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Primeira Edição: HYSTERISCHER POPULISMUS em www.exit-online.org. Publicado na Folha de S. Paulo de 18.03.2001 com o título POPULISMO HISTÉRICO
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Tradução: José Marcos Macedo
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
O mais dileto de todos os passatempos sociais é a busca de culpados. Quando algo sai errado em grande escala, quase nunca se permite que a própria coisa seja posta em xeque, o problema há de estar nas pessoas. Não se responsabilizam propósitos dúbios, relações sociais destrutivas ou estruturas contraditórias, e sim a falta de vontade, a escassa competência ou mesmo a má-fé das pessoas. Bem mais fácil é fazer rolar cabeças do que subverter relações e modificar formas sociais.
Essa tendência espontânea da consciência irrefletida para digerir dificuldades mediante atribuições subjetivas de culpa vai ao encontro da ideologia do liberalismo: afinal, ela subjetivou de cima a baixo a questão das causas dos problemas sociais. A ordem reinante do sistema social lhe foi alçada a dogma de uma lei natural, fora de qualquer possibilidade de avaliação — daí que a causalidade de experiências negativas não poder recair senão nos sujeitos, em sua existência imediata. Cada qual é culpado de seus próprios infortúnios ou fracassos, mas também crises e catástrofes sociais só podem ser causadas por pessoas ou grupos subjetivamente culpados. O erro nunca está no próprio sistema, sempre foi alguém que cometeu algum desacerto ou crime.
Esse ponto de vista, embora profundamente irracional, é um alívio para a consciência, porque então ela não precisa mais se dar ao trabalho de examinar criticamente as condições da própria existência. Problemas em sua essência impessoais da estrutura social e do seu desenvolvimento são identificados a certas pessoas, grupos sociais etc. ou descarregados simbolicamente sobre estes. No Velho Testamento, esse mecanismo é descrito como a função do "bode expiatório", ao qual a sociedade transfere seus pecados e que depois é apedrejado. Esse método da personalização superficial de problemas e desastres pode trilhar dois caminhos.
O primeiro consiste em acusar os indivíduos do respectivo grupo ou instituição. Ou as pessoas e órgãos dirigentes são denunciados pelo zé-povinho como representantes incapazes ou estes viram o feitiço contra o feiticeiro e incriminam o zé-povinho de incompetentes, de não terem dado duro o suficiente etc. Na política moderna, um tal mecanismo político de imputação de culpa é como que o princípio de seu funcionamento. O povo destrata os políticos e os políticos destratam o povo. E, como se sabe, nenhum partido de oposição política remonta os problemas sociais ao sistema da política como tal e ao modo de produção subjacente, mas somente ao fato de se encontrarem seus concorrentes ao leme do Estado e fazerem "má política".
O segundo método é ainda mais irracional e perigoso. As dificuldades sociais são projetadas de modo genérico a um ou mais grupos de pessoas, que simbolizam pura e simplesmente o mal e têm de servir de imagem universal do inimigo. Todas as ideologias, que segundo Marx representam sempre uma "falsa consciência", e portanto uma imagem distorcida da realidade, operam num e noutro modo com tais imagens personalizadas do inimigo. Se o liberalismo, como proto-ideologia moderna, se orienta de forma relativamente pragmática e por qualidades características em sua busca de culpados (por exemplo, as "ambições irracionais" e a preguiça dos pobres, a "má educação" dos criminosos etc.), as ulteriores visões de mundo caudatárias do liberalismo se prendem mais fortemente à imagem unidimensional do inimigo. O mais grave e maligno desses despautérios sociais é certamente o anti-semitismo moderno, que culminou no massacre em massa dos judeus pelos nazistas.
O contrário da busca irracional pelos culpados seria uma crítica social emancipatória que não visasse a determinadas categorias de pessoas, mas quisesse transformar as formas dominantes da reprodução e das relações sociais. E sem dúvida a teoria de Marx continua a conter o maior potencial para se efetivar nesse sentido. É certo que também o pensamento do movimento operário moderno, que nesse meio tempo chegou a seus limites, no fundo ainda é personalista, na medida em que remonta as contradições sociais menos às leis funcionais cegas do moderno sistema produtor de mercadorias do que sobretudo a uma espécie de "vontade de exploração" comum atribuída aos "proprietários privados dos meios de produção". Ironicamente, esse mesmo caráter redutor da crítica pode ser remontado ao legado da ideologia liberal no marxismo do movimento operário, que dissolve todos os problemas em simples relações de vontade. Mas a teoria de Marx inclui também o acesso a uma abrangente "crítica do sistema" digna desse nome e que já não confunde a crise da estrutura com a "má vontade" de pessoas ou grupos sociais.
Após o colapso do capitalismo de Estado e o triunfo da ideologia neoliberal, porém, a crítica social não seguiu nessa direção, mas quase se calou de todo. O sistema social e suas estruturas são mais que nunca tabu. Mas quando a forma dominante das relações sociais não parece mais passível de crítica e os problemas sociais continuam a se agravar, é aí que as teorias da conspiração ganham livre curso. Não admira, pois, que nos últimos 20 anos, em paralelo ao declínio do marxismo, estejam novamente em voga ideologias racistas e anti-semitas que querem explicar a miséria do mundo com diversas personificações do mal.
Mas no próprio meio oficial das sociedades democráticas sempre se buscaram descaradamente "bodes expiatórios". Na Alemanha, tornou-se bestseller um livro do jornalista econômico Günter Ogger que tacha os empresários pátrios de fracassados e declara a incompetência coletiva deles a causa dos crescentes problemas econômico-sociais. Os heróis e redentores de hoje são apenas os perdedores e acusados de amanhã. Certos órgãos da mídia já publicam até mesmo tabelas semanais sobre quem está "em alta e em baixa" na política, economia, esportes e show-business. O carrossel pessoal roda com velocidade cada vez maior: na cadência de crises e falências, os "pessoalmente responsáveis" vão para o olho da rua e são substituídos por outros, que não se saem melhor.
Mas a surda sensação de uma ameaça universal não pode ser aplacada nem pelo sacrifício do camponês nem pelo do rei; ela busca uma expressão mais abrangente e gera fantasmas. As sociedades ocidentais, já incapazes de refletir criticamente sobre si próprias, criaram figuras míticas para simbolizar o mal intangível de suas próprias estruturas.
Uma tal figura mítica do negativo é o terrorista. Quanto mais opacos e arbitrários os atentados a bomba de loucos, frustrados, guerreiros de Deus e mafiosos, mais eles correspondem, em sua cegueira, ao "terror da economia", um terror sem sujeito. Há muito se apagaram também as fronteiras entre grupos terroristas, aparelhos estatais e serviços secretos. A sociedade democrática enxerga os terroristas quando olha no espelho. Mas justamente por isso o terrorista, como figura obscura, presta-se a manifestar o mal na "sociedade dos honrados burgueses", na forma de imagem abstrata do inimigo.
O mecanismo da projeção é especular: tal como o terrorista de motivação ideológica avista o mal do capitalismo na existência pessoal das elites funcionais, assim o político democrático, por sua vez, explica a insegurança social pela "ameaça terrorista". Os dois lados, tanto terroristas quanto aparatos de segurança, operam em igual medida com o fato de que literalmente "dão cabo" de indivíduos e apresentam publicamente os respectivos corpos como troféus, inebriados pelo "terror da virtude" (Robespierre). Nesse meio tempo, a existência de terroristas reais ou fantasmagóricos passou a ser o pressuposto legitimador para o mundo democrático da economia de mercado.
Coisa análoga ocorre com o mito do especulador, tal como passou a vicejar nos anos 90, em paralelo ao sopro da bolha financeira global. E todos sabem que a surda difamação dos ganhos especulativos não está muito longe do anti-semitismo, que identifica os judeus ao lado negativo do dinheiro. Se esse mito ganhou com George Soros uma fisionomia pessoal, ao mesmo tempo ele representa uma ameaça anônima: a sociedade capitalista do trabalho sente se tornar obsoleta e projeta o problema em um sujeito do mal, que supostamente destrói o "trabalho honesto". Quanto mais claro resta que o trabalho suprime a si mesmo e que a era da especulação é apenas o resultado disso, maior a necessidade de um sujeito mítico como aparente responsável. Que essa explicação irracional germine na consciência de pessoas que apostaram seus últimos centavos nas Bolsas é como que o pressuposto para que a projeção ganhe vulto. Depois do colapso dos novos mercados, a mídia estilizou o "pequeno investidor enganado" como vítima dos sombrios bastidores do poder financeiro.
Nos últimos anos, ao lado dos terroristas e especuladores, surgiu como cúmulo da projeção irracional o pedófilo, outra figura mítica do mal. Nenhuma conjuração mágica do demônio pode prescindir do componente sexual. Assim é que na Europa e nos Estados Unidos, paralelamente ao pretenso "abuso da assistência social" por "burladores sociais" (de preferência estrangeiros), o chamado abuso sexual virou tema da moda. Raro o terapeuta que não queira persuadir seus clientes de que, na infância, todos eles sofreram "abusos sexuais". Ainda resta a pouco clara relação com o "tio malvado", mas também aqui não é de ignorar a proximidade ao anti-semitismo: tal como afirmaram os nazistas, que judeu é aquele que faz das pessoas mercadoria, assim também essa figura do judeu sempre foi representada como monstro lascivo que persegue a inocente jovem ou criança da respectiva cultura majoritária.
Também nesse sentido é um pressuposto que a sociedade oficial possa personificar um momento de si própria como símbolo do mal. A maioria dos crimes sexuais contra crianças sempre foi cometida no interior do amado círculo familiar. E Dutroux, o assassino de crianças belga, introduzira sabidamente suas vítimas aos mais altos círculos como objetos do desejo. Que a sociedade capitalista em geral seja inimiga das crianças não é segredo para ninguém. Simultaneamente ela continua também inimiga do prazer. O lema da "liberdade sexual" de 1968, cujos protagonistas não foram além das formas sociais dominantes, conduziu somente a uma sexualização abstrata da mídia e da publicidade, enquanto a vida sexual efetiva dos sujeitos da mercadoria está mais pobre do que nunca.
Tanto mais odiosa e maligna se afigura a manifestação do delito sexual como simbolização irracional de contradições sociais. Com o que toda diferença nos fenômenos efetivos é nivelada, para despertar o espírito do pogrom. Assim foi que a tensão erótica entre indivíduos maduros e jovens, tal como exemplificada literariamente por Vladimir Nabokov em seu romance "Lolita" ou por Thomas Mann em sua novela "Morte em Veneza", ainda era reconhecida nos debates político-sexuais dos anos 70 como uma variante no espectro dos sentimentos sexuais, do modo como são encontrados em muitas culturas, pressupostos a não-violência e o desvelo amoroso. Hoje a encenação midiática do "saudável sentimento popular" equipara esse lado do erotismo à prostituição infantil, ao estupro ou ao assassínio de crianças pequenas por maníacos.
O motivo legítimo de denunciar e combater a violência masculina contra mulheres e crianças — violência essa agravada mundialmente com a crise — transforma-se em seu contrário e vira meio de satanizar as relações, em vez de criticá-las e acabar com os atos violentos. Em meio à mania de projeção, até mesmo crianças são tachadas de "pedófilas": nos Estados Unidos, um jovem de 18 anos que fugira com sua namorada de 14 foi conduzido de algemas ao juiz de instrução, a exemplo de um garoto de 11 anos, que uma vizinha retardada flagrara brincando inocentemente "de médico" com sua meia-irmã de cinco anos.
As figuras míticas do mal são necessárias para descarregar de modo irracional e anti-emancipatório a energia negativa da crise social. O terrorista, o especulador e o pedófilo têm em comum o fato de agirem no escuro, tal qual os poderes anônimos da concorrência. Ninguém é e todos podem sê-lo. Nos anos 20, Fritz Lang, em seu filme clássico "M — O Vampiro de Düsseldorf", mostrou de modo aflitivo como a caçada a um desconhecido assassino sexual na metrópole Berlim, com o pano de fundo da crise econômica mundial, se funde a uma síndrome psicológica coletiva que gera um clima difuso de suspeita, denúncia e cega violência: a sociedade revela uma careta que é pouco menos assustadora que a do próprio assassino.
Na presente crise mundial, a mesma síndrome faz-se notar com ressonâncias múltiplas nos meios de comunicação eletrônicos. Política e mídia praticam cada vez mais um populismo histérico, que desencadeia em último recurso o linchamento. Quando na Inglaterra os tablóides publicaram os nomes e endereços de supostos pedófilos, uma multidão furiosa levou os indigitados ao suicídio e destruiu o consultório de uma pediatra, porque não sabia distinguir "pedofilia" de "pediatria" (um belo indício da situação do ensino britânico). Tais incidentes mostram como já vai avançada a paranóia social. Uma sociedade que não quer mais desvendar os seus próprios segredos está condenada a instaurar a caça às bruxas.