Fanta forever
Sob o efeito do horror revela-se a ontologia do sujeito burguesa da esquerda anti-alemã

Robert Kurz

4 de novembro de 2001


Primeira Edição: FANTA AUF LEBENSZEIT em www.exit-online.org

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Tradução: Lumir Nahodil

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Na História voltam sempre a ocorrer acontecimentos perturbadores, na maior parte dos casos calamidades, que, sem aviso prévio, trazem à superfície contradições que até então tinham passado despercebidas e nos elucidam sobre motivações escondidas. Num abrir e fechar de olhos efectuam-se reagrupamentos, amigos e inimigos trocam de lugares, e de repente "já nada é como era". Alguns dos intervenientes surpreendem-se por assim dizer a si próprios, e tanto mais surgem fenómenos imprevistos quando se trata da interpretação teórica fundamental do que está a passar-se na respectiva actualidade. Os actos de terror ocorridos nos EUA parecem ter atingido com uma grande força simbólica o âmago do inconsciente colectivo da sociedade capitalista mundial. As reacções do consciente social acabam por ser proporcionalmente extremas e elucidativas.

O que acabamos de referir aplica-se, não em último lugar, ao que resta da Esquerda radical, que aproveita a ocasião para demonstrar de forma involuntária por que motivo a sua crítica social já não pode ser eficaz. À primeira vista, os acontecimentos do 11 de Setembro dividiram a Esquerda em antagonismos vincados como raramente foram vistos anteriormente, comparáveis talvez com o cisma por ocasião da eclosão da primeira guerra mundial (ainda que este já fosse apenas o caso no que se refere a posições intelectuais, e já não enquanto forças sociais).

Largos sectores da Esquerda que se orienta pela teoria crítica de Adorno, assim como alguns elementos da Esquerda dita pós-moderna ou culturalista que, nos debates passados, foram muitas vezes inimigos jurados, face ao terror, tomam juntos partido pelo capitalismo e pela democracia com um desassombro espantoso, sendo que em parte até vão ao ponto de não só apoiarem os bombardeamentos e as operações militares, como de acusarem as potências dominantes de falta de ferocidade. Esta postura belicista é justificada com a chamada de atenção para a índole anti-americana e anti-semita dos atentados, que já apenas faria parecer nojenta qualquer satisfação secreta da parte dos discípulos de um anti-imperialismo primário.

Por muito oportuno que seja este raciocínio, ele não passa de um pretexto esfarrapado. É que com a mesma veemência são atacados também aqueles que, embora igualmente refiram a dimensão bárbara e anti-semita dos atentados, não deduzem daí qualquer tomada de partido por freedom and democracy, mas que destoam por apresentarem a anti-civilização capitalista unificada a nível planetário como o solo de que brota toda a barbárie. Esta posição, que identifica no terror do jihad e no terror da economia, nos bombardeiros da Nato e nos guerreiros de Deus, duas faces da mesma moeda, é colocada ao mesmo nível com os adeptos anti-imperialistas do assassínio de massas, segundo o lema do guerreiro de Deus ocidental, George W. Bush: "You are with us, or you are with the terrorists" (Ou está connosco, ou está com os terroristas).

Aqui já nem se trata da avaliação de uma determinada situação, sobre a qual pudessemos discutir no âmbito de uma crítica emancipatória do capitalismo, revelando-se antes uma discórdia muito mais profunda e irremediável no que se refere ao próprio conceito da emancipação. O que a nova qualidade do terror põe em causa de um modo tão inconsciente como fundamental, é menos uma relação de forças exterior no seio do capitalismo como, antes de tudo o mais, a própria forma burguesa do sujeito. Mas a Esquerda nunca soube pensar a emancipação senão no seio desta forma.

Ao marxismo do movimento operário, perfeitamente acrítico relativamente à forma, o capital de qualquer modo sempre se apresentara apenas como um contrapoder exterior que teria de ser superado no âmbito das categorias do valor sociais ontologizadas. A teoria crítica foi para além deste raciocínio sem realmente o conseguir superar. Com efeito, Adorno fez jus, com a sua crítica à "permuta" ou "sociedade de permutas" (de modo algum assente na crítica da economia), a um aspecto do nível formal geral da subjectividade burguesa. Mas, primeiro, esta crítica permaneceu circunscrita pela forma do valor à circulação e, com ela, a um mero momento da constituição geral burguesa, ao passo que a forma do trabalho foi tão pouco sujeita a uma crítica categorial como a forma da política. E, em segundo lugar, Adorno fez precisamente da mesma forma do sujeito circulante e raciocinante burguês, também transposto para a dimensão política, o portador supostamente único imaginável da emancipação (uma forma do sujeito, que ele considerou erroneamente "negativamente anulada" pelas tendências capitalistas de estado da era das guerras mundiais). Assim, ele foi parar à aporia impossível de resolver na sua teoria e que consiste , por um lado, em conceber a emancipação como uma crítica radical da "forma da troca" ou do sujeito circulante mas, por outro, em considerar essa crítica realizável apenas na forma pura precisamente desse mesmo sujeito circulante.

Na prática, e especialmente em reacção a sintomas de crise perturbadores, esta aporia legada por Adorno, que consiste em querer superar a forma burguesa do sujeito no interior da própria forma burguesa do sujeito, apresenta-se como a absurda necessidade de ter de salvar o capitalismo sempre de antemão para poder superá-lo. O que evidentemente não quer dizer outra coisa senão que ele, no fim de contas, acaba por ser insuperável. A facticidade primária, segundo a qual o capitalismo constitui o pressuposto negativo da sua própria crítica e superação, converte-se assim no programa positivo da sua conservação com a finalidade da suposta "salvação do sujeito". Esta lógica da pescadinha de rabo na boca que foi, nos tempos de Adorno, apesar de tudo expressão tanto de um progresso teórico como, ao mesmo tempo, de uma determinada situação histórica, encontra-se, no entanto, hoje desesperadamente desgastada. A Esquerda que se orienta pela teoria crítica, e que cimentou o estado transitório da reflexão de Adorno numa "ortodoxia", tem, da mesma forma como os seus primos da Esquerda pós-moderna e culturalista, de se tornar necessariamente reaccionária no final da História burguesa e esclarecedora da modernização, na medida em que chora a forma moderna do sujeito do valor em vias de desmoronamento que ela procura desesperadamente conservar. Esta tónica reaccionária evidencia-se de uma forma especialmente crassa nas respectivas tomadas de posição relativamente aos atentados terroristas contra os EUA, precisamente pelo facto de uma catástrofe social de semelhantes dimensões justamente desmentir de forma categórica a dita forma.

Não é em vão que os actos bárbaros de Nova Iorque e Washington foram comparados ao devastador terramoto de Lisboa (1755), que então não se limitou a fazer estremecer uma das capitais da Europa mas, com ela, o falso optimismo histórico da filosofia do esclarecimento. E, com efeito, é afinal desde então que toda a era burguesa do sistema moderno de produção de mercadorias, cujos ideólogos hardcore os iluministas se limitaram a ser, desenvolve com a violência cega e semelhante à de um terramoto da colectivização do valor e da respectiva "mão invisível" mais e maiores potenciais de destruição que todas as relações de fetiche, civilizações esclavagistas e coroados carniceiros da História precedente no seu conjunto.

O facto de, no início da Modernidade, uma verdadeira catástrofe natural fazer estremecer simbolicamente a ideologia da forma burguesa do sujeito, ao passo que, no seu final, esta forma do sujeito parece, ela própria, a nível simbólico uma catástrofe natural secundária, caracteriza tanto a essência desta forma como igualmente a sua própria evolução histórica "própria de uma lei natural". Estes actos já não podem ser mal entendidos por mais tempo como manifestações de um sujeito de modernização na acepção burguesa do termo; os autores dos crimes acabam, antes, por ser meros momentos de um pseudo-processo natural social, em que a falta de sujeito da forma do fetiche se repercute nos indivíduos com tamanha violência, que estes, nesta forma, já apenas reagem como agentes de um processo anorgânico de destruição cega, sem por isso perderem a sua capacidade "técnica" de cálculo.

Na realidade, os autores destes crimes já não podem ser julgados pelo facto em termos jurídicos, porque afinal nem sequer os seus corpos podem ser sepultados; se, no entanto, pudessem ser postos em tribunal, não resultaria daí mais que uma farsa horripilante da subjectividade jurídica burguesa, tanto no que diz respeito aos delinquentes como igualmente para os seus juízes. Actos como estes transformam definitivamente o sujeito moderno e a respectiva "auto-responsabilidade" sob a forma do fetiche do valor numa anedota de mau gosto, mais do que o conseguiria qualquer mera teoria. De certo modo, o mesmo também já se aplicava aos processos Nuremberga contra os criminosos de guerra, visto que os crimes sem precedentes históricos dos nazis, que contêm uma dimensão incompreensível, se encontram igualmente numa flagrante desproporção relativamente às categorias da jurisprudência burguesa. O holocausto escapa à apreciação jurídica, porque torna evidente a transição da forma do sujeito, subjacente a tudo o direito burguês, para a psicose assassina.

A diferença decisiva, que mesmo assim dotou os processos de Nuremberga de um momento de legitimação dentro da lógica do capitalismo, consiste no respectivo alcance da capacidade de desenvolvimento capitalista. Este encontra-se hoje reduzido a zero, ao passo que a segunda guerra mundial ainda inaugurou por uma vez mais uma era de expansão real da acumulação do capital e de metamorfose da subjectividade capitalista. Mesmo que já os nazis tenham dado largas ao manifesto impulso de morte do sujeito da mercadoria, eles representaram, mesmo assim, ao mesmo tempo um percurso possível do desenvolvimento da era iminente. Eles eram, portanto, capazes de imprimir o seu cunho ao desenvolvimento ulterior da sociedade capitalista mundial. Por isso na segunda guerra mundial tratou-se de saber se a segunda revolução industrial do fordismo seria moldada por um império mundial das potências do eixo, anti-semita, racista e militarista, ou por uma sociedade de mercado mundial economicista e consumista procedente da pax americana. Uma semelhante alternativa interior ao capitalismo hoje já não se coloca, embora ela seja invocada de Bush à Bahamas, de Blair e Schröder/Fischer até à Jungle World. O terrorismo islamista com o seu potencial técnico de assassínio de massas constitui um perigo público, mas já não é capaz de acarretar forma e desenvolvimento a nível social. O mesmo aplica-se às próprias potências democráticas dominantes.

Com a desinibição da concorrência global de crise, que se revela tanto no terror sem perspectiva como nas guerras de ordenamento mundial democráticas, igualmente isentas de perspectiva, assim como em numerosas manifestações aparentadas (guerras civis de tipo étnico, economia de pilhagem, atiradores tresloucados etc.), o estado moderno perde o monopólio do assassínio de massas tecnológico, que sob esta forma estatizada foi desde o início uma característica essencial da anti-civilização capitalista. O morticínio desenfreado em grande escala passa agora de forma imediata para a alçada dos indivíduos e dos seus agrupamentos sintéticos (como, por exemplo, as seitas religiosas fanáticas); a degradação da subjectividade coincide com a decadência das ideologias em que a modernização se tinha representado. O massacre de Nova Iorque foi um crime do foro da sociedade civil no mais verdadeiro sentido da palavra. No desmoronamento da subjectividade burguesa, o núcleo violento desta vira-se manifestamente para o exterior; o sujeito concorrencial impelido pela loucura objectiva torna evidente como última consequência da colectivização do valor a identidade imediata da destruição e da auto-destruição.

Visto já não se vislumbrar qualquer desenvolvimento ulterior do capitalismo e da sua forma do sujeito, também nenhuma nova era da dinâmica capitalista poderá já ser conotada com ideias emancipatórias (o que, no entanto, mesmo no passado, tinha desde sempre correspondido a um conceito de emancipação reduzido à subjectividade burguesa). Os limites do sistema moderno de produção de mercadorias são objectivos e imanentes, não podem portanto ser desmentidos. Os ignorantes da esquerda culturalista e anti-alemã, que querem desvalorizar uma reformulação crítica do valor da teoria das crises de Marx como um mero "pessimismo" ou "alarmismo apocalíptico", são desmentidos pela própria realidade. A total incompreensão da situação, tal como ela é inevitável devido à sua atitude reaccionária, impele-os no entanto para, nos conflitos da barbarização mundial por obra do capitalismo, espernearem quase desesperadamente pelo chão caduco da prodigiosa Modernidade; é tudo como se se tratasse, tal como dantes, de mais uma leva do processo de modernização e não do seu final autodestrutivo, como se mais uma vez pudesse ser invocado um "bom" sujeito na forma burguesa que de algum modo pudesse ser mal entendido como emancipatório, e como se não tivesse de ser finalmente trazida à ordem do dia a crítica radical desta própria forma do sujeito.

Neste aspecto, os anti-imperialistas tacanhos e os salvadores da civilização anti-alemães ou culturalistas assumem, em termos formais, uma posição idêntica; apenas a fantasmagórica relação com o sujeito marca a diferença em termos históricos. O que assola os primeiros é o fantasma desse anti-imperialismo, ao qual correspondera o sujeito burguês da "modernização a posteriori" no bloco de Leste e no Terceiro Mundo. Este sujeito que de 1917 até 1989 conseguira fingir, nas regiões periféricas assíncronas em termos históricos, uma falsa frescura juvenil da Modernidade produtora de mercadorias, reunindo todos os atributos de um simbolismo revolucionário, já não existe, visto que no processo global de crise da terceira revolução industrial o mundo foi negativamente sincronizado e reunido num sistema fechado e único. Bin Laden, com tudo o que a sua loucura anti-semita e religiosa tem de horrendo, constitui de facto o único tipo ainda possível de uma representação do terceiro mundo, na medida em que este não consegue desapegar-se da ilusão de um desenvolvimento independente sobre o fundamento do moderno sistema produtor de mercadorias.

Depois do mimetismo da aurora burguesa esclarecedora na periferia capitalista (Che Guevara com um calhamaço de Goethe e a pistola metralhadora debaixo do braço) se ter convertido, no contexto da globalização negativa, nas trevas sociais da miséria massificada e do desejo de morte, especialmente a Esquerda influenciada pela teoria crítica de Adorno, que até à data nunca tinha ido muito à bola com o anti-imperialismo, refugia-se ainda mais de regresso à História moderna do sujeito, nomeadamente aos valores da burguesia esclarecedora do século XVIII europeu. Nesta versão, a nostalgia reaccionária do sujeito reporta-se directamente de volta ao protótipo ocidental da ideologia do "cidadão autónomo" da colectivização do valor; tal aconteceu, já agora, com todas as implicações chauvinistas. No entanto, esta "autonomia" democrática e circulacional do sujeito de mercado que, em termos lógicos, desde sempre tinha sido uma auto-definição ilusória de executantes do fim-em-si irracional capitalista, tanto deixou de existir enquanto fenómeno real histórico palpável como o antigo sujeito da "modernização a posteriori" na periferia.

Na mesma medida em que os horrores dos processos de destruição exteriores e interiores também alcançam as metrópoles capitalistas, a crítica apenas aparentemente radical da Esquerda esclarecedora cai por terra como uma pele gasta, e é com uma veemência insuspeitada que ela presta homenagem à sua essência burguesa para, juntamente com a democracia de crise dominante, não querer saber do fim de um mundo de sujeitos do valor. Para legitimarem esta postura, algumas cabeças espertas não se lembram de nada melhor que afirmarem que uma distância (crítica do valor) relativamente aos processos de decadência da anti-civilização capitalista, à sua forma do sujeito e às suas falsas alternativas seria, por assim dizer, logicamente impossível, visto afinal todos sermos elementos constituintes da colectivização do valor e, nós próprios, sujeitos burgueses. Este expediente argumentativo é pura e simplesmente tonto. O facto de sermos produtos de uma história burguesa de amestragem, abuso e interiorização com um currículo de vários séculos, o facto de, também a nível individual, termos sido socializados a condizer com este sistema e, sem dúvida alguma, vivermos na forma burguesa do sujeito — tudo isso, mesmo assim, não impede que possamos apreender criticamente estas formas sociais negativas.

Tal como qualquer indivíduo pode, na sua vida pessoal, por assim dizer distanciar-se de si próprio e observar o seu próprio raciocínio e modo de agir, também o pode fazer em relação à sua própria condição social. E afinal não se trata própriamente de um qualquer jogo ao berlinde intelectual, mas do inevitável tratamento de experiências negativas de abusos, de sofrimento, e com a impossibilidade de se viver a sua vida. O facto de este tratamento, na sua qualidade de ideológico (no sentido de um consciente falso, a saber, afirmativo), ter consequências assassinas, não torna impossível o tratamento crítico e emancipatório. O indivíduo afinal sempre não se esgota na sua forma burguesa do sujeito.

O que foi em tempos lamentado pela parte dos adeptos de Adorno (aliás injustamente) como o suposto cariz ciberneticamente fechado da colectivização do valor e dos seus sujeitos, com o que uma pessoa acabava por já não conseguir interpretar-se a si própria enquanto crítico, é agora direccionado contra a insistência numa crítica radical: com a pretensão de uma conceptualização teórica crítica e a recusa de uma tomada de partido ulterior no interior do capitalismo, assim reza a afirmação em tom de denúncia, os portadores desta crítica incorreriam no pecado de uma distanciação ilícita da sua própria imanência burguesa. Que argumento mais falacioso: como somos filhos do capitalismo, é suposto que nem sequer o possamos discernir como "coisa em si" e, logo que a crise aperte, também já não o devemos tratar como um objecto hostil. A conversa kantianamente estupidificada, segundo a qual "o teórico (seria) o valor", que começou por ser elogiada como críptica "forma superior" da crítica radical, revela-se agora como afirmação defensiva de um oportunismo teórico ordinário e como auto-condenação à forma capitalista do sujeito, que há quem quisesse transformar numa obrigação geral. A própria falta de consciência teórica arvora-se em consciência da teoria crítica. Ao passo que é rejeitada a reformulação da crítica radical que tem de ser alargada à forma do sujeito, evidencia-se o motivo, tão ilusório quanto abjecto, de salvar a própria pele burguesa face ao colapso iminente da colectivização do valor.

Esta festa de Halloween da Esquerda anti-alemã e pós-moderna após o 11 de Setembro, no entanto, também torna evidente que a aporia na teoria de Adorno já não pode ser escamoteada por mais tempo. E ela é mesmo resolvida; no entanto não de um modo crítico, mas de forma afirmativa. A crítica da forma da troca de Adorno e, com ela, do sujeito circulante, é eliminada. Já havia algum tempo que se tinha anunciado a tendência para denunciar a análise, empreendida no séquito da teoria das crises de Marx, do capitalismo financeiro pós-moderno e das estruturas globais do capital fictício desenvolvidas nos anos noventa como "potencialmente" ou "de alguma forma" anti-semita. A economia política do anti-semitismo não consistiria na explicação errónea do capital fictício e da sua função, mas no facto de mencionar sequer a sua existência. De reacção à afirmação da troca de mercadorias, tal vai dar necessariamente à exigência de se declarar inquestionável a forma do dinheiro enquanto tal. Consequentemente já tem de passar por anti-semita quem não tem o sistema bancário necessariamente por um reduto da civilização. Esta afirmação do sujeito circulante nem sequer pode senão acabar por detectar um carácter anti-semita e bárbaro da crítica do capitalismo no seu todo. Apenas nessa altura encontra-se concluída a regressão teórica.

Evidentemente esta regressão intelectual também constitui uma defesa perante a realidade do processo de crise: A forma da colectivização em vias de desmoronamento deve ser mantida a qualquer preço, nem que seja como a fata morgana de uma civilização perpétua e global de bolhas financeiras; e isso no exacto momento em que esta rebenta diante dos nossos olhos. A defesa ilusória também se torna evidente num outro nível da subjectividade burguesa. Do órgão sectário anti-alemão Bahamas podemos depreender que tudo o que perfaz "o Islão" seria "o ódio à beleza e ao prazer". Este enunciado é tão obviamente estulto, que nem merece qualquer crítica. No entanto é elucidativo ver que imagens de contraste são chamadas a terreiro.

Assim encontramos no mesmo tratado a chamada de atenção para que o potencial anti-civilizatório da sociedade alemã após o 11 de Setembro se manifestaria logo nos comentários sobre o "fim da sociedade do divertimento". A redacção da Jungle World, por seu lado, manda à crítica do valor beijinhos de Cabul que remetem, neste contexto algo sombriamente, para as virtudes afrodisíacas de "roupas de pitinha". E uma Jeanne d´Arc suplente da Nato chamada Andrea Albertini cria, a fim de arrematar os seus aplausos à chuva de bombas civilizatória sobre casas de habitação e hospitais afegãos, o slogan extremamente inteligente e contagiante "Fanta em vez de Fatwa!" (Jungle World 43/2001). Poderemos retirar destas simpáticas advertências conclusões quanto à natureza da "beleza e do prazer" sob a sacrossanta forma da mercadoria? O que sai espontaneamente é, na maior parte dos casos, traiçoeiro e, por vezes, involuntariamente cómico. Com a frugalidade material, espiritual e intelectual aqui expressa (sociedade do divertimento, roupas de pitinha, Fanta), porém, dificilmente poderá competir uma arcaizante tribo de beduínos no deserto. Quanto mais militantemente os ideológicos publicitários mais recentes da luta de civilizações defendem a ontologia capitalista, tanto mais irresistivelmente as imagens e os símbolos por eles escolhidos remetem para o deplorável estádio final de uma subjectividade amestrada que ideologiza o consumo de mercadorias há muito tempo empobrecido. Deus lhes dê a sua Fanta vitalícia.

Até à data, a Esquerda culturalista pós-moderna e os netos anti-alemães de Adorno andaram à bulha, não em último lugar pelo facto de uns terem preferido venerar a indústria cultural capitalista, introduzindo nesta por via interpretativa uns quaisquer potenciais contraditórios ("o consumidor enquanto dissidente"), ao passo que os outros prestavam homenagem ao ideal elitista de uma fruição superior de luxos burgueses, que deveria ser generalizado; ambas procediam de uma forma igualmente irreflectida no que diz respeito à contaminação do prazer pela abstracção do valor (p.ex. o hedonismo da eficiência e o hedonismo da competição) e às condições de produção materiais (p.ex. a destruição das bases naturais da vida). Agora são logo os hedonistas de luxo anti-alemães, que na sua imaginação chegam ao patamar ínfimo da banalidade do consumismo de mercadorias, como se quisessem demonstrar "ao Islão" a todo o custo o carácter infantil da "civilização ocidental".

A regressão à razão-mãe capitalista afinal não deixa de ser meramente fictícia e não pode ressuscitar os ideais proto-burgueses, tendo antes de adequar-se ao real estado de decadência quer queira quer não; e, assim sendo, o leite do modo de pensar conveniente e conivente que ainda pode ser chupado destas murchas tetas só pode mesmo ser uma insípida limonada. A crítica que se tem limitado a preservar a ilusão esclarecedora do sujeito do "cidadão autónomo" desfaz-se em pó no primeiro contacto sério com a realidade do século XXI. O que resta é o clamor pelo bombardeamento pragmático de larga escala. Hoje uma teoria crítica que já deixou de o ser segue o mote: raspa a superfície da elitista e ortodoxa Adorniana, e o que aparece é o democrata Nato burguês e ordinário.

Se a aporia de Adorno for resolvida de modo afirmativo, surge uma ideologia da forma burguesa do sujeito arbitrariamente dilacerada que, em relação ao anti-semitismo e aos nazis, se limita a constituir reflexo inverso. A concretização aparente que agora, pelos vistos, deve substituir-se ao trabalho, é o consumo de mercadorias. Tal como os nazis quiseram "libertar" o sujeito do trabalho do sujeito circulante e consumidor pela aniquilação dos judeus (capital "criador" versus capital "ganancioso", "Arbeit macht frei", "canhões em vez de manteiga"), assim o sujeito circulante e consumidor deve agora, de modo inverso e, na linguagem dos salvadores anti-alemães da civilização, ser "libertado" do trabalho pela perspectivada extinção das massas barbarizadas do Terceiro Mundo ("o anti-racismo é anti-civilizatório"). Esta construção irracional evidentemente resolve a verdadeira unidade da forma burguesa do sujeito tão pouco como a oposta dos nazis. Se ali, na realidade, permaneceram por superar a forma do dinheiro e o espaço de circulação, aqui é o trabalho o que permanece intacto enquanto categoria e a crítica do trabalho não passa de um hedonismo consumista burguês frívolo.

Sob este ponto de vista, qualquer crítica da nostalgia keynesiana como, por exemplo, a dos chamados adversários esquerdistas da globalização, da gente da Attac etc. também tem o seu quê de hipócrita. Por muito adequado que seja criticar a ilusão da regulação política em relação aos mercados financeiros transnacionais, assim como a fixação democrática no estado e a ontologia do trabalho própria destas posições, e desmascarar a sua proximidade implícita da economia política do anti-semitismo, tão errónea se torna esta crítica, se ela própria assentar sobre uma apoteose do sujeito circulante e consumidor meramente invertida, positivamente globalista no sentido capitalista e, assim, for tão reduzida e aberta a implicações assassinas como o seu objecto.

Com efeito, esta versão da ontologia burguesa do sujeito pode adequar-se mais ao capitalismo transnacional de casino e dos serviços dos anos 90 do que a apoteose nostálgica de trabalho, emprego e estado-providência nacional. Mas, em primeiro lugar, o "desempregado" capitalismo financeiro novo está de qualquer modo a ir pelos ares, não deixando para trás qualquer sujeito circulante e consumidor intacto nas metrópoles capitalistas. O que Bin Laden não consegue, é conseguido pela invisível mão suicida do capital. E, em segundo lugar, não existe sequer qualquer necessidade de uma nova geração de pragmáticos da teoria crítica adeptos de guerras de ordenamento mundial. A Esquerda Fanta amiga das bombas já apenas é uma coisa. A saber, é perfeitamente inútil.


Inclusão: 30/10/2020