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Primeira Edição: Original alemão Die neue historische Gleichzeitigkeit. Das Ende der Modernisierung und der Beginn einer anderen Weltgeschichte em Deutsch. Publicado no Jornal "Folha de São Paulo", 25 de janeiro de 2004, com o título A nova simultaneidade histórica. A crítica precisa apreender os pressupostos repressivos dos obsoletos paradigmas da esquerda. Tradução de Luiz Repa.
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O debate sobre a globalização parece atualmente ter chegado a um estado de esgotamento. Isso não se deve a uma exaustão do processo subjacente, mas sim à falta de ar para novas idéias interpretativas. Quase ninguém ousa falar do fim de uma história da modernização. É certo que bibliotecas inteiras já foram escritas nesse meio tempo sobre o fato de a globalização do capital (a dispersão transnacional das funções econômicas) ter dissolvido a separação entre a economia nacional e o mercado mundial e, com ela, todo o quadro referencial anterior. Mas as conseqüências a tirar desse reconhecimento tardaram até agora na maioria das vezes. Os antigos conceitos vêm ainda a reboque, embora não correspondam mais à nova realidade.
Por um longo tempo era considerado o supra-sumo da reflexão crítica fazer valer a particularidade nacional diante da universalidade abstrata do moderno modo de produção capitalista. Nos anos 70, o assim chamado eurocomunismo afirmava que a teoria marxista teria sido freqüentemente universal demais e, por conta disso, teria de ser finalmente "concretizada" em termos nacionais, a fim de criar um socialismo popular com as "cores" da França, da Alemanha, da Itália etc. Mas esse enunciado já era reacionário no momento mesmo de sua formulação. No processo da globalização, a relação acabou se invertendo. A própria particularidade nacional tornou-se abstração vazia, ainda presente, é verdade, mas apenas como sedimento de uma época já decorrida. A história é nacional somente a título de história do passado, não mais do futuro. De agora em diante já não há mais nenhuma história francesa, alemã, brasileira, chinesa. A concreção histórica no espaço referencial imediato da sociedade mundial não se referirá mais no futuro às particularidades e aos contextos nacionais, mas aos transnacionais. Isso se aplica também (e diretamente) a identidades culturais, movimentos sociais e conflitos "pós-políticos".
A comunidade nacional forçada não é, porém, a única característica essencial da época passada que se torna obsoleta. A estrutura espacial das particularidades nacionais reciprocamente demarcadas estava também encadeada a uma estrutura temporal de etapas do desenvolvimento capitalista reciprocamente delimitadas. O universo das nações era um universo de não-simultaneidade histórica. Visto que o moderno sistema produtor de mercadorias só gradativamente havia se alastrado a partir da Europa, nos séculos 19 e 20 as diversas idades do capitalismo encontravam-se imediatamente umas ao lado das outras. O que ainda era futuro para uns era para outros o presente ou já mesmo o passado. Esse desnível do tempo histórico produziu como por si só o paradigma do "desenvolvimento", que nas categorias capitalistas se apresentava como corrida de recuperação dos retardatários históricos. Diante da Grã-Bretanha, a Alemanha e outros países continentais europeus passaram no século 19 por uma semelhante "modernização recuperadora"; no século 20, perante o Ocidente, a Rússia, a China e os ex-países coloniais do sul global se limitaram a repetir a mesma coisa. A nação se converteu aqui no espaço específico da não-simultaneidade histórica.
O movimento operário ocidental clássico também foi determinado por um paradigma análogo; só que aqui a "modernização recuperadora" não se referia, ou pelo menos não em primeira linha, à posição da própria nação em face das nações mais adiantadas, mas sobretudo à posição jurídica e política do trabalhador assalariado perante outras classes sociais, no interior da mesma nação. Estava em jogo o "reconhecimento" dos assalariados como sujeitos jurídicos de sua força de trabalho e como cidadãos plenos. O direito de voto universal e igual, a igualdade jurídica das mulheres, o direito de greve, a liberdade de coalizão, a liberdade de reunião e a autonomia na negociação salarial formavam conteúdos importantes dessa "modernização recuperadora" ligada às relações sociais internas, a qual foi concluída, mesmo nos países ocidentais mais avançados, somente no curso do século 20. O reconhecimento externo dos retardatários históricos do leste e do sul como nações no mercado mundial correspondia ao reconhecimento político e jurídico interno dos assalariados como cidadãos e sujeitos de direito.
Mas esse reconhecimento foi, em certo sentido, uma cilada histórica. Pois, na medida em que as sociedades das diversas regiões mundiais foram confirmadas e fixadas como sujeitos formais do capitalismo da mesma maneira que os assalariados individuais, elas estavam desse modo também condenadas inapelavelmente às formas nacionais e sociais do moderno sistema produtor de mercadorias. Tanto os Estados da "modernização recuperadora" quanto os partidos operários e os sindicatos nacionais sofreram uma mutação, passando a ser executores das falsas "leis naturais" desse sistema. Sob as condições da globalização, não resta a todos eles nada mais que administrar de maneira mais ou menos repressiva a crise capitalista. O que a social-democracia já havia exercido previamente desde a Primeira Guerra Mundial repete-se agora em escala global.
Talvez se pense que esse desenvolvimento negativo empalideceu a glória da "libertação nacional" e dos partidos operários nacionais. De certo modo, esse é também o caso. No mundo todo arde uma insatisfação violenta com as instâncias políticas da esquerda tradicional, que perderam por completo sua qualidade de oposição justamente na hora da nova crise mundial, uma vez que eles permaneceram ligados aos paradigmas da "modernização recuperadora", já esvaziados de substância. Mas esses paradigmas estão arraigados tão a fundo que eles continuam eficazes mesmo entre os próprios descontentes. Há algo de fantasmático em si na maneira como a nova oposição, dirigindo-se contra a ex-oposição ingressada na representação do sistema dominante, se atém cegamente aos padrões obsoletados do universo submerso da não-simultaneidade. A crítica à co-administração da crise, em que participam os antigos movimentos de libertação nacional e os partidos operários tradicionais que chegaram ao poder, revela-se assim débil e pouco fidedigna, já que ela quer repetir no conteúdo, mais uma vez, o que objetivamente fracassou há muito tempo.
Isso é mais chamativo no movimento mundial contra a globalização, com seus protestos, fóruns sociais e conferências em Porto Alegre, Paris, Berlim etc. Esse movimento é por um lado organizado de forma transnacional, mas, paradoxalmente, constam ainda de seus membros, a par dos grupos operantes em nível transnacional, articulações partidárias nacionais; entre elas há até mesmo aquelas cujas organizações maternas se encontram no governo e executam exatamente as "leis econômicas" contra cujos efeitos luta o movimento social global.
Mas é principalmente o conteúdo da maioria das reivindicações que permanece externo por inteiro ao processo da globalização. Parcialmente transnacional pelo menos segundo sua forma, o movimento gostaria de alcançar uma "regulação política" dos mercados financeiros e das condições gerais da produção de mercadorias e da distribuição, embora a lógica de uma tal regulação esteja ligada ao quadro do Estado nacional. Portanto se quer reanimar, doravante até mesmo em nível global, justamente o procedimento que já fracassou historicamente no plano do Estado nacional, o único adequado a ele. É uma opção irremediavelmente anacrônica e irreal.
Essa crítica redutora continua partindo implicitamente de que as sociedades ainda poderiam "crescer" no quadro da modernidade burguesa, malgrado a globalização e a terceira revolução industrial já terem explodido esse quadro. Isso se aplica também às suposições de fundo econômicas e filosóficas, que se revelam igualmente anacrônicas.
No aspecto econômico se trata da expectativa de que a massa gigantesca de força de trabalho global e barata representaria ainda uma reserva para a valorização do capital, agora não mais na forma de um desenvolvimento nacional, mas antes na forma do capital globalizado transnacional. Uns esperam e outros temem que possa surgir daí, mais uma vez, uma era de exploração tradicional. Em parte essa alternativa se apóia no conceito de "produtividade socialmente média". Esse grau médio da cientificização da produção é relativamente alto nos países capitalistas desenvolvidos e relativamente baixo nos países da periferia. Espera-se então que se produza com a globalização crescente uma nova média de produtividade em nível mundial, que seria mais baixa em comparação com a atual média ocidental e mais alta em comparação com a atual do leste e do sul. Com base nesse novo standard, acredita-se ser possível infiltrar de novo parte considerável da reserva momentaneamente inutilizada da força de trabalho global no processo de valorização do capital.
Mas esse cálculo não bate. Pois pelo que se mede a média da produtividade? Ela é medida de acordo com o grau médio da cientificização tecnológica da produção. Porém é decisivo o quadro a que se refere na verdade essa média. Ele é univocamente o plano econômico-nacional da produção social. Só no espaço interno de uma economia nacional se aplicam as condições-limite comuns que podem produzir de modo geral algo como uma "média social". Disso faz parte um grau comum de desenvolvimento da infra-estrutura, do sistema da educação etc. No plano do mercado mundial, no entanto, não existem condições-limite comuns dessa espécie. Por esse motivo, tampouco pode se constituir um nível médio global de produtividade. A relação das nações ou das regiões mundiais no mercado mundial não apresenta nenhuma analogia com as empresas no interior de uma economia nacional. Desse modo, no plano global se impõe forçosamente o nível de produtividade dos países industriais mais antigos do Ocidente, mais desenvolvidos em termos capitalistas. Na mesma medida em que o espaço nacional se torna objetivamente obsoleto por causa da globalização, esse nível forma o critério global imediato e sem filtro para todos os participantes do mercado. É ilusória a esperança de que, no novo sistema de referências transnacional, a média de produtividade socialmente média venha a diminuir e que a força de trabalho inutilizada se rearticule mais facilmente na produção.
No aspecto filosófico, uma expectativa analogamente anacrônica determina o pensamento dos insatisfeitos. Pois a filosofia do assim chamado Iluminismo, cujos fundamentos foram colocados no século 18, é considerada ainda o horizonte intransponível das idéias. Fazem de conta que o mundo poderia, também nesse sentido, continuar a se desenvolver no quadro da modernidade burguesa. Quanto a isso a nova oposição não dá mesmo nenhum passo além da velha. Mas o paradigma do Iluminismo está tão esgotado quanto a economia do moderno sistema produtor de mercadorias, do qual ele foi simplesmente a expressão filosófica. As idéias iluministas centrais de "liberdade", "igualdade" e de "auto-responsabilidade" do "indivíduo autônomo" estão, segundo seu conceito, talhadas para a forma capitalista do sujeito do "trabalho abstrato" (Marx), da economia empresarial, do mercado totalitário e da concorrência universal. Liberdade e igualdade no sentido do Iluminismo foram sempre idênticas à auto-submissão dos homens às formas sociais do sistema capitalista.
A luta do movimento operário clássico e dos movimentos de libertação nacional pelo "reconhecimento" jurídico e político podia apelar à filosofia do Iluminismo porque eles só objetivavam entrar e crescer nessas formas, cuja condição-limite social foi formada pela nação exatamente como no aspecto econômico. Há apenas sistemas nacionais de direito burguês. Ao explodir o quadro nacional, a globalização torna obsoleta não apenas a forma econômica, mas também a forma jurídica e política do sujeito burguês. Com isso a filosofia do Iluminismo está historicamente acabada. Não tem nenhum sentido invocar mais uma vez o idealismo da liberdade burguesa, pois para essa espécie de liberdade não há mais nenhum espaço de emancipação. Isso se aplica também às regiões mundiais que nunca foram além dos começos ditatoriais de uma universalização da forma moderna do sujeito. Como a produtividade econômica, também a subjetividade burguesa é medida pelo standard global homogêneo, em que não cabe a maioria dos seres humanos.
Evidentemente o novo movimento social em todo o mundo ainda não tomou consciência dessas condições. A constituição das estruturas transnacionais do capital é idêntica a uma época de simultaneidade histórica. Ainda que as situações do ponto de partida, herdadas do passado, sejam distintas, os problemas do futuro só podem ser formulados como problemas comuns a uma sociedade mundial imediata. De acordo tanto com a forma quanto com o conteúdo, os velhos paradigmas da esquerda estão obsoletos: nação, regulação política, reconhecimento burguês, Iluminismo. A crítica precisa ir mais fundo e apreender os pressupostos repressivos desses conceitos ao invés de requerer seus ideais. Do contrário ela dá em água, sem nenhum efeito.