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Primeira Edição: DIE ENTZAUBERUNG DER USA em www.exit-online.org. Publicado na Folha de São Paulo em 18.08.2002 com o título O mecanismo da corrosão e tradução de Luiz Repa.
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Quando os EUA tossem, é o que se diz, o resto do mundo fica com pneumonia. Pois os EUA são a última potência mundial não só na esfera política e militar mas também na econômica. Nos anos 80, o Japão ainda era considerado o grande concorrente, que talvez viesse a açambarcar os EUA. Depois do ocaso da União Soviética, eram os "mercados do Oriente" que iriam dar à luz um novo milagre econômico. Mais tarde, os tigres asiáticos fizeram com que se falasse deles, e foi proclamado o "século do Pacífico". O Chile e a Argentina, alunos exemplares do neoliberalismo na América Latina, também iriam ser celebrados como portadores da esperança de uma nova era de crescimento. De todos esses mitos do otimismo capitalista não sobrou nada além de um montinho de cinzas. Na realidade, não houve senão um único "milagre" econômico, do qual todos os outros dependiam: o boom extraordinário dos anos 80 e sobretudo dos 90 nos EUA.
Mas já não se travava mais de uma conjuntura interna da economia nacional. Os EUA não constituíam absolutamente um modelo de economia política que, em virtude de seu sucesso, todos os outros procuravam imitar em suas próprias quatro paredes, como a propaganda oficial quis fazer crer. Pelo contrário, antes auto-suficiente apenas em razão de sua grandeza, a economia norte-americana acabou desenvolvendo sobre a economia mundial inteira um efeito de sucção real, não meramente ideológico. O processo de globalização foi, no essencial, idêntico a uma "americanização" dos fluxos globais de dinheiro e de mercadorias.
No passado, os ciclos conjunturais haviam decorrido de maneira assincrônica nas diversas regiões do mundo, principalmente nos três grandes centros, Japão, EUA e Europa Ocidental: a uma melhora aqui se contrapunha, na maioria das vezes, uma piora ali, de sorte que pôde ser gerado um equilíbrio de longo prazo por conta do fortalecimento das exportações para a respectiva região próspera e por conta da inversão cíclica desse processo. Em contrapartida, nos anos 80 e mais ainda nos 90, a economia mundial entrou num circuito conjuntural sincrônico, já que a assim chamada globalização não foi nada mais que um ajuste global crescente à economia norte-americana. Desde então um número cada vez maior de países passou a enviar excedentes cada vez maiores de mercadorias para os EUA pela estrada de mão única da exportação. Uma parte cada vez maior dos lucros assim obtidos também refluía prontamente, como exportação de capital monetário, para as instituições financeiras dos EUA. E cada vez mais os investimentos diretos de todo o mundo iam para lá, servindo, diretamente in loco, o mercado norte-americano aparentemente inesgotável.
A exploração empresarial do declínio dos custos em todo o globo e o entrelaçamento transnacional ligado a isso são elementos constitutivos dessa evolução. O que aparece formalmente como fluxos de exportação e importação de mercadorias entre as diversas economias nacionais (e que, na realidade, é a expressão de uma dispersão global de diversos componentes da economia empresarial) é mediado essencialmente pelo direcionamento generalizado e unilateral aos EUA. Uma parte considerável das exportações entre as várias regiões do mundo, sobretudo da Europa para a Ásia e vice-versa, mas também dentro da própria Ásia e da própria Europa, não é consumida no país de destino; trata-se de importações de máquinas, know-how, produtos primários e intermediários etc., cujo fim último é, por sua vez, a própria exportação do respectivo país para os EUA. O efeito global de sucção exercido pela economia norte-americana é, portanto, muito maior do que mostra a participação direta das importações norte-americanas no comércio mundial. Para conhecer a dimensão verdadeira, é preciso pôr na conta a parte do comércio mundial determinada indiretamente pelo fluxo global de exportação para os EUA.
Portanto não admira que a economia norte-americana tenha se tornado a locomotiva econômica do mundo. O prodígio é como ela pôde vir a sê-lo. Há muito tempo não é mais segredo para ninguém que esse boom foi em essência uma conjuntura definida por bolhas financeiras e que a rápida globalização dessa era foi em essência uma globalização de bolhas financeiras. O capitalismo industrial esbarrou nos limites internos de seu desenvolvimento. A nova tecnologia da microeletrônica não cria postos de trabalho adicionais e nenhuma nova base para uma ampliação da acumulação real do capital; pelo contrário, torna o trabalho cada vez mais supérfluo e as capacidades produtivas cada vez menos rentáveis. Por isso, pela primeira vez na história moderna, a bolha especulativa, resultante do esgotamento da velha indústria (a "fordista"), não estourou a tempo com a instalação social de uma nova tecnologia de base (a microeletrônica), de modo que se passasse a uma nova era de acumulação real, mas, ao contrário, ela foi inchada cada vez mais. Precisou-se da confiança mundial na força prodigiosa da última potência do mundo para fazer com que essa improvável new economy parecesse fiável. Por isso a bolha central só pôde surgir nos EUA, enquanto no resto do mundo se formavam bolhas mais ou menos volumosas.
Nesse desenvolvimento não foi algo novo a criação especulativa fictícia de valores nas bolsas em si, mas sim o seu reacoplamento sistemático e extensivo à economia real. No mundo todo houve crescimento, investimentos, emprego e consumo que não foram pagos com lucros e salários da economia real, mas com a multiplicação fictícia de dinheiro. A parte do leão cabia naturalmente aos EUA, o centro de todo o mecanismo. A lógica desse pseudocrescimento é simples: compra-se realmente sem que antes algo fosse realmente vendido. O dinheiro vem, por assim dizer, do ar, sem trabalho, sem máquinas, sem mercadorias produzidas; vem, de maneira totalmente "imaterial", das cotações em alta das bolsas. E, com esse dinheiro "imaterialmente" incrementado, compram-se depois trabalho, máquinas e mercadorias. O ponto de partida é irreal, como se fosse construído um arranha-céu sem nenhum fundamento.
E não apenas o consumo e os investimentos, mas também o aparato militar imponente da última potência mundial foi financiado, em boa parte, por esse ciclo global de "capital fictício", no qual os EUA formavam sempre o ponto de partida e o de chegada. A consequência foi um aumento constante do dólar e um crescimento igualmente constante do déficit na balança comercial e de serviços dos EUA.
Apesar de todos os antigos ressentimentos em relação aos EUA, o mundo da economia de mercado, que veio a ser dependente do "capital fictício", sabe o que lhe vale a última potência mundial. Isso se aplica, não por último, à cultura pós-moderna, que representa teórica e artisticamente o capitalismo das bolhas financeiras e que, por isso, encontrou seu verdadeiro lar nos EUA, embora fosse na origem uma criação francesa. O culto pós-moderno da ambivalência, da virtualidade e do "trabalho imaterial" se apaixonou pelo imperialismo norte-americano. Após os atentados terroristas de 11 de setembro, as ex-esquerdas radicais também descobriram seu amor pela bandeira estrelada e pelos "valores ocidentais" representados pelos EUA, embora esses valores não tenham substância em termos morais, assim como o capital de bolhas financeiras em termos econômicos. Mesmo em suas variantes pseudo-oposicionistas, a consciência virtualizada dos consumidores frenéticos de mercadorias pressente que sua própria forma de sujeito tem a ver com a pseudo-economia dos EUA.
Entrementes uma série de bolhas secundárias rebentaram em vários países. Quem deu início foi o Japão, já faz mais de dez anos; seguiram-no os tigres asiáticos, o México, a Rússia, a Turquia e a Argentina. Em todas as vezes ocorreram graves colapsos na conjuntura interna da economia real, que, no Japão, até hoje não voltou a ficar de pé. Mas, apesar disso, tardava ainda a grande catástrofe econômica, já que a bolha central, nos EUA, e a segunda maior bolha secundária, na Europa, podiam se dilatar ainda mais. Desde meados de 2000 essa expansão já era coisa do passado. As bolsas dos EUA e da União Européia foram apanhadas pela maior baixa na história do pós-guerra. Nesse meio tempo, a Nasdaq sofreu perdas de mais de 80%. O índice básico global, Dow Jones, desabou em uns bons 30%. Temida já há algum tempo, a fusão nuclear dos mercados financeiros norte-americanos ameaça realizar-se. Escândalos nos balanços e megafalências se amontoam, da Enron à insolvência da WorldCom, a maior até agora em toda a história da economia. Ativos fictícios gigantescos são aniquilados, o afluxo de capital monetário global para os EUA estanca, o dólar cai, o financiamento do déficit da balança comercial e de serviços dos EUA, que não pára de inchar, corre riscos.
Agora a questão decisiva é saber em que medida a crise dos mercados financeiros repercute sobre a economia real e em que medida esmorece a capacidade dos EUA de sugar os fluxos de mercadorias "excedentes" do mundo. Os economistas e políticos apologistas afirmam que não haverá repercussão, visto que a economia norte-americana é extremamente "forte". O argumento é paradoxal, pois, fosse assim, os EUA não apresentariam em sua balança externa a estrutura deficitária de um país periférico. Atrás disso não se encontra nenhuma substância econômica superior, mas uma economia real que demonstra, além desse aspecto, muitos outros paralelos com as regiões em crise da periferia.
Como na Grã-Bretanha, a infra-estrutura está envelhecida e degradada na maior parte, a rede rodoviária, defeituosa, os meios de transporte, privatizados, caindo aos pedaços. Até mesmo o abastecimento de energia, também privatizado, está endividado e trabalha sob desconfiança; na Califórnia a eletricidade foi interrompida, como se sabe, periodicamente. O sistema de ensino só é de primeiro nível em algumas caras universidades de elite, mas, no geral, é também tão miserável quanto na Grã-Bretanha. Os países anglo-saxões apresentam, de longe, a taxa mais alta de analfabetos secundários no mundo desenvolvido. O suposto prodígio de produtividade dos EUA, aclamado por muitos, se baseia principalmente em grandes setores de baixo salário existentes em todos os domínios, ao passo que a participação da robotização microeletrônica na indústria é menor do que no Japão e na União Européia. Só em poucas áreas de ponta os EUA são líderes, como na indústria de software (Microsoft) e, naturalmente, nas forjas de armamentos high tech; mas, no geral, o sistema industrial está envelhecido, e muitos produtos já não são mais produzidos nos EUA. Em virtude da debilidade industrial real, a parte do setor de prestação de serviços é maior do que em todos os outros países industriais. Como no Terceiro Mundo, o quadro é definido por uma massa de "empresários da miséria" e de serviçais desqualificados de todo o tipo.
A última potência mundial se caracteriza pela desproporção monstruosa de uma cabeça-d'água superdimensionada, consistindo de aparatos militares "high-tech" e indústrias armamentistas, com um corpo econômico subdesenvolvido, que precisa ser nutrido com o afluxo externo permanente de capital monetário e mercadorias. O armamento superior não constitui em última instância uma economia superior, mas um fator de custo improdutivo em termos capitalistas. O desencantamento dos EUA é inevitável, e ele parece já ter começado.
A queda é freada provisoriamente por vários fatores, mas que no todo não têm efeito duradouro. Por exemplo, a administração Bush antecipou várias vezes os prazos para a compra de armamentos, sobretudo no setor de veículos motorizados. Isso embeleza a estatística da indústria automóvel bem como os grandes descontos e créditos a tarifa zero, com os quais os grandes produtores norte-americanos aumentam suas vendas apesar da crise, como já ocorrera no final dos anos 80. Mas, diferentemente da situação daquela época, hoje se alcançou o limite máximo de endividamento privado. A subvenção das vendas à custa dos lucros não pode ser sustentada por muito tempo. E também o boom armamentista da "reaganomics" não pode ser repetido. Após uma breve pausa durante os anos da expansão das Bolsas até 1999, o déficit público norte-americano voltou a níveis elevados; uma outra expansão do endividamento público atingiria o limite absoluto muito mais rapidamente do que nos anos 80.
São bem menos os restos da conjuntura armamentista e de desconto que retardam a queda do que um deslocamento no capitalismo financeiro. Em direção contrária ao crash dos mercados de ações, formou-se nos EUA uma bolha especulativa de valores imobiliários, que agora são empenhados para o consumo com tanto vigor como antes os valores acionários inflados. Porém a perda de fortunas nas Bolsas não é ressarcida por meio disso; e a bolha imobiliária também vai estourar. Atualmente os boêmios "star up" dos setores declinantes da internet, das telecomunicações e da mídia, pessoas de 25 a 40 anos sofrendo de total perda de realidade, continuam a consumir nos EUA e no mundo ocidental inteiro como se nada houvesse acontecido. Mas a "geração bancarrota" depressa esgotará absolutamente suas linhas de crédito e aterrissarão de maneira abrupta no chão duro dos fatos.
Se a locomotiva econômica norte-americana pára, a economia mundial inteira pára. O desencantamento dos EUA não desloca o centro do poder econômico e militar para um outro lugar, senão que afunda o mercado mundial em uma nova dimensão da crise, acelera a decomposição social global e torna palpável o obsoletismo histórico do moderno sistema produtor de mercadorias.