O harakiri dos bancos emissores
O Japão e os Estados Unidos perante o dilema do capitalismo financeiro

Robert Kurz

28 de março de 2001


Primeira Edição: HARAKIRI DER NOTENBANKEN em www.exit-online.org. Publicado em Jungle World, nº 14, Berlim, 28.03.2001. Publicado em OBECO, 10.04.2001

Tradução: José Paulo Vaz

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Bolhas rebentadas não causam aflição aos banqueiros e a calma é o primeiro dever cívico. Assim parece ser pelo menos no Japão, pois o crash ocorreu aí há já dez anos; foi mesmo quase esquecido, não se tendo a economia mundial mostrado especialmente afectada por ele. De 1965 a 1990 o mercado bolsista japonês sofreu uma permanente e sempre mais rápida valorização, que superou muito o êxito real da máquina exportadora nipónica. O índice Nikkei da bolsa de Tóquio subiu nada menos do que 3.700% para quase 40.000 pontos e a capitalização especulativa da bolsa foi ultrapassada por uma fantástica subida dos preços dos imóveis. O Japão considerou-se rico. Quando rebentou a bolha de 1990, tanto das acções como do imobiliário, caíram os mercados financeiros e imobiliários; nunca mais recuperaram. O Nikkei foi dividido em dois, para só conseguir continuar a sua queda. Desde então o sistema financeiro japonês assenta em créditos duvidosos na ordem de grandeza de um a dois biliões de dólares.

Na verdade, a consequência da bancarrota dos grandes bancos deveria ter sido a falência do sistema financeiro e uma profunda depressão no Japão com consequências na economia mundial. Como é que estas consequências puderam ser evitadas durante tanto tempo? Para isso há sobretudo duas razões.

Em primeiro lugar, a cultura paternalista do Japão, impregnada de Budismo e Xintoísmo, permitiu uma manipulação colectiva dos mercados financeiros e dos balanços que seria impensável na economia concorrencial do Ocidente. Num entrelaçado de lealdades e dependências, de participações cruzadas, de associações mafiosas (yakuza) e informais sob a égide do Estado, uma grande parte dos créditos incobráveis e das perdas não realizadas foram atribuídos a sociedades fictícias, ou adiados para os prazos fixados por acordos de cavalheiros entre bancos e empresas através de vendas simuladas. Os bancos foram autorizados a diminuir os rácios de capitais próprios e a levar ao balanço pelo valor de aquisição e não pelo valor de mercado os pacotes de acções, etc. Embora tenha havido, não obstante estas medidas, uma onda de falências, pôde ser por este meio evitado um grande crash bancário. Muitos milhares de empresas realmente falidas, sobretudo nos sectores da construção e do imobiliário, bem como no comércio de retalho, foram mantidas artificialmente vivas, sendo assim conservados um a dois milhões de postos de trabalho.

Em segundo lugar, foi a via de sentido único de exportações sobre o Pacífico para os Estados Unidos, que o Japão sobrecarregou, evitando assim a crise do sistema. Já o desenvolvimento anterior tinha provocado um excesso de exportações cuja parte de leão fora assumida pelos Estados Unidos, o qual até hoje não foi compensado por um fluxo de mercadorias em sentido inverso e, pelo contrário, foi acompanhado por um agravamento do endividamento externo dos Estados Unidos — principalmente face ao Japão. Também com a recuperação da máquina exportadora o Japão pôde manter-se à tona de água e salvar o seu sistema financeiro da implosão.

No entanto, desde início teve de ser pago um preço para evitar a crise do sistema, que não significou a "grande depressão", mas a estagnação da conjuntura, com cada vez mais fortes tendências deflacionistas. Os bancos, sob o peso dos créditos incobráveis, hesitaram em conceder novos empréstimos, as empresas endividadas hesitaram em fazer novos investimentos e os consumidores, em grande parte sobrecarregados com hipotecas vencidas e atormentados por uma extraordinária insegurança laboral, deixaram de consumir — uma forte quebra na conjuntura, uma vez que o consumo representa 60% do produto japonês.

Entre 1991 e 2000 o governo japonês tentou controlar o leme, através de nada menos de dez programas keynesianos de conjuntura — totalmente contra o consenso neo-liberal mundial. O único êxito que conseguiu foi ter o Japão atingido o máximo mundial da dívida pública. Se em 1989/90 o Orçamento de Estado contemplava uma dívida de apenas 20% do PIB e visava um excedente anual de 2,9% do PIB, atingiu entretanto o assustador "record" de 140% , com um endividamento anual de 10% do PIB.

Paralelamente, o Banco do Japão provocou ciclos sucessivos de queda dos juros e finalmente uma paradoxal política de taxa de juros zero quanto à taxa de juros mais importante, a dos juros diários: os bancos conseguiam refinanciar-se quase a custo zero. Na estagnação interna isso não alterou nada. Apesar das condições favoráveis, as empresas e famílias endividadas não contrataram novos créditos para investimentos e consumo. Em contrapartida a política de juros zero impediu a entrada de dinheiro no país. O efeito foi outro: clientes institucionais e privados pediram dinheiro emprestado a baixos juros para o colocarem a juros substancialmente mais elevados no estrangeiro. O Japão inundou o mundo inteiro com a sua extraordinária liquidez e aqueceu os mercados financeiros, enquanto internamente nada funcionava.

Apenas alguns anos depois entraram no mesmo ciclo os tigres asiáticos, do sudeste da Ásia. Sustentados desde meados dos anos 80 pelo aumento das exportações dirigidas através do Pacífico unilateralmente para os Estados Unidos, estes novos países do milagre económico criaram nesta base uma bolha especulativa de acções e imóveis que rebentou em 1997/98. E tal como no Japão, os créditos incobráveis e perdas não realizadas daí resultantes foram mascarados com a ajuda do paternalismo asiático, enquanto os excedentes de exportação para os Estados Unidos serviam de compensação. Dois anos mais tarde ocorreu um alívio geral: a crise asiática, com se chamava, fora ultrapassada, e o Banco do Japão viu superada a crise conjuntural, elevou a taxa de juros pela primeira vez em dez anos e anunciou reformas de abertura dos mercados.

O amargo de boca foi tanto maior quanto paralelamente à queda dramática das cotações bolsistas na América, na Europa e no Japão no princípio de 2001, o ministro japonês das Finanças comunicou, com uma franqueza excepcionalmente pouco diplomática em asiáticos, como se tivesse caído do céu, que o sistema financeiro do seu país estava à beira do colapso. Que circunstâncias foram responsáveis por esta alteração inesperada?

O Japão foi apanhado pelo crash de 1990, há muito adiado, mas nunca dominado. O adiamento da crise do sistema apenas foi possível sob a condição de que em certo momento a conjuntura recuperaria. Todas as tentativas para iniciar este movimento através de injecções de dinheiro do Estado estão agora falhadas. A nova queda do índice Nikkei em mais de 30% desde o início do ano fiscal de 2000/01, provocada por este fracasso, provocou nos bancos perdas adicionais não realizadas de até dez vezes o montante das dívidas congeladas. Surgiu o receio de que no momento da elaboração dos balanços anuais os clientes dos bancos retirem maciçamente os seus activos. A pressão para dar livre curso à limpeza adiada do sector empresarial e do mercado de trabalho acentuou-se notavelmente. O optimismo do Banco do Japão revelou-se um grandioso erro de avaliação.

Simultaneamente, ameaça entrar em pane o outro motor de travagem da crise nipónica, designadamente a máquina exportadora para os Estados Unidos. As bolhas rebentadas do Japão e dos tigres asiáticos só puderam ser compensadas durante anos porque as bolhas nos Estados Unidos e na Europa foram ainda alegremente empoladas. Só com o permanente afluxo de capital estrangeiro e a permanente valorização do valor das acções é que os Estados Unidos puderam absorver os excedentes do mundo inteiro e sustentar as economias nacionais em situação de emergência. Desde Março de 2000, porém, os "novos mercados" de acções de high-tech e da Internet cairam 60 a 80% e precisamente um ano depois parece estar a iniciar-se a queda dos valores standard.

Afirma-se, geralmente com optimismo interessado, que a crise do Japão de 1990 e dos tigres asiáticos de 1997/98 não é comparável com a actual crise dos Estados Unidos — A economia americana estaria muito mais saudável. Mas é precisamente o contrário que acontece. O boom especulativo nos Estados Unidos não se apoiou num boom de exportação, pelo contrário, baseou-se num gigantesco défice comercial pago pelo endividamento externo. Na verdade, embora não tenha havido nos Estados Unidos uma bolha especulativa no imobiliário como na Ásia, verificou-se uma bolha muito maior na New Economy. E se o Japão tinha ainda uma taxa de poupança de 16%, ela é hoje nula ou mesmo negativa nos Estados Unidos. Até o muito apreciado excedente do Orçamento de Estado americano nos últimos dois anos se situa em 2,3% do PIB, ou seja, abaixo do do Japão naquela altura.

Mas, sobretudo: as empresas e os consumidores estão nos Estados Unidos sensivelmente mais endividados do que estavam então nos estados asiáticos. Com base na expectativa de valorização das suas carteiras de acções, as famílias americanas anteciparam até ao Outono de 2000 praticamente o consumo de vários anos. E a acrescer às dívidas já acumuladas muitas empresas do ramo IT, desde o início da sua participação no NASDAQ, com a falsa esperança de uma viragem súbita nas cotações, compraram a crédito acções próprias em grande quantidade, a fim de influenciarem as cotações; nesta medida, a sua situação é ainda mais duvidosa. Era previsível que o processo de endividamento das famílias e das empresas iria atingir a qualquer momento o processo da capitalização bolsista. A maré de advertências quanto aos lucros em todos os sectores da economia americana — e entretanto também na europeia — mostra que o limite já foi atingido ou mesmo ultrapassado. Capitalismo sem lucro não existe. E agora cai também o volume de negócios em sectores importantes, como por exemplo o dos telemóveis.

A crítica limitação, por um lado da conjuntura e da bolsa, no aspecto estrutural, e por outro da América do Norte e da Ásia, no aspecto das relações do mercado mundial, mostra a possibilidade de um movimento de escalada. Nos efeitos económicos deve contar-se, em geral, com um período de incubação entre seis meses e dois anos. Desde finais de 2000 são visíveis na conjuntura americana os primeiros sinais do crash do NASDAQ. Estes sinais, por sua vez, aceleraram o crash e estenderam-se aos valores standard. Como consequência do enfraquecimento da economia americana caem agora as exportações e o investimento no Japão, o que aumenta a pressão sobre o sistema financeiro. A consequência disto poderia ser, como há muito é temido, a retirada do capital financeiro nipónico dos Estados Unidos e, com isso, a aceleração da crise da conjuntura americana, e assim sucessivamente. Esta escalada dificilmente pode deixar a Europa de fora. Não apenas as exportações para os Estados Unidos e o Japão cairão, mas também as exportações para todas as economias afectadas pela crise nipónica e americana — tanto na Ásia como na América Latina e na própria União Europeia.

Por detrás da imprevisibilidade dos fenómenos e dos duros golpes dos mercados financeiros está, em última análise, a desvalorização do trabalho e, com isso, a dessubstancialização do dinheiro, com a trituração imparável do moinho da terceira revolução industrial. Com cada crash parcial, a crise do sistema fica mais madura e emerge no centro com força cada vez maior. Para que o desastre global possa ser evitado, é preciso aumentar a qualquer preço o consumo nos Estados Unidos e no Japão.

Mas isto pode ser mais difícil agora do que no passado. O rebentamento da bolha americana é muito mais gravoso do que o rebentamento da bolha asiática. Pois os Estados Unidos não têm outros Estados Unidos para compensarem externamente o seu crash. Certamente, poderiam tentar exportar os seus problemas. Mas para uma ofensiva exportadora faltam aos donos da importação mundial os produtos e as capacidades. Além disso seria necessário, para poderem exportar a crise, desvalorizar drasticamente o dólar, o que conduziria a uma onda de desvalorizações concorrenciais do Iene, do conjunto das moedas asiáticas e, finalmente, do Euro. Este cenário realista de uma desvalorização monetária global — a desvalorização do Iene já começou — seria devastador para a conjuntura e para os mercados financeiros.

Resta apenas o antigo instrumento das injecções de dinheiro do Estado, directas ou indirectas. No espaço de menos de três semanas, o banco central americano (FED) aplicou três cortes nas taxas de juros e anunciou um quarto. O presidente George W. Bush planeia um programa a dez anos de baixa dos impostos em 1,6 biliões de dólares por ano e o Banco do Japão não só voltou à política dos juros zero, mas quer ainda atribuir aos bancos maiores quotas de refinanciamento. Porém, não se vislumbra por que razão deve funcionar agora no Japão o que antes falhou, nem por que razão hão-de os Estados Unidos sair-se melhor com os métodos já usados no Japão. A baixa de impostos de Bush, ou apenas beneficia as famílias cujo consumo está satisfeito, ou os dinheiros assim libertados irão ser aplicados no pagamento de dívidas vencidas. Pela mesma razão falharão as baixas de juros nos Estados Unidos e no Japão, pois o dinheiro mais barato será utilizado mais para desendividamento das empresas e famílias do que para investimento e consumo.

Para que as injecções de dinheiro possam funcionar têm que ser aplicadas em doses muito superiores às utilizadas até aqui. E aqui também o Banco Central Europeu (BCE) tem que intervir, pois de outro modo seriam alterados os fluxos de capitais e a crise seria potenciada em vez de vencida. A par de uma corrida à desvalorização monetária é por isso pensável uma corrida à descida dos juros. O grande pecado contra a teologia da economia monetária apresenta-se como uma espécie de keynesianismo bolsista, quando a abertura simultânea dos diques do dinheiro nos três blocos económicos é que tem de salvar o capital financeiro e a conjuntura económica dele dependente.

O preço a pagar seria o retorno da inflação, que nos Estados Unidos já atingiu a taxa anual de 3,5%. Há alguns meses apenas isto teria alarmado o Presidente da Reserva Federal Alan Greenspan e provocado a elevação da taxa de juros; agora a emergência leva-o a aplicar uma política exactamente inversa. Se as coisas continuarem neste caminho, a simultaneidade historicamente única de deflação e inflação é possível: designadamente uma deflação do valor do património devido à queda das acções, seguida de despedimentos e falências bancárias em massa, enquanto as empresas que permanecem no mercado se vêm obrigadas a aumentar os preços, devido ao seu sobreendividamento.


Inclusão: 02/10/2020