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Primeira Edição: Original SCHLUSS MIT LUSTIG em www.exit-online.org. Publicado em 07.09.2003 na Folha de S. Paulo com o título O fim da cultura de diversão e tradução de Luis Repa.
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Quando as condições sociais se alteram, as seguem mais cedo ou mais tarde também as idéias. Essa constatação essencial da teoria crítica não se refere de modo algum apenas a uma mudança para melhor. No desenvolvimento capitalista, pode-se observar repetidas vezes o fenômeno de que também as idéias se deterioram junto com as condições. Na prosperidade, a filantropia encontra uma conjuntura favorável; as pessoas se desmancham em esperanças e utopias felizes de "desenvolvimento", de libertação, de elevação do gênero humano e assim por diante, mas sem colocar em questão a forma social subjacente. Mesmo porque esta é justamente a forma da prosperidade. Quem comeu bem e está saciado não pode outra coisa que pensar com otimismo e expor à luz do dia um bem-querer universal.
Na crise, por sua vez, a perspectiva se modifica a fundo. Quem come mal ou está ameaçado de ter de comer mal no futuro ou mesmo de permanecer faminto deixa para trás o bem-querer e o otimismo. Mas exatamente nesse caso a forma social subjacente é ainda menos colocada em questão, embora seja então a forma da crise. Em vez disso, são as ideologias do pessimismo, da misantropia e da descrença que encontram uma conjuntura favorável. Pode-se dizer isso também da seguinte maneira: quando se desce ladeira abaixo, a máscara cai, e a brutalidade sem disfarce da lógica dominante e do seu terror econômico vem à tona. Essa mudança para pior aparece nos enunciados da política tanto quanto no discurso das mídias, nas diretivas institucionais e na "filosofia" do "management".
Da mesma maneira que a economia de mercado rompe manifestamente sua promessa de bem-estar, as estruturas de sua ordem e suas coerções irracionais não são convertidas em tema da crítica; longe disso, discute-se a necessidade de sacrifícios humanos. No lugar de falsas idéias de felicidade, de progresso e de bem-estar geral, entram idéias de sacrifício. Então a crise social é considerada uma catástrofe natural, à qual só se pode reagir da mesma maneira que a um terremoto: com medidas emergenciais, sem poder evitar as causas. É um herói quem ajuda com vigor e coragem, mas não para quebrar as falsas coerções e chegar a um emprego mais racional dos recursos, e sim para executar, bem na hora da crise, essas coerções em si mesmo e nos outros com tanto mais impiedade. E, como é constante na modernidade, o etos arcaico do sacrifício e do auto-sacrifício se esconde atrás da máscara da objetividade.
Nos anos 90 houve uma peculiar desproporção entre a deterioração econômica, de um lado, e a evolução ideológica, de outro. Justamente na crise as idéias de otimismo encontravam uma conjuntura favorável. Da deterioração real quase se iria extrair a emancipação universal. Nem a coerção burocrática intensificada nem a crítica social estavam na ordem do dia, mas sim a total "auto-responsabilidade" na crise. Indivíduos puramente autônomos deveriam, cada um por si só, dar conta de todos os problemas de modo jovial, dócil, alegre, livre e, sobretudo, "criativo". A divisa das "reformas a favor da economia de mercado" rezava: o capitalismo deve antes de tudo ser ainda mais "solto"; que os indivíduos e as instituições aprendessem a se ajeitar melhor com isso. O homem foi propagandeado como "empresário de si mesmo".
Os conceitos de emancipação, de liberdade, de auto-responsabilidade e de reforma foram redefinidos e investidos semanticamente de forma nova, no sentido de um liberalismo econômico "hardcore". Não era a velha e nova pobreza que deveria ser abolida, era a relação dos pobres com sua pobreza que precisava se alterar. O imperativo rezava: relacionai-vos "positivamente" com as condições que o mercado anônimo vos dá. A todos foi concedida ou colocada em perspectiva a permissão de administrar por si mesmos a própria miséria sem nenhuma burocracia. O novíssimo "homem novo" no novíssimo "Admirável Mundo Novo" do século 21 foi pensado como um ser que pensa e sonha economicamente 24 horas por dia, se valoriza ininterruptamente e considera todas as relações, até as pessoais e íntimas, como "relações de freguesia".
Também à burocracia estatal restante foi colocada a tarefa de não só "emagrecer" cada vez mais, mas também de demonstrar "proximidade com o cidadão". Tanto quanto a ferrovia, o abastecimento comunal de água, os hospitais ou as bibliotecas, a administração não deveria mais se considerar infra-estrutura pública, devendo agir, pelo contrário, na qualidade de uma empresa de mercado dedicada à indústria de serviços. Nos funcionários foi inculcado, por meio de cursos extras, que eles tinham de tratar sua clientela como "fregueses" e treinar um sorriso profissional de vendedor. A queda dos custos deveria ser vinculada a mais eficiência, a administração burocrática das vidas humanas, redefinida em uma espécie de negócio do "aconselhamento", a fim de aplainar para os clientes o caminho rumo à gloriosa auto-responsabilidade, devolvendo-os a uma existência radiante como "empresários de si mesmos", que no futuro se entregariam, sem nenhuma ajuda do Estado e com toda a alegria, às exigências do mercado total.
Esse espírito do tempo não nasceu, como antigamente, nas ciências universitárias, na literatura ou nas mídias determinantes, mas sim nos caldeirões ideológicos das bruxas da assim chamada "cultura de empresa". No curso da guinada neoliberal, a liderança espiritual passou desde os anos 80 da intelligentsia acadêmica, literária e jornalística para os "intelectuais econômicos" do "management". Isso foi simplesmente lógico: se todos os domínios da vida são "economicizados" da mesma maneira, então a economia ascende à posição de "ciência-rainha", ocupando um lugar outrora reservado à teologia e depois à filosofia. Cada método dominante do "management" se torna "cultura de ponta" da sociedade inteira e determina as conjunturas da moda intelectual. As empresas já não aparecem mais como recintos banais da produção de mercadorias; elas são carregadas com uma "significação" universal.
Na "filosofia" do "management", o estranho espírito do tempo dos anos 90 se expressa como nova coerção para a ausência de coerção. O trabalho foi redefinido como tempo livre, e, o tempo livre, como trabalho. No lugar das estruturas tradicionais da autoridade deveriam entrar as "hierarquias planas"; o chefe anguloso e temido de outrora foi substituído pelos "teams" suspensos no ar. A formalidade distanciada do mundo alienado do trabalho deu lugar a um tom familiar, sem distância; todos diziam "você" entre si, da faxineira ao designer "criativo", do office-boy ao investidor cheio de bilhões. O que, na qualidade de uma "revolta da diversão", criou toda uma cultura da juventude -e vociferou em orgias de bobajadas pretensiosas ou na cultura desavergonhada da "trash culture" por meio das mídias- tinha sua origem no design social da gestão capitalista de seres humanos por meio dos novos métodos do "management".
Mas o divertimento foi desde o início consideravelmente convulsivo e mentiroso. Tratava-se na realidade apenas de mascarar no nível semântico a dureza, para muitos já perceptível, da crise e a exacerbação da concorrência. O postulado lisonjeiro da "auto-responsabilidade" implicava configurar a coerção ao rendimento permanentemente intensificado para além do humanamente possível como auto-exploração voluntária. O propagado valor do trabalho como tempo livre deveria fazer os ocupados espremerem a si mesmos como laranjas por meio de um número enorme de horas extras não pagas. Sacrificar-se no altar da economia empresarial era considerado uma forma da originalidade dos indivíduos flexíveis, "soberanos", que na firma, após uma dia de trabalho no regime do capitalismo antigo, jogam animadamente futebol de botão, refletindo se não deveriam colocar mais algumas horinhas ali, já que era tão legal.
O notório otimismo na crise foi, portanto, apenas uma variante paradoxal da velha ideologia do sacrifício própria das crises; só que deveria se tratar de "vítimas felizes", que vivenciam sua própria degradação social como uma farra tremenda na "sociedade da diversão" e se tomam por "rebeldes", quando eles já não aguentam mais. E o imperativo da concorrência total era considerado mais assimilável em uma atmosfera de falsa igualdade, em que, como num comercial alemão dos anos 90, o chefe de barba rala de uma firma de internet se põe de pé para trazer café e fast food "a todos", a fim de que eles não precisem interromper sua lida.
De modo geral, a assim chamada nova economia dos negócios da internet, na época ainda esperançosos, formava o pano de fundo de todas essas novas concepções. A crise era compatível com o culto do otimismo somente porque ela, em determinados setores aclamados como "setores econômicos de ponta", pôde ser aparentemente compensada por uma grotesca economia de bolhas financeiras. Empobrecimento e degradação social vão de par com a chance da "riqueza rápida" para muitos. Por isso, apesar da crise, os aventureiros definiram o espírito do tempo. Nesse clima pôde surgir o imperativo paradoxal de vivenciar o declínio como "chance" e a heteronomia como autodeterminação. Com a promessa resplandecente do boom ligado às bolhas financeiras ante os olhos, cada um quis se sentir protegido no desabrigo e enxergar cordialidade na hostilidade da concorrência.
Porém, desde que nos países ocidentais, após o ocaso da nova economia, as ilusões estouraram junto com as bolhas financeiras, o tom do espírito do tempo se transformou com efeitos duradouros. De repente se descobre que a nova economia e todas as idéias conectadas com ela não eram mais que uma miragem. Mas o resultado não é de modo algum a renovação da crítica social. Em vez disso, apenas foi tirada a maquiagem do falso otimismo. A idéia de "auto-responsabilidade" murcha e dá lugar ao reconhecimento de que a realidade nos grupos empresariais e na administração estatal nunca havia concordado com ela. O espírito do tempo dos anos 90 foi somente o comportamento lúdico pós-moderno em um setor realmente insignificante e nada sério em termos econômicos, que havia se estilizado em alto nível como "revolução cultural". Agora vêm de qualquer de jeito as idéias de sacrifício sem nenhuma máscara emancipadora. Nas empresas, o ancien régime da ditadura gerencial volta orgulhoso a ostentar sua bandeira sob o signo do medo, o qual nunca havia realmente desaparecido.
E é natural que essa mudança do pensamento se mostre em primeiro lugar ali onde o paradigma efêmero dos novos "conceitos anti-autoritários" havia tomado o seu ponto de partida: na "filosofia" do "management. A empresária e publicista alemã Judith Mair escreveu um livro com o significativo título de "Fim de Brincadeira". Nele ela ajusta as contas com a "cultura da diversão" e com as formas de tratamento anti-autoritárias da curta era da nova economia. Sua idéia central: "Trabalho não dá prazer, precisa ser forçado". Isso Marx já sabia quando falou a respeito da alienação no trabalho, provocada pela heteronomia da produção. Judith Mair, é claro, não quer abolir a heteronomia, mas colocar de novo o "trabalho" sob tutela para o fim em si mesmo da valorização. A bela aparência da "auto-responsabilidade" desaparece; a reierarquização e o disciplinamento autoritário são anunciados.
Mas não é mais que um fato: dificilmente alguém está pronto por livre vontade a consumir sua vida até não sobrar nada para fins que lhe são estranhos e sobre os quais ele não tem nenhum controle. Pouquíssimos homens estão prontos a se sacrificar alegremente na crise. O velho sonho do monstruoso utilitarista Jeremy Bentham (1748-1832), de que todo indivíduo se deixaria "pedagogizar" até se converter em seu próprio vigia e capataz é irrealizável, mesmo que esse sonho tenha parecido quase se tornar realidade nas concepções da nova economia. Que essas concepções não podem ter êxito era o que sabia de todo jeito o liberalismo tradicional da "velha economia", que por origem era ao mesmo tempo conservador e autoritário. No antigo capitalismo liberal aplicava-se a divisa: "Liberdade para o dinheiro, coerção para o material humano". Liberdade econômica e Estado autoritário andavam por princípio de mãos dadas; liberalismo sempre rimou com Pinochet.
Não só nas empresas, mas mais ainda nas autoridades públicas do campo social dos países ocidentais, o estado de espírito no começo do século 21 voltou a ser prussiano. Os "supérfluos", multiplicando-se aos montes, precisam ser disciplinados e forçados a aceitar seu destino de maneira ainda mais dura que os "ocupados". Assim como no nascimento do capitalismo a colonização interna e a externa se condicionavam mutuamente, agora o novo colonialismo externo, ligado à crise, da polícia ocidental do mundo, sob a liderança dos EUA, vira um colonialismo interno, também ligado à crise, da administração da pobreza.
O processo socioeconômico da individualização nos Estados ocidentais da indústria e da prestação de serviços não é anulado por conta disso. Mas agora todos os "empresários de si mesmos" e os aventureiros fracassados da autovalorização podem sentir que o anonimato das coerções sistêmicas assume, na realidade da crise, a face dos vigias e dos capatazes, dos "oficiais e suboficiais do capital" (Marx). O tom das casernas voltou: de novo ouvimos berros, somos escarmentados, humilhados, insultados, tudo para não esquecermos o que a maravilhosa modernidade da economia de mercado é segundo sua essência: uma relação de coerção social.