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Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O fim do "milagre econômico" ocidental do pós-guerra, o declínio do capitalismo de Estado oriental, o colapso do regime de desenvolvimento nacional no Sul, o naufrágio da economia-modelo japonesa e o desastre dos tigres asiáticos são marcos do moderno sistema produtor de mercadorias numa crise mundial inusitada tanto em termos qualitativos como quantitativos.
Quanto mais avança a crise, mais necessidade há de uma justificativa apologética. Razões sempre novas têm de ser inventadas para explicar por que o sistema mundial vigente, suposto ótimo e ponto culminante da história humana, não pode de modo algum ser culpado pela miséria. Como o totalitarismo econômico não pode ser chamado pelo nome, o discurso oficial concebe a duras penas causas diversas, por mais despropositadas que sejam, para poder citar a dissolução da sociedade em geral sem ter de deslegitimar a ordem sacrossanta.
Na última década, operou-se uma nítida mudança no modelo explicativo. No início dos anos 90, o mundo ainda se achava sob o influxo da Guerra Fria e do conflito sistêmico entre capitalismo de Estado e capitalismo concorrencial, vigente desde meados do século 20. Nessas longas décadas, a polêmica entre as vertentes estatais e mercadológicas foi decisiva. Nas universidades ocidentais, as ciências políticas e a conjuntura político-econômica ganharam primazia até meados dos anos 80. Com isso, o colapso do capitalismo de Estado ao final dessa década foi apreendido sobretudo em categorias político-econômicas.
De repente todos viraram ardorosos defensores do mercado, até mesmo a maioria dos antigos neomarxistas. Ébrio de triunfo, o neoliberalismo anunciou a doutrina redentora das "reformas de mercado": redução do Estado, desregulamentação, privatização, livre comércio, concorrência solta. Essa interpretação não fazia jus à realidade, porque fechava os olhos para o fato de que Estado e mercado representam apenas os dois pólos da socialização capitalista e não podem ser jogados um contra o outro. Era como se o Estado fosse uma espécie de corpo estranho no mecanismo capitalista, em vez de reconhecê-lo como o reverso lógico do mercado.
A oposição entre mercado e Estado não é aquela entre capitalismo e não-capitalismo, e sim uma oposição no interior do próprio capitalismo. Em seu desvario, o triunfalismo mercadológico pôde compreender a vertente econômica do Estado somente como caricatura ideológica, em vez de concebê-la em seu condicionamento histórico. Nessa visão míope, a propriedade e a intervenção estatais não passavam de "erros e equívocos" que conduziriam necessariamente ao fracasso. Mas isso era confundir causa e efeito.
Vista em conjunto, a história do século 20 revela que não foi a economia de Estado que provocou a crise; ela própria foi uma resposta para a crise. Desde o fim da Primeira Guerra Mundial, a queda do desenvolvimento no interior do capitalismo global, impossível de ser superada mediante a concorrência de mercado, fez nascer no Leste e no Sul a idéia e a práxis do Estado como uma "empresa nacional" tal como o intervencionismo keynesiano ocidental foi uma reação à experiência catastrófica da crise econômica mundial.
Não é uma determinada orientação político-econômica interna ao sistema que acarreta a crise, mas sim a lógica que funda o próprio sistema. Por isso o capitalismo de Estado e o keynesianismo não puderam sujeitar a crise e, em última análise, o "subdesenvolvimento", sendo rejeitados pelos critérios do sistema. Mas precisamente por isso a guinada rumo ao mercado e à concorrência não traria consolo algum. Na maioria dos países, as "reformas mercadológicas" antes agravaram a crise do que a superaram.
Em vez de admitir a paralisia do moderno sistema mundial produtor de mercadorias, os ideólogos e mandarins científicos, no curso dos anos 90, preferiram simplesmente ignorar os problemas incontornáveis da política econômica e se afastar para outro campo, a fim de despertar a ilusão de uma explicação e perspectiva conformistas. Esse novo rumo do "mainstream" intelectual, que de lá para cá foi assimilado mundialmente pela política e pela mídia, foi sendo formado de diversos aspectos e motivos que concorreram para um novo modelo de interpretação.
Primeiro, estamos às voltas com uma mudança básica da moda intelectual e acadêmica nas ciências sociais e humanas. Desde a segunda metade dos anos 80, observa-se o triunfo francês das chamadas teorias pós-modernas e pós-estruturalistas de filósofos, como Lyotard, Derrida, Baudrillard, Foucault e outros.
Apesar de todas as diferenças e antagonismos nos detalhes, reconhece-se um traço comum a essas teorias: o paradigma da economia política foi substituído pelo paradigma do culturalismo. Não é à toa que essa guinada intelectual se prende à guinada social e político-econômica do neoliberalismo. A sociedade não é mais concebida como produto da economia política, mas como produto do "discurso cultural".
Movimentos sociais, intervenções sociais e mudanças não são atribuídas à estrutura "nuclear", mas sim, de forma "performativa", ao "discurso" em sentido amplo, ao hábito cultural, ao design social e à auto-representação simbólica. Assim, a economia política como tal não é mais objeto da reflexão e muito menos da crítica. As categorias e processos político-econômicos compõem o calmo ruído de fundo do "discurso". Quanto mais, na realidade dos anos 80 e 90, a cultura era economicizada, mais, por sua vez, a economia era culturalizada no pensamento ideológico. Nesse movimento paradoxal, fica claro que estamos às voltas com um processo de recalque coletivo.
O economicismo, inócuo dentro das fronteiras do sistema, foi portanto substituído por um simples culturalismo, um tanto deficitário como pano de fundo tácito do sistema. De um lado, na superficialidade e na rápida mudança da corrente culturalista se expressa a singularidade do consumo de mercadorias e o credo neoliberal da concorrência universal; de outro, essa corrente é a mais talhada para se livrar dos problemas irresolutos da economia política.
Para grande parte da inteligência de esquerda, o culturalismo pós-moderno ofereceu um alívio intelectual: podia-se nadar a favor do espírito do tempo e, não obstante, fazer pose de "críticos radicais" num plano simbólico e performativo. Para os próprios ideólogos do mercado total, o alívio intelectual graças ao pensamento pós-moderno foi talvez ainda maior: depois de quererem curar o mercado cristalino das mazelas do Estado, agora eles encobrem o pronto fracasso do mercado com justificativas "extra-econômicas", lançando mão de interpretações culturalistas.
Nesse propósito, o culturalismo pós-moderno se prende a uma determinada vertente dentro da teoria político-econômica que, desde o início do século 20, atende pelo nome de "institucionalismo" ou "economia institucional" e que há tempos foi relegada à sombra. Originalmente, essa teoria fundada por Thorstein Veblen tinha-se por uma crítica pragmática ao economicismo da economia política clássica: o ser humano não deveria ser entendido unicamente como "homo oeconomicus", mas antes, num sentido abrangente, como ser social -e por isso lhe parecia necessário unir a teoria econômica a outras ciências sociais.
O trato econômico e suas instituições deveriam ser investigados em reciprocidade com outras formas de organização, motivos e modelos de ação sociais (direito, tradições, ideologias, religiões, normas, formas de vida e conduta etc.). Por mais correta que fosse, a princípio, essa crítica ao economicismo unidimensional, ela se revelou rasa demais por não desenvolver nenhum conceito crítico do sistema como um todo, alinhando apenas superficialmente as diferentes formas de ação e suas respectivas instituições. Por isso o institucionalismo de Veblen, concebido como aparato crítico, acabou suscetível a uma positiva instrumentalização.
Essa guinada apologética ficou a cargo da chamada "nova economia institucional" após a Segunda Guerra Mundial, representada sobretudo pelo neoliberal linha-dura James M. Buchanan, que por ela recebeu o Prêmio Nobel em 1986, bem a tempo para empregar o institucionalismo (de penteado novo) como arma de grosso calibre na miséria de justificativas dos anos 90. Buchanan e outros economistas de sua corrente interpretaram o problema das instituições extra-econômicas em oposição a Veblen, bem no espírito do totalitarismo econômico: formas jurídicas, tradições, regras, visões de mundo não são consideradas como neutras em sua relação mútua com a economia capitalista, mas sim de forma normativa, para saber se dão rédea solta ao "homo oeconomicus" ou não. Em outras palavras: a consideração de formas de agir extra-econômicas serve exclusivamente ao propósito de definir pressupostos institucionais ótimos para a liberdade total do mercado.
Desses fazem parte, segundo Buchanan, regras constitucionais para defesa dos indivíduos contra o "setor público", a segurança jurídica das transações capitalistas e a garantia do direito de propriedade privada ("property rights") e, portanto, a possibilidade de os detentores excluírem outras pessoas da fruição de supostos "bens escassos". Assim, de acordo com o "novo institucionalismo", o fracasso nunca é do mercado, mas somente de pressupostos jurídicos e institucionais falhos. Nos anos 90, com o culturalismo pós-moderno, nasceu assim o paradigma de uma "cultura econômica" de maior ou menor elevação. Virou moda falar de uma "cultura empresarial" ou de uma "cultura nacional de empreendimento", da "cultura das ações" ou da "cultura da segurança jurídica" de um país. E cedo esse amálgama de economia institucional e culturalismo uniu-se à imagem do novo inimigo global do Ocidente: no lugar do "reino do mal" do capitalismo de Estado no Oriente surgiu uma embrulhada difusa de "Estados patifes", fundamentalistas religiosos, príncipes do terror, bandidos étnicos, máfia transnacional etc. O professor norte-americano Samuel Huntington, com seu lema da "luta das culturas", forneceu o horizonte interpretativo adequado. Basta ampliar esse contexto à questão da "cultura" institucional e econômica para afugentar o penoso problema das crises e colapsos do âmbito da política econômica -crises e colapsos que se seguiram uns após os outros, a despeito de todas as "reformas mercadológicas": a causa, assim dizem, não é o vitorioso modo de produção capitalista; o verdadeiro problema é que aos "bárbaros" do Sul e do Leste faltam pressupostos institucionais, consciência mercadológica, educação democrática, direitos de propriedade e sobretudo uma "cultura empreendedora".
Mesmo no Japão e nos tigres asiáticos, ainda há pouco celebrados como impressionantes modelos de um triunfante "capitalismo confuciano", quer-se agora distinguir, subitamente, "arcaicas" estruturas de lealdade, autoritarismo contraproducente, corrupção, cleptocracia, clãs econômicos e nepotismo. A relação entre causa e efeito é assim posta de ponta-cabeça, tal como, antes, a relação entre crise e economia de Estado. Na verdade, não é a corrupção, o domínio das máfias, o terrorismo etc. que provocam a crise, e muito menos o antigo pendor pela economia de Estado, mas justamente o contrário: é a crise socioeconômica, fruto do respectivo fracasso do país no mercado mundial, que destrói ou nem sequer permite o surgimento do nexo institucional da "segurança jurídica".
Mas, como a crítica da economia política não se desenvolveu, sendo antes deixada de lado, a lógica basal do sistema não pode mais ser apontada como causa. Mesmo antigos críticos e a maioria das chamadas organizações não-governamentais (ONGs) movem hoje, lado a lado com o Banco Mundial, campanhas anticorrupção ridiculamente ineficazes.
Nas próprias regiões em crise, alunos-modelo, educados no credo intelectual econômico, querem responsabilizar exclusivamente o "atraso cultural" das pessoas pela miséria. Assim afirma, por exemplo, a africana Axelle Kabou, sob o clamoroso aplauso da mídia ocidental, que se deve "desintoxicar a mentalidade africana" e "acertar os ponteiros culturais" do continente devastado. É um tanto triste ver como intelectuais do Sul, "espiritualmente intoxicados" pelo espírito do tempo, adotam sem reservas o antigo clichê colonialista reformulado numa embalagem pós-moderna para coagir precisamente os "supérfluos" cuspidos pelos mercado mundial a uma "cultura da responsabilidade" capitalista.