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Primeira Edição: Folha de São Paulo, 29 de outubro de 2000
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Tradução: José Marcos Macedo
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Cada ano uma nova época, cada trimestre um novo milagre econômico, cada semana uma nova terminologia. O turbocapitalismo parece superar a si mesmo, de tão veloz que é e de tão impossível. O mais novo rebento da nova economia chama-se UMTS (sigla em inglês para Sistema Universal de Telecomunicação Móvel). Em outras palavras: a Internet pelo celular para gente em trânsito; sem fio e com 2 milhões de bites por segundo, cerca de 200 vezes mais rápido que as ligações hoje correntes por celular. Trata-se, assim dizem os otimistas oficiais de plantão, de um negócio do futuro de primeira grandeza. Esse otimismo tem seu alicerce no boom dos atuais celulares, que entre os jovens já virou faz tempo um símbolo de status. A fantasia prolifera. Com o novo standard do UMTS e da Internet móvel, teríamos finalmente o tão almejado advento de um novo e sólido consumo de massas que propiciaria uma margem de valorização à indústria e aos serviços de telecomunicação numa escala insuspeitada dessa vez, supõe-se, efetivamente suficiente para um grande surto econômico autônomo. Só na Alemanha, o Ministério da Economia e a indústria eletrônica prometem 700 mil novos empregos já nos próximos cinco anos. O celular on line como deus ex machina? O prognóstico otimista, aliás como inúmeras expectativas e promessas semelhantes nos últimos anos, poderia desde logo ser desmistificado como quimera. Segundo as primeiras pesquisas, menos de 25% dos atuais usuários de celulares pensam em mudar para o UMTS, sobretudo se pesar no bolso. A mania do celular, atiçada artificialmente pelo marketing, pelos consultores de empresas e pelos governos, não pode crescer para sempre; há muito ela incorreu na crítica cultural e vem esmorecendo. Já por causa da ressonância provavelmente minguada dos consumidores, o UMTS poderia se tornar um fiasco econômico semelhante ao da TV a cabo, cujos protagonistas (como o czar da mídia alemã, Leo Kirch) estão fazendo das tripas coração, à beira da grande bancarrota. Mas não é só. As condições técnicas também são deficientes. Parece piada, mas é fato: não falta somente a infra-estrutura completa para o UMTS, mas também a própria tecnologia ainda não está madura o bastante. Segundo reportagens, os aparelhos finais só existem no papel. No Japão, os primeiros aparelhos "talvez" cheguem ao mercado em 2001. À parte as deficiências tecnológicas e infra-estruturais, ronda ainda um outro perigo: há indícios de que a carga suplementar de raios eletromagnéticos a que ambiciona o UMTS será de tal monta que poderá causar danos à saúde.
O lobby das telecomunicações tenta fazer pouco dessas advertências como sendo "pânico infundado de doidivanas e sectaristas". Mas, ainda assim, já existe uma "Resolução de Salzburgo", assinada por renomados cientistas, que exige limites mais baixos do que os praticados até agora pela União Européia. Já no passado a Comissão da UE chamara a atenção para o fato de definir os limites de todas as cargas possíveis menos por critérios medicinais do que econômicos, o que redundou em toda uma série de escândalos (a epidemia conhecida como "vaca louca" foi somente o exemplo mais marcante). Mas, porém, o professor Heyo Eckel, longe de ser um sectarista ecológico, senão um membro do honorário Conselho de Medicina alemão, fez notar que, em experimentos com animais, a radiação eletromagnética pode causar danos à saúde mesmo abaixo dos limites praticados hoje. O assunto é para ser levado tão a sério que a Organização Mundial da Saúde encomendou um estudo abrangente para investigar o risco de câncer em usuários habituais de celulares. O neurologista norte-americano Christopher Newman, que padece de um tumor cerebral e atribui sua enfermidade à radiação da telefonia móvel, por via das dúvidas já instaurou processo, segundo o hábito nacional, contra a Motorola e outras empresas do ramo, pleiteando a bagatela de US$ 800 milhões de indenização. Que tais investidas, cujo modelo são os processos contra a indústria de cigarros, tenham iguais chances de sucesso, revela-se na reação de pânico: a Motorola, a Nokia e outros fabricantes de celulares anunciam que, a partir de 2001, pretendem prover seus produtos de tarjetas indicando a carga de radiação. Um anúncio não lá dos melhores, já se vê. Feitas as contas, pode-se dizer: jamais um "negócio do futuro", anunciado de boca cheia, foi mais incerto. E, mesmo se o UMTS abrir um novo segmento no ramo das telecomunicações, com certeza não atingirá uma magnitude e uma dinâmica tais capazes de pesar em termos macroeconômicos. E muito menos no tocante ao "emprego", pois as atuais empresas da Internet móvel, com seu alto grau de racionalização, continuarão a prescindir de braços, enquanto os fornecedores da rede, embora a curto prazo tenham de fazer frente à grande demanda e com isso à sobrecarga de sua capacidade, não enfrentarão um tal acúmulo de encomendas (pela sua própria natureza, temporário) com a criação de novos postos de trabalho, mas antes, segundo nos ensina a experiência, com horas extras do pessoal já disponível. No fim, é aquela velha história: tudo como dantes no quartel de Abrantes. Porém há uma diferença em relação a todas as promessas anteriores da indústria "high-tech": os custos prévios, dessa vez, ultrapassaram todos os parâmetros. O UMTS, em brevíssimo tempo, virou uma espécie de pôquer do capital financeiro, com o qual o autismo do cassino-capitalismo parece ter atingido o estágio da autocombustão voluptuosa. Muito antes de um único celular on line ter entrado em funcionamento, anuncia-se uma inaudita inflação dos custos já na concessão estatal das licenças para o novo sistema da telefonia móvel. Nos anos 90, depois de terem sido saneados a curto prazo os combalidos cofres estatais pela venda a preço de banana da "prata da casa", isto é, pelo produto da privatização de empresas estatais, instalações de infra-estrutura etc., esse método aos poucos começa a se esgotar por falta de volume. E, como os cartéis globalizados continuam a pagar pouco ou nenhum imposto, um número cada vez maior de Estados recorre a novos meios de financiamento para sanear as suas contas a curto prazo e evitar novos rombos bilionários: majoram-se as licenças, por exemplo, para as empresas do UMTS que derem maior lanço.
Os leilões, até agora, superaram todas as expectativas. Depois que os cartéis da telecomunicação desembolsaram, com a majoração das licenças para a Reino Unido, a cifra de US$ 35 bilhões em abril de 2000, também os concorrentes alemães, numa verdadeira "embriaguez de pregão" no leilão de agosto de 2000 na Alemanha, acabaram recolhendo aos cofres US$ 50 bilhões. E até meados de 2001 estão previstos, entre outros, leilões na Itália, na Áustria, na Bélgica, na Dinamarca, na França, em Portugal e na Suécia. No âmbito global, ainda restam ser concedidas mais de 80 licenças para o UMTS.
Pode-se imaginar o ônus das empresas envolvidas nesse jogo de pôquer de proporções astronômicas. A licença, afinal, não passa de um pedaço de papel, um reles certificado jurídico com que o Estado transforma, a curto prazo, mais um quinhão de sua "soberania" territorial em valor monetário. Consultores de empresas calcularam que, dos seis "vencedores" do leilão alemão do UMTS (Deutsche Telekom, Vodafone, a holandesa KPN, British Telecom, France Télécom e a espanhola Telefónica), cada qual tem de atingir uma parcela de mercado de 30% a 40% para recuperar somente os custos da licença majorada. Que somados dão entre 180% e 240%, uma empreitada suicida, na qual boa parte dos concorrentes terá forçosamente de ficar pelo caminho. Mas, com a majoração das licenças, a inflação de custos só começou. Os investimentos reais, estes sim verdadeiramente bilionários em tecnologia, infra-estrutura e redes de transmissão, ainda não entraram nos cálculos. Como num espaço de tempo relativamente curto todas as empresas de telefonia móvel terão de concorrer pelos produtos escassos dos fornecedores da rede, a procura superando em muito a oferta, os últimos ganharão um enorme poder de fogo, elevando largamente seus preços. E ainda mais cara seria a infra-estrutura. Só na Alemanha, mais de 100 mil torres de transmissão adicionais teriam de ser erguidas, para as quais já hoje os locais adequados são exíguos. Nas cidades, quase não há mais lugar vago nos telhados dos prédios. Por isso as empresas de telefonia móvel teriam de se afastar para as moradias de subúrbio, para nesses telhados montarem seus aparelhos de transmissão. Mas, com isso, os aluguéis para a instalação das antenas subiriam. Com o aluguel estimado de US$ 500 mensais por torre de transmissão, os custos seriam da ordem de US$ 600 milhões por ano e somente para o aluguel das antenas de transmissão!
Segundo cálculos da revista alemã "Der Spiegel", os investimentos no projeto do UMTS (já deflacionados) custam mais do que a construção de toda a rede ferroviária européia. Essa dimensão irreal torna de todo improvável que possa nascer daí um rentável consumo de massas capitalista. Os custos são altos demais e não podem ser repassados ao consumidor final. Isso porque a demanda previsivelmente menor que a esperada e a concorrência encarniçada dos cartéis das telecomunicações pressionam forçosamente para baixo o preço aos usuários, na mesma medida em que disparam os preços dos fornecedores da rede, de modo que, no consumo do UMTS, a situação é exatamente a inversa que nos investimentos dos fornecedores necessários para atendê-lo: o poder de oferta é baixo e obriga a uma temerária escalada de preços. Mesmo as empresas sobreviventes do projeto UMTS só farão acumular perdas sobre perdas nos próximos 10 a 15 anos, já que a inflação dos custos prévios não poderá mais ser recuperada nem com a melhor das boas vontades pelo curso normal dos negócios. Cabe então perguntar, é claro, por que os cartéis das telecomunicações, a despeito dos previsíveis resultados, se lançaram nessa aventura, ao arrepio de toda racionalidade econômica. Resposta óbvia: "Quem não arrisca não petisca", como quem dissesse: "Não se preocupe, vá fundo, meta-se até o pescoço". Tal como a nova economia no geral, também no particular o projeto UMTS desenvolveu uma dinâmica própria irracional e irrefreável. Nem bem terminara o leilão na Alemanha, constatou a imprensa econômica, alastrou-se a choradeira dos empresários "vencedores", a confissão involuntária de que, em meio à "embriaguez do pregão", haviam perdido as estribeiras. Ora, como se sabe, há muito que a economia como um todo não trata mais de auferir lucros ordinários do tráfico de mercadorias reais; antes, na figura do "capital fictício" (Marx), estamos às voltas com um segundo plano de racionalidade econômica, no qual só a capitalização de opções reais para um futuro imaginário ainda é interessante. Mas justamente a bolha de custos do UMTS revela que a capitalização especulativa da Bolsa começa a ingressar numa fase crítica. Até agora, as empresas muitas vezes minúsculas da nova economia podiam "queimar" à vontade o capital monetário em seus negócios reais totalmente não-rentáveis: quanto mais, melhor, o que importava era subir o curso das ações. O excedente (em regra gigantesco) obtido com esses ganhos na jogatina, quando comparados ao capital invertido (e queimado) nos negócios reais, era a cifra da racionalidade interna da nova economia cassino-capitalista. Mas é justamente essa opção especulativa que não funciona mais no UMTS, porque os custos prévios "queimados" são altos demais. A relação entre custos e lucro se inverte no plano especulativo. Essa evolução há muito já se esboçara nas grandes batalhas de aquisição: os preços para a obtenção das chamadas "opções estratégicas" começam a suplantar os possíveis ganhos especulativos, o UMTS é apenas um exemplo particularmente drástico desse processo. Aliás, a inflação dos custos do UMTS fez despencar as ações de cartéis do ramo. Não se pode tampouco falar, nem a longo prazo, de uma bem-sucedida capitalização da Bolsa como prêmio para a irreal opção futura, porque a pressão dos custos elimina tal opção. É claro que os próprios custos são pagos, por sua vez, com ganhos especulativos anteriores.
Nesse sentido, trata-se apenas de simples reacomodação no interior da bolha especulativa. Para cobrir as licenças majoradas, o "capital fictício" é reciclado junto ao Estado; para cobrir os megainvestimentos tecnológicos, é reciclado (talvez) junto aos fornecedores. Lançando impostos sobre os ganhos especulativos, principalmente sobre os fundos de milhares de pequenos investidores, o Estado (sobretudo nos Estados Unidos) já reciclara para si "capital fictício" privado e, com isso, mais do que compensara a evasão fiscal dos cartéis globalizados.
Mas tal reciclagem da capitalização especulativa das Bolsas traz consequências que, no caso dos leilões do UMTS, poderiam acarretar uma "débâcle". Pois as empresas envolvidas estão de costas contra a parede. Na condição de antigas empresas estatais deficitárias e em boa parte altamente endividadas, foram elas abandonadas ao deus-nos-acuda do mercado. As gigantescas aquisições estrangeiras, na esteira da globalização (por exemplo a compra da Voicestream, nos Estados Unidos, pela Deutsche Telekom), ampliam o rombo da dívida que agora se arrisca fender de modo tanto mais ameaçador com a aventura do UMTS. Como, devido a esses custos e dívidas, também os ganhos especulativos se esgotam, o empresariado busca se salvar numa torrente de empréstimos.
Graças ao megaendividamento, associado à queda livre de suas ações na Bolsa, os cartéis das telecomunicações têm ainda por cima de pagar juros altíssimos para tais empréstimos. Só em julho de 2000, a Deutsche Telekom contraiu um empréstimo empresarial de US$ 13,5 bilhões, o maior de todos os tempos. Um papel da Telekom com vencimento em 2010 rende 6,5%, enquanto empréstimos estatais comparáveis, somente 5,2%.
Também nesse sentido o setor das telecomunicações só antecipa um desenvolvimento universal. A profusão de empréstimos empresariais da altamente endividada nova economia já conduziu a uma "inversão estrutural dos juros": papéis de curto prazo rendem mais juros que os de longo prazo, um indício histórico insofismável de uma iminente "correção" seguida de recessão. A esperada bancarrota de alguns cartéis das telecomunicações poderia ser o estopim.