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Primeira Edição: Original alemão: BLUTIGE VERNUNFT. 20 Thesen gegen die sogenannte Aufklärung und die "westlichen Werte" in Krisis 25 (6/2002) - Tradução de Lumir Nahodil, revista por Boaventura Antunes
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O capitalismo a si mesmo se vence até à morte, tanto materialmente como no plano ideal. Quanto maior a brutalidade com que esta forma de reprodução, tornada modelo social universal, devasta o mundo, mais ela vai infligindo golpes a si mesma e minando a própria existência. Neste quadro se inscreve também o comum ocaso intelectual das ideologias da modernização, numa ignorância e falta de ideias de tipo novo: direita e esquerda, progresso e reacção, justiça e injustiça coincidem de forma imediata, uma vez que o pensamento nas formas do sistema produtor de mercadorias paralisou por completo. Quanto mais estúpida se torna a representação intelectual do sujeito do mercado e do dinheiro, mais horroroso fica o seu tagarelar repetitivo das estafadas virtudes burguesas e valores ocidentais. Não há paisagem do planeta, marcada pela miséria e pelos massacres, sobre a qual não chovam a cântaros lágrimas de crocodilo, de um humanitarismo policial democrático; não há vítima desfigurada pela tortura que não seja usada como pretexto na exaltação das alegrias da individualidade burguesa. Qualquer idiota servidor do estado, que se esforça por escrever umas linhas, invoca a democracia ateniense; qualquer patife ambicioso, da política ou da ciência, pretende bronzear-se à luz do iluminismo.
Agora, o que ainda quiser ser designado por crítica radical só pode distanciar-se com raiva e nojo de todo o lixo intelectual do Ocidente. Fica muito aquém das necessidades a bem conhecida figura do pensamento, que pretende defender o iluminismo como tal dos seus banais açambarcadores burgueses da actualidade, reivindicando para si, numa atitude como que da burguesia culta, uma elevação da reflexão passada, contra a plebe intelectual e a populaça ocidental do século XXI. Esta populaça é o próprio iluminismo vindo a si. É pelos seus resultados devastadores que a chamada modernidade deve ser avaliada: sem subterfúgios, sem uma forçada dialéctica de justificações e relativizações.
A crítica, no entanto, não pode deixar-se guiar só pela "raiva que sente nas entranhas"; ela tem de alicerçar a sua legitimidade intelectual sobre novos fundamentos. Mesmo quando maneja conceitos teóricos, tal não significa uma renovada vinculação aos padrões do próprio iluminismo, antes pelo contrário, apenas se verifica a necessidade de destruir a autolegitimação intelectual do iluminismo. Não se trata de, à velha maneira iluminista, manietar os afectos, em nome de uma racionalidade abstracta e repressiva (ou seja, ao arrepio do bem-estar dos indivíduos) mas, pelo contrário, de derrubar a legitimação intelectual desta autodomesticação moderna do homem. Para tal é necessária uma anti-modernidade radical e emancipatória, que não se refugie na idealização de um qualquer passado, ou de "outras culturas", segundo o padrão bem conhecido do anti-iluminismo, ou da anti-modernidade meramente "reaccionária", ela própria burguesa e ocidental; mas que rompa, pelo contrário, com a história até hoje ocorrida, como história de relações de fetiche e de dominação.
No sentido do dito marxiano, que designa a superação do fetichismo moderno como o "fim da pré-história", o que está na ordem do dia é um megaprojecto revolucionário, que se estenda a todos os níveis da reflexão e a todas as áreas da vida, que abranja tanto as categorias mais abstractas como as formas culturais e simbólicas e o quotidiano: uma grande teoria negativa, que coloque a alavanca da crítica radical a uma profundidade consideravelmente maior que as suas predecessoras nos séculos XIX e XX. Também isto não deve ser confundido com uma continuação da pretensão iluminista por outros meios. Antes, tal abordagem teórica qualitativamente nova, à maneira de grande teoria, decorre apenas da necessidade de romper a construção legitimadora da modernidade produtora de mercadorias, ela própria com características de uma grande teoria positiva, negando-a a fim de a quebrar, em vez de se contentar em a fintar. Precisamente por isso tem que tratar-se de uma grande teoria negativa, a construir para ela própria ser ultrapassada e tornada redundante, e já não do estabelecimento legitimador de um novo princípio positivo (semelhante à abstracção capitalista do valor), segundo o qual tudo se deveria moldar.
A pretensão de uma nova grande teoria, negativa e emancipatória, já está formulada sob o título de "crítica do valor", como crítica categorial do sistema produtor de mercadorias; mas esta ainda não se afirma com clareza e inimizade emancipatória suficientes face ao iluminismo, cuja ontologia burguesa e ideológica, pelo contrário, está positivamente presente como "dimensão tácita", mesmo na crítica aparentemente mais radical, sendo ocasionalmente invocada de forma axiomática e sem conteúdo, com floreados suplicantes.
É um facto que, perante a imparável produção de miséria e o avolumar dos processos destrutivos, no decorrer da história da modernização, já no passado se tinha formado, para além da contra-modernidade reaccionária, também uma crítica de "esquerda" de intenções emancipatórias, mas que também ela era "modernista" no sentido mais lato do termo; no entanto, tais tentativas nunca iam além de meras relativizações, visto que apenas podiam entender-se como uma pretensa "autocrítica" do iluminismo. Um modo de proceder assim pusilânime, que antes de mais mantinha relações amistosas com o objecto da suposta crítica, implicava a priori que não se pusesse em causa o cerne substancial da ideologia do iluminismo (a forma burguesa do sujeito e da circulação). Por isso, continua por dar o passo decisivo, que separe definitivamente a crítica da ontologia burguesa; o Rubicão ainda não foi transposto.
A categoria da ruptura tornou-se decisiva, uma vez que a crítica até hoje elaborada sempre acabou por constituir uma simples componente afinal afirmativa do seu objecto, tendo assim posto a ênfase mais na continuidade do que na ruptura; muitas vezes revestindo a fórmula hipócrita de uma "herança" positiva a preservar. Neste início do século XXI, porém, já não é possível qualquer via positiva de pensamento e de acção nas formas do moderno sistema produtor de mercadorias. Qualquer referência à forma do sujeito e à história das ideias legitimadora da modernidade, negativamente socializada sobre a abstracção real do valor, seja qual for a forma amenizada ou alterada que assuma, já não pode senão fazer figura ridícula, ao querer passar por crítica.
Por isso se tornou necessária uma crítica radicalmente nova da constituição burguesa e da sua história. As ruínas inabitáveis da subjectividade ocidental não chamam pela arquitecta de interiores intelectual de bom gosto, mas pelo condutor da escavadora de demolição. Isto diz respeito, no essencial, aos alicerces e à referência ao passado, legitimadora de todas as elaborações teóricas dos séculos XIX e XX, nomeadamente à própria filosofia do iluminismo. Contrariamente às teorias posteriores, tratava-se aqui de uma reflexão que não pressupunha, desde logo, o sujeito burguês da modernidade plenamente desenvolvido, tendo antes, de certo modo, ajudado a trazê-lo ao mundo; assim, o chamado iluminismo foi uma "ideologia de imposição" do moderno sistema produtor de mercadorias, num sentido incomparavelmente mais enfático do que as reflexões teóricas que nele se basearam ou dele julgaram distanciar-se, ao longo da posterior história da imposição da socialização do valor.
O pensamento iluminista, que no seu tempo ainda se fizera notar como um modo de pensar distinto e inaudito, em parte até difícil de entender, não só se converteu no pressuposto de todo o pensamento teórico posterior, como se tornou parte integrante do tipo de consciência socialmente generalizado, tendo passado a constituir, sob a forma de uma espécie de sedimentação inconsciente, também o modo de pensar não reflexivo do senso comum burguês. E também como tal tem de ser completamente destruído.
É preciso, contudo, algumas considerações preliminares. Pois qualquer história tem, por seu lado, a sua história e, por conseguinte, também o pensamento iluminista naturalmente não é destituído de pressupostos; nem no sentido de uma "história intelectual", nem no dos desenvolvimentos sociais objectivados. A pré-história, ou constituição social primordial da modernidade, poderia ser situada, enquanto "economia política das armas de fogo", nos séculos XV e XVI, quando a "revolução militar" (Geoffrey Parker) produziu uma forma de organização nova e repressiva sob novas formas, a qual conduziu, através dos regimes despóticos militares da modernidade incipiente, quer ao estado moderno, quer ao desencadeamento do processo de valorização capitalista ("economia monetária" como fim em si irracional).
A este processo sobrepunha-se parcialmente um movimento intelectual, que se iniciara de forma independente e que conduzia para fora da chamada "Idade Média" (o que de resto já em si é uma classificação proveniente do pensamento do iluminismo), que hoje se apresenta sob a designação de época do "Renascimento". Provavelmente uma reformulação crítica-do-valor da história e da teoria da história também tornará necessário o estabelecimento de outra divisão histórica. Em todo o caso, o pensamento renascentista, com a sua redescoberta dos clássicos da antiguidade e da respectiva sociedade, ao menos numa determinada fase de crise e transformação — recordemos por exemplo os levantamentos populares dos primórdios da modernidade — era ainda relativamente aberto a desenvolvimentos e percursos do pensamento alternativos.
Contudo, após a passagem pelo absolutismo, que constituiu o processo primário económico e político de formação sistémica do modo de produção capitalista, ficou cortada a possibilidade de outra via de desenvolvimento, ainda que a resistência dos movimentos sociais contra este processo se tivesse prolongado até ao início do século XIX. A moderna socialização pelo valor começou então a desenvolver-se sobre os seus próprios fundamentos, sendo que o pensamento iluminista acompanhou esta segunda fase de arranque, que viria a desembocar na industrialização sob a forma do valor, como ideologia de domesticação, tão militante como afirmativa.
Ao mesmo tempo, a subjectividade concorrencial da circulação, introduzida pela economia dos canhões dos primórdios da modernidade e pelos seus protagonistas sociais, foi burilada nos seus ideais e, em simultâneo, passou por um processo de revelação, que apenas sacudiu o invólucro absolutista, para largar sobre o mundo o puro sujeito moderno do dinheiro e do estado, para lá da sua tosca forma embrionária, e para o fundamentar ontológicamente. O facto de este pensamento, que pela primeira vez formulou explicitamente a forma do valor, como uma pretensão totalitária sobre o homem e a natureza, se ter legitimado através de um conceito paradoxal e repressivo de liberdade e progresso, transformou-o numa armadilha para o desejo de emancipação social. Precisamente por isso, a crítica seria sempre instrumentalizada apenas para a imposição continuada da forma do valor.
A eterna referência positiva ao sistema de conceitos e aos chamados "ideais" do iluminismo constitui o contexto de ofuscamento de um pensamento crítico da sociedade, que até hoje assim se amarra a si próprio às categorias do sistema dominante da destruição universal. Enquanto estas amarras do pensamento iluminista não forem cortadas, a crítica continuará a serva do seu objecto, ou terá de se extinguir, juntamente com a capacidade de desenvolvimento ulterior deste.
Um ponto central do mal-entendido da crítica social acerca do iluminismo é a interpretação entranhada, segundo a qual se teria tratado de uma promessa emancipatória, ou até da promessa de uma liberdade de procura da felicidade pelo homem (pursuit of happiness). Essa promessa, com uma intenção de razão enquanto tal e de "crítica permanente", seria posta em curto-circuito perante o tribunal desta razão, de modo a parecer que o pensamento iluminista poderia e deveria ir sempre mais além, mesmo para lá dos seus criadores e protagonistas originais, até ser "realizado". Foi precisamente devido a isto que se pôde manter o mal-entendido fundamental, segundo o qual o iluminismo seria outra coisa que não a auto-reflexão positiva do capitalismo, ou a lógica do sistema produtor de mercadorias, e que conteria em si momentos transcendentes de emancipação, para além dele próprio, na sua constituição burguesa.
Embora o conceito impreciso e opaco de razão do pensamento iluminista tivesse sido repetidamente tematizado, ainda assim a respectiva crítica continuou pouco acutilante, por invariavelmente evitar uma definição exacta do conteúdo reduzido e normativo do conceito iluminista de razão. Este entendimento da razão, no entanto, no fundo não continha outra coisa senão a afirmação militante da forma metafísica, isto é, da forma do valor do moderno sistema produtor de mercadorias, ou da forma irracionalmente autonomizada do "sujeito automático" (Marx); designação esta que remete para o carácter absurdo do movimento de valorização do capital, reacoplado a si próprio enquanto fim-em-si e, com isso, ao mesmo tempo, para o correspondente absurdo da respectiva forma do sujeito, tal como ela confere o seu cunho ao pensamento e à acção dos indivíduos sociais atados a esta roda. Este conceito destrutivo de razão foi, no essencial, desenvolvido no seio do pensamento iluminista, sendo o pensamento reflexivo talhado à sua medida e eliminado qualquer outro plano da reflexão, até que, com o sistema da socialização do valor capitalista a impor-se progressivamente, o "poder dos factos" pudesse chegar ao pensamento, como positivismo dessa razão "realizada", podendo a reflexão, em geral, ser reduzida ao mínimo. Assim sendo, a aurora iluminista da razão constituiu, ao mesmo tempo, o crepúsculo da razão, mediante o aprisionamento da capacidade humana de pensamento no interior da forma nada racional da socialização do valor.
Por isso, também não se pode falar de uma permanência dos objectivos transcendentes da intenção iluminista da crítica. O iluminismo, em todas as suas variantes e graus de desenvolvimento, sempre se limitou a submeter à crítica as situações e manifestações que de algum modo se atravessavam no caminho da esmagadora roda do movimento da valorização. Por isso mesmo, a sua crítica das realidades anteriores à modernidade apenas constituía uma crítica do poder, na medida em que as formas tradicionais de dominação eram censuradas pela sua falta de eficiência e pela sua falta de capacidade de ingerência no íntimo dos indivíduos. O iluminismo foi, desde o início, o perscrutar dos pontos fracos do poder, com o intuito de fortalecer este último sob uma forma nova, objectivada que, ao mesmo tempo, seria ideologizada como forma natural inultrapassável. O início da crítica iluminista foi, por conseguinte, simultaneamente o fim de toda a crítica, o desaparecimento da crítica na forma auto-referente da subjectividade burguesa. O iluminismo, não apenas quis rejeitar uma crítica fundamental desta forma, mas tentou torná-la literalmente impensável.
Por isso, a filosofia iluminista, como fundamento dos valores ocidentais, não era uma promessa, nem sequer pela sua natureza, mas, na verdade, uma ameaça; mais precisamente: a ameaça assumiu perfidamente a forma duma promessa. Não era prometida a felicidade, mas apenas a sua busca, sob a forma de uma concorrência desenfreada e assassina, que prontamente desmente o conceito de felicidade. O conceito de felicidade, já de si vago e aleatório, nunca designou outra coisa senão o êxito na concorrência, o que sempre já pressupõe os objectos da felicidade numa forma capitalista, em cujo exterior não deve existir qualquer forma alternativa. A coacção dos indivíduos a procurarem a felicidade sob a pressão do movimento de valorização equivale a uma ameaça monstruosa, na medida em que, primeiro, preestabelece a história da felicidade como uma história de sofrimento e desaforo e, segundo, ainda no interior do sofrimento e do desaforo, não só admite como possível o fracasso total e a perda da existência social, e até da física, mas desde logo o pressupõe para os necessários perdedores.
Decifrada como ameaça, a promessa iluminista de uma liberdade de procura da felicidade, já não pode ser entendida como ideal positivo (de qualquer maneira inexpressivo, sem conteúdo, correspondendo à falta de conteúdo da forma do valor). Por conseguinte, o que está em questão não é porventura o estabelecimento de uma diferença entre o ideal burguês e a realidade burguesa: seja com a finalidade de reivindicar o ideal contra a realidade, e de constituir uma realidade burguesa ideal (a variante ingénua); seja submetendo essa ingenuidade a uma crítica aparente, com o único fim de se tentar realizar o ideal, que continua burguês, supostamente para lá da condição burguesa. Antes, a tarefa da crítica radical consiste em pôr a descoberto o carácter negativo e destruidor do próprio ideal burguês e iluminista e, com isso, a identidade de facto entre o ideal e a realidade, nomeadamente na história dos sofrimentos e desaforos da modernidade. Juntamente com a forma moderna da felicidade, que se apresenta como uma verdadeira desgraça, também a forma moderna da riqueza tem de ser sujeita a uma crítica fundamental. Isso pressupõe uma crítica igualmente fundamental das concepções iluministas de razão, sujeito e história.
Nada inculcou a ideologia burguesa do iluminismo nas nossas cabeças com mais insistência que a respectiva metafísica da história. A metafísica real do trabalho e do valor é historicamente enquadrada na construção teleológica do "progresso". À ontologia burguesa do trabalho, que define a abstracção real "trabalho" (segundo Marx, a "substância" da forma do valor) como condição eterna da Humanidade, e à daí resultante metafísica do trabalho, consistindo na suposta libertação do trabalho (e libertação pelo trabalho), correspondem a ontologia e a metafísica burguesas do sujeito: o sujeito do trabalho, da circulação, do conhecimento e do estado da modernidade, produtor de mercadorias, passa a ser "o Homem" enquanto tal, e ligada a isto está a promessa metafísica de uma "autonomia e auto-responsabilização", através da forma burguesa de pensar e agir. A esta construção ideológica do sujeito corresponde, por outro lado, a ideologia burguesa do progresso, que entende toda a história anterior a si como a ascensão de uma forma mais baixa para uma forma mais elevada, e a metafísica do progresso constituída sobre esta última, que vê na moderna socialização do valor o culminar e o fim da história.
No pensamento original do iluminismo, tratava-se inicialmente do suposto progresso do "erro" para a "verdade", classicamente formulado por Condorcet. A Humanidade até então, assim opina ainda Kant em todas as suas obras principais, teria caído em erros sistemáticos e inconsequências, no pensamento e na acção; ter-se-ia entregue à irracionalidade e a inclinações erróneas, ao passo que só agora, com a modernidade burguesa, se teria iniciado a era da "razão".
Hegel criticou esta construção apenas na medida em que a refundiu numa forma mais refinada: Segundo a sua versão, as condições pré-modernas do intelecto e da sociedade não devem ser concebidas como meros erros, mas como "necessárias formas de evolução" e estados de passagem do "Espírito do Mundo", que na história humana se aproximaria de si próprio. A história é, portanto, uma história de desenvolvimento, e ainda necessária. A todas as formações anteriores é concedido o direito decorrente desta necessidade que, no entanto, vai minguando à medida que elas vão recuando no passado. Na identificação metafórica da ontogénese e filogénese historico-social apresentam-se, como etapas de um processo de amadurecimento da Humanidade, desde estados pré-humanos e meio-humanos ou meio-animalescos, passando pela infância e juventude, até ao glorioso estatuto do adulto (masculino e branco) finalmente "racional". O positivismo, como legítimo herdeiro do iluminismo, vulgarizou, popularizou e politizou este esquema desde Comte, por exemplo nas teorias legitimadoras do colonialismo e nas posteriores teorias politico-económicas do "desenvolvimento".
A forma do sujeito que vem a si nesta construção da história é, por um lado, abstracta e universal ("igualdade") e, nessa mesma medida, assexuada. Por outro lado, porém, os momentos da reprodução social, das formas de expressão humanas etc., que não podem ser abrangidos pelo valor, são delegados n’ "a mulher" (enquanto ser biologicamente sexual e materno) e dissociados da "verdadeira" forma do sujeito do valor. Assim sendo, a relação de valor apenas à primeira vista se apresenta como de extensão universal, sugerindo constituir uma totalidade que não é nem pode ser. Para além de um conceito positivo da totalidade, na sociedade moderna ocorre realmente uma meta-relação, eclipsada nas categorias do valor, a saber, a "relação de dissociação" de base sexualmente determinada (Roswitha Scholz).
Esta relação, que desmente precisamente a suposta universalidade, por um lado desaparece no mundo conceptual burguês e iluminista; onde, por outro lado, tem de ser denominada, nas suas manifestações práticas do quotidiano, estes fenómenos significativamente só podem ser representados nas categorias burguesas como "desigualdades objectivas (naturais)". Assim, a igualdade abstracta refere-se exclusivamente ao universo interior à forma do valor, e aplica-se à mulher, apenas na medida em que ela actua nesta forma (como compradora ou vendedora de mercadorias ou de força de trabalho), ao passo que ficam invisíveis os momentos dissociados deste universo só aparentemente auto-suficiente.
O universalismo do sistema produtor de mercadorias, assim sendo, não só é (realmente) abstracto e destrutivo, como também é aparente, visto carecer de uma efectiva universalidade social. Como essência dissociada, a "feminilidade" social está situada no exterior do universalismo, enquanto a mulher empírica é cindida em si precisamente por isso: enquanto sujeito também monetário, está "dentro", como portadora dos momentos e das áreas dissociadas da vida, está "fora".
A relação de dissociação, enquanto relação geral paradoxal da socialização do valor, implica, portanto, a universalidade não verdadeira, formal, no seio da esfera do valor e, ao mesmo tempo, a definição sexual dos momentos dissociados e excluídos, de modo que o sujeito verdadeiro e pleno da forma do valor acaba por ser definido como masculino. Assim, também o sujeito da história, ou seja, o portador do "progresso histórico" e da ontologia que "vem a si", é em princípio masculino, ao passo que o momento do não-sujeito, que compulsivamente continua natural e por isso sem história, é considerado feminino, por força de uma suposta determinação biológica.
Numa relação entre sexos constituída como relação de dissociação, os momentos da reprodução material, cultural e psíquica, socialmente necessários mas não representáveis sob a forma do valor, são excluídos da igualdade e da universalidade da socialização do valor e, assim, despedaçados numa forma mutilada, em que vivem penosamente uma existência muda, como sombra da forma do valor. Precisamente porque não podem ser objectivamente representados sob a forma do valor, também não faz sentido querer introduzir à força os momentos dissociados na universalidade abstracta, delimitada pela forma do valor. Esta universalidade falsa, negativa, afinal repousa justamente sobre a dissociação, sem a qual não pode existir nem ser pensada. Inversamente, os momentos dissociados, por seu lado, não constituem qualquer "realidade (Eigentlichkeit)" social, cultural ou psíquica, em que o universalismo abstracto pudesse ser positivamente integrado. Antes o que é dissociado, como dissociado não pode senão estar reduzido e mutilado; a ultrapassagem (Überwindung) da relação de dissociação e, com ela, da própria relação de valor, só é possível como ultrapassagem de ambos os lados.
Acontece que a relação de dissociação constitui a lógica extensiva da modernidade, que não deve ser confundida com a realidade empírica imediata das relações entre os sexos. A atribuição sexual do universalismo do valor, por um lado, e a dissociação, por outro, afinal não constituem uma realidade objectiva de facto natural, mas uma construção social; no entanto, uma construção não fortuita e aleatória, mas historicamente objectivada, que só pode ser rompida em conjunto com a constituição da forma do valor. É, pois, nesta precisa medida que ela configura um momento empírico, irrefutável da identidade dos indivíduos, mas sem que estes se resumam a ele.
Por isso empíricamente é inteiramente possível que, por exemplo, as mulheres ajam no interior da esfera abstractamente universalista do universo do valor, não apenas de forma parcial, mas também integrando-se nele por inteiro, fazendo carreira etc. Nesta medida, elas são "sujeitos", ou seja, quase estruturalmente "masculinas", se bem que, na maior parte dos casos, em formas de identidade paradoxalmente fragmentadas. Tal não interfere minimamente com a lógica da relação de dissociação enquanto tal. As mulheres de carreira, por exemplo, não desmentem esta relação, antes a representam enquanto sujeitos face a outras mulheres (e, em certa medida, perante si próprias). A dissociação enquanto tal prolongar-se-á mesmo sob formas mil vezes fracturadas e fragmentadas, enquanto a relação do valor continuar a existir.
O carácter abstracto, repressivo, dissociador e exclusionista do universalismo ocidental, constituído com base na relação de valor, não se afirma apenas no seu nível basilar sexual, mas também para além deste. Este universalismo, referido unicamente ao mundo interior à forma do valor, constitui sob vários aspectos um sistema de exclusão, com os seus mecanismos. A definição "do ser humano" como sujeito do valor não só reduz o feminino dissociado a um patamar meio-humano, como, pela sua própria natureza, exclui socialmente da humanidade todos os indivíduos que, a título temporário ou definitivo, não (ou já não) possam actuar no âmbito do auto-movimento do "sujeito automático" e que, por conseguinte, do ponto de vista deste, que se tornou o ponto de vista da reprodução social em geral, têm de ser considerados "supérfluos" e assim, em princípio, não-humanos. O direito iluminista do Homem implica a desumanização temporária ou total dos indivíduos não reproduzíveis de forma capitalista, porque desde o início se refere somente ao Homem enquanto sujeito do valor.
A desumanização do Homem está objectivamente estabelecida pela própria definição do universalismo, como delimitação ao universo interior à metafísica do valor; este resultado, no entanto, apenas é executado pelo processo da concorrência. A concorrência decide, quem, quando e onde sai da categoria "Homem". É por isso que a concorrência recebe a priori, partindo da autodefinição ocidental do iluminismo, uma conotação racista e (como ultima ratio da concorrência de crise) anti-semita. O racismo e o anti-semitismo não constituem, por isso, uma oposição de princípio relativamente ao universalismo iluminista, sendo pelo contrário componentes integrais da sua existência, como consequência necessária do encerramento na forma do valor e logo na concorrência. O sujeito, segundo o seu próprio conceito, é não só masculino, mas também branco.
Para a dupla lógica da desumanização social e da exclusão racista, precisamente através do universalismo ocidental, vale o mesmo que para a relação de dissociação basilar: Trata-se de uma lógica eficaz como construção objectivada, que não coincide de forma imediata com as circunstâncias empíricas, mas de qualquer modo as estrutura. Com os indivíduos não brancos tende, por isso, a passar-se algo de semelhante ao que ocorre com os femininos: No decurso da globalização, podem ascender de forma minoritária (e frequentemente no meio das regiões de desmoronamento global) ao universalismo abstracto do valor; enquanto sujeitos, porém, com isso são sempre apenas "brancos não brancos". Tal como a ascensão de mulheres ao estatuto de sujeito do universo do valor não desmente a relação de dissociação, tão-pouco uma correspondente ascensão minoritária de indivíduos não brancos desmente o universalismo ocidental, como relação de exclusão social e racial. E do mesmo modo não faz sentido querer de novo universalizar secundariamente o universalismo ocidental, visto que este se baseia justamente nessa exclusão por via da concorrência. A emancipação social pode invocar o universalismo do iluminismo tão-pouco como a emancipação sexual.
O sujeito do valor e da história, que pela sua lógica inerente é esclarecido, masculino e branco, contém em si uma aporia sem solução no terreno do valor. Por um lado, é definido como o sujeito sobranceiro da "livre vontade" burguesa, que para si cria um mundo de objectos, dos quais ao mesmo tempo fica separado para sempre, como que por um biombo impenetrável, devido à sua própria forma auto-referente: o que é representado afirmativamente na problemática kantiana da coisa em si; em Hegel, como movimento de exteriorização da livre vontade em direcção aos objectos, nos quais esta no entanto se mantém outro, ao qual conserva a pretensão à auto-suficiência ou auto-referência, para regressar a si própria — é esta a representação logico-filosófica do processo de valorização e do seu movimento do sujeito.
Por outro lado, esta forma da "livre vontade" é ela própria essencial e irredutivelmente objectiva, não coincidindo, nessa medida, com a "liberdade" de escolher uma alternativa. Trata-se apenas da "livre escolha" no seio do universo das mercadorias, em função da capacidade de pagamento e jurídica do indivíduo, que nem sequer existe como ser humano fora destes critérios. Com isso, o livre sujeito do valor é um objecto para si, a si mesmo se objectivando como ser empírico, despedaçado no conceito, na ética kantiana de uma verdadeiramente monstruosa auto-violação do indivíduo real, segundo os critérios da forma vazia de uma "lei em geral".
A mesma Filosofia, ampliada e apoiada no iluminismo capital-economístico escocês (anglo-saxónico), leva a relação aporética ao paroxismo, tanto sob o ponto de vista da teoria do conhecimento, como sob o da teoria da acção ("ética"): O sujeito enquanto sujeito, tal como a sua "liberdade", não é deste mundo, encontrando-se separado, pela sua própria essência, de toda a sensualidade, objectualidade prática e necessidade social; ele é um mero fantasma da vazia forma fetichista do valor. No entanto, na medida em que este sujeito-fantasma se refere ao mundo real, ele também já é "não livre por necessidade natural", uma vez que apenas pode conhecer e agir segundo as (mecânicas) "leis naturais", físicas e sociais, as quais, paradoxalmente e para cúmulo, segundo de Kant, nem sequer são as leis da existência imanentes à própria natureza, mas tão-só a forma de conhecimento da sua própria relação alienada (que a si mesma parece estranha) com o mundo dos sentidos. A liberdade é vazia e do outro mundo, ao passo que a vida real se desenrola segundo a batuta da impiedosa "lei natural" do capital e do seu infindável processo de valorização.
Aqui, o próprio conceito de sensualidade é definido de forma abstracta, como "sensualidade em geral", precisamente porque a verdadeira referência sensual permanece indiferente à abstracção do valor. Daí resulta uma inversão paradoxal no conceito da sensualidade e da natureza: Por um lado nega-se que o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx) é, ele próprio, desde sempre culturalmente constituído, não sendo de modo algum imediato; que, portanto, a própria sensualidade se apresenta de modo histórica e culturalmente diverso, incluindo a concepção de espaço e tempo. A sensualidade, em vez disso, aparece de forma ahistórica, como a desde sempre abstracta e indiferente relação de valor. Por outro lado, a socialização do valor "trabalha" com o poder, como nenhuma formação anterior a ela, para adequar de facto completamente ao seu próprio conceito a totalidade do mundo natural e sensual, incluindo a sexualidade humana; ou seja, para converter a própria natureza num estado ahistórico, de plena compatibilidade com a abstracção do valor, nivelando qualquer diferença entre a natureza e a sociedade capitalista (o que constitui um projecto necessariamente votado ao fracasso).
Ao objectivar deste modo toda a natureza e, com ela, também a sensualidade como abstracção do valor, a socialização do valor como um todo desintegra-se em si própria, tal como qualquer dos seus sujeitos, numa polaridade aporética de sujeito e objecto; a sociedade converte-se numa objectividade cega, que se opõe aos sujeitos por ela formados (estruturalmente masculinos e brancos), como um poder estranho (segunda natureza), ao passo que os momentos que não consigam enquadrar-se nesta lógica têm de ser dissociados e, com isso, "irracionalizados". O autodomínio e "incondicionalidade" da livre vontade totalmente insensível e, de um modo geral, irrealizada transforma-se no preciso contrário de um objectivismo igualmente incondicional.
Assim, tal como a metafísica do sujeito, também a metafísica da história tem de ser de natureza aporética: Ao sujeito da história, masculino e branco, corresponde a "lei natural" objectiva da história, na medida em que esta é a verdadeira história da sociedade; quanto mais livre, mais necessário (Hegel: "A liberdade é o conhecimento da necessidade"). O iluminismo é, assim, essencialmente uma ideologia de auto-violação e auto-sujeição dos indivíduos ao imperativo objectivado da "segunda natureza", segundo os critérios do movimento espontâneo da forma do valor (valorização do valor) autonomizada relativamente a eles.
Como tal, se mulheres e não brancos ascendem empiricamente ao estatuto de sujeito da metafísica do valor, não se emancipam, limitando-se a trocar a redução ao estatuto da dissociação e exclusão pela outra redução ao estatuto da auto-objectivação.
Em consequência da sua estrutura aporética, o sujeito da história, masculino e "livre", que é "livre" precisamente como executante do movimento determinado do fim-em-si do valor, não só tem de dissociar os momentos da emocionalidade, sensualidade etc., mas também tem de cindir-se a si mesmo numa oposição interior entre pensamento e acção: de um lado surgem os "pragmáticos" (económicos e políticos), representando as elites funcionais em larga medida isentas de reflexão (ao menos no meta-nível das formas sociais); do outro, os teóricos sociais, em grande medida contemplativos, que não actuam a nível social de forma imediata e os quais (tão privados de sensualidade e emoções como os "pragmáticos") têm de comportar-se como observadores meramente "exteriores"; de certo modo como o cérebro a boiar numa solução nutriente em Marte que, através da forma apriorística de pensamento do valor e por intermédio de aparelhos técnicos (ou da capacidade de abstracção teórica), observa do exterior a fervilhante vida objectual da sociedade terrena.
Por isso, cisão sistemática entre teoria e prática é na realidade parte integrante da constituição do valor, e manifesta-se simultaneamente na correspondente ideologia metafísica do sujeito e da história. Os pragmáticos executam a marcha da objectividade, enquanto os teóricos contemplativos vão comprovando que tudo tem a sua razão de ser e nem pode ser doutra maneira.
O subjectivismo, aparentemente contrário, é apenas um produto colateral periódico e uma manifestação secundária desta lógica; ou seja, a hipostasiação do outro pólo, sem abandonar a constituição da forma. Pelo que ele também fracassa invariavelmente, sendo reintroduzido na objectividade, tanto do sujeito como da história. No entanto, no decurso da história intelectual burguesa, ele também se consolidou e autonomizou, como postura subjectivista de uma falsa imediatez, que eclipsa o contexto constitutivo, histórico e lógico, do sujeito determinado pela forma do valor do sistema produtor de mercadorias, pressupondo-o de forma positivista na sua génese irreflectida.
O resultado é a mistificação, ou a estetização (ou ambas) da subjectividade moderna, na sua existência banal e miserável, como agente e "bocal" do movimento de valorização sem sujeito. Desde o romantismo, passando pelos supostos solitários Kierkegaard, Schopenhauer e Nietzsche, até à chamada Filosofia da vida, ao existencialismo de Heidegger e similares, à ideologia nazi a este ligada e de poderosos efeitos sociais, e aos movimentos de pensamento alimentados por estas raízes na segunda metade do século XX, vai toda uma cadeia manifestações desta falsa imediatez ideológica do sujeito do valor, que dolorosamente se vivencia como "lançado" num mundo estranho e pregado na cruz da sua objectividade para, no mesmo fôlego, a si próprio se heroicizar nesta existência, em vez de se insurgir contra ela e dela se emancipar.
A forma do pensamento e do conhecimento, tanto dos "pragmáticos" como dos teóricos contemplativos é a lógica identitária. Nesta, em termos práticos, o mundo, a natureza, assim como a sociedade e todos os seus objectos, são assimilados à abstracção do valor, tornados compatíveis e até iguais ao valor. Esta abordagem, já de si destrutiva, configura, por assim dizer, uma "intenção objectiva"; ou seja, uma inversão que remete de novo para o paradoxo basilar da relação social, na medida em que as intenções dos indivíduos e das instituições estão pré-formadas pela sua própria forma de percepção e de acção, antes de qualquer intenção "subjectiva". No processo de valorização reacoplado a si próprio (processo do trabalho, processo da circulação, retorno a si próprio do capital financeiro mais valorizado), o sujeito do valor estende as qualidades de sinal diverso na cama de Procrustes da abstracção do valor. Tudo, seja o que for, desde a matéria mais bruta até às emoções da alma, é sujeito a este processo de identificação prática, segundo a marca una e única desta abstracção real.
O resultado é uma economificação sempre crescente do mundo e o seu consequente tratamento em função do processo de abstracção do valor, que apenas é flanqueada, e em muitos aspectos até reforçada, pelas ideologias subjectivistas aparentemente contrárias da mistificação e da estetização. Até o processo de consumo, como reprodução material da vida, tem que submeter-se o mais possível a esta forma e adequar-se a ela, ao passo que os momentos que nunca se enquadram nela, que sempre constituem o avesso da forma e nunca um mero "resto", ficam remetidos à dissociação (sexualmente conotada). No entanto, o sujeito da dissociação historico-socialmente "feminino", as mulheres dos escombros da história, como companhia de consertos da socialização do valor e das suas devastações, justamente enquanto "virtudes femininas", não pode deter a catástrofe da forma do valor, nem ultrapassar os seus imperativos, precisamente porque ele próprio constitui apenas a figura simetricamente invertida, negativamente idêntica, do sujeito do valor "masculino", e em conjunto com ele está constituído.
O mesmo se aplica também às culturas pré-modernas, excluídas de forma racista, ou às suas réplicas ideológicas. O "bom selvagem", que desde Rousseau povoa o pensamento iluminista, um fantasma projectivo do pressentimento dos conteúdos destrutivos da própria Filosofia iluminista, muito menos proporciona um potencial para a ultrapassagem emancipatória da modernidade produtora de mercadorias. As reais relações de fetiche pré-modernas nem eram melhores que as modernas, nem são capazes de fornecer a menor indicação sobre como o amoque da socialização do valor poderá ser detido. Muito menos ainda se encontra um potencial emancipatório na construção meramente ideológica de um passado idealizado, ou de "culturas" extra-europeias que, após séculos de história da imposição do capitalismo, só podem ser caricaturas da socialização do valor e da respectiva subjectividade.
O impulso interno do movimento da valorização, como processo histórico, consiste em chegar à auto-suficiência absoluta da abstracção vazia da forma: por conseguinte, maltratando os objectos do mundo durante o tempo necessário para que estes desapareçam no vazio dessa forma — ou seja, através da aniquilação do mundo. Está assim estabelecida a pulsão de morte do sujeito iluminista e da sua razão lógico-identitária e dissociadora, que se vai desenvolvendo através da história da modernização. Esta pulsão de morte dirige-se igualmente contra o princípio do dissociado, conotado com o "feminino", embora e justamente porque este configura a forma da manutenção negativa do sistema. Como a pretensão totalitária da forma do valor só pode ser representada ao preço da dissociação, ou seja, da (inadmitida) "incompletude" e da deficiente auto-suficiência no mundo físico e social, o impulso totalitário tem de acabar por se virar contra a capacidade de reprodução do próprio sistema. A impossibilidade lógica da forma do valor total, da perfeita dessensualização e associalidade, torna-se prática como aniquilação do mundo e de si próprio.
Ao prático economismo totalitário da forma vazia corresponde a política, primeiro como forma enfática da sua imposição (reforçada desde a revolução francesa), que paralisa sob a forma da administração da relação de valor (administração de crise), para finalmente vir a acabar como forma de consciência da pulsão de morte moderna, como forma de aniquilação e auto-aniquilação, nos processos de decomposição do sistema produtor de mercadorias.
A mesma forma de pensamento e de conhecimento se reproduz na reflexão teórica, contemplativa, como uma lógica identitária conceptual, reflectida. Tal como os "pragmáticos" do iluminismo burguês, estruturalmente masculinos e brancos, na prática querem adaptar totalitariamente o mundo, assim os teóricos contemplativos correspondentes procuram abranger o mundo conceptualmente de um modo não menos totalitário. Tal como na prática, também no pensamento reflexivo tudo o que não couber no conceito identificador (da abstracção do valor) ou é riscado, ou é dissociado. O teórico contemplativo enquanto sujeito do valor reflecte-se de modo narcisista e autista no mundo, em cujos objectos ele sempre volta a reconhecer-se e a adorar-se, na sua existência abstractificante e permanentemente dissociadora.
O mundo tem de caber e ser representado na totalidade do valor, sem deixar de fora quaisquer sobras, ou simplesmente soçobrar. Daí a exigência da absoluta e positiva inequivocidade e "dedutibilidade" conceptual (pensamento sistémico positivo). Tanto à lógica identitária prática como à teórica, corresponde a tendência para a ausência de relações (quer sociais, quer eróticas) e a incapacidade para as mesmas, como reflexo da tendência da abstracção do valor para a auto-suficiência na forma vazia. Naturalmente, mesmo o mais obstinado teórico contemplativo da lógica identitária, como qualquer outro indivíduo, não consegue caber na sua pele do valor. É precisamente para lidar com os dilemas que aí se perfilam que servem as ideologias de mistificação e estetização do subjectivismo, em que o sujeito do conhecimento do valor, branco e "masculinamente" lógico-identitário, pode refugiar-se e entregar-se à auto-heroicização em caso de necessidade.
No romantismo, na filosofia da vida, no existencialismo e seus vários derivados, a irracionalidade repressiva e destrutiva da relação de valor-dissociação manifesta-se de forma imediata, também pelo lado do sujeito do valor, fazendo-o, no entanto, sob formas adequadas. Enquanto os momentos dissociados da sensualidade, da emoção, do acto de "cuidar e acarinhar" (impossível de economificar ou, a sê-lo, apenas ao preço de fricções catastróficas, na falta da sua representabilidade sob a forma do valor), das áreas de reprodução associadas ao mesmo etc., que não cabem na forma do valor, se apresentam como irracionalidade "feminina", natural, impossível de abarcar conceptualmente (e, em última análise, a eliminar), por oposição ao sujeito couraçado do valor — este sujeito da racionalidade definida pelo valor a si mesmo se naturaliza e irracionaliza, nas ideologias subjectivistas; mas apenas de forma compensatória, como aquilo que é: a racionalidade abstracta dá lugar imediatamente a uma irracionalidade igualmente abstracta, tornando-se clara a identidade entre a razão burguesa e a loucura objectiva.
Com a adopção romantico-existencialista da irracionalidade, o sujeito do valor masculino e branco não se desmente; descobre em si consequentemente o lado "feminino" (sensual), apenas sob a forma de uma imaginação de morte e matança, como ela já se tinha formado desde os primórdios da "revolução militar" protomoderna no "culto dos canhões" e desenvolvera a relação com o mundo sensual como uma lógica abstracta de aniquilamento, que se objectivou na pulsão de morte da forma do sujeito determinada pelo valor. O culto romântico do fragmentário é o culto dos escombros do mundo devastado pelo valor, ou seja, não é oposto ao totalitarismo da lógica identitária, sendo antes o seu reflexo no mundo dos sentidos. O sujeito do valor iluminista só é "sensual" se arrasar o mundo e nadar em sangue, em sentido figurado ou literal. Esta sensualidade negativa é, ela própria, abstracta, e nela se manifesta de forma imediata, periodicamente e em degraus historicamente crescentes, a pulsão de morte do sujeito do valor, que quer integrar o mundo na forma vazia da sua abstracção real.
O amor romântico masculino prefere o seu objecto sob a forma de um cadáver na água (Ofélia); desde as formas de expressão mais artificiosas até à mesa da tertúlia ("A barriga estava coberta de musgo; meus senhores, à nossa!"). A historiadora literária Elisabeth Bronfen apresentou a esse propósito, no início dos anos 90, uma extensa monografia ("Só por cima do seu cadáver"; morte, feminilidade e estética). Nas ideologias de "sangue e solo", esta irracionalidade assume, ela própria, a forma do conceito de razão; e é nos campos de batalha da história da modernização que esta sensualidade negativa, abstracta, do sangue vem a si; no abraço amoroso de homem a homem entre os sujeitos do valor, que se trespassam mutuamente com as baionetas, e na romantização dos delírios sanguinários, nas grandes guerras industrializadas do século XX (Ernst Jünger).
Tal como a dissociação dos momentos da reprodução definidos como "femininos" (imprescindíveis mas, ainda assim, cada vez mais frequentemente negligenciados com brutalidade, coarctados ou directamente destruídos) não põe em causa o sujeito-do-valor destrutivo, antes apenas o torna ainda possível, enquanto a pulsão de morte não se tiver cumprido, assim a irracional ideologia existencial e a negativa e sangrenta sensualidade da masculinidade do iluminismo tornada romântica muito menos ultrapassa este sujeito, antes revela a sua essência destruidora do mundo.
É no próprio ataque de febre periódico dos pragmáticos esclarecidos e racionais, tal como dos próprios teóricos contemplativos esclarecidos e racionais, que se mostra a irracionalidade desta Ratio. Trata-se, portanto, de Kant no estado da sensualidade, isto é, da dizimação de tudo quanto seja vivo e não consiga encaixar-se na abstracção do valor. Nisso se evidencia a identidade negativa, polar, entre a modernidade burguesa e a (aparente) anti-modernidade burguesa. E é só nesta identidade imediata entre razão e aniquilação na forma do valor que o pragmático pode coincidir com o pensador. A unidade burguesa entre teoria e prática é o campo de extermínio, a explosão atómica, o bombardeamento de área. É nisso que consiste o oculto denominador comum entre Kant, Hitler e Habermas, entre a ideologia alemã e o pragmatismo dos EUA, entre a liberdade compulsiva dos liberais e o autoritarismo totalitário. Apesar de todas as diferenças históricas na história da imposição da socialização do valor, este denominador comum torna-se visível nas grandes crises, e especialmente nos limites do sistema. E, deste ponto de vista, convém pensar junto o que junto está.
Sob muitos aspectos, o marxismo não constitui a ultrapassagem, mas apenas a continuação e ampliação da destrutiva metafísica-do-valor iluminista do sujeito e da história. Como é sabido, o próprio Marx, e muito mais o chamado marxismo, adoptaram no essencial a versão hegeliana ampliada da ontologia e da metafísica iluminista do progresso, para supostamente a virar de pernas para o ar, de um modo "materialista". A "história necessária do desenvolvimento" converteu-se na história politico-económica de "modos de produção", com "modos de pensar" a condizer (materialismo histórico). À reinterpretação materialista correspondeu um prolongamento da construção iluminista: tal como a história necessária do desenvolvimento do espírito do mundo a vir a si si se converteu numa história necessária de forças e condições de produção, assim o final glorioso não havia de consistir na sociedade burguesa, mas no "socialismo operário".
Portanto, o marxismo apenas postulou um "estádio de desenvolvimento objectivamente necessário" adicional e suplementar, que ainda deveria seguir-se ao burguês, revelando-se assim um mero apêndice da metafísica iluminista da história. É um facto que Marx ocasionalmente designou o socialismo/comunismo como, em vez de o final da história, pelo contrário, precisamente como esse "fim da pré-história", cujo conceito poderá fornecer um primeiro ponto de partida para uma crítica que vá mais longe; no entanto, esta formulação corresponde justamente aos momentos da teoria marxiana que não são compatíveis com a ideologia do iluminismo e que, por isso, (sobretudo sob na forma do conceito de fetiche) também não são compatíveis com o materialismo histórico. A forma de fetiche do valor, em si mesma, nada tem de "material".
Do ponto de vista do "duplo Marx", portanto, o materialismo histórico enquadra-se plenamente na herança burguesa e iluminista, no Marx da modernização e do movimento operário; o mesmo se aplica também à versão marxista do conceito de "progresso" que, no essencial, apenas fez a função de vanguarda do marxismo do movimento operário no processo de modernização capitalista (criação da subjectividade jurídica e da cidadania generalizadas, etc.).
O que, consequentemente, implicou a parcialidade categorial do marxismo também quanto aos outros momentos da ontologia e da metafísica capitalistas; não apenas no que diz respeito às formas de relacionamento social objectivadas do trabalho e do valor, mas também relativamente à forma burguesa do sujeito, visto que o acesso à mesma e o reconhecimento social através dela constituiu a causa histórica essencial do movimento operário. À versão materialista da metafísica iluminista da história correspondia necessariamente uma versão materialista da metafísica iluminista do sujeito (nomeadamente sob a forma da ideologia sociologista das classes) incapaz de pensar até ao fim a superação da forma historico-social subjacente.
Como é lógico, deste modo o marxismo também só foi capaz de abordar a relação entre os sexos no âmbito da forma burguesa do sujeito, a fim de resolver as "tarefas" fundamentalmente já colocadas pela ideologia do iluminismo, mas ainda não resolvidas, isto é, como "questão da igualdade" abstracta e jurídica, referente à cidadania num estado (em analogia com a correspondente lógica dos sujeitos masculinos assalariados), enquanto, ao mesmo tempo, a delegação dos momentos dissociados n’ "a mulher" (a proletária "parideira" de "soldados do trabalho") foi igualmente recebida da ideologia do iluminismo, na forma de um materialismo biologista da relação de dissociação já por ela congeminado.
De um modo em tudo semelhante se apresentava a relação marxista para com o racismo e o colonialismo: também a este respeito, o movimento operário adoptou em larga medida a ideia iluminista da superioridade branca e da "missão civilizatória" do capital, apenas atenuada pela crítica contida dos "excessos" colonialistas. Também o sujeito do progresso da metafísica da história rumo ao socialismo, como suposto paroxismo da história de progresso da Humanidade, só podia ser, em princípio, masculino e branco ocidental.
Ao apego às categorias reais capitalistas, ao essencial da ideologia iluminista e à relação de dissociação tinha de corresponder um igual apego às formas da reflexão teórica. Marx, na sua crítica da economia política, representou com clareza a conexão categorial e o processo de reprodução do capital mas, em primeiro lugar, limitou-se ao cerne da relação de valor, sem contemplar a dimensão da relação de dissociação, e sem abranger sistematicamente a forma da política (no primeiro caso por falta de entendimento, no último por falta de ocasião para a sua elaboração). Igualmente abreviada e por isso contraditória, uma vez que enquadrada na metafísica iluminista do progresso, teve de ficar a representação marxiana do colonialismo.
Em segundo lugar, a forma de representação é tal que pode ser lida positiva e logico-identitariamente como teoria sistémica totalitária no sentido hegeliano, simplesmente invertida politico-economicamente em termos materialistas, enquanto a teoria negativa da constituição do fetiche se apresenta, antes de mais, como "golpe falhado" (que sempre tem causado sobretudo estranheza ao pensamento dedutivo masculinamente logico-identitário). Por isso, depois de isolado este corpo estranho, o marxismo do movimento operário pôde adoptar positivistamente a teoria de Marx, como instrução de procedimento no interior do invólucro da forma do valor e da forma burguesa do sujeito.
Deste ponto de vista, o marxismo apresenta-se de modo especialmente consequente como um mero apêndice da ideologia do iluminismo, na medida em que, como seu "herdeiro", sempre se colocou consistentemente do lado da racionalidade na forma do valor ("razão") e até do seu "progresso". Assim, a irracionalidade dessa relação teve de ser sempre malentendida como exterior e hostil às respectivas formas de pensamento, em vez de se reconhecer o carácter perfeitamente imanente das ideologias subjectivistas e irracionalistas e das suas consequências devastadoras. Na redução ao "racionalismo dos interesses" pretensamente sociológico na forma do valor, o pensamento marxista acabou por mostrar-se mais papista que o papa quanto ao conceito de razão capitalista-iluminista, na medida em que sempre quis "realizar" os ideais burgueses abstractamente universalistas (justamente como tais não verdadeiros, porque dissociativos e exclusionistas) contra a irracionalidade burguesa ideologicamente exteriorizada, tentando compreender os movimentos intelectuais e as formas de actuação destrutivas correspondentes a esta irracionalidade objectivada da razão burguesa como uma "traição" do mundo burguês à sua própria razão, em vez de a encarar como sua consequência intrínseca e necessária (exemplarmente em Lukács, no seu banal ensaio sobre a pretensa "Destruição da Razão").
O marxismo do movimento operário tornou-se assim o impulsionador da história subsequente da modernização capitalista, justamente pelo facto de parecer representar a pura forma logico-identitária do pensamento e da acção da razão burguesa idealizada, contra a própria irracionalidade transbordante desta última. Foi isso que constituiu a sua força à época, enquanto a socialização do valor ainda se encontrava em ascensão histórica; posteriormente, contudo, foi igualmente isso que o tornou obsoleto, no final deste desenvolvimento imanente da relação do valor.
Tal como na ideologia iluminista e no processo real do moderno sistema produtor de mercadorias em geral, também o movimento operário teve de reproduzir a cisão burguesa entre teoria e prática, no modo de reflexão de um marxismo positivista. Os seus representantes (na sua maioria, como é evidente, também empiricamente masculinos e brancos) novamente se dividiam em "pragmáticos" e teóricos contemplativos. Os primeiros dividiram a prática social, segundo o padrão burguês e à medida da lógica identificadora do valor, em actuação económica (sindicatos analogamente à gestão, entretanto sua parte integrante) e actuação política (o partido, primeiro como aspirante e por fim também como parte integrante da classe política); os últimos desenvolveram e cultivaram um aparelho conceptual marxista logico-identitário, no sentido da abstracção do valor (percepcionada sociologicamente de um modo reduzido e, logo, deficiente na sua imanência).
No decorrer do século XX, a concepção iluminista da metafísica da história e do sujeito foi-se tornando cada vez mais duvidosa e frágil, sem poder ser resolvida de forma positiva no terreno da socialização do valor e da sua relação de dissociação. Só a passagem para a crítica do valor aproxima da possibilidade de ser pensada a ultrapassagem desta forma social moderna. Neste aspecto, uma teoria de charneira ou de transição foi constituída, especialmente, pela teoria crítica de Adorno. A reflexão deste põe em causa a forma burguesa do sujeito (para lá da teoria do marxismo do movimento operário, limitada em termos de sociologia das classes) fundamentalmente em dois momentos: Por um lado, como forma da circulação da troca de mercadorias e, por outro, e pensada em ligação com a primeira, como forma do pensamento da lógica identitária, em que o mundo é abstractamente reduzido ao mesmo denominador da forma abstracta, com o que é violado e, por fim, destruído.
No entanto, a crítica de Adorno à metafísica iluminista do sujeito fica a meio caminho, e isto em três aspectos. Primeiro, a crítica desta forma é incompleta, porque limitada à forma da circulação primária (a troca de mercadorias), sem abranger sistematicamente nem o modo de produção (trabalho), nem a forma da circulação secundária (subjectividade jurídica, política), compreendendo, portanto, a forma negativa da totalidade do valor apenas ao nível da circulação. Segundo, a crítica antes de mais também é incompleta porque Adorno, apesar de esboços e chamadas de atenção dispersos, chega tão pouco como Marx até à forma hierarquicamente superior da relação de dissociação. Terceiro, por fim, ele até acaba por retirar a crítica, na medida em que nomeia precisamente a mesma forma do sujeito da circulação, que para ele é o portador da lógica identitária destrutiva, simultaneamente como portador positivo indispensável da emancipação de si próprio, o que, como é evidente, só pode constituir uma ampliação e uma caricatura da ideologia aporética do iluminismo, que repousa sobre a estrutura real aporética do valor.
Do mesmo modo como em Adorno a libertação da metafísica iluminista do sujeito continua incompleta e acaba por falhar, se passam as coisas também com a metafísica iluminista da história. Adorno não resolve a construção historico-metafísica, apenas a prolonga com sinal inverso: No lugar do optimismo histórico do iluminismo surge um pessimismo histórico correspondente. A história do progresso converte-se numa história da decadência, precisamente porque fracassa a libertação da forma do sujeito burguesa.
Isto desenrola-se a dois níveis, que têm de ser bem distinguidos, e que dão a conhecer o duplo apego de Adorno, ainda não resolvido de forma consequente, tanto à filosofia iluminista, como ao marxismo do movimento operário. Nomeadamente, por um lado, ao meta-nível da ontologia supra-histórica e antropológica; aqui, a libertação do Homem da "primeira natureza", convencionalmente conotada com o feminino, afigura-se como fundamentalmente falhada, visto transformar-se na "segunda natureza" de relações de poder (o domínio destrutivo sobre a natureza e o domínio do homem sobre o homem). Assim, a história em geral transforma-se numa história da fatalidade, que ameaça acabar em recaída na "primeira natureza". Isto, no entanto, também poderia ter a leitura de que o sujeito do valor, abstractamente universal e "masculino", deslizara para o apego "feminino" à natureza e, assim, como o medo do sujeito-burguês-do-valor das suas próprias consequências.
Por outro lado, Adorno pensa a mesma história da decadência também ao nível da ontologia histórica, capitalista. Neste contexto, a "realização da Filosofia" afigura-se-lhe como mal sucedida, o que não quer dizer outra coisa senão que os potenciais emancipatórios supostos (de certo modo alucinados) da ideologia do iluminismo, a que ele se agarra com unhas e dentes, apesar de ele próprio ter comprovado o contrário, teriam infelizmente fracassado, podendo apenas ser saudosamente recordados ("in memoriam").
No que diz respeito à teoria, (contrariamente à solução aparente de Adorno, errónea, paliativa e, por isso mesmo, sem saída), paradoxalmente, o caso não seria, de facto, que o modo de reflexão do iluminismo e do marxismo, profundamente marcado pela lógica identitária, e que deveria ter-se "realizado" como "Filosofia", tivesse soçobrado em tal desafio; mas que se "realizou" de facto, de forma real e destrutiva, justamente como processo de imposição da socialização do valor e da relação de dissociação.
Relativamente ao estatuto do portador desta emancipação supostamente perdida, teria sido o movimento operário, segundo Adorno, o "realmente" vocacionado para salvar e "realizar" os conteúdos ditos libertadores do sujeito burguês da circulação (que, na realidade, constituem o contrário de uma libertação) através da sua generalização extensiva; no entanto, este teria falhado essa sua vocação, com o que, no fundo a oportunidade histórica estaria perdida. Na realidade, porém, o movimento operário cumpriu a sua vocação, limitada à socialização do valor, e por isso mesmo esmoreceu.
Por conseguinte, Adorno fica preso à metafísica da história, tanto do iluminismo, como do marxismo do movimento operário, apenas numa versão negativa e pessimista. Pois na história da "fatalidade" de uma libertação mal sucedida da "primeira natureza", à qual ele acaba por reduzir toda a história da Humanidade pré-moderna, teria sido apenas o nascimento do sujeito do valor, do sujeito logico-identitário da circulação (cujo o alter ego do sujeito do trabalho fica implicitamente pressuposto, numa ontologização inadmitida) que teria oferecido uma possibilidade de deter o curso desta fatalidade — quando na realidade, mesmo observado de forma imanente no sentido da construção histórica de Adorno, o acelerou e o levou ao seu ponto culminante.
E, ao malentender ideologicamente a luta do movimento operário pelo reconhecimento na forma do sujeito burguesa, tal como esse próprio movimento, como possível transformação emancipatória, que conduziria para lá da socialização do valor, a sua revelação (mesmo assim incipientemente reflectida) como aquilo que realmente foi tem de parecer-lhe uma recaída na, aliás suposta, marcha da fatalidade. O iluminismo, o sujeito burguês da circulação e o movimento operário teriam assim constituído, por assim dizer, um mero compasso de espera, ou uma indefinição temporária nessa marcha. Os seguidores "ortodoxos" de Adorno que tenham ficado parados neste nível de reflexão não podem, por conseguinte, pensar mais longe, nem libertar-se realmente do marxismo do movimento operário, só podem prolongá-lo numa versão negativa para finalmente, chegados à fronteira histórica da relação de valor (e perante os acelerados processos destrutivos a ela associados) voltarem a cair directamente na ideologia iluminista e, com isso, atrás do nível da reflexão de Adorno.
Paralelamente à reflexão de Adorno desenvolveram-se dois outros filões da elaboração teórica, que tentaram assimilar a obsolescência da metafísica do sujeito e da história, de um modo sem dúvida substancialmente mais afirmativo que Adorno. O estruturalismo (Lévi-Strauss, Barthes, Lacan etc., em versão marxista, Althusser) e a teoria dos sistemas (Luhmann) liquidaram a ilusão do sujeito do pensamento iluminista, apenas para formular a cega objectividade da socialização sob a forma do valor, ou seja, o outro pólo da mesma forma de pensamento e acção, de um modo novo e mais avançado. Já o próprio pensamento iluminista tinha confinado a autonomia do sujeito e, com ela, o seu poder de fazer a história, estritamente ao férreo enquadramento de uma objectividade irreflectida, sem mais equiparada à "natureza" e às suas leis. Afinal, é precisamente nisso que se manifesta a aporia deste pensamento, na conversão instantânea da autonomia em heteronomia, da liberdade em coacção da necessidade. As supostas liberdade e autonomia revelam-se, assim, como um instinto condicionado de uma irracional "segunda natureza", de uma pseudo-natureza da forma social ontologizada, que é ideologizada como componente da primeira natureza.
O estruturalismo e a teoria dos sistemas, a última das quais até remonta directamente à biologia teórica (H. Maturana), prolongam este falso naturalismo do historico-social de forma reforçada: O pensamento iluminista não é ultrapassado, apenas a sua aporia é encoberta por uma unilateralização objectivista. O sujeito autónomo ilusório apenas é derrubado do seu trono para festejar a objectividade quase naturalista, com ele existente e pensada desde o início, numa apoteose árida, sem paixão, "liberta" das emoções ideológicas da história da imposição — festejar seria dizer demais, visto que meros guarda-livros de uma facticidade em processamento cibernético já nada conseguem glorificar, na melhor das hipóteses sendo capazes, como Luhmann, de evidenciar uma certa lucidez sardónica.
A aporia de sujeito e objecto no pensamento iluminista é devolvida inteiramente ao âmbito do objecto, sendo que este último, por assim dizer, se refina relativamente ao naturalismo abstracto do iluminismo, num movimento estrutural e sistémico, que toma o lugar do anterior sujeito da história. O suposto triunfo do estruturalismo e da teoria dos sistemas sobre a metafísica e a ideologia do sujeito do "pensamento da velha Europa" revela-se como a mera conclusão da história da sua vulgarização positivista, em que ele vem a si.
O sujeito da história, antes enfático e masculino, põe de lado os podres estandartes e emblemas da sua liberdade para, como uma espécie de analista social automatizado, observar a sua própria miserabilidade nos "processos de informação" das máquinas sociais. Althusser, na circunstância, involuntariamente resume a luta de classes ao seu conceito imanente, como mero processo estrutural com executantes-actores mecânicos. E Lacan terá dito sobre o movimento de 1968: "São as estruturas que saíram à rua."
Com esta auto-desmontagem do sujeito masculino e branco do iluminismo, na forma quer de teórico contemplativo, quer de pragmático (os imperativos sistémicos, cibernéticos e sem sujeito, já apenas têm que ser constatados, por um lado, e executados, por outro), a relação subjacente de dissociação sexual não é desmentida com ele, como se poderia esperar, mas, pelo contrário, é definitivamente eclipsada enquanto objecto específico, tal como a forma do valor: Ela dilui-se no contexto sistémico abstracto, como uma estrutura entre estruturas. Deste ponto de vista, agora todos os gatos são pardos e todas as contradições que se manifestem são passadas a ferro numa lógica afirmativa e cibernética, que é sempre a mesma; isto foi levado à perfeição por Luhmann, com o tratamento sucessivo de todas as "áreas" no âmbito da mesma conceptualidade árida e tautológica: o casal de amantes e, de um modo geral, a relação entre sexos é tratada como "sistema" ou "subsistema", tal e qual como "a economia", "a cultura", "a religião" etc.
Juntamente com o conceito enfático do sujeito autónomo desaparece necessariamente também o da história. A história dissolve-se na intemporalidade de uma lógica estrutural e sistémica abrangente, que comanda a natureza e a sociedade de igual modo segundo leis eternas. As alterações já não se apresentam como história feita por seres humanos, mas como a chamada "diferenciação" por lógicas estruturais, ou como a "autopoiesis" de contextos sistémicos. As crises não são percebidas como limites de uma formação histórica, mas como "interferências" e "curtos-circuitos" nos processos de diferenciação, de modo que os indivíduos apenas as podem vivenciar como uma espécie de amebas sociais.
O lugar da crítica que se legitima com argumentos históricos é tomado pelo encolher de ombros do cibernético da teoria social. Com isto foi atingido o estádio terminal tanto do teórico contemplativo como do pragmático. O rasto é apagado, o criticável conceito do valor ou do movimento de valorização capitalista desaparece no fim da história da sua imposição, no Nirvana ahistórico da forma de um "sistema em geral" e da sua "estruturalidade em geral".
Este penúltimo estado de decadência do pensamento iluminista é de tal modo insatisfatório e desmascarador que teve de dar origem a outro subsequente e último, sob a forma das chamadas teorias pós-modernas ou "pós-estruturalistas", em que a falta de saída da modernidade produtora de mercadorias aparentemente se resolve às mil maravilhas, se bem que, por assim dizer, de um modo precário. Uma vez mais, foram sobretudo teóricos franceses (que entroncam de um modo imanentemente crítico no estruturalismo) como Lyotard, Derrida e, em especial, Foucault que, com acentuações diversas e com recurso a um vastíssimo acervo histórico e contemporâneo, tentaram superar a esterilidade e monotonia estruturalista, sem no entanto recorrer à relação subjacente da forma social do valor e da dissociação, nem chegar, portanto, a reformular a questão da crítica radical. Pelo contrário, a pós-modernidade e o pós-estruturalismo pressupõem positivamente o ofuscamento, próprio da teoria dos sistemas e do estruturalismo, da definição especificamente histórica do sujeito e da forma, a fim de se posicionarem de novo sobre esse pano de fundo e, de certo modo, recuperarem uma ilusória operacionalidade nesse terreno já afirmativamente demarcado.
É, pois, precisamente nisso que consiste a comunhão destes pensamentos, que apenas costuma ser negada pelos seus receptores porque estes nem sequer reconhecem o quadro de referência comum — tão massivamente foi em geral eliminada a própria formulação do problema. Juntamente com o marxismo do movimento operário, simplificado abusivamente sob o prisma da sociologia das classes, há muito que foi enterrada também a crítica marxiana do fetiche e da forma, erroneamente confundida com aquele e inteiramente incompreendida. Assim sendo, embora a reflexão da teoria dos sistemas e do estruturalismo se encontre ao mesmo nível de abstracção que o "outro" Marx, tal acontece, porém, de um modo deshistoricizado, acrítico da forma e, por isso, afirmativo.
Todo o pensamento do "pós" pressupõe as categorias do sistema produtor de mercadorias como fundamento natural da existência, mais ainda que a mais ordinária das velhas ideologias burguesas; no entanto, já não o faz de forma explícita, uma vez que já o faz para lá da história da imposição. Afinal o estruturalismo e a teoria dos sistemas já tinham preparado esse mesmo terreno. Agora, o sujeito é "recuperado" sob uma forma reduzida, mutilada, mas não a história.
Depois de ter desaparecido da reflexão a forma social e, com esta, toda a análise e crítica da história da respectiva formação, resta como substrato ahistórico uma ontologia positivista do "poder" (Foucault) ou uma igualmente positivista ontologia do "texto" (Derrida), de cujo carácter ontológico os respectivos protagonistas já nem se apercebem, uma vez que é estabelecida como axioma, sem justificação e, por conseguinte, também sem constituição (pura e simplesmente: de forma ahistórica). Dissociados da sua limitativa definição, os conceitos de poder e texto, ou "intertextualidade" (Julia Kristeva) convertem-se em sinónimos da totalidade indefinida da realidade social.
Estas construções de poder e texto, que se vão confundindo na recepção, na sua qualidade de ahistóricas permanecem muito explicitamente delimitadas ao nível fenomenológico. A sua definição indeterminada constitui tão-só uma nomenclatura geral para um caleidoscópio de manifestações, cuja essência já não deve ser denominada. Se o estruturalismo e a teoria dos sistemas ainda se davam ao trabalho de insistir no problema da forma, já deshistoricizado, na medida em que andaram a ruminar afirmativamente as supostamente inultrapassáveis leis lógicas dos contextos sem sujeito, os teoremas do "pós" já se limitam a evitar esse temível nível do problema, denunciando já a forma de colocar a questão como um inadmissível "essencialismo" e "universalismo" ("próprio das grandes teorias").
Em vez disso o seu olhar dirige-se para a azáfama no interior do enquadramento social, já não percebido como tal. Por isso, a suposta crítica pós-moderna do universalismo nem aflora a pretensão totalitária da forma do valor, a qual, ao invés, é cegamente adoptada como um dos seus pressupostos (o que é criticado são apenas as teorias universalistas, mas não o universalismo real objectivado e negativo da forma de reprodução e circulação capitalista, que subjaz a todas as teorias modernas); a interpretação limitada em termos culturalistas é suposta esclarecerr na sua própria essência as meras manifestações no interior da forma vazia (sistemáticamente ocultada), dando assim uma aparência colorida à vida democrática, na parada cinzenta do quartel e nas câmaras de tortura subterrâneas do terror económico.
Estas tendências abertamente afirmativas do pós-modernismo, já há muito predominantes, que protegem os flancos à ideologia neoliberal da globalização capitalista, embora abandonem as intenções originais da posição pós-moderna, não deixam de ser consequentes. É que, na medida em que em Foucault, Kristeva etc. é elaborada uma análise do racismo e da construção da alteridade, esta, se bem que torne visíveis mecanismos superficiais de exclusão, por falta de uma concepção crítica da totalidade da forma não pode relacioná-los com o seu pano de fundo social, que fica sistematicamente ofuscado.
Assim, o poder e o texto constituem a objectividade em estado líquido, por assim dizer o eterno fluido ou o éter de qualquer relação social, um medium ou um complexo de media impossível de determinar com maior precisão, no qual se desenrolam constelações em constante mutação. Já pelo seu conceito, este poder-texto remete, no entanto, simultaneamente para a subjectividade; ele é, de certa forma, o sujeito-objecto — já não de uma história, (como em Lukács o proletariado), mas de uma ondulante "respectividade", em que os indivíduos tecem as teias do poder e parafraseiam o texto, sem serem poder nem texto. O fetichismo da modernidade, juntamente com o seu terror económico e a sua forma política de administrar seres humanos, transformou-se de objecto criticável na água eterna da vida, na qual o sujeito nada. Concretamente, como um ser reduzido e desarmado, porque ele agora, afinal, já não passa, como Razão, por um fazedor da forma e, com esta, da história, mas por um ser que se limita a debater-se e a fazer bricolage com as constelações da respectividade ahistórica. E é apenas neste contexto da redução e do desarmamento teórico que se encontra (cada vez menos) uma análise crítica do sexismo, do racismo, etc.
Há aqui um certo ponto de contacto das teorias pós-modernas e pós-estruturalistas com Adorno, ainda que se trate de tudo menos uma coincidência de posições. Afinal também Adorno não tinha invocado o sujeito do valor na sua ênfase original, tendo-o apenas recuperado como portador da emancipação para, ao mesmo tempo, o denunciar como portador da destruição do mundo pela lógica identitária. Este sujeito burguês já aparado assemelha-se de certo modo ao sujeito pós-moderno, pelo que não é por acaso que o Foucault tardio pôde referir-se positivamente à teoria de Adorno. Se, no entanto, em Adorno, a aporia deste sujeito se manifesta com toda a acuidade dolorosa, os animadores pós-modernos e pós-estruturalistas do sujeito pretendem, de certo modo, trocar pragmaticamente as voltas a esta aporia.
Não é por acaso que neste contexto se afirmou o conceito de "jogo". O "jogo dos sinais" é, ao mesmo tempo, o "jogo dos sujeitos" que já não o são; trata-se, por isso, mais de um "jogo com o subjectivo", que já não é concebido como uma auto-consciência social generalizada. No entanto, esta concepção de jogo não tem, por isso mesmo, nada de emancipatório contra o rigor burguês da relação do valor e da dissociação, apesar de tudo cegamente pressuposto, limitando-se a indicar como o sujeito burguês, ao regressar desarmado e reduzido, é tomado pela demência senil e se torna infantil. Justamente porque já não pode nem quer pensar o rigor da forma do fetiche e dos seus imperativos repressivos, agora concede a si próprio o direito à falta de seriedade. O jogo ao eterno texto e com o eterno poder, que já não tem um nome histórico, limita-se à fenomenologia das coisas, à postura da pessoa como máscara do valor. A máscara do sujeito do valor, que se transformou em rosto, empreende um baile de máscaras secundário, no qual, piscando o olho, simula a soberania em tempos imaginada, quando, na realidade, já está sempre com um olho posto no contexto comercial.
Não é de modo algum por acaso que todas teorias do "pós" recorrem ao filão romantico-irracionalista e existencialista da história das teorias burguesas, nomeadamente a Nietzsche e a Heidegger. O momento subjectivista, no entanto, já não é colocado em oposição aparentemente exterior ao objectivista, sendo antes logo mesclado com este. O super-poder da objectividade como "sistema" e "estrutura" já está reconhecido e pressuposto, o subjectivismo do sujeito burguês regressa apenas sob uma simples forma reduzida. Por isso desaparece também a heroicização da própria miséria da forma (cada vez mais aceite como intransponível); o que resta é a sua estetização (pós-moderna). Dissociada da mistificação e da auto-heroicização das épocas da história da imposição, esta auto-estetização do sujeito do valor no final do seu desenvolvimento já só pode constituir uma auto-estilização superficial, que apresenta por igual as marcas do tédio e do medo.
O que este jogo tem de jocoso é apenas a falta de independência face ao cego movimento objectual do sistema, porque no restante os jogadores ao sujeito evidenciam uma crescente obstinação, que já não é minimamente adequada às suas actividades colectivamente suicidárias: quanto mais irreais são o sujeito e a sua vontade, tanto maior a obstinação. O que o jogo dos bailes de máscaras é suposto ainda conter, em termos de possibilidade de ingerência e de mudança social, parece bastante irrisório, mesmo na própria terminologia dos teoremas do "pós": Aí, já se fala apenas de uma "deslocação" dos componentes do texto e das constelações do poder, enquanto o todo social desconceitualizado continua tabu. Mas até a ideia já modesta de uma simples deslocação das pedras, no "jogo" das estruturas constituídas pelo valor, tem de parecer exagerada e até arrogante, face às "possibilidades de intervenção" realmente remanescentes. Quanto mais os teoremas do "pós" tagarelam sobre um sistema "anarquicamente aberto", mais inevitavelmente o totalitarismo da forma do valor se adensa em crise.
O feminismo, seguindo fiel e bem comportado as pegadas do mundo científico e teórico oficial, masculino e académico, em grande parte acompanhou o desenvolvimento do estruturalismo para o pós-estruturalismo. Como, na falta de uma concepção crítica da relação de valor ou do sistema produtor de mercadorias, também não se pode conseguir uma concepção suficiente da relação de dissociação, a análise teórica do sexo social continua igualmente limitada ao nível das manifestações empirico-sociológicas (e a dissociação, ao nível da estrutura e do signo) como todas as outras abordagens; e representada na falsa e ahistórica ontologia do poder e do texto, na qual tem de continuar escondida a verdadeira causa logico-histórica da assimetria sexual na modernidade.
A mera desconstrução do sexo ao nível semântico, que tomou o lugar da emancipação das coacções do sexo, cai assim na aleatoriedade geral do "jogo" pós-moderno, sob a capa tabuizada da relação de valor e dissociação; a superficialidade habitual das pretensões de uma "deslocação" das constelações no texto do poder apresenta-se, especialmente sob este aspecto, literalmente como um baile de máscaras dos signos sexuais (por exemplo na teoria tornada moda de Judith Butler). Precisamente porque a relação de dissociação constitui a relação total generalizada da socialização do valor, evidencia-se com especial clareza na questão sexual o carácter decadente e reduzido do sujeito "retornado" na ideologia pós-moderna, que já nem a si mesmo se leva a sério.
Com o pós-estruturalismo, esgotou-se definitivamente a história da teoria marxista-burguesa vinda da ideologia do iluminismo; tal como a capacidade de reprodução social do moderno sistema produtor de mercadorias e das formas nele incluídas da subjectividade do trabalho, da circulação e do direito. Os pensadores contemplativos já não podem continuar a pensar, porque os pragmáticos não podem continuar a agir. O que ainda se pode seguir ao baile de máscaras secundário pós-moderno das máscaras de carácter do valor literalmente encarnadas já não é qualquer outra reflexão conceptual, capaz de ir mais além. Por maioria de razão é impossível, seguindo afirmativamente esta história das teorias, pensar e co-pensar de modo realmente novo aquilo que saltou fora da lógica identitária e não se enquadra na respectiva conceptualidade.
O que, como grito de guerra de Lyotard, parecia evocar de novo o espectro da emancipação ("guerra à totalidade, activemos as diferenças", etc.), teve de acabar numa miserável capitulação, perante o pano de fundo de uma teoria estrutural ontológica, desde sempre sem conceitos, sem história e sem sujeito. Se já nem pode ser pronunciado o nome do todo, como algo historicamente devindo, a palavra de ordem da "guerra à totalidade" não passa de uma impostura. Nem o princípio real repressivo da forma fetichista do valor é atacado, nem é descoberto e tido em conta o que das coisas e relações não se enquadra no totalitarismo desta forma. Em vez disso, apenas são activadas aquelas "diferenças" que não passam de múltiplas manifestações do todo negativo, do "um" secularizado da ontologia capitalista. O que assim é activado, apesar de todas as intenções de crítica do poder, acaba por dar num revestimento culturalista da concorrência de crise e aniquilamento.
Teoricamente, já estamos apenas perante um prolongamento exausto e sem ideias das teorias "pós", nos diversos campos mediáticos e académicos do editorialismo, da sociologia, da politologia, etc. Para lá da história das teorias modernas, o jornalismo e a ciência académica já não podem formular qualquer pretensão própria, vendo-se limitados à possibilidade de se servirem eclecticamente dos escombros de trezentos anos da história intelectual do Ocidente, para com eles remendarem as suas deploráveis cabanas intelectuais, na era final e glaciar do pensamento moderno. Fórmulas tautológicas e vazias, como as de uma "modernização da modernidade" (Ulrich Beck) ou de uma "democratização da democracia" (Helmut Dubiel), relevam de uma já inexcedível falta de conteúdo, em tudo semelhante à que tomou conta da chamada política há muito tempo. Nos insípidos e aborrecidos discursos de uma "ética pragmática" totalmente inconsequente (comunitarismo, sociedade civil, etc.), que se vão arrastando como produtos de decadência do positivismo, o esvaziado conceito burguês de racionalidade dá voltas e mais voltas sem o menor sentido.
O lugar da reflexão é tomado cada vez mais pela "ajuda prática" intelectual ao sujeito do valor dessubjectivado, que se vai desgastando na concorrência universal. E, depois de a forma contrária imanente, romantico-existencialista, do pensamento dominado pela moderna constituição fetichista se ter dissolvido na indiferença pós-moderna, ela converte-se num igualmente ecléctico esoterismo barato. Visto tudo ser, de qualquer forma, igual ao litro, os produtos finais pouco apetitosos da racionalidade e da anti-racionalidade jazem pacificamente lado a lado, nas prateleiras do supermercado discount intelectual. O pragmatismo racional do valor e o espiritismo supersticioso vão-se entrosando, porque não passam um sem o outro.
Quando o analfabetismo intelectual secundário, que gaguejando apregoa a eternidade e inevitabilidade do mercado mundial, invoca o iluminismo, fá-lo com todo o direito, porque se trata de facto do estado actual do iluminismo e simultaneamente do seu estado final. Por um lado, esta invocação assume traços nostálgicos, por exemplo quando um pensador dos EUA, que apenas dá nas vistas por ser especialmente tagarelas, reclama o "segundo iluminismo" (Neill Postman), a fim de curar a ainda assim constatada estupidez mundial burguesa actual com a sua própria raiz. Por outro lado, face aos acontecimentos de crise crescentemente catastróficos, a frase iluminista é expurgada de qualquer conteúdo e transformada na professada idolatria do aparelho de dominação democrático. Assim, um fanatismo regressivo e autista acaba por se substituir ao charlatanismo intelectual dos agitadores e curandeiros eclécticos tardo e pós-iluministas.
A vulgaridade do alarido em torno dos valores ocidentais torna-se militante. Assim, um filósofo bombista democrático francês reclama a "guerra pelo iluminismo" (Bernard-Henri Levy), com o que estabelece o padrão para toda a antiga "inteligentsia" de esquerda, que se vai engasgando com as vagens ocas das palavras da sua história intelectual, para as vomitar sobre o mundo na forma de chuva exterminadora. Na "guerra santa", na cruzada contra os monstros por ele próprio criados, num mundo por ele próprio devastado e barbarizado pela via do terror económico, o não-espírito esclarecido já só pode assumir a forma de caças-bombardeiros dos EUA.
Com cada nova leva da crise mundial capitalista, que já não será estabilizada por qualquer novo modelo de regulação, antes deixando o sistema mundial ingressar no século XXI em queda livre, os enunciados teóricos, mediáticos, políticos, sociais, etc. vão-se tornando cada vez mais monótonos e monossilábicos. No fim do mundo a prestações da ontologia capitalista, o "um" metafísico secularizado, o nada divino do valor, consegue uma "coincidentia oppositorum": coincidem de imediato não apenas a direita e a esquerda, ou o progresso e a reacção, mas, de um modo geral, o ser e o nada, a razão e a irracionalidade, a crítica e a afirmação.
Uma vez que a crítica iluminista era na sua essência a auto-afirmação da destrutiva forma burguesa do sujeito, através do seu processo de desenvolvimento histórico, ela extingue-se de facto diante dos nossos olhos, juntamente com o seu objecto. Na mesma medida em que todo e qualquer pensamento se retira em fuga desordenada para a derradeira e extrema linha de resistência da filosofia iluminista, ele deixa de existir de todo como pensamento. No entanto, o espectáculo de uma redescoberta militante dos valores ocidentais, como se nunca tivesse existido a história da reflexão, apegada ao seu objecto, dos últimos cento e cinquenta anos, nada tem de trágico, nem sequer de ridículo; é pura e simplesmente nojento.
O que, ao mesmo tempo, se afirma nesta última metamorfose, que dá à luz o monstro violento da auto-aniquilação democrática global, é a "necessidade ontológica" do sujeito burguês, que já apenas se faz ouvir sob a forma de um ganido inarticulado e maligno e que, após a sua morte natural, continua a assombrar o mundo como zombi do iluminismo — em especial nos casos dos supostos críticos da ontologia em geral, tanto adornitas como pós-modernos, na medida em que se passaram para as fileiras da comunidade da aniquilação mundial ocidental e democrática. Quando começa realmente a oscilar o terreno ontológico, sobre o qual ainda se conseguia aguentar a crítica aparente da ontologia, incapaz de se libertar da forma do sujeito burguesa, evapora-se, nos idiotas históricos da modernização, a reflexão apenas adquirida pela leitura. O desplante denunciatório, com que é exigida a homenagem ao cadáver já nem sequer malcheiroso do pensamento iluminista, desvenda a sua própria falsidade.
Agora a salvação já só pode ser encontrada se de facto descartarmos a falsa ontologia positiva da modernidade e da sua forma do sujeito e queimarmos os navios, porque não pode haver qualquer regresso à segurança e à terra natal ontológicas do iluminismo. A negatividade da crítica emancipatória apenas chegará ao fim quando abrir mão desta ilusão.