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Primeira Edição: Original DAS LETZTE STADIUM DER MITTELKLASSE in www.exit-online.org Publicado na Folha de São Paulo, 19 de setembro 2004, com o título O DECLÍNIO DA CLASSE MÉDIA e tradução de Luís Repa.
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Desde os meados dos anos 1980, o discurso pós-moderno imperou na discussão teórica global ao longo de quase duas décadas, principalmente na esquerda. A crítica da economia política foi substituída pela crítica da linguagem, e a análise das relações materiais objetivas, pela arbitrariedade da interpretação subjetiva; no lugar do economicismo tradicional de esquerda entrou um culturalismo de esquerda igualmente redutor e, no lugar do conflito social, a simulação midiática. Nesse meio tempo, porém, a situação se alterou radicalmente. A crise econômica atinge agora, mesmo no Ocidente, amplas camadas sociais, que até então haviam sido poupadas. É por isso que a questão social retorna no discurso intelectual.
Mas as interpretações continuam com uma notória palidez e parecem francamente anacrônicas. A polarização entre pobres e ricos, exacerbando-se de forma imparável, não encontrou ainda um novo conceito. Se o conceito marxista tradicional de "classe" tem uma súbita conjuntura favorável, isso é antes um sinal de desamparo. No entendimento tradicional, a "classe operária", que produz a mais-valia, era explorada pela "classe dos capitalistas" por meio da "propriedade privada dos meios de produção". Nenhum desses conceitos pode expor com exatidão os problemas atuais.
A nova pobreza não surge pela exploração na produção, mas pela exclusão da produção. Quem ainda está empregado na produção capitalista regular já figura entre os relativamente privilegiados. A massa problemática e "perigosa" da sociedade não é mais definida por sua posição no "processo de produção", mas por sua posição nos âmbitos secundários, derivados, da circulação e da distribuição. Trata-se de desempregados permanentes, de beneficiários de apoio social ou de prestadores de serviços baratos nos domínios do outsourcing, até chegar aos empresários da miséria, vendedores de rua e coletores de lixo. Essas formas de reprodução são, segundo critérios jurídicos, cada vez mais irregulares, inseguras e amiúde ilegais; a ocupação é irregular, e as rendas rondam o limiar do mínimo necessário para a existência ou até caem abaixo disso.
Inversamente, tampouco a "classe dos capitalistas" pode ainda ser definida no velho sentido, segundo os parâmetros da clássica "propriedade privada dos meios de produção". Na figura do aparelho estatal e das infra-estruturas tanto quanto na figura das grandes sociedades acionárias (hoje transnacionais) o capital aparece de certo modo como socializado e anonimizado; ele se revelou abstrato, e não a forma personalizável da sociedade inteira. "O capital" não é um grupo de proprietários jurídicos, mas o princípio comum que determina a vida e a ação de todos os membros da sociedade não só exteriormente como também em sua própria subjetividade.
Na crise e através da crise, efetua-se mais uma vez uma mudança estrutural da sociedade capitalista, dissolvendo as situações sociais antigas, aparentemente claras. O cerne da crise consiste justamente em que as novas forças produtivas da microeletrônica derretem o trabalho e, com ele, a substância do próprio capital. Dada a redução cada vez maior da classe operária industrial, cria-se cada vez menos mais-valia real. O capital monetário foge rumo aos mercados financeiros especulativos, visto que os investimentos em novas fábricas se tornaram não-rentáveis. Enquanto partes crescentes da sociedade fora da produção pauperizam ou até caem na miséria, do outro lado se realiza tão-somente uma acumulação simulatória do capital por meio de bolhas financeiras.
Pela lógica, isso não é nada novo, pois esse desenvolvimento já marca o capitalismo global faz duas décadas. Mas é novo que agora a classe média nos países ocidentais também seja atropelada. Barbara Ehrenreich já havia publicado em 1989 um livro a respeito da "angústia da classe média diante da queda". Porém o problema foi adiado em seguida por uma década inteira, já que a conjuntura baseada em bolhas financeiras dos anos noventa, juntamente com o impulso da tecnologia de informação e da comercialização da internet, despertou mais uma vez novos sonhos de florescência. O colapso da nova economia e o estouro das bolhas financeiras na Ásia e na Europa, em parte também nos EUA, começam agora, desde o ano 2000, a efetivar de maneira brutal a queda da classe média, já temida anteriormente.
Mas quem é essa classe média e que papel ela desempenha na sociedade? No século XIX, o mundo das classes sociais era ainda simples e transparente. Entre a classe dos capitalistas, isto é, dos proprietários privados dos meios de produção social, e a classe dos trabalhadores assalariados, que nada possuem além de sua força de trabalho, encontrava-se a classe dos assim chamados pequeno-burgueses. Essa antiga classe média se destacava pela posse de pequenos meios de produção (oficinas, lojas etc.) nos quais ela empregava principalmente sua própria força de trabalho e a de sua família para vender seus próprios produtos no mercado. A expectativa dos marxistas ortodoxos era de que esses "pequeno-burgueses" iriam desaparecer aos poucos devido à concorrência das grandes empresas capitalistas, afundando na classe dos trabalhadores assalariados industriais, até a sociedade ficar polarizada nas duas classes principais, a burguesia e o proletariado.
Mas já no começo do século XX houve na social-democracia alemã o célebre debate entre Bernstein e Kautsky sobre a "nova classe média". Eles se referiam a determinadas funções técnicas, econômicas e intelectuais que haviam resultado do processo de socialização capitalista. Com a cientificização crescente da produção e a expansão correspondente das infra-estruturas (administração, engenharia, formação e educação, sistema de saúde, sistema de comunicação, publicidade midiática, instituições de pesquisa etc.) surgiu uma nova categoria social, que, segundo o velho esquema, não era "nem peixe nem carne". Não se tratava de capitalistas, porque não representava nenhum grande capital monetário; tampouco se tratava de pequeno-burgueses clássicos, porque não possuía os próprios meios de produção e em grande parte era formada de assalariados ou de autônomos meramente formais; porém tampouco se tratava de proletários, porque era empregada não como "produtores diretos" mas como funcionários do desenvolvimento capitalista das forças produtivas em todos os âmbitos da vida.
Certamente houve, já no século XIX, professores e outros funcionários públicos bem como aqueles funcionários da economia empresarial que Marx designara de "oficiais e suboficiais do capital". Mas numericamente essas categorias sociais pesavam tão pouco que mal podiam ser chamadas propriamente de "classes". Foi só com os novos requisitos do capitalismo no século XX que as funções correspondentes se tornaram de massa, a ponto de constituírem uma nova classe média. No debate marxista ligado ao começo dessa evolução, Kautsky buscou prensar as novas camadas médias no antigo esquema, incluindo-as de alguma maneira no proletariado, ao passo que Bernstein quis enxergar nesse fenômeno social uma estabilização do capitalismo, que possibilitaria uma política reformista moderada.
De início, Bernstein pareceu ter razão por um longo tempo. A nova classe média se revelou cada vez mais claramente uma categoria social distinta da classe trabalhadora tradicional, não apenas segundo o conteúdo e o local da atividade mas também no aspecto econômico. Barbara Ehrenreich menciona como critério o fato de que para essas pessoas seu "status social se baseia antes na formação do que na posse de capital ou de outros valores materiais". Como sua constituição requer um longo tempo, até os 30 anos de vida ou além disso, e devora grandes recursos, a qualificação superior eleva o valor da força de trabalho bem acima das demais variações médias.
Foi nesse contexto que se originou um conceito rico em conseqüências, a saber: o de "capital humano". Engenheiros empregados, especialistas de marketing, planejadores de recursos humanos, médicos autônomos, terapeutas, advogados, professores pagos pelo Estado, cientistas e assistentes sociais "são", sob um determinado aspecto, o capital de um duplo modo. De um lado, eles se relacionam estrategicamente com o trabalho de outras pessoas por meio de sua qualificação, dirigindo e organizando no sentido da valorização do capital; de outro, eles se relacionam em parte (sobretudo na qualidade de autônomos ou de funcionários dirigentes) com sua própria qualificação e, dessa maneira, com eles próprios na forma de "capital humano", como um capitalista no sentido da "autovalorização". A nova classe média não representa o capital no plano dos meios de produção de materiais externos ou do dinheiro, ela o faz no plano da qualificação organizada para o processo de valorização, em um alto nível de aplicação de ciência e tecnologia.
No decurso do século XX, formaram-se inúmeras novas funções dessa espécie, e a nova classe média aumentou cada vez mais em termos numéricos. Particularmente, o desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial trouxe, juntamente com as novas formas de produção fordista e as indústrias do lazer, um surto complementar que ia nessa direção; era perceptível que na maioria dos países a parcela dos estudantes aumentava de geração a geração. O movimento estudantil mundial de 1968 mostrou o significado acrescido desse setor social; no entanto ele foi também um primeiro sinal da crise. Se até então a constituição da nova classe média tinha de fato estabilizado o capitalismo no sentido de Bernstein e esteve ligada a reformas progressistas, agora começava um processo de desestabilização.
Da fato, o novo desemprego estrutural em massa, na seqüência da terceira revolução industrial e da globalização do capital, atingiu de início principalmente os produtores industriais diretos. Mas já se via que também a nova classe média não seria poupada. A ascensão dessa classe acompanhou em muitos aspectos a expansão das infra-estruturas públicas, do sistema de educação e da burocracia do Estado social. A crise da valorização industrial real levou a uma crise financeira do Estado cada vez mais profunda. De repente, muitos domínios que antes eram considerados conquistas soberbas começaram a parecer luxo desnecessário e peso morto.
O mote do "Estado magro" se propagou; as verbas para educação e cultura, para o sistema de saúde e numerosas outras instituições públicas foram cortadas; iniciava-se a demolição do Estado social. Também nas grandes empresas setores inteiros de atividade qualificada foram vítimas da racionalização. Com o desabamento da nova economia, até mesmo as qualificações de muitos especialistas "high-tech" se viram desvalorizadas. Hoje não se pode mais ignorar que a ascensão da nova classe média não tinha uma base capitalista autônoma; pelo contrário, ela dependia da redistribuição social da mais-valia oriunda dos setores industriais. À medida que a produção social real de mais-valia entra em uma crise estrutural devido à terceira revolução industrial, os âmbitos secundários da nova classe média vão sendo sucessivamente privados de sua base de sustentação.
O resultado não é somente um desemprego crescente de acadêmicos. A privatização e o outsourcing desvalorizam o "capital humano" das qualificações inclusive no interior do emprego e degrada o seu status. Intelectuais pagos ao dia, trabalhadores baratos e empresários da miséria na figura de freelancers em mídias, universidades privadas, escritórios de advogados ou clínicas privadas não são mais exceções, mas a regra. Apesar disso, no final das contas também Kautsky não teve razão. Pois a nova classe média decaiu, é verdade, mas não para ser o proletariado industrial clássico dos produtores diretos, convertidos numa minoria em extinção. De forma paradoxal, a "proletarização" das camadas qualificadas está ligada a uma "desproletarização" da produção.
Nisso a desvalorização das qualificações vai de par com uma expansão objetiva do conceito de "capital humano". Ao revés da decadência da nova classe média, realiza-se de certa maneira um "pequeno-aburguesamento" geral da sociedade de tipo novo, quanto mais os recursos industriais e infra-estruturais aparecem como megaestruturas anônimas. O "meio de produção independente" encolhe até atingir a pele dos indivíduos: todos se tornam seu próprio "capital humano", ainda que seja simplesmente o corpo nu. Surge uma relação imediata entre as pessoas atomizadas e a economia do valor, que se limita a reproduzir-se de maneira simulatória, por meio de déficits e bolhas financeiras.
Quanto maiores se tornam as diferenças de renda entre o pobre e o rico, tanto mais desaparecem as diferenças estruturais das classes na estrutura da reprodução capitalista. Por isso não tem o menor sentido que os ideólogos da classe média ontem nova e hoje em queda queiram reclamar para si a ex-"luta de classes do proletariado", não mais existente. A emancipação social requer hoje a suplantação da forma social comum a todos. No interior do sistema produtor de mercadorias, só há a diferença quantitativa da riqueza abstrata, que, se existencialmente toca na questão da sobrevivência, não obstante permanece estéril em termos emancipadores. Um Bill Gates é tão pequeno-burguês quanto um empresário da miséria, ambos têm a mesma atitude para com o mundo e utilizam as mesmas frases. Com essas frases sobre o mercado universal e a "autovalorização" na ponta da língua, eles atravessam juntos a porta para a barbárie.
Post-scriptum: Este texto causou discussão entre os intelectuais brasileiros. Sobre uma carta de um leitor à Folha de S. Paulo, que usa a expressão “bóias-frilas”, escreve Dieter Heidemann (São Paulo): “A expressão “bóias-frilas” faz uma piada ao comparar com os cortadores precários de cana-de-açúcar as perspectivas dos académicos. Os migrantes da cana-de-açúcar são designados por ‘bóias-frias’. Bóia é a marmita do almoço. A expressão refere-se ao almoço frio que eles tomam no campo da cana-de-açúcar, uma vez que são acarretados pelas 4 horas da manhã pelos sub-empreiteiros (chamados ‘gatos’) para o trabalho. ‘Bóia fria’ tornou-se no Brasil a metáfora geral para as condições de trabalho precárias. A carta do leitor designa os académicos precarizados ‘boias frilas’ = bóias freelancer…”