organização social do capital apenas teria de ser transferido para a mão do Estado, e desta de novo para a mão do proletariado (como acontece, por exemplo, em Hilferding), para se chegar ao Socialismo com toda a calma e pela via da acção parlamentar. Nesta medida o desejo reformista espreitava à esquina como pai do pensamento, por exemplo quando Gustav Eckstein, na sua polémica contra Rosa Luxemburgo, constatava quase com alívio: "Com os pressupostos teóricos caem por terra as consequências práticas, antes de mais a teoria da catástrofe que a camarada Luxemburgo edificara sobre a sua doutrina da necessidade da existência de consumidores não capitalistas" (Eckstein, ibidem, p. 493). Tanto mais acutilante acabou por ser a reacção de Rosa Luxemburgo na sua Anticrítica, redigida já depois de irromper a verdadeira catástrofe da guerra mundial; agora ela referia-se à "catástrofe como forma de existência [Daseinsform]"(ibidem, p. 480) do capitalismo imperialista.

Mas o debate de modo nenhum se resumia à oposição entre as teorias "reformista" e "revolucionária" do agir subjectivo. Também as posições comunistas e outras posições activistas revolucionárias, que no fundo não precisavam de ter tanto medo de um cataclismo, atacaram a teoria do colapso com veemência redobrada, devido ao seu "objectivismo e determinismo". Bukharine, por exemplo, acusa Rosa Luxemburgo de "determinismo económico" (Bukharine, ibidem, p. 284), quando ele próprio parece cair no mesmo logo duas páginas depois, onde acaba por dizer sobre as instabilidades e crises cíclicas e a sua "resolução condicionada": "A sua amplitude e intensidade crescentes conduzem inevitavelmente ao colapso da dominação capitalista" (ibidem, p. 286, itálico de Bukharine).

A ideia da "inevitabilidade" é evidentemente ela própria determinista, mas paradoxalmente é-o de um modo afirmado em sentido puramente subjectivo, quando Bukharine finalmente desvenda como a entende por oposição ao "determinismo económico": "Hoje já estamos em posição de não mais nos permitirmos ajuizar sobre o processo do colapso capitalista apenas com base em construções abstractas e perspectivas teóricas. O colapso do capitalismo já começou. A revolução de Outubro é a expressão mais viva e convincente disso mesmo. A revolucionarização do proletariado teve, sem dúvida, que ver com a ruína económica, esta com a guerra, a guerra com a luta por mercados para o escoamento da produção, mercados de matérias primas, esferas de investimento de capitais, em resumo, com a política imperialista no seu todo" (ibidem, p. 287, itálico de Bukharine).

É evidente que Bukharine aqui coloca o conjunto do problema de pernas para o ar. O limite interno objectivo da valorização do valor com base nas suas próprias contradições converte-se em outro, puramente subjectivo e político, em limite de uma mera relação de vontades. A crise provém da esfera política, de onde também provém a emancipação ou a revolução, ao passo que a chamada economia, que na realidade constitui a lógica básica da valorização do valor, abrangente de todas as esferas oficiais, se reduz a um ameno ruído de fundo, e na verdade bastante irrelevante para o curso dos acontecimentos. O conceito do colapso é neste contexto uma embalagem enganadora. É que um colapso é por essência algo de objectivo, sofrido de forma passiva, condicionado por leis naturais ou sistémicas, e não um acto de vontade ou uma relação de vontade. Um colapso é quando uma pessoa sofre uma grave perturbação circulatória ou um enfarte, quando uma ponte se desmorona por excesso de peso, um motor gripa, uma estrela se contrai em um buraco negro, ou uma conexão sistémica (por exemplo um programa de computador) se torna instável e "crasha" etc. O termo torna-se desadequado quando se trata de actos de vontade num conflito consciente. Mas mais importante ainda é que Bukharine, na sua deturpação, acaba por dar mais uma cambalhota, fazendo no acto uma revelação involuntária. É que, embora subjective a objectividade do colapso, a reduza à política, ao mesmo tempo e inversamente objectiva esse mesmo sujeito, ao declarar a sua actuação "inevitável" e por conseguinte determinada. Chegados a este ponto deparamos novamente com a não solucionada problemática-sujeito-objecto da modernidade.

E este problema vai-se repetindo e vai sendo arrastado através de todo o debate em torno da crise ou do colapso. Assim reaparece também nas tiradas de Eugen Varga contra Grossmann, alguns anos mais tarde. Também Varga retira do formol o sujeito (sujeito de classe) como deus ex machina. "Ele (Grossmann, R.K.) separa a economia da luta de classes; por isso, o seu ‘colapso’ não é a derrocada da ordem social capitalista, mas sim uma fantasia puramente económica..." (Varga, ibidem, p. 68, itálico de Varga). E, como em Bukharine, a "vontade determinada" acaba por se condensar no poder soviético, que torna supérflua qualquer teoria da crise no sentido de mecanismos sistémicos cegos. "Quem, no ano de 1929, tem a coragem de publicar um livro de seiscentas páginas sobre a ‘lei do colapso’ do capitalismo sem dizer uma palavra sobre o colapso do capitalismo já ocorrido na Rússia, por muitas citações de Marx que acumule, por muito doutas que sejam as suas considerações sobre o método do marxismo — quem faz tudo isto não compreendeu o abc do método de investigação marxista!... O motivo pelo qual se cala tão obstinadamente a queda do capitalismo na Rússia é por ser perfeitamente evidente que essas causas, que segundo Grossmann haveriam de ser responsáveis pela derrocada do capitalismo, não tiveram a mínima importância na derrocada do capitalismo realmente ocorrida na Rússia. De facto seria ridículo afirmar-se que o capitalismo na Rússia — a qual, como é sabido, era um país muito pobre em capital, que não parava de importar grandes quantias de capital estrangeiro — tivesse soçobrado devido a uma acumulação excessiva de capital!... Para nós, comunistas combativos, é um grande alívio sabermos que a real derrocada do capitalismo não está vinculada ao mecanismo causal com tanto alarido apregoado pelo senhor Grossmann..." (ibidem, p. 62 s., itálico de Varga). E assim Varga, aliviado, a escassos três anos da tomada do poder pelos nacional-socialistas, regozija-se com a expectativa da "derrocada do capitalismo" à escala planetária "... muito antes de ser possível ocorrer em todo o mundo uma ‘acumulação excessiva’ de capital" (ibidem, p. 63).

Da perspectiva da actualidade, é mais que óbvio o grandioso acto falhado desta argumentação: o que Varga gostaria de entender como "derrocada do capitalismo" na Rússia, à semelhança aliás da maioria dos seus contemporâneos, era na realidade uma "modernização atrasada", uma implementação socio-histórica do sistema do trabalho abstracto sob a batuta do comunismo de Estado, numa zona subdesenvolvida em termos capitalistas da periferia do mercado mundial; ou seja, um regime historicamente não simultâneo de acumulação primitiva, que entrou ele próprio em colapso setenta anos mais tarde nas condições da 3ª revolução industrial. Mas a argumentação de Varga não apenas é absolutamente inconsequente em termos históricos e economico-políticos, no sentido do limite da socialização capitalista com base no trabalho abstracto e na respectiva forma do valor. Ao mesmo tempo, tal como no caso de Bukharine, ela lança involuntariamente uma luz crua sobre a estrutura-sujeito-objecto da modernidade, ligada ao problema da crise e do colapso, que apenas se consegue resolver sempre de forma paradoxal na subjectividade do político — e que, por isso mesmo, provoca os acessos de raiva contra o "determinismo político" das teorias do colapso.

Não admira que, tal como a argumentação do social-democrata Otto Bauer e a do comunista Nicolai Bukharine contra o "determinismo económico" de Rosa Luxemburgo são quase idênticas, o mesmo também se aplique às argumentações correspondentes do comunista Eugen Varga e do social-democrata Alfred Braunthal contra Henryk Grossmann, ainda que Braunthal tente aqui também ajustar contas com os comunistas: "No entanto, os comunistas e os adeptos da teoria do colapso não só são alheios ou mesmo avessos à realidade, pelo facto de as suas teorias não brotarem da realidade viva, mas também negligenciam os dados da realidade, na medida em que fecham os olhos perante as forças transformadoras da sociedade, que já hoje operam de facto. Se levarmos estas forças em linha de conta e nos apercebermos da importância das crescentes tendências organizativas da economia, da crescente influência do operariado e da pressão crescente por este exercida no sentido da democratização da economia, com vista à transformação da sociedade de capitalista em socialista, torna-se evidente que o operariado não tem de esperar em soturna resignação por um futuro longínquo, em que, após um horrendo período de transição repleto de penúria e miséria, as tendências de colapso do capitalismo se imponham de forma automática, mas este conhecimento incita o operariado a mobilizar todas as suas forças para impor, não o colapso do capitalismo, mas sim a sua transformação em um sistema de sociedade socialista" (Braunthal, ibidem, p. 304).

Não se consegue evitar um arrepio face a semelhante ingenuidade imediatamente nas vésperas da crise económica mundial, da barbárie nacional-socialista e da subsequente segunda guerra mundial. No entanto, ao mesmo tempo também se torna claro como é reduzida a diferença entre a reforma e a revolução na rejeição da teoria do colapso quanto ao problema do sujeito. No fundo tudo se resume à não simultaneidade histórica, à diferença entre a mesma interrogação por resolver, uma vez nas condições de um capitalismo ocidental já desenvolvido, e outra nas de uma sociedade periférica de "modernização atrasada", ainda não desenvolvida em termos capitalistas. Quer seja o operariado (ocidental) que deva exercer uma "pressão crescente no sentido da democratização da economia", ou se queira que a revolução proletária produza o suposto "colapso do capitalismo" sob a forma de uma ditadura comunista estatal do trabalho abstracto: a estrutura-sujeito-objecto e a sua aparente resolução no sentido da subjectividade política e contra o "determinismo económico" é a mesma.

Talvez se torne mais nítido que aqui espreita um problema que está por resolver, e que não tem solução no âmbito da socialização do valor, se também considerarmos a posição dos comunistas de esquerda ou dos conselhos, que, face aos sociais-democratas e aos comunistas de partido, apenas agudiza e radicaliza essa aparente resolução em relações de vontade subjectiva. Na sua polémica contra Grossmann, Pannekoek exaspera-se: "Para ele, o capitalismo é um sistema mecânico, em que os seres humanos intervêm como pessoas da economia, capitalistas, compradores, vendedores, assalariados etc., mas que de resto têm de sofrer de forma passiva o que o mecanismo lhes impõe por força da sua estrutura interna... (O) mecanismo determina as dimensões económicas, ao passo que os seres humanos que agem e lutam se encontram fora dessa conexão" (Pannekoek, ibidem, p. 20).

Eis-nos perante uma cantiga que teve de se nos tornar familiar; pois tem sido periodicamente tocada até hoje, nos debates da esquerda radical. Pannekoek abstrai por completo da forma social da consciência e mesmo da vontade. Quer atribuir às "pessoas que lutam e agem", independentemente da tematização crítica desta forma (a forma do valor) e da sua substância (o trabalho), um potencial de vontade transcendente, ou seja, atribuir, num acesso de falsa imediatez, ao ser-assim [Sosein] dos sujeitos constituídos de modo capitalista, tal e qual eles são e agem, algo que estes apenas podem alcançar pela mediação de uma crítica radical desta forma. Todo o "lutar e agir" permanece sob a égide de uma falsa objectividade, enquanto não tiver passado pela crítica da forma e da substância do trabalho abstracto. E, se isso não acontecer, as pessoas sofrerão através do seu próprio "lutar e agir" exactamente "o que o mecanismo lhes impõe por força da sua estrutura interna" — precisamente porque não se encontram "de fora dessa conexão".

Essa conexão permanece (não só) para Pannekoek um bicho-de-sete-cabeças, e assim ele vai dar exactamente ao contrário do que pretende, nomeadamente, e tal como Bukharine, à objectividade do sujeito e à determinação da própria vontade: "O colapso do capitalismo, em Marx, depende de facto da vontade da classe operária; mas essa vontade não é arbitrária, não é livre, mas é ela própria totalmente determinada (!) pelo desenvolvimento económico. As contradições da economia capitalista... determinam a vontade do proletariado sempre de novo no sentido da revolução. O socialismo não vem por o capitalismo entrar em colapso económico e assim os humanos, operários e outros, obrigados pela necessidade, criarem uma organização nova. Pelo contrário, o capitalismo vem abaixo porque, tal como vive e viceja, se torna cada vez mais insuportável para os operários, instigando-os à luta, sempre de novo, até neles crescer a vontade e a força para derrubar o domínio do capital e edificar uma organização nova" (ibidem, p. 21 s.).

Pannekoek nem sequer se apercebe que é indiferente se a vontade da classe operária "totalmente determinada pelo desenvolvimento económico" leva o capitalismo subjectivamente ao "colapso", ou se o capitalismo se desmorona por motivos a ele intrínsecos e assim "obriga" a classe operária de forma objectiva a "criar uma organização nova". Sem querer, ele ilustra claramente a permutabilidade do sujeito e do objecto na estrutura fetichista da reprodução, o que até acaba por ser elevado a honras de metafísica da história: "Para Marx, toda a necessidade social impõe-se por intermédio dos seres humanos (!); tal significa que o pensar, o querer e o agir humanos, embora pareçam discricionários à própria consciência — são totalmente (!) determinados pelos efeitos do meio; e é apenas pela totalidade destas acções humanas, determinadas no seu essencial por forças sociais, que se impõe uma regularidade no desenvolvimento social... A acumulação do capital, as crises, a miséria crescente, a revolução proletária, a apropriação do domínio por parte da classe operária, constituem juntas uma unidade indissolúvel que actua como lei natural (!), o colapso do capitalismo" (ibidem, p. 19).

É deveras grotesco: a determinação subjectiva apresenta-se imediatamente como objectiva, sem que seja reflectido o contexto de mediação; assim, a vontade emancipatória aparece, ela própria, como parte integrante precisamente da mesma pseudo-"lei natural", que a bem dizer constitui o escândalo da falsa objectivação. O que aqui se manifesta é uma conceptualidade demasiado rudimentar da própria relação de capital, a que faltam os momentos decisivos da crítica da forma de fetiche e da substância de trabalho. Já manda saudades o estruturalismo de um Althusser, para o qual até a revolução será um "processo sem sujeito" — embora Pannekoek aparentemente se situe no outro extremo da escala-sujeito-objecto do radicalismo de esquerda marxista. O preço por a classe operária se manter como sujeito histórico e não deixar os seus louros pelas mãos do "determinismo económico" do colapso objectivo consiste em "a classe", ela mesma, apenas poder actuar como executora de supostas "leis naturais" da sociedade — o que constitui um sinal inequívoco de que esta construção, na realidade, se mantém presa no círculo sob a égide das categorias capitalistas, e de que esta ideia de uma "revolução proletária" mais não é que uma ideologia de desenvolvimento do trabalho abstracto, e representa um prolongamento do sistema da valorização, em que o "trabalho sem capital" poderia voltar a ser uma simples relação de capital.

Como é evidente, o próprio Grossmann não ficou alheio à metacrítica ideológica da sua obra, fundamentada no problema do sujeito, para lá das definições imanentes da teoria da crise. Ainda no exílio nos U S América, mais de uma década após a interrupção do debate, ele tentava indirectamente defender-se da acusação do "determinismo económico", asseverando, à semelhança de Rosa Luxemburgo, que a tendência objectiva para o colapso de modo nenhum tornava supérfluo o agir subjectivo emancipatório. Segundo Grossmann, um "momento da teoria geral de Marx" essencial consistiria "na doutrina de que nenhum sistema económico, por muito acossado que seja, entra em colapso por sua iniciativa própria; tem de ser ‘derrubado’. A análise teórica das tendências objectivas de desenvolvimento que levam ao colapso do sistema serve para descortinar os ‘elos fracos’, a serem utilizados como uma espécie de barómetro, que indica quando o sistema se torna maduro para uma mudança fundamental. E mesmo quando esse ponto é alcançado, a revolução é levada a cabo tão-só pelo agir activo dos factores subjectivos... É graças a tal agir que as tendências objectivas podem ser realizadas" (Grossmann 1971/1943, p. 210 ss).

Assim sendo, Grossmann agora já chegou ao mesmo ponto que Pannekoek; a objectividade (negativa, falsa) é subjectivada, ao passo que inversamente o agir subjectivo é objectivado ("realização das tendências objectivas"), o próprio sujeito já só é um "factor", a confusão é total. É óbvio que Grossmann nunca se tinha debruçado sobre este meta-nível, onde agora a posteriori ainda se espalha ao comprido, depois de há muito se ter tornado claro que o seu esforço de análise no plano das categorias do valor e da teoria da crise a elas ligada não podia chegar a lado nenhum.

Já só faltava um pequeno passo para reduzir este dilema por completo à pura subjectividade das relações de vontade e declarar as categorias da crítica da economia política de Marx na prática completamente irrelevantes. A relação de capital, como relação de vontades exterior, já não é então mais que "vontade contra vontade" (ainda assim novamente expressa de forma objectivada como "classe contra classe", visto que, como é sabido, a categoria classe é por sua vez sistemicamente constituída, e assim desde logo faz parte da objectividade). Para ser mais exacto: a objectivação incompreendida da categoria classe é reduzida a uma simples questão de vontade, de modo que a objectividade do fetiche capitalista aparentemente se resolva numa simples "relação de forças" de determinações de vontades contraditórias.

Foi Karl Korsch quem, na discussão da meta-problemática da relação-sujeito-objecto no âmbito do debate sobre a crise e o colapso, ajudou a preparar esta viragem. Para ele, qualquer teoria do colapso representa uma "deformação objectivista": "Semelhante teoria não me parece apropriada para produzir essa plena seriedade do agir auto-responsável da classe operária que luta pelos seus objectivos próprios, necessária tanto à guerra de classe dos operários como a qualquer outra guerra comum" (Korsch, citado segundo: Marramao 1977, p. 18). Como constata Marramao, Korsch vai até ao ponto de encarar "a representação dialéctica do Marx maduro como uma mera alegoria destinada a excitar a vontade de luta e o espírito revolucionário do proletariado" (Marramao 1977, p. 21, itálico de Marramao).

Giacomo Marramao, que no contexto do marxismo da nova esquerda dos anos setenta se ocupou do problema, designa com razão esse pensamento de Korsch como "redução pragmática do momento dialectico-morfológico da crítica da economia política" (ibidem, p. 42). Como consequência última deste pensamento, as categorias do trabalho abstracto, valor, mercadoria, preço, mais-valia, composição orgânica, queda tendencial da taxa de lucro etc., ou seja, as balizas teóricas da reprodução capitalista assim como da sua crise, têm de se reduzir a meras "alegorias" de determinações de vontade das "classes", pensadas como sujeitos de vontade sem pressupostos. O plano da constituição do fetiche e do "sujeito automático", que de qualquer modo nunca tinha sido entendido, agora é abolido de vez, as objectivações reais convertem-se em meras vestes de relações de vontade puramente subjectivas.

É verdade que Korsch também se pronuncia contra um mero subjectivismo da acção directa não mediada etc., mas isso refere-se unicamente aos planos da mediação no âmbito das supostas puras relações de vontade, e não à objectividade negativa da relação de fetiche e da crise como limite objectivo: "Esta postura declara toda a questão da necessidade ou evitabilidade objectivas das crises capitalistas uma questão que nessa generalidade não faz sentido no âmbito de uma teoria da revolução prática do proletariado... Antes ela crê que, através de uma investigação empírica cada vez mais exacta e pormenorizada do presente modo de produção capitalista e das suas nítidas tendências de desenvolvimento futuro, também podem ser feitos certos prognósticos que, embora sempre muito limitados, sempre chegam para as necessidades da acção prática" (Korsch, ibidem, p. 18 s., itálico de Korsch).

Aqui se mostra a consequência desse "reducionismo pragmático" das categorias capitalistas forma e substância: o movimento histórico já não se apresenta como movimento dessas mesmas categorias, que só seria possível entender com base na teoria correspondente, mas já apenas se manifesta na redução a relações de vontade, ou seja, reduzido ao "plano empírico" e à sua "investigação", sendo que esta empiria é concebida de modo imediato como sendo referente a relações de força entre determinações de vontades antagónicas. Tinha nascido a famigerada análise das classes: acabou-se qualquer investigação e debate sobre o movimento categorial e o seu nexo interno, findou o debate sobre as teorias da crise e do colapso, sobre a queda tendencial da taxa de lucro, o problema da realização e outros que tais — todos eles despromovidos a "questões que nesta generalidade não fazem sentido". Em vez disso já só permanece a análise empírica no sentido das estruturas das classes e das suas alterações, que assim sendo também incluem as alterações nas relações de vontade. Ou seja, precisamente aquilo que o operaismo, com os seus teoremas da recomposição da classe operária, havia inscrever na sua agenda como um reducionista programa de investigação permanente.

Como é óbvio, com este tipo de expedientes não se consegue escapar à relação-sujeito-objecto da constituição do fetiche moderno. Apenas se prolonga o dilema que já surge em Pannekoek e que radica no curto entendimento do marxismo do movimento operário em geral: quanto mais subjectivo, mais objectivo; quanto mais a relação de fetiche é concebida como uma pura relação de vontade de sujeitos de vontade pensados sem pressupostos ("classes"), cujos reais pressupostos permanecem na sombra, tanto mais a objectividade falsa, negativa, acaba por se reintroduzir pela porta das trazeiras, e os teóricos da imediatez, que já nem sequer reflectem os seus próprios pressupostos, vêem-se constrangidos a coisificar por completo a estrutura e a consciência do seu esplêndido "sujeito de vontade proletário" e "investigá-lo" como um objecto natural objectivo, com o que evidentemente desmentem da forma mais embaraçosa a sua ênfase no "agir auto-responsável da classe proletária em luta pelos seus próprios objectivos".

Tal como a história secreta do debate do marxismo tradicional sobre a crise e o colapso consistiu, para lá do plano reduzido da economia política, na desagradável tematização dessa pouco esclarecida estrutura-sujeito-objecto da socialização do valor moderna, assim o programa secreto da sua resolução consistiu na redução das categorias objectivadas do capital a puras relações de vontade, que de seguida podiam ser observadas e investigadas sob aspectos diversos. A história do pós-guerra da nova esquerda foi, toda ela, permeada por este paradigma. Foi simplesmente adoptado este resultado do debate do colapso, não sujeito à mínima análise crítica e de todo irreflectido; e foi precisamente por isso que não só o conceito de colapso, como palavra não grata, se transformou em um mero fantasma, mas também o caminho para um desenvolvimento ulterior da crítica da ontologia do trabalho permaneceu obstruído, e os bastante tematizados conceitos de coisificação ou de alienação não passaram de uma superficial formulação socio-filosófica.

O plano da constituição social, o problema da constituição de fetiche e do "sujeito automático", teve de continuar assim não elaborado e foi mesmo expressamente rejeitado. Apesar das aparências exteriores, tal tendência não é contrariada nem mesmo pela corrente do debate do estruturalismo de Althusser. Althusser deixou sobrar o "sujeito proletário" num estado perfeitamente irreflectido, mas despido da sua ênfase e reduzido a um "executor" de processos estruturais. Porém, como foi assinalado, já Pannekoek tinha chegado a esse ponto, que no fundo também foi o pressuposto implícito ou explícito de todo o "materialismo histórico". O pólo oposto operaista apenas constituiu o reverso da mesma medalha. Não é por acaso que tanto Luis Althusser como Toni Negri rejeitaram expressamente tanto o conceito de fetiche como toda a argumentação de Marx sobre ele edificada. Deste modo, juntamente com o problema do limite interno objectivo da valorização, também a forma social do sujeito e a sua substância (do trabalho) foram definitivamente apagadas como possíveis objectos da reflexão e da crítica radical.


Inclusão: 04/10/2020