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O imperialismo e a concorrência capitalista internacional pela divisão do mundo, o complexo militar-industrial e o movimento das frotas, as reivindicações coloniais e a propaganda da superioridade cultural não poderiam deixar de ter consequências na consciência social do capitalismo no limiar do século XX. Numa mistura peculiar de medo da concorrência do mercado mundial e da ameaça estrangeira, de triunfalismo nacionalista e messianismo cultural, uma nova e agressiva ideologia delirante começou a surgir em todo o mundo capitalista. Se já o liberalismo mais antigo desde Hobbes tinha "naturalizado"ideologicamente as relações sociais, e desde Adam Smith as tinha retratado como a pseudofísica mecanicista da máquina do mercado, e se Malthus tinha dado o passo para a biologização da crise com a sua "lei da população", os cérebros da concorrência imperial estavam agora a chocar uma visão do mundo biologista muito mais abrangente. O programa liberal da naturalização do social foi assim elevado de um significado mais metafórico para um significado literal, que definiu todo o sistema da cultura humana e da sociedade como uma componente imediata da biologia (ela própria re-ideologizada) e deveria gerar uma tremenda vibração de ressonância na consciência das massas. Este biologismo, que até hoje continua não só a ter efeito, mas também a emergir de novo das relações de concorrência, moldou decisivamente o pensamento moderno e revelou para sempre o seu potencial profundamente irracional e sociopatológico.
O pioneiro do novo biologismo foi, de modo nenhum involuntariamente, um dos maiores cientistas naturais modernos, que virou a visão do mundo nada menos do que Newton. Charles Darwin (1809-1882), o nobre rural britânico e candidato fracassado ao sacerdócio, complementou e ampliou a visão mecanicista do mundo físico e da sociedade humana com uma explicação biologista do mundo. Aqui aconteceu algo que é típico e sintomático das ciências naturais modernas em geral: uma descoberta realmente grande fundiu-se completamente com um impulso ideológico irracional e com interesses irreflectidos do sistema fetichista capitalista, apenas para finalmente se carregar a si própria com uma enorme força destrutiva.
A família de Darwin era constituída por abastados "Whigs", liberais da pior espécie e ao mesmo tempo interessados na ciência, como provam os seus biógrafos (Desmond/Moore 1995); até o avô de Darwin, Erasmus, médico, poeta e habilidoso que, entre outras coisas, construiu uma máquina falante que conseguia recitar o Pai Nosso e os Dez Mandamentos, já tinha especulado no final do século XVIII, sobre uma possível alteração das espécies e uma "teoria da descendência", que foi deixada para trabalhar ao seu neto – a quem deixou um correspondente credo do "livre pensamento" em verso:
Produzido sem pais, surge por si próprio
O ser orgânico na névoa da pré-história
É hoje difícil de imaginar como até à primeira metade do século XIX, em plena época de industrialização e florescimento das ciências naturais capitalistas, só existiam abordagens fracas à compreensão de uma verdadeira história natural (antes de Kant, este termo significava apenas o contexto geral dos fenómenos naturais, não uma história de desenvolvimento em sentido contínuo). Até Hegel chegou a esta ideia de uma forma peculiar. Apesar do "iluminismo", do conhecimento da natureza e da tecnologia do capital, a Bíblia ainda era tomada muito literalmente por grande parte da sociedade oficial. Não só entre os incultos, era considerado como garantido que Deus tinha criado o mundo natural, incluindo todas as espécies animais e vegetais, como um conjunto imutável há cerca de seis mil anos, embora as ciências naturais já estivessem amplamente conscientes de um período muito mais longo do passado histórico da Terra. A ideia da evolução biológica também germinava há algum tempo, como no caso do cientista natural francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), que tinha duvidado da imutabilidade das espécies, mas não foi capaz de elaborar esta doutrina e de a ajudar a romper. Numa digressão mundial, que empreendeu de 1832 a 1837 como acompanhante científico financeiramente independente a bordo do navio de investigação e pesquisa britânico "Beagle", Darwin não só recolheu numerosos espécimes e fósseis, como também desenvolveu as ideias básicas da "teoria da evolução" nos seus cadernos de apontamentos, que viria a publicar apenas décadas mais tarde, instado por amigos. Apenas em 1859, por assim dizer pontualmente no início da nova ronda imperialista, foi publicada a sua obra "Sobre a Origem das Espécies por Selecção Natural". Em 1871, novamente após longa hesitação, seguiu-se a aplicação e extensão dos seus ensinamentos à origem humana a partir do reino animal: "A Origem do Homem e a Selecção Sexual".
Claro que havia uma razão para Darwin vacilar, hesitar e duvidar durante tanto tempo antes de ousar vir a público com a sua teoria da evolução cientificamente fundamentada. Afinal, a evidência de desenvolvimento e mudança duradoura das espécies tinha de desafiar as igrejas cristãs, que ainda representavam um poder, pouco menos do que as descobertas de Copérnico e Galileu no firmamento. Com a teoria da evolução, foi derrubada a última pedra de suporte do edifício da ortodoxa interpretação literal da Bíblia; se a "coroa da criação" primeiro tinha sido banida, sob fortes fricções ideológicas, do centro do universo para uma província galáctica, agora também a imagem imediata de Deus desaparecia, sob o veredicto de que "os moluscos sem cabeça, hermafroditas, eram os antepassados da humanidade" (Desmond/Moore 1995, 9). Pior ainda foi a estreita relação com os primatas, que pode ser observada na história evolutiva recente e que levou à vulgarização popular da teoria de Darwin de que "o homem descende do macaco". Nada menos drástica do que a descoberta da história natural biológica por Darwin e seus antecessores foi a revolução quase simultânea da visão do mundo geológico, sobre cujo significado só recentemente se reflectiu com mais precisão, e a conexa "descoberta das idades profundas" (Gould 1990) de imensas épocas na história da Terra. Se a história natural biológica das espécies tinha de ser contada em milhões de anos, a história natural geológica estendia-se a inimagináveis milhares de milhões de anos. A história humana reduzia-se a uma pequena marginalidade do desenvolvimento planetário e a narrativa do Génesis nas "Sagradas Escrituras", pelo menos no seu entendimento literal, reduzia-se ao estatuto de um conto de fadas infantil. Contudo, enquanto o "tempo profundo" geológico e as suas consequências foram menos notados pelo público em geral, a teoria da evolução de Darwin causou inicialmente a esperada tempestade de indignação entre todos os apoiantes ortodoxos do "trono e do altar". Não se deve esquecer que o chamado iluminismo de modo nenhum negava fundamentalmente a religião cristã e abolia o pensamento religioso, mas apenas redefinia o lugar da religião na sociedade, secularizando os assuntos da ciência e da economia. Agora parecia que as ciências naturais na forma de Darwin e dos seus seguidores tinha, por assim dizer, quebrado o armistício e atravessado outra linha de demarcação. A ortodoxia da excitação cristã não morreu até hoje, e os poderosos EUA ainda se embaraçam com os seus fanáticos calvinistas que querem banir a teoria da evolução de Darwin do ensino escolar e substituí-la pela história da criação do Antigo Testamento.
Poderia enfurecer o pensamento político conservador que o machado fosse colocado nas últimas raízes da consciência religiosa; afinal, a educação popular capitalista, com a sua formação das virtudes secundárias disciplinadoras, sempre apelou à imaginação religiosa popular e gostava de ver "o povo" num estado de humildade ingénua. A este respeito, também as elites conservadoras liberais contemporâneas poderiam estar apreensivas face ao "darwinismo".
Por outro lado, contudo, desde o iluminismo que existia no seio do liberalismo um meio inicialmente minoritário de “livre pensamento” – ao qual o avô de Darwin já tinha pertencido –, que, no entanto, cresceu rapidamente no decurso da "naturalização" da ciência. Já não se conseguia (secreta ou abertamente) levar a religião a sério; evidentemente, sob o signo do sucesso das ciências naturais e do seu "desencantamento" do mundo. Mas esta liberdade de espírito liberal era na verdade tudo menos libertadora, porque há muito tempo tinha colocado no lugar do Deus cristão a deificação da "bela máquina", ou seja, o movimento mundial de moagem do capital e a sua natureza de fim-em-si. O preconceito desta consciência secularizada quase-religiosa não permitia reflectir sobre e tomar consciência do envolvimento da ciência neste contexto irracional e destrutivo como "magia capitalista".
Mesmo os dissidentes do liberalismo, como Marx e Engels, permaneceram completamente cegos a este contexto. Marx viu no darwinismo principalmente a realização da descoberta científica, e quase reverenciou Darwin, cuja teoria "materialista" da evolução da natureza lhe pareceu apoiar a sua própria teoria "materialista" da evolução da sociedade. Embora também tenha gozado com o facto de Darwin ter reconhecido a sociedade inglesa contemporânea no reino animal, isto pareceu-lhe insignificante e não amorteceu o seu entusiasmo. Após a publicação da segunda edição de "O Capital" (1873), enviou um exemplar com dedicatória ao mestre, sem no entanto obter mais do que uma rejeição educada. Pois Darwin estava com os dois pés bem assentes na terra de um liberalismo ortodoxo, e até tinha sentimentos de culpa por causa das suas blasfemas ambições científicas. O conflito na alma de Darwin reflectia apenas o facto de a contradição entre o livre pensamento científico e os sentimentos conservadores-clericais ser pouco mais do que uma disputa familiar no seio do liberalismo e das suas elites dirigentes.
Os livres-pensadores queriam reservar a pseudo-superação científica da religião para as elites, enquanto "o povo", por razões disciplinares, deveria continuar a ser alimentado com a humildade cristã da fé; esta atitude invertia em certa medida a ideia iluminista da "mentira dos padres", segundo a qual a religião era de qualquer modo apenas um instrumento de dominação nas mãos das elites na realidade materialistas. Ou, na medida em que os livres-pensadores queriam incluir "o povo" e reeducá-lo no materialismo das ciências naturais, eram democratas no pior sentido deste conceito desde Bentham: A substituição da religião pela ciência pretendia substituir a forma grosseira de um paternalismo externo sobre as massas pela forma mais refinada de uma autodisciplina das massas, agora de acordo com alegadas leis "científicas" e até biológicas. Só a este respeito os livres-pensadores representavam uma vanguarda, cuja influência chegava até às associações de trabalhadores liberais.
E foi exactamente neste sentido que o darwinismo afinal desenvolveu a sua devastadora história de influência. Não só a vanguarda de livres pensadores do liberalismo democrático, mas também os líderes liberais-conservadores da própria sociedade capitalista tiveram de acabar por reconhecer a dádiva ideológica colocada no seu ninho por este estranho erudito, que tinha mostrado um tão suspeito "terno interesse pelos coloridos quartos traseiros de certos macacos" (Desmond/Moore 1995, 14), apesar de por essa razão ter sido carimbado como persona non grata pelos clérigos:
"Mas a sua ciência tornou-se um pilar do liberalismo vitoriano tardio. De que outro modo se pode explicar o facto de um conde e dois duques, como representantes do governo de Gladstone, terem levado o caixão no seu funeral na Abadia de Westminster"? (op. cit.).
A apreciação liberal-conservadora da novas ciências naturais do ser humano, apesar das suas convulsões heréticas, não deixou de ter histórias picantes, mas em todo o caso era bem fundamentada. Pois Darwin tinha lido, se não o seu Bentham, pelo menos o seu Malthus, e tinha projectado a sua "lei da população", que Malthus derivara errada e ideologicamente da natureza, de volta à natureza, para poder explicar o alegado mecanismo da evolução das espécies. Ele acreditava ter encontrado este mecanismo, seguindo Malthus, no facto de o "demasiado grande" número de seres vivos de uma espécie desenvolver uma "luta pela vida" da qual apenas os mais capazes de viver emergem como vencedores e, assim, através da "selecção", trazem uma mudança gradual e um maior desenvolvimento; uma visão que já não é defensável mesmo do ponto de vista científico, mas que poderia ser transformada numa ideologia legitimadora. Muito antes da publicação do seu livro de 1859, já nas suas "notas privadas", com metáforas de concorrência e guerra projectadas na natureza, Darwin tinha postulado:
"Reconhecemos que o bem mais elevado que podemos imaginar, nomeadamente o aparecimento de animais superiores, é o resultado directo da morte, da fome, da pilhagem e da guerra oculta da natureza" (citado em: Desmond/Moore 1995, 335).
O darwinismo elevou-se meteoricamente a grande moda; a sua teoria era agora alargada a toda e qualquer coisa, ao ponto de até o universo mecanicista de Newton ter de suportar a biologização neste sentido: Em 1874 o filósofo bávaro Dr. Carl Freiherr du Frei (1839-1899) publicou um ensaio intitulado: "A luta pela vida nos céus. A fórmula darwiniana provada na mecânica do mundo das estrelas". E o popular escritor científico Wilhelm Bölsche (1861-1939) alongou-se sobre "Darwin na poesia" em 1887. Não foi realmente necessário um grande esforço teórico para projectar a mesma doutrina da "luta pela vida" de volta à sociedade, e reconhecer nela uma maravilhosa justificação "científica" para a concorrência capitalista e o seu efeito destruidor da existência e da vida. Em breve o "darwinismo social" florescia abundantemente.
Quando ideólogos imperialistas como Friedrich Naumann, Walter Rathenau ou Max Weber formularam as reivindicações da Alemanha ao poder mundial, não foi por acaso que utilizaram o vocabulário social-darwinista da "luta pela vida" entre as nações capitalistas, que num curto espaço de tempo se tinha infiltrado na terminologia política. E a mesma linguagem foi também utilizada para a "selecção" entre as nações: Os "povos" deveriam reforçar-se e equipar-se para a concorrência, pois os menos capazes de se impor seriam socialmente excluídos. Ao contrário de numerosas tentativas biográficas e científicas de afirmar eufemisticamente que o darwinismo social seria tão incompatível com a teoria de Darwin como "a astrologia é incompatível com a astronomia" (Wuketits 1987, 101), estas visões bárbaras não representavam uma interpretação errónea de Darwin, que ele próprio apareceu muito abertamente como o "primeiro darwinista social" (Märten 1983, 69). Foi ele próprio que transferiu "a luta assassina mas silenciosa dos seres vivos orgânicos, que grassa nas florestas pacíficas e nos campos idílicos" (citado em: Desmond/Moore 1995, 323) novamente para a cultura e a sociedade humanas, e assim traduziu directamente a "segunda natureza" da máquina mundial capitalista de volta à "primeira natureza" e aos seus supostos mecanismos de selecção biológica. Darwin não poderia ter sido tão ingénuo a ponto de não ver o paralelo normativo entre a ideologia da concorrência da teoria social do liberalismo (com a qual ele próprio tinha crescido) e a sua teoria de selecção biológica. Pelo contrário, ao citar explicitamente a leitura de Malthus como sua inspiração decisiva na autobiografia, Darwin admite indirectamente que não seguiu de modo nenhum, como se afirma, uma teoria puramente indutiva desenvolvida a partir da recolha paciente de factos empíricos, mas antes utilizou a justificação ideológica do mecanismo da concorrência económica como uma grelha apriorística de interpretação.
Se Darwin, já em 1859, na sua "Origem das Espécies", utiliza a formulação "que todos os seres orgânicos estão expostos a uma feroz concorrência" (Darwin 1995/1859, 100), a transferência conceptual é bastante óbvia; pois, visto com distanciamento, já inclui em elevado grau uma metáfora ideológica, ao documentar as condições do reino animal e vegetal, como que naturalmente, com um conceito do moderno mecanismo de mercado. Darwin mostra ao mesmo tempo que a retrotransferência é tão naturalmente aplicada, quando refere o seu conceito de "selecção natural" como um mecanismo de selecção: "Entretanto, a expressão utilizada por Herbert Spencer sobrevivência do mais apto é melhor e por vezes igualmente conveniente" (op. cit., ênfase de Darwin). Mas este Herbert Spencer (1820-1903) era justamente um biólogo da filosofia social que defendia a concorrência radical como um "princípio orgânico" da sociedade, que Darwin, naturalmente, tinha de conhecer (e portanto aprovar). Esta retrotransferência social darwinista é claramente confirmada no seu trabalho posterior "A Descendência do Homem", onde relaciona a teoria da selecção directamente com a sociedade moderna:
"O notável sucesso dos ingleses como colonos, comparado com outras nações europeias, [...] tem sido atribuído à sua "energia destemida e persistente"; mas quem pode dizer como os ingleses conseguiram a sua energia? Parece haver muita verdade no pressuposto de que o maravilhoso progresso dos Estados Unidos, bem como o carácter do seu povo, é o resultado da selecção natural [...] A selecção natural é a consequência da luta pela vida [...] Se vemos enormes extensões de terras mais férteis em muitas partes do mundo [... ] habitadas apenas por uns poucos selvagens errantes, então poder-se-ia concluir que a luta pela vida não foi suficientemente feroz para levar o homem ao seu mais alto nível [...] Pelo que vemos, por exemplo, em partes da América do Sul, parece que um povo que se pode chamar civilizado, como os colonos espanhóis, se torna ligeiramente indolente e retrocede quando as condições de vida são demasiado favoráveis e fáceis (!). Em nações altamente civilizadas, o progresso constante depende da selecção natural em grau subordinado; pois tais nações não se substituem e exterminam umas às outras como fazem as tribos selvagens. No entanto, a longo prazo, os indivíduos mais inteligentes da mesma sociedade cooperativa terão mais sucesso do que os inferiores, e também deixarão mais descendentes: e esta é uma forma de selecção natural" (Darwin 1986, 1871, 157s.).
Aqui se torna claro como Darwin, "em termos de teoria social", não só retoma a metáfora naturalizante dos liberais para o mecanismo de concorrência sócio-económica, como torna a biologização do social finalmente mesmo literal, na medida em que a "eficiência" e o desempenho (de acordo com os vis critérios capitalistas, claro) são agora em si mesmos, como alegados problemas de herança biológica e "selecção natural", directamente reduzidos ao nível das plantas e animais. Assim, a alegada lei natural do capitalismo tinha finalmente passado para um estatuto qualitativamente novo: por assim dizer, da filosofia social natural à ciência social natural, nomeadamente como uma subdivisão da biologia.
Mas se as contradições sociais do capitalismo eram afinal um problema biológico-genético, então também tinham de ser acessíveis a uma tecnologia social de controlo biológico. Parecia assim concebível ajudar a natureza e conscientemente acelerar e, por assim dizer, executar a "selecção" social. Contra o pano de fundo do imperialismo, a inundação de ideias e organizações social-darwinistas que em breve iria ocorrer aumentou assim até à utopia da "criação de humanos", para a "luta pela vida" capitalista e para a sobrevivência da própria nação.
Esta utopia assumiu várias formas e desenvolveu uma riqueza de novos conceitos e procedimentos. Sob o nome de "eugenia", os movimentos de criação de humanos para a "saúde hereditária nacional" estabeleceram-se, especialmente nos países anglo-saxónicos e na Alemanha, e continuaram a existir e a crescer até bem dentro do século XX. O seu objectivo era promover e organizar a "Survival of the fittest" social a um nível imediatamente biológico. Nos EUA, houve mesmo concursos no período entre guerras sob o título "Fitter Families":
"Em 1920, a Feira Livre do Kansas, onde aliás eram atribuídos prémios a porcos e abóboras particularmente bem produzidos, foi a primeira a atribuir prémios a famílias com uma excelente composição genética. Uma brochura de acompanhamento declarava: "É tempo de desenvolver a ciência da selecção humana de acordo com os princípios da agricultura (!) científica, se os melhores elementos da nossa civilização quiserem dominar ou mesmo sobreviver". Sob os auspícios da American Eugenics Society, os concursos ‘Fitter Families’ [...] foram realizados em até dez locais por ano. Encontraram inúmeros patrocinadores até a crise económica mundial pôr fim ao interesse por eles" (Baumunk/Rieß 1994, 169).
Raramente se tornou mais claro como a estupidez do capitalismo e da ciência moderna, mutuamente dependente e crescida a partir de uma raiz comum, tem de se transformar na autozombaria tão aberta como cruel das autoritárias personagens burguesas. Era apenas lógico que as "eugénicas" ideias positivas da criação humana nacional fossem logo acompanhadas pelas correspondentes ideias de selecção negativa. Se a "selecção reprodutiva" podia ser ajudada pela propaganda e pela organização de uma reprodução "hereditariamente saudável", porque não também no sentido negativo, pela identificação e isolamento "científicos" de indivíduos ou de tipos inteiros de pessoas negativos, "hereditariamente doentes"? Também neste sentido, o próprio Darwin, no seu livro sobre "A Origem do Homem", tinha fornecido as palavras-chave para o biologismo social:
"Se vários [...] obstáculos [...] não impedirem os membros imprudentes, viciosos e de qualquer modo inferiores da sociedade de se multiplicarem mais rapidamente do que a melhor classe de pessoas, a nação regredirá, como aconteceu muitas vezes na história do mundo" (Darwin 1986 1871, 154).
Enquanto Mandeville, Smith, Kant e Cª ainda tinham atestado superioridade social à nova raça-mestra capitalista e inferioridade moral ou aberração aos que se recusavam a trabalhar ou aos delinquentes criminosos, agora, sob o signo do darwinismo social, as qualidades sócio-morais positivas ou negativas segundo os critérios capitalistas caíam vítimas da determinação biológica. Isto significava, por um lado, que os vencedores da miserável concorrência económica podiam definir-se como as pessoas também biologicamente superiores, quase como "super-homens" determinados pela própria natureza; um termo que, não por acaso, foi inventado por Nietzsche nessa mesma época. Por outro lado, os "avessos ao trabalho" e os delinquentes eram então, de um modo também biologicamente predestinado, fundamentalmente incorrigíveis e não podiam de modo nenhum ser alcançados por uma pedagogia moralizadora; só poderiam ser de algum modo apagados da história. Mas se Malthus, para efeitos da eliminação dos em sua opinião apenas "moralmente inferiores", ainda tinha querido deixar à fúria da "natureza", tão cega quanto útil, que desencadeasse a "lei da população", o darwinismo social exigia agora um mecanismo de selecção científica consciente da sociedade para a eliminação dos "biologicamente inferiores".
Isto dizia respeito por um lado aos "criminosos", ou seja, a multidão de todos aqueles que, por razões sociais que ainda hoje são de longe as predominantes, violam de algum modo as leis capitalistas (em que o crime contra a propriedade não só domina estatisticamente, mas também causa uma maior repulsa liberal e é, em média, punido mais severamente do que as crueldades físicas, na medida em que elas próprias não estão ligadas aos crimes contra a propriedade). Se antes tinha sido ideologicamente difícil afastar as raízes sociais do crime, "o ser criminoso" podia agora ser convenientemente definido, com consagração científica, como uma qualidade de herança biológica, que a priori nada poderia ter a ver com as imposições capitalistas.
Este modo de pensar foi precedido por uma identificação sócio-biológica de "desvios" na chamada "frenologia", um absurdo subproduto das ciências naturais, fundada pelo médico Franz Joseph Gall (1758-1828), segundo a qual as características fisionómicas (por exemplo, formação de protuberâncias nas têmporas) são responsáveis por traços de carácter, especialmente negativos, podendo o comportamento social ser localizado no cérebro humano e medido na sua extensão; por exemplo, a secção cerebral de um "sentido de propriedade", que, se moldada em conformidade, pode ser identificada como "órgão de ladrão" etc. Esta grotesca autocaricatura das ciências naturais levou a uma prática de "medição do crânio" em delinquentes, que começou a escalar no contexto do darwinismo social e floresceu repetidamente na teoria e na biologia social.
Sob a influência da teoria da evolução de Darwin, a "criminalidade" biologicamente determinada foi cada vez mais classificada como um efeito de atavismo ou degeneração, sendo que o conceito de "degeneração" ganhou gradualmente aceitação geral. Neste sentido, o sexólogo vienense Richard von Krafft-Ebing (1841-1902) já se permitiu definir criminosos e agressores sexuais como biologicamente "degenerados" num ensaio de 1868:
"(Estes incluem) aqueles indivíduos que foram marcados com o selo de doentes a partir do momento em que foram concebidos, aqueles imprestáveis, mandriões, vilões instintivos desde a infância, que na primeira juventude são o terror dos pais, a praga dos companheiros, mais tarde o objecto de horror dos professores e moralistas, e se tornaram impossíveis na sociedade burguesa no decurso da vida" (citado em: Bergmann 1992, 149).
Fama e reconhecimento internacionais foram também conquistados pelo cientista forense de Turim Cesare Lombroso (1836-1909) com a sua vasta "teoria da degeneração", que também postulou o "criminoso nato" (Uomo delinquente). Lombroso comparou, por exemplo, as alegadas maneiras de andar (!) de criminosos e epilépticos com um "andar normal"; a partir de "investigações" tão bizarras criou, entre outras coisas, um "quadro clínico" comum de "epilepsia, prostituição, crime e anarquismo (!)" (citado em Bergmann 1992, 151s.).
Por outro lado, o problema da selecção biológica afectava naturalmente todos os deficientes físicos ou mentais, doentes crónicos, aleijados etc., numa palavra, todos aqueles que eram incapazes de trabalhar no sentido capitalista, mesmo que não atraíssem a atenção através da delinquência. Também a este respeito, o próprio Darwin já tinha fornecido as palavras-chave, mesmo para além de Malthus:
"Entre os selvagens, os fracos de mente ou de corpo são rapidamente eliminados, e os que permanecem vivos mostram geralmente um estado de saúde robusto. Nós pessoas civilizadas, pelo contrário, fazemos todo o possível para parar o processo desta eliminação. Construímos abrigos para os fracos de espírito, para os aleijados e doentes; promulgamos leis para os pobres, e os nossos médicos fazem o maior esforço para preservar a vida de cada pessoa até ao último momento. Há razões para crer que a vacinação manteve vivas milhares de pessoas que teriam morrido mais cedo de varíola como resultado da sua fraca constituição. Através disso, acontece que também os membros mais fracos da sociedade civilizada reproduzem a sua espécie (!). Ninguém que tenha dedicado atenção à criação de animais domesticados duvidará que isto tenha de ser extremamente prejudicial para a raça humana. É surpreendente como a falta de cuidado ou um cuidado mal dirigido leva à degeneração de uma raça domesticada, mas, com excepção do caso do próprio homem, quase nenhum criador é suficientemente ignorante para permitir que os seus piores animais tenham crias" (Darwin 1986/1871, 148).
Darwin minimiza as consequências implícitas de tais afirmações quando pede hipocritamente que, por razões de moralidade civilizadora, a sociedade no entanto "suporte o efeito indubitavelmente mau da manutenção em vida (!) e da reprodução dos fracos" (loc. cit.). Mas a conclusão da selecção sócio-biológica quase se impõe se as premissas de Darwin forem reconhecidas. Vista à distância, porém, a argumentação de Darwin é obviamente duplamente infundada. Por um lado, mesmo na natureza biológica, "força" e "fraqueza" são sempre relativas e frequentemente ambíguas; quando o sistema de referência muda, "forças" podem transformar-se em "fraquezas" e vice-versa.
Por outro lado, e acima de tudo, a sociedade e a cultura humanas são de uma ordem de natureza diferente da biológica; não é preciso sequer uma identificação ético-moral especial para reconhecer esta diferença elementar. É bastante claro que a descoberta e a descrição da evolução biológica das espécies feita por Darwin já está contaminada na raiz da sua argumentação com os conceitos da relação capitalista com o mundo. De um ponto de vista sociocultural, no que diz respeito à sua capacidade de ligar energias sociais e integrar socialmente os membros da sociedade, o capitalismo tem de ser considerado uma forma extremamente instável e híbrida de sociedade, cujo critério de "força" na concorrência de todos contra todos representa ao mesmo tempo uma tremenda "fraqueza" da formação global enquanto tal, que actua como uma força autodestrutiva.
O biologismo social de Malthus e Darwin, até às ramificações das ideias e movimentos sociais darwinistas desde a segunda metade do século XIX, não foi nem deve ser entendido como problema de uma argumentação meramente errada ou obviamente incoerente. Como ideologia científica (e ideologia de uma pseudocientificização da sociedade), ele não se refere apenas ao núcleo irracional das próprias ciências naturais modernas, que são afectadas e não apenas externamente pelo fim-em-si abstracto e destrutivo do modo de produção capitalista; acima de tudo, ele representa uma formação ideal de reacção às exigências internalizadas da concorrência capitalista em todas as suas manifestações, de facto absolutamente repugnante, mas, como qualquer sistema insano, bastante lógica em si mesma.
Uma crítica das formações sócio-biológico-darwinistas de reacção ao sistema de concorrência só podia e só pode ser feita como crítica radical da própria concorrência e, portanto, do mecanismo fetichista subjacente da "bela máquina". Pelo contrário, todas as críticas meramente morais do darwinismo social, que no entanto pressupõem o sistema de concorrência e de "trabalho" abstracto, ou seja, que apenas querem passar por numa espécie de "hunismo moderado" no sentido da social-democracia (ou da moderna doutrina social cristã), têm de ter, sem dúvida, sempre maus resultados na discussão com ideias abertamente sócio-biologistas. Pois estas ideias, por mais irracionais que sejam, não são mais irracionais do que o capitalismo e a sua própria economia de mercado; podem sempre referir-se nas suas consequências assassinas ao carácter realmente assassino da "luta pela vida" capitalista.
Assim, no período de incubação das guerras mundiais, o biologismo social ofereceu a ideologia de legitimação não só mais confortável para as políticas expansionistas imperialistas e para a administração da crise interna capitalista, mas também simultaneamente a mais barata, embora precária e autodestrutiva "luta" de integração negativa, orientada sob a forma de uma monstruosa ideologia de compensação para as massas humilhadas, artificialmente empobrecidas, pedagogizadas e amestradas, que assim foram autorizadas a mascarar agressivamente a sua auto-subjugação incondicional ao processo de valorização: quem nada mais era ainda podia pelo menos sentir-se superior aos vários "degenerados" e qualificado como um ser humano completo; e quem nada mais tinha ainda podia pelo menos referir-se à forma "certa" do seu nariz ou ao enorme tamanho da sua inchada cabeça pequeno-burguesa.
Tanto a "eugenia" positiva da criação de humanos como a negativa e seleccionadora equivaliam em primeiro lugar a uma política demográfica biologista que se definia a si própria como "higiene reprodutiva". Enquanto os "inferiores" e "degenerados" deveriam ser impedidos de se reproduzir, se necessário pela lei e pela força policial, o objectivo sócio-político era reunir material humano "hereditariamente saudável" de acordo com critérios agrícolas. Embora os mecanismos, formas e conteúdos da genética e da evolução biológica (como tais inquestionáveis, mas seguramente não relacionados com as "características sociais") sejam ainda hoje discutidos e insuficientemente investigados, a cientificidade toda ela barbuda do capitalismo imperialista disparou numa farsa tal que teria de colher tempestades de riso ainda hoje se as suas consequências não fossem tão horríveis. As dimensões da cabeça e as formas do corpo foram medidas com seriedade animal, foram exibidos crânios alegadamente significativos (!) de antigas prostitutas, criminosos etc., foram feitas estatísticas, diagramas e tabelas com relações completamente arbitrárias e grotescas. Um resto do mesmo contexto, a propósito, são os chamados "testes de inteligência", continuados ininterruptamente até hoje (especialmente nos aparelhos estatais), que não só pressupõem um conceito funcionalmente reduzido (ou seja, ajustado ao capitalismo) de "inteligência", mas também se caracterizam por implicações racistas repetidamente emergentes.
Esta verdadeira sátira das ciências naturais, porém, foi certamente orientada, com uma certa racionalidade interna capitalista, para um controlo refinado das expressões sociais, mas sobretudo do instinto e da sexualidade – em última análise, para o controlo estatal da reprodução. Os protagonistas do "controlo da natalidade" não estavam e continuam a não estar de acordo sobre se nascem demasiadas pessoas, como Malthus tinha afirmado, ou talvez pelo contrário muito poucas – para esta visão se inclinavam então novamente (à semelhança dos ideólogos da carne para canhão do absolutismo no passado) os pensadores estratégicos mais militares, que já previam as próximas vítimas em batalha. Pelo contrário, havia um grande consenso no discurso masculino capitalista no sentido de que, juntamente com os nascimentos, também as potenciais parturientes, ou seja, "as mulheres" deveriam ser mais refreadas. Porque havia a suspeita fundada de que a parte feminina da humanidade não entregaria tão facilmente a sua corporalidade e vida amorosa aos pontos de vista de criação de gado dos melhoradores da humanidade capitalista, o darwinismo social inventou simultaneamente a "debilidade fisiológica da mulher", como no título de um tratado do famigerado neurologista guilhermino Paul Julius Möbius (1853-1907), publicado em 1900, tão altamente erudito como louco.
O capitalismo, pela sua própria natureza uma organização masculina, sempre abrigou a ideia de uma certa falta de fiabilidade e simultânea inferioridade do material humano feminino, que, por ter sido disponibilizado para as áreas "dissociadas" não completamente compreendidas pela lógica capitalista, também menos poderia ser absorvido pelos critérios da máquina mundial capitalista. Esta atitude fundamentalmente misógina, já presente na filosofia do iluminismo e mais desesperadamente formulada por Sade, foi mesmo a verdadeira raiz de um pensamento biologista no capitalismo; tanto mais exuberantemente poderia esta desvalorização do feminino, baseada em atribuições sócio-históricas, florescer agora no contexto social darwinista.
O próprio Darwin também a este respeito foi mais uma vez o primeiro darwinista social; dado que o meio essencial da "selecção sexual" era a "luta" (uma suposição feita de forma completamente arbitrária por Darwin), luta travada exclusivamente pelos "machos", também as qualidades (de luta) melhoradas eram transmitidas apenas aos descendentes masculinos, de modo que "o macho varia muito mais frequentemente do que a fêmea" (Darwin 1986/1871, 251), sendo assim o verdadeiro portador do "desenvolvimento superior" evolutivo; com consequências para a classificação dos sexos também entre os humanos:
"O homem é mais corajoso, combativo e enérgico do que a mulher e tem uma mente mais inventiva. O seu cérebro é absolutamente maior [...] A mulher [...] está, como se diz, a meio entre a criança e o homem na formação do seu crânio [...] A principal diferença nas capacidades intelectuais dos dois sexos é que o homem atinge sempre em tudo o que comece um nível superior àquele a que a mulher consegue elevar-se, quer requeira reflexão profunda, razão ou imaginação, ou apenas o uso dos sentidos e das mãos" (op. cit., 629s., 637).
Os frutos de tal "reflexão profunda" foram ainda ultrapassados pelo Sr. Möbius, medidor de crânios. Para ele estava assente que:
"Ora o instinto torna a mulher semelhante a um animal [...] Muitas características femininas estão ligadas a esta qualidade animalesca. Em primeiro lugar, a falta de opinião própria [...] Tal como os animais sempre fizeram a mesma coisa desde tempos imemoriais, também o género humano, se houvesse apenas mulheres, teria permanecido no seu estado original" (citado em Bergmann 1992, 268).
Möbius chega assim inocentemente à sucinta conclusão de que "durante uma parte considerável da sua vida a mulher deve ser considerada como anormal (!)" (op. cit.). Assim, "a mulher" ficou de repente "fisiologicamente", por assim dizer, em linha com os "degenerados", aos quais foram acrescentados homossexuais, "onanistas excessivos" e outros "anormais", que possivelmente tinham algo mais em mente durante o sexo do que a honra da reprodução "heriditariamente saudável" para o povo e para a pátria.
As macabras palhaçadas da biologização darwinista das condições e características sociais teria permanecido bem debaixo do tapete até hoje, se os estudos feministas das mulheres (por exemplo, nas obras da cientista política e historiadora social berlinense Anna Bergmann, que aqui é citada várias vezes com referências, e muitas outras) não tivessem, apenas recentemente, penetrado sistematicamente todo o complexo. A "magia capitalista" das ciências naturais (e da chamada ciência em geral), que até hoje é dominada pelos homens, tanto em termos de método como de conteúdo, bem como em termos de puro número e de domínio institucional, só relutantemente admite o que foi claramente provado, e voltou a ser provado mil vezes, em relação à sua história tão vergonhosa como ridícula. Mas mesmo assim os descarrilamentos de arrepiar os cabelos e os erros teóricos das alegadas figuras luminosas da sua própria galeria de antepassados (como no caso de Darwin) são sistematicamente minimizados e encobertos. Se as falsas e destrutivas ciências naturais em curto-circuito com o histórico-social mudaram e mascararam melhor a sua terminologia e a sua argumentação após Auschwitz, permaneceram no entanto essencialmente as mesmas, e por isso não conseguem por natureza criticar e rejeitar abertamente e sem reservas o biologismo social (nem, portanto, a sua própria história).
Esta ciência natural do ser humano social, de facto sem graça, mas completamente louca e ao mesmo tempo um perigo público, foi suficientemente inscrita no corpo dos demónios e fúrias da consciência concorrencial capitalista para poder fundir-se facilmente com outra monstruosidade do pensamento dela originada sistemicamente, a moderna mania racial. Já os grandes filósofos do iluminismo, com Kant à cabeça, tinham definido os seres humanos de África como "humanos animalescos" ao mais baixo nível. Nove anos antes do seu tratado sobre a glorificação da concorrência, o co-fundador da razão capitalista alongou-se sobre as "diferentes raças de seres humanos", a fim de chegar à conclusão:
"A propósito, o calor húmido é propício ao forte crescimento dos animais em geral, e, em resumo, dele brota o negro, que é bem adaptado ao seu clima, nomeadamente forte, carnudo, ágil, mas, dada a abundante oferta da sua pátria (!), é preguiçoso, mole e fútil" (Kant 1993 XI/1775, 23).
Do ponto de vista da campanha contra a "preguiça" para efeitos de "diligência" (industrialização) do material humano, os "negros" tiveram de servir de exemplo negativo; e não há dúvida de que os mestres da "bela máquina" conseguiram transformar a "abundante oferta da sua pátria" na escassez artificial das "pátrias" capitalistas, ao nível mais baixo da pirâmide do mercado mundial. Mas Kant sabia desde cedo, no seu tratado "Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime", que os africanos também não serviam para nada e por natureza tinham de ser maltratados:
"Os negros de África não têm por natureza nenhum sentimento que ultrapasse o ridículo. O Sr. Hume exorta todos a darem um único exemplo de um negro que tenha demonstrado talento, e afirma que entre as centenas de milhares de negros que são desencaminhados das suas terras para outros locais, embora muitos deles sejam libertados, nunca foi encontrado um único que tenha apresentado algo de grandioso, seja na arte ou na ciência, ou qualquer outra qualidade notável, embora entre os brancos haja sempre aqueles que se erguem da mais baixa ralé [...] Os negros são muito vaidosos, mas à maneira negra, e tão tagarelas que têm de ser dispersos à pancada" (Kant 1988/1764, 880).
A teoria do desenvolvimento de Hegel também continuou a esta discriminação racista, ao rotular a cultura dos "negros" como a fase pré-civilizacional mais baixa do "espírito do mundo" realizado; por exemplo, nas lições sobre filosofia da história:
"Essa África autêntica é [...] o país das crianças, que está envolto na cor negra da noite, longe do dia da história consciente de si própria [...] Entre os negros [...] a característica é precisamente que a sua consciência ainda não chegou à contemplação de qualquer objectividade fixa, como Deus, ou lei, por exemplo, com a qual o ser humano estaria com a sua vontade e na qual teria a contemplação do seu ser. O africano, na sua unidade indiscriminada e trespassada, ainda não chegou a esta distinção entre si como indivíduo e a sua generalidade essencial, onde o conhecimento de um ser absoluto, que seria outro, superior ao eu (!), está completamente ausente. O negro representa [...] o homem natural em toda a sua selvajaria e indomabilidade [...] não há nada que se possa encontrar neste carácter que tenha uma conotação humana" (Hegel 1992/1837, 120ss.).
A "generalidade essencial", que representa um "ser absoluto" que seria "superior" ao "eu", não é obviamente nada mais do que a máquina de fim-em-si do capital, cuja pretensão absoluta (isto é, totalitária) tem de excomungar da humanidade qualquer forma de existência humana que não corresponda às categorias de mercado e concorrência. Em França, Auguste Comte (1798-1857), o vulgarizador positivista de Hegel, criou uma correspondente "teoria dos estádios" da humanidade, que vai desde o alegado canibalismo dos "selvagens" até aos "escolhidos ou [...] vanguarda da humanidade" que "inclui a maior parte da raça branca ou das nações europeias" (Comte 1933/1881, 167). Embora o conceito de raça fosse até então ainda mais fundamentado em termos de teoria da cultura, já continha uma característica biológica com o critério da cor da pele.
A isto pôde seguir-se o diplomata e publicista francês Joseph Arthur Conde de Gobineau (1816-1882), que inventou o mito da "nobre raça ariana". Gobineau ainda pertencia aos ideólogos das antigas teorias da elite absolutista, que viam o iminente declínio social da nobreza como o princípio da decadência da humanidade. Ele tentou identificar este pensamento como um padrão de declínio ao longo da história, numa mistura peculiar de mitologemas artesanais e da ideologia sócio-biologista emergente. O mito do "arianismo", originalmente insuflado de modo completamente arbitrário numa doutrina racial fantasmagórica a partir de descobertas puramente da história das línguas (no que diz respeito ao parentesco das chamadas línguas indo-germânicas), já florescia desde o início do século XIX; a referência ao alegado "sangue" comum devia, no entanto, ser entendida (como também ainda no caso de Gobineau) mais como uma irracional metáfora cultural.
Através da fusão com o darwinismo, a teoria racial também assumiu um carácter directamente biologista, o que até certo ponto duplicou o seu carácter inerentemente delirante e destrutivo. Já Gobineau considerava a luta pela "pureza da raça" como o único remédio contra a (fatalistamente considerada imparável) decadência pela "mistura constante de sangue", em que via os restos ainda "relativamente mais puros" dos arianos basicamente na "raça branca", e dentro desta raça voltava a favorecer "as raças germânicas", cujo "núcleo racial" ele acreditava ter sido mais preservado em certas áreas da França, na Escandinávia e no Norte da Alemanha. O "Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas" de Gobineau já tinha sido publicado no ano revolucionário de 1848, ou seja, até antes da "Origem das espécies" de Darwin. Foi apenas no período seguinte que a teoria da raça foi carregada com a teoria da hereditariedade darwinista e a "eugenia".
O facto de uma espécie de filosofia da "consanguinidade", por um lado, e a ideia de um maior desenvolvimento através da variância genética, por outro, não se encaixarem necessariamente, mesmo dentro da construção biológica, não diminuiu a eficácia do racismo darwinista (ou do darwinismo racista). Tais inconsistências não importavam; pois os objectos biológicos no verdadeiro sentido da palavra são ruído e fumo no contexto da mania racial, uma vez que esta deriva o seu poder precisamente de uma lógica bastante diferente, que só indirectamente tem algo a ver com a verdadeira investigação dos processos biológicos. A combinação enganadora da teoria racial e da eugenia darwinista estava constantemente a difundir-se entre padrões culturalistas e biologistas, que se sobrepunham e produziam combinações cada vez mais absurdas; ao ponto de uma biologização da religião ou de uma biologia racial religiosa.
Um dos mais eficazes propagandistas desta paranóia da sociedade da concorrência do capitalismo foi o inglês alemão Houston Stewart Chamberlain (1855-1927), cujo massudo folhetim racial "Os fundamentos do século XIX" tinha tido uma enorme circulação e traduções para as principais línguas ocidentais desde 1899. Com meticulosidade ilusória, o autor vai bisbilhotar ao longo de mais de mil páginas quase toda a história, incluindo as formas de arte, de acordo com pontos de vista "raciais", proporcionando assim ao seu tempo uma interpretação sócio-biologista abrangente a nível histórico-cultural. A luta pela "pureza racial" avançou assim para se tornar o corredor ideológico alvo no início do século XX, com influência mais ou menos profunda em todos os países capitalistas e sociedades modernizadoras sem excepção.
Do darwinismo, da mania racial e do casamento das duas construções, dos elementos involuntariamente parodísticos de umas androcêntricas ciências naturais do ser humano, do fantasma do "arianismo" e do "germanismo", da eugenia ou da "higiene racial" (como a ideia de criação agrícola de humanos era sobretudo chamada doravante ) e da selecção de "inferiores", foi assim desenvolvida uma hierarquia dualista do sistema imperial-capitalista a todos os níveis: humanos dominantes biologicamente elitistas, "raça branca", normais "hereditariamente saudáveis", homens combatentes, de um lado; material humano a ser controlado e biologicamente inferior, "degenerados" e doentes, criminosos natos, mulheres, "raças de cor", do outro lado.
Esta versão mais desenvolvida do melhor de todos os mundos não teria certamente ficado completa sem uma lúgubre contra-imagem das figuras de luz imaginadas da loucura darwinista e racista. Pois por mais fantasmáticas que fossem as formas imanentes de processamento e reflexão da concorrência imperial interna e externa, elas tinham de abranger todos os aspectos do sistema capitalista industrial mais desenvolvido. Um aspecto essencial, no entanto, foi naturalmente a auto-subjugação e auto-entrega da raça-mestra da concorrência, sob o obscuro deus-fetiche da "bela máquina" e sob o fado da concorrência, o que incluía as possibilidades de crise, fracasso e derrocada. O facto de o sujeito autocrático da concorrência ter sido confrontado com o "sujeito automático" de um sistema de referência cego e superior teve de aparecer de algum modo no carácter de pesadelo do pensamento nele contido.
Assim, faltava ainda um fantasma do sonho – a encarnação do mal biológico. Toda a sociedade que não está consciente de si própria e se move em formas de pensamento e acção de leis pseudo-naturais de fim-em-si precisa da ideia de um “mal”, pensado como estranho e externo, a fim de recalcar os momentos reprimidos do seu próprio eu que não estão integrados na consciência. Num sentido puramente superficial e político, os "reinos do mal" eram naturalmente os concorrentes imperialistas, que foram pintados de preto em conformidade. Mas esta classificação estava longe de bastar para definir suficientemente a incompreensibilidade do mal, que tinha de poder ser apresentado na própria sociedade como um demoníaco "inimigo interno". Se o sistema de valorização do valor e da concorrência generalizada era bom em si mesmo, então os efeitos negativos altamente visíveis e ainda ameaçadores para o futuro tinham de provir de um contra-poder omnipresente, mas biologicamente alienígena e maléfico. As categorias inferiores de seres humanos não podiam representar este mal, não eram suficientemente satisfatórias para isso. Teria sido desonroso para a raça dominante da concorrência, dentro do seu próprio sistema de loucura, ser possivelmente pouco competitiva, condenada ao declínio histórico ou arruinada por "degenerados", mulheres ou pessoas de cor e outros "sub-humanos".
O sistema capitalista maduro precisava assim de uma "raça contrária maléfica" de "super-homens negativos", para a encarnação da sua própria negatividade no contexto da visão do mundo biologista – e isto foi encontrado na figura dos judeus. Uma tal interpretação do mal sob o capitalismo podia referir-se a uma longa tradição. Já na Idade Média, as comunidades judaicas tinham sido expostas a fantasias absurdas (por exemplo, a suspeita de assassinatos rituais canibais de crianças cristãs) e a perseguições periódicas como "assassinos de Cristo". Porque na maioria dos países foram excluídos da propriedade de terras agrícolas bem como da admissão ao comércio tradicional, muitos judeus, pelo menos na Europa Ocidental e Central, tinham inevitavelmente mudado para o comércio e para as transacções monetárias; do pequeno comércio ambulante e recolha de trapos até ao empréstimo de dinheiro. Na classificação negativa, portanto, os judeus foram geralmente equiparados à figura do homem do dinheiro e do negociante, e estigmatizados como a encarnação da amoral fome de dinheiro e do usurário sugador de sangue, o que teria sido muito mais aplicável aos governantes absolutistas e aos seus aparelhos (já aqui é evidente a projectiva função exonerante da síndrome anti-semita para a modernização).
Quanto mais o modo de produção capitalista se estendia a toda a sociedade e se desencadeava a "bela máquina", tanto maior se tornava a necessidade desta projecção: o pavoroso da dominação sem sujeito e muda do dinheiro reacoplado a si próprio podia assim ser reconduzido às maquinações sinistras de uma subjectividade estranha. O sentimento religioso da Idade Média transformou-se no anti-semitismo moderno, que transferiu esse sentimento para o quadro de referência secularizado e quase religioso da máquina mundial capitalista, e definiu a negatividade da valorização do valor como "ser judeu": O que é mau na dominação do dinheiro tem de ser "judeu". Dado o seu modo de vida social, frequentemente em gueto obrigatório, as comunidades judaicas eram também adequadas para esta classificação projectiva do mal e do estranho no corpo da própria sociedade. Num mundo de nações capitalistas e "povos" inventados, o "povo" dos judeus, espalhados por estes constructos reais da modernização, proporcionou simultaneamente uma superfície de projecção para as ameaças da "luta pela vida" global: O "judeu internacional" apareceu como a contra-imagem do pioneiro da consciência nacional; a maior fluidez transnacional do capital monetário, em comparação com a produção industrial de mercadorias cada vez mais centrada na nação, tornou-se a "questão judaica", e a existência de algumas conhecidas famílias de banqueiros judeus (com os famosos Rothschilds à cabeça) foi declarada o fenómeno de um insidioso "capital financeiro judaico internacional".
Na fusão com o darwinismo, a síndrome anti-semita também degenerou na interpretação biologista: a negatividade postulada do judaico, a sua definição como o poder do pavoroso na modernidade, aparecia agora como uma "qualidade racial" biológica. A paranóia anti-semita transformou as próprias pretensões imperialistas num "assalto da raça judaica ao poder mundial" e os processos cegos e imprevisíveis da concorrência capitalista do mercado mundial numa fantástica "conspiração judaica mundial", como Houston Stewart Chamberlain demonstra exemplarmente na porcaria da sua obra:
“Determinado por motivos ideais, o indo-europeu abriu as portas com amizade: como um inimigo, o judeu precipitou-se, invadiu todas as posições e plantou – não quero dizer sobre os escombros, mas nas brechas do nosso verdadeiro carácter – a bandeira do seu ser eternamente estranho. Será que devemos injuriar os judeus por isso? Isso seria tão ignóbil como indigno e irrazoável. Os judeus merecem admiração, pois agiram com absoluta certeza de acordo com a lógica e a verdade da sua peculiaridade, e nunca a estupidez da humanidade (da qual os judeus só participaram na medida em que foi em seu próprio benefício) os fez esquecer, mesmo por um momento, a inviolabilidade das leis físicas. Pode-se ver com que mestria usam a lei do sangue para espalhar o seu domínio: o tronco principal permanece imaculado, nem uma gota de sangue estranho o penetra [...] mas entretanto milhares de ramos laterais são cortados e utilizados para infectar os indo-europeus com sangue judeu. Se isto continuasse por alguns séculos, haveria então apenas um povo racialmente puro na Europa, o dos judeus; tudo o resto seria uma manada de mestiços pseudo-hebraicos, um povo sem dúvida física, espiritual e moralmente degenerado [...] Aos judeus foi agora prometido o domínio mundial e a posse de todos os tesouros do mundo, nomeadamente todo o ouro e toda a prata [...] este é agora o futuro que está a ser forjado para o judeu. Na humildade ele deve inclinar-se perante Deus, mas não naquela humildade interior da qual Cristo fala, mas ele inclina a cabeça perante Javé, porque lhe é prometido que, cumprindo esta condição, colocará o seu PÉ no pescoço de todos os povos do mundo e tornar-se-á senhor e dono de toda a Terra. Este único fundamento da religião judaica inclui assim um atentado criminoso directo a todos os povos da Terra, e o crime não pode ser negado por ter faltado até agora o poder para o levar a cabo, pois é a própria esperança que é criminosa e envenena o coração do judeu […] Aqui o poder da ideia triunfa de uma forma assustadora: num povo bem dotado, mas não invulgarmente notável quer física quer mentalmente, cria a ilusão de uma escolha especial [...] (e) torna-o tão inevitavelmente [...] um inimigo aberto ou escondido de todos os outros seres humanos, um perigo para todas as culturas, que a todo o momento e em todos os lugares incutiu a mais profunda desconfiança e repugnância no seguro instinto popular [...] A ideia de isolar a nação pela proibição estrita do casamento e de criar uma raça nobre fora do desesperadamente bastardo israelita é engenhosa [...] Digo então que os homens que fundaram o judaísmo não foram conduzidos por más intenções egoístas, mas por um poder demoníaco que só pode ser qualidade de fanáticos honestos, pois o terrível trabalho que fizeram é perfeito em todos os aspectos [...] O judaísmo e o seu poder, como a sua vitalidade inelutável, não podem ser compreendidos, o judeu entre nós, o seu carácter, a sua maneira de pensar, não pode ser julgado de forma justa e precisa enquanto este génio demoníaco não for reconhecido na sua origem" (Chamberlain 1934, 1899, 382ss., 532ss.).
Esta versão exemplar e antes de Hitler a mais eficaz da síndrome anti-semita não só mostra a projecção com a ajuda da qual a irracionalidade da economia capitalista se traduz em peculiaridades da religião judaica, mas também, através da biologização racista, como o "ser judeu estranho" se transforma na objectividade inescapável da "raça contrária demoníaca", cujos membros não podem ser subjectivamente culpados, uma vez que actuam apenas de acordo com a sua natureza biológica. Justamente este "reconhecimento" pseudocientífico do imaginado "inimigo racial" acaba por deixar em aberto apenas a lógica da aniquilação física, uma vez que um entendimento humano com as mudas "leis do sangue (estranho)" já não é possível. É óbvia a analogia com as leis do mercado e da concorrência, não negociáveis e mudas. O anti-semitismo, como aberração da modernização, cedo se provou assim como o culminar do racismo e do biologismo comuns, na medida em que transformou a concorrência imperial numa irracional batalha espiritual entre a "raça ariana ou germânica", por um lado, e a "raça judaica estranha", por outro, onde os vis agitadores e perseguidores de uma minoria que tinha sido assediada durante séculos se estilizaram no papel de últimos defensores de uma ariano-germânica fortaleza quase caída do germanismo e do europeísmo, assediada pelas monstruosidades do "estranho".
É difícil de imaginar (e por norma só relutantemente abordado) os círculos em que estas ideologias literalmente insanas de racismo e anti-semitismo já circulavam nas décadas entre 1870 e a Primeira Guerra Mundial, como Leon Poliakov em particular revelou na sua extensa "História do Anti-Semitismo". Não só na Alemanha (que deveria ser um caso particularmente grave) as elites e intelectuais quase sem excepção estavam praticamente obcecadas por estas ideias. Entre os admiradores de Chamberlain encontravam-se, por exemplo, o Presidente americano Theodore Roosevelt, Bernard Shaw e Leo Tolstoy (Poliakov 1988, VII, 36).
Este estado de espírito generalizado foi exacerbado em certas ocasiões, por exemplo, com o famoso caso Dreyfus em França, o caso do oficial judeu Alfred Dreyfus (1859-1935), que foi erradamente condenado e despromovido em 1894 por uma conspiração que o acusava de actuar como espião para a Alemanha. Apesar da descoberta de falsificações a favor da acusação e da prova de outro criminoso, Dreyfus foi apenas "perdoado" em 1897 e só foi absolvido em 1906. Este caso desencadeou no público uma tempestade de incitação anti-semita que, apesar da (ou talvez devido à) descoberta do caso, continuou a ferver vezes sem conta; embora o anti-semitismo francês se caracterizasse por "um toque de frivolidade" em comparação com o anti-semitismo alemão e, portanto, tivesse "efeitos atenuantes" – ao contrário da Alemanha prussiana, por exemplo, os anti-semitas franceses não rejeitavam o duelo com os judeus! (Poliakov 1988, VII, 58ss.). Mas mesmo entre os defensores de Dreyfus, que pelo menos denunciaram a vileza da conspiração e o torcer da lei, encontram-se "em geral" declarações anti-semitas completamente "inocentes". A noção ridícula difundida por Chamberlain e espíritos afins de que "os judeus" em breve assumiriam o domínio da Europa através do seu persistente trabalho de sapa "racial" foi tomada como certa até por vozes pró-judaicas e anti-pogroms.
Quase tão mau, porém, foi o facto de cidadãos judeus em quase todos os países capitalistas terem adoptado elementos destes delírios e de certo modo apoiado declarações correspondentes. O motivo do "auto-ódio judaico" tem sido muitas vezes explorado de maneira anti-semita para poder usá-lo como explicação de modo positivista sem mais comentários. O verdadeiro núcleo deste comportamento pode talvez ser melhor comparado com a conhecida síndrome em que as vítimas de raptores violentos desenvolvem frequentemente uma espécie de simpatia pelos seus atormentadores, a fim de se protegerem psicologicamente. Na situação sociopatológica do capitalismo na viragem do século, era especialmente a pertença às elites funcionais e à intelligentsia completamente nacionalista, que tinha de exercer uma tremenda pressão para se adaptar, o que poderia levar a tais reacções autodestrutivas. Esta é a única explicação para que nas sinagogas de Paris se rezassem orações pela saúde de Alexandre III, o abertamente anti-semita "czar dos pogroms", porque era um aliado da França (Poliakov 1988, VIII, 130).
Comportamentos e expressões semelhantes podem ser observados entre muitos escritores e teóricos judeus conhecidos até à época do regime hitleriano; um facto que ainda hoje é largamente recalcado e não balanceado, embora seja precisamente um fenómeno social tão extremo da consciência o adequado para lançar luz sobre o carácter profundamente enraizado da síndrome racista e anti-semita na modernidade. Mas isso é o que a intelligentsia liberal, esquerdista e democrática, vinculada no seu pensamento ao sistema produtor de mercadorias e às suas categorias, aparentemente não quer saber, porque recua perante as consequências da crítica.
Não é apenas numa aparência exterior que as motivações racistas e anti-semitas podem ser rastreadas até às grandes mentes do iluminismo, como Voltaire, Rousseau, Kant etc. (cs. Poliakov 1983, V). Mesmo que os vários pontos de referência remontem muito mais atrás na história, a ligação entre darwinismo, biologismo social, ódio racial e anti-semitismo é um produto genuíno da modernização; uma forma de reflexão necessariamente irracional da concorrência e, a partir de uma certa fase do desenvolvimento do capitalismo (que tinha sido alcançada aproximadamente desde 1870), uma manifestação imanente da consciência de massas surgida de modo francamente lógico. Faz parte da camuflagem da história da modernização pretender que esta ideologia biologista, também enraizada no iluminismo e no liberalismo, tal como até no socialismo de Estado, se tornou independente em relação à "consciência-mãe" liberal nas novas correntes e partidos "radicais de direita" que nada mais tinham a ver com o velho conservadorismo (aristocrático-absolutista) e deveriam experimentar a sua grande ascensão no século XX.
Na medida em que ainda hoje ocorrem conflitos e recriminações mútuas entre liberalismo e racismo/anti-semitismo, trata-se de uma disputa dentro de um quadro de referência comum, cujas reflexões externamente contraditórias também remontam ideologicamente a uma raiz comum. O sistema de produção de mercadorias e da concorrência, total segundo a exigência e a tendência histórica, produz necessariamente um constructo maniqueísta de "bom" e "mau", de "amigo" e "inimigo", que não se exprime apenas nos biologistas ramos separados da "extrema-direita". Na medida em que o liberalismo se vira contra a síndrome racista-anti-semita autonomizada, só o pode fazer pela sua parte através da crença num atavismo estranho e externo que se ergueu dos abismos da alma: como não pode reconhecer este "mau" como carne da sua carne, só pode reflectir irracionalmente sobre o próprio irracionalismo.
Ao mesmo tempo, contudo, o liberalismo também contém imediatamente a matriz biologista-racista nas suas próprias formas de pensamento; o darwinismo social nas suas várias manifestações (abertas ou ocultas) tem permanecido até hoje uma intersecção com as correntes radicais de direita. Na viragem do século, no entanto, a consciência liberal foi mesmo completamente permeada pela forma de pensar "científica" biologista-racista e anti-semita; as formas independentes de um novo radicalismo de direita, ainda pouco claro, só permaneceram correntes políticas marginais até à Primeira Guerra Mundial porque as elites liberal-conservadoras do imperialismo e os seus principais partidos eram também os principais portadores das ideias biológicas de concorrência e selecção emanadas do darwinismo.
Pode ser feita uma diferenciação básica na síndrome global da biologia social darwinista entre racismo individual e racismo colectivo (embora na realidade social ambos os momentos naturalmente se misturem). Tipicamente, o racismo individual corresponde mais ao pensamento do iluminismo escocês e do utilitarismo individual democrático anglo-saxónico tipo Bentham: determinação biologista, "eugenia" e selecção dos "degenerados" referem-se então principalmente à "eficiência" ou "incompetência" individual na "luta pela vida". Embora esta visão possa ser enriquecida com aspectos de racismo colectivo, ela não tem o seu foco nestes. Corresponde-lhe a constituição política dos Estados-nação burgueses ocidentais (como sobretudo a Inglaterra e a França), cuja cidadania é definida, pelo menos em princípio, independentemente das classificações colectivas étnicas ou raciais.
O racismo étnico colectivo, por outro lado, teve de encontrar um terreno de reprodução particularmente fértil na Alemanha, onde a nacionalização "atrasada", desde Herder, se legitimou nacionalistamente na concorrência ideológica com a formação de nações na Europa Ocidental. Não é necessário o termo enganador de um "Sonderweg [caminho especial]" alemão para reconhecer esta ligação. O termo "Sonderweg" sugere um enredo normativo na formação do Estado-nação capitalista, o que significa apenas que se supõe uma certa "correcção" da modernização e, assim, o sistema moderno de produção de mercadorias como tal é pressuposto sem críticas. Uma crítica radical à forma moderna de sociedade e ao seu fetichismo, no entanto, pode, evidentemente, perceber as diferenças reais no processo de modernização tão bem e melhor sem um cenário normativo imanente. Continua a ser um facto que a legitimação "nacionalista" da nacionalização alemã gerou uma consciência histórica específica que mudou claramente o equilíbrio na relação entre a concorrência individual e a concorrência etnonacional a favor desta última.
A este respeito, não foi por acaso que o socialismo de Estado paternalista foi particularmente pronunciado no Reich alemão desde Bismarck; pois a ideia do "bem-estar" autoritário leviatânico recebeu um impulso adicional da fundação "nacionalista" da consciência nacional. Esta ligação também se reflectiu na definição legal da cidadania alemã, que, ao contrário dos países capitalistas ocidentais, ainda hoje é determinada pelo ius sanguinis, o "direito de sangue"; a "comunidade nacional de destino", já invocada por Herder e Fichte, foi assim até legalmente determinada pela lei da cidadania alemã desde 1913 como uma comunidade de sangue e descendência. Esta irracional fundação da cidadania alemã na comunidade de sangue não era, contudo, uma mera definição legal, mas estava firmemente ancorada nas mentes das elites funcionais e da intelligentsia como ideologia estatal. Através da educação escolar e familiar, da leitura de livros e da vida de caserna, da arte e da cultura quotidiana, dos media e das comunidades eclesiásticas, este pensamento poderia entrar na consciência de massas em todos os estratos e classes, tanto mais facilmente quanto não tinha havido uma revolução burguesa que dividisse a "comunidade do povo" na Alemanha, tendo a nacionalização sido iniciada pelo próprio velho aparelho estatal absolutista.
Portanto, não admira que o darwinismo encontrasse o seu eldorado na Alemanha e que a variante racista colectiva da biologia social pudesse ser o seu principal foco. Enquanto o conceito de "sangue" ainda tinha sido desenvolvido por Herder e Fichte como um constructo cultural (tal como mais tarde por Gobineau), a "eugenia" e os ensinamentos "científicos" da raça transformaram-se, em ligação com o darwinismo social, numa definição directamente biológica da "comunidade de povo e de descendência" alemã. Mas tal como o racismo individual liberal nos países ocidentais não estava isento dos seus elementos racistas colectivos, "étnicamente" anti-semitas, assim também, por sua vez, os traços racistas individuais se encontravam no racismo colectivo alemão da comunidade de sangue; naturalmente, acima de tudo no espectro político do liberalismo alemão. Assim se expressou em 1911 Heinz Potthoff, membro do Reichstag do "Partido Popular Progressivo" da esquerda-liberal, sobre a "ineficiência" dos deficientes e "degenerados":
"A base da actividade social na compaixão e na caridade leva involuntariamente ao facto de o dinheiro e o esforço serem utilizados onde a miséria é maior. Mas isto não é socialmente correcto. A humanidade, neste sentido, é duplamente pouco económica. É caro: com o dinheiro que mantém um aleijado, é possível criar duas crianças saudáveis. É improdutivo: os miseráveis cuidados pela piedade nunca devolverão ao povo o capital que gastaram. Portanto, por mais tocante que seja o cuidado de idiotas, aleijados, ou outros elementos incapazes de viver, nunca se deve esquecer que se trata de um luxo, e deve-se perguntar antes de cada grande despesa se o nosso povo pode permitir-se este luxo" (citado em: Bergmann, op. cit., 131).
Potthoff também não deixou de elevar esta encantadora "economificação do ser humano" a um conceito geral do cálculo liberal (atenção: mesmo da esquerda liberal ou social liberal!):
"Nunca se chegará a uma política económica e populacional correcta se não se aprender a olhar também a vida humana com o olhar do comerciante calculista e a perguntar a si próprio: Quanto custa à sociedade o ser humano individual? E o que é que ele rende?” (citado em: Weingart/Kroll/Bayertz 1988, 257).
Ora isto é realmente o liberalismo no seu melhor, e nem o iluminismo escocês nem os liberais económicos anglo-saxónicos (incluindo Malthus) conseguiriam dizê-lo de forma mais bela. A assassina lei capitalista do "trabalho" abstracto e da rentabilidade económica, intensificada pela sua biologização ideológica, foi obviamente, em conjunto com o racismo colectivo especificamente alemão da comunidade estatal de sangue, aumentada para um desenfreamento sem paralelo. Precisamente ao estilizar a sua ideologia de sangue democrática darwinista face à concorrência da Europa Ocidental como uma espécie de missão cultural e racial quase "anti-capitalista", o Estado da descendência alemão executou o utilitarismo liberal e o darwinismo social produzido pelo Ocidente com a maior consequência imaginável.
O debate científico da biologia social não foi apenas organizado pelas instâncias estatais do Reich alemão, mas foi também benevolentemente promovido pelos funcionários capitalistas, mesmo para além do exemplo inglês. Já em 1900, o rei dos canhões Alfred Krupp tinha doado um prémio para um "concurso científico" sobre a questão: "O que aprendemos com os princípios da teoria da evolução em relação ao desenvolvimento político interno e à legislação dos Estados?” (Baumunk/Rieß 1994, 169). O primeiro prémio foi ganho pelo darwinista social e eugenista Wilhelm Schallmayer (1857-1919), considerado o inventor do termo "higiene racial". A Alemanha e a Áustria tornaram-se assim laboratórios intelectuais do debate sócio-biológico, das universidades à ciência popular e ao discurso quotidiano das massas, com pontos de vista da ideologia do trabalho, do cálculo generalizado da rentabilidade em termos de "comunidade de povo", da "higiene racial" e da loucura racial a exacerbarem-se mutuamente. Em 1908, o teórico económico austríaco e fundador da sociologia financeira Rudolf Goldscheid (1870-1931) pôs em jogo o belo conceito de "economia humana", explicitamente no contexto da biologia social; o Estado devia, com base na "higiene racial", promover uma "criação humana lucrativa" e cuidar de
"que a produtividade de uma força de trabalho humana seja mais elevada do que o trabalho gasto durante os anos improdutivos de um jovem em alimentação e educação" (citado em: Weingart/Kroll/Bayertz 1988, 256).
Para este nobre propósito Goldscheid propôs a criação de "serviços de competência racial" (loc. cit., 257). Cartas más para pessoas "degeneradas" ou simplesmente deficientes físicos. Poderiam estar preparados para serem classificados como "parasitas", tanto do ponto de vista da economia nacional como da eugenia e da "higiene racial", no corpo do povo e do sangue alemão. Em 1911, o médico do distrito de Lindau Josef Graßl, com uma burocrática calma científica, realizou uma classificação detalhada do material humano que era inútil para o capitalismo e, portanto, "parasita":
"Um parasita completo é alguém que não ganha, não ganhou ou não quer ganhar para as suas próprias necessidades vitais. O parasita é assim quem devora o acumulado herdado dos seus antepassados, o parasita é também a pessoa doente que vive do público em geral. Um é culpado, o outro inocente; mas na essência ambos são iguais [...] Metade ou um quarto parasita é aquele que apenas ganha parcialmente as suas próprias necessidades de vida. Um parasita parcial é qualquer pessoa que vive acima da sua condição, [...] todos eles forçam o público em geral, os produtores, a dar-lhes uma parte dos seus produtos sem qualquer contraprestação pessoal" (citado em: Bergmann, op. cit., 132).
Assim, no clima intelectual especificamente alemão da viragem do século e do período entre guerras, a discussão sobre a "degenerescência" amadureceu num verdadeiro projecto de extermínio económico nacional, para a eliminação sistemática de delinquentes, deficientes, doentes mentais e incapazes de trabalhar, que na sua franqueza e brutalidade foi além do debate liberal ocidental sobre a "solução final da questão dos pobres": Se no tempo de Malthus a "matança indolor de filhos dos pobres" foi tema de conversa dos que ganhavam mais, então este facto pelo menos deu ao público um motivo para tremer, e esta medida nunca foi, de qualquer modo, considerada seriamente como um projecto estatal. O racismo colectivo alemão, pelo contrário, com o seu cálculo "nacionalista" da rentabilidade, levou realmente o assunto a sério: muito antes do nacional-socialismo, foram cunhados os termos alemães que deveriam acabar por significar a verdadeira sentença de morte para os supostos "elementos incapazes de viver". Em 1920, o psiquiatra Alfred Hoche (1865-1943) e o advogado Karl Binding (1841-1920) publicaram uma brochura intitulada: "A liberdade de exterminar vidas indignas de viver" (citado em: Klee 1995).
Com isto foi cunhado o termo decisivo "vida indigna de viver", também, na designação de Hoche, "vidas que são um peso". A justificação era de novo essencialmente económica: o cuidado "sem sentido" dos "mentalmente mortos" privava "a riqueza nacional de um enorme capital sob a forma de comida, vestuário e aquecimento" (citado em: Klee 1995). Com um cinismo insuperável, o projecto de extermínio recebeu o nome de "eutanásia" – uma "morte agradável" resgataria os "indignos de viver" da sua existência economicamente intolerável. O próprio Hoche foi apanhado pela Némesis do seu projecto de assassinato: Durante o regime nazi, apesar dos seus méritos pelo extermínio industrial de seres humanos, teve de apresentar a demissão como "aparentado de judeu" porque aos 68 anos de idade se tinha apaixonado pela judia Hedwig Goldschmidt e casado com ela; em 1940, três anos antes da sua morte, ficou terrivelmente perturbado no eléctrico perante um conhecido que acabara de receber a urna com as cinzas de um parente que tinha sido vítima de eutanásia (Klee 1995).
Não só em relação aos "inferiores" e "degenerados", a consciência da descendência alemã radicalizou o discurso do darwinismo sócio-biológico de todo o capitalismo. Nesta base, a mania ariana também floresceu muito mais prodigamentte do que entre as potências imperialistas vizinhas. O povo da descendência alemã, já que tinha desempenhado o mais patético papel na época das revoluções burguesas, poderia pelo menos imaginar um papel de liderança na fantástica batalha dos deuses das "raças", pelo menos na mítica construção histórica paranóica da "raça nobre" ariana como a pretensa origem de sangue. Muito antes da fundação do Império Alemão em 1871, o culto alemão dos germanos já florescia com bizarria; Gobineau, apenas moderadamente popular como profeta racial na sua própria terra, pôde celebrar o seu verdadeiro triunfo do outro lado do Reno.
Culturalmente, o compositor Richard Wagner (1813-1883) veio para a vanguarda da idolatria "germânica" com a pomposa série de ópera "O Anel do Nibelungo" (O ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried, Crepúsculo dos Deuses), que ainda hoje é celebrada com outras obras correspondentes como um acto cultural estatal democrático alemão sob a forma do "Festival de Bayreuth". Wagner, um seguidor da revolução burguesa fracassada de 1848, representava culturalmente a parte da elite capitalista alemã cujo nacionalismo já então chafurdava em gloriosas fantasias de decadência. A concepção de Wagner de Bayreuth como a obra de arte total de um "festival democrático" mostra quão estreitamente interligados estavam na Alemanha o democratismo liberal de esquerda e o racismo. Os escritos de Wagner e os seus diários estavam cheios de frases como esta: "Na mistura das raças, o sangue dos machos mais nobres é deteriorado pelas fêmeas menos nobres" (Wagner 1988/1975, 243). Não admira que Houston Stewart Chamberlain se tenha tornado alemão por opção e genro de Richard Wagner. Em 1894, os wagnerianos do racismo alemão fundaram uma Associação Gobineau; um dos seus representantes anunciou orgulhosamente para a comunidade de descendência alemã com referência ao mito ariano: "Estamos em relação com os menos degenerados, e isso já é alguma coisa" (citado em de Claussen 1994, 42).
O mito ariano e germânico há muito que tinha sido incorporado no constructo da cidadania nacional de sangue alemão; após a fundação do Império Alemão, o Imperador Guilherme I inaugurou o "Monumento a Hermann" perto de Detmold – uma estátua de trinta metros de altura do chefe dos Queruscus, Arminius, cuja vitória sobre os Romanos em 9 e. c. foi equiparada, numa analogia ridícula, à vitória sobre a França em 1870/71. O poeta sentimental do romantismo tardio Victor von Scheffel (1826-1886) fez disso a canção "Quando os romanos se tornaram descarados", que acaba assim:
E em honra do feito histórico
Foi erguido um monumento,
Que agora anuncia por toda a parte
A força e unidade da Alemanha:
‘Eles que venham’
Por muito infundados e infantis que possam ser estes pequenos jogos para a invenção de uma consciência nacional alemã, tiveram o seu efeito e contribuíram para um primitivo orgulho próprio da "comunidade do povo" em todas as classes sociais. Mesmo o mais pobre comedor de batatas alemão, que, para piorar a situação, tinha de ser maltratado e intimidado ou mesmo espancado pelos seus superiores todos os dias ao estilo prussiano, foi assim capaz de desenvolver um estranho sentimento de superioridade sobre o resto do mundo, através da ficção da origem étnica, que, por falta de qualquer gratificação tangível (para além das alegrias de um extremamente modesto consumo de bananas dos amigos do poder mundial), teve de se contentar principalmente com as alucinações dos mitos arianos e germânicos.
Neste contexto, o fantasma da "raça contrária", o mito anti-semita, tornou-se particularmente persistente nas mentes alemãs. Havia partidos e correntes anti-semitas em todo o mundo capitalista; mas em lado nenhum a sua influência intelectual era maior do que na irracional comunidade de sangue alemã, que só podia perceber a sua própria miséria histórica velada na projecção negativa de uma superioridade fantasmática do "judaísmo internacional". Em 1879, o historiador Heinrich von Treitschke (1834-1896), que ainda hoje é conhecido, escreveu o célebre artigo "As Nossas Perspectivas", no qual revelou o anti-semitismo fundamental das elites funcionais alemãs com uma mistura inimitável de retórica de pogrom, seriedade academicamente distanciada e namoro desajeitado ("Creio, no entanto, que alguns dos meus amigos judeus concordarão comigo com profundo pesar"):
"Entre os sintomas da profunda mudança por que está a passar o nosso povo, nenhum parece tão desconcertante como o movimento apaixonado contra o judaísmo. Apenas há alguns meses atrás, na Alemanha, foi invocado o 'grito de Hep-Hep invertido' [...] Hoje já chegámos ao ponto em que a maioria dos eleitores em Breslau – aparentemente não em excitação selvagem, mas com premeditação calma – se empenharam para em caso nenhum eleger um judeu para o parlamento estadual; as associações anti-semitas reúnem-se, a 'questão judaica' é discutida em assembleias animadas, uma inundação de publicações anti-judaicas invade o mercado do livro [. ...] Mas será que só a demagogia e a inveja empresarial se escondem realmente por detrás destas actividades ruidosas? [...] Não, o instinto das massas reconheceu correctamente um perigo grave, um dano altamente preocupante na nova vida alemã; não é em vão que se fala hoje de uma questão judaica alemã. Quando os ingleses e franceses falam com algum desprezo do preconceito dos alemães contra os judeus, temos de responder: Vocês não nos conhecem; vivem em circunstâncias mais felizes [...] O número de judeus na Europa Ocidental é tão pequeno que não conseguem exercer qualquer influência perceptível na moral nacional; mas, ano após ano, atravessa a nossa fronteira oriental, a partir do inesgotável berço polaco, uma multidão de ambiciosos jovens ansiosos vendedores de calças, cujos filhos e netos irão um dia dominar as bolsas de valores e os jornais alemães [...] não queremos que os milhares de anos de moralidade germânica (!) sejam seguidos por uma era de cultura mista judaico-alemã [...] E que arrogância oca e insultuosa! Sob constantes boatos maliciosos, prova-se que a nação de Kant só foi realmente trazida à humanidade pelos judeus, que a língua de Lessing e Goethe só foi tornada receptiva à beleza, ao espírito e à sagacidade por Borne e Heine! [...] em milhares de aldeias alemãs senta-se o judeu, que compra extensivamente os seus vizinhos. Entre os principais homens de arte e ciência, o número de judeus não é muito grande; tanto maior a activa multidão de talentos semitas de terceira categoria [...] Mas o mais perigoso de tudo é a preponderância injusta do judaísmo na imprensa diária [...] O necessário efeito pernicioso deste estado de coisas nada natural é a actual impotência da imprensa; o homem comum já não se deixa dissuadir de que os judeus escrevem nos jornais, e por isso já não quer acreditar em nada do que eles dizem [...] Se olharmos para todas estas circunstâncias [...] a grande agitação do momento parece não passar de uma reacção brutal e rancorosa, mas natural (!) do sentimento popular germânico contra um elemento estranho [...] Não nos iludamos: o movimento é muito profundo e forte [...] Até nos círculos do ensino superior [...] hoje ressoa como se de uma só boca ressoasse: os judeus são a nossa desgraça!” (Treitschke 1988, 1879, 8ss.).
O óbvio complexo de inferioridade que aqui fala pela boca de Treitschke, e cuja projecção sobre o "poder racial" dos judeus, metade do qual é descrito como "presunçoso", metade acreditado como superior e por isso ameaçador, serviu de facto "até nos círculos do ensino superior" como um espelho distorcido das contradições capitalistas, e estava inteiramente de acordo com a tradição anti-semita alemã, tanto dos iluministas como dos românticos, da qual já Rahel Varnhagen se tinha queixado. Nem a contra-reacção, mais assustada do que emancipatória, de alguns académicos do Império Alemão, pelo menos corajosos, mudou nada nisto. O famoso historiador da antiguidade e advogado liberal Theodor Mommsen (1817-1903), por exemplo, que recebeu o Prémio Nobel em 1902 pela sua "História de Roma", voltou-se com veemência contra Treitschke e verberou os "idiotas nacionais" que tinham tornado o anti-semitismo "decente" e lhe tinham "soltado a rédea [...] da vergonha", "e agora [...] a espuma jorra" (Mommsen 1988/1880, 222). Mas Mommsen argumentou, evidentemente, de um ponto de vista nacionalista e capitalista, o que sempre só permite uma crítica indefesa do racismo e do anti-semitismo; ele e os seus pares estavam menos preocupados com a reflexão crítica sobre as raízes lógicas do pensamento anti-semita, e nem sequer principalmente com a defesa dos judeus, mas sim com "a recuperação da moral política nacional" (Poliakov 1988, VII, 38). Mommsen temia menos pelos seus concidadãos judeus do que pela recém-estabelecida unidade nacional alemã, possivelmente
"uma guerra de todos contra todos (está em fúria) e em breve chegaremos ao ponto em que apenas será considerado cidadão de pleno direito aquele que [...] conseguir seguir o rasto dos seus antepassados até um dos três filhos de Mannus [...] Para além da [...] recentemente acesa guerra civil da carteira [...] está agora a nascer a campanha dos anti-semitas [...]" (Mommsen, loc. cit., 213).
Para além destes perigos para a reputação externa da Alemanha e para a sua unidade interna, que reflecte de forma demasiado clara as eternas preocupações dos liberais com as possíveis consequências da economia de mercado e da concorrência, no entanto sempre defendidas por princípio, Mommsen está também preparado para fazer sérias concessões ao anti-semitismo, que ele simplesmente não quer entregar à "discórdia da ralé de ambos os lados (!)" (op. cit., 212). Mas, de resto, apressa-se a assegurar que está plenamente consciente da "desigualdade que existe, porém, entre os ocidentais alemães e o sangue semita"; do mesmo modo, não quer negar "as características especiais das pessoas de ascendência judaica que vivem entre nós", pois os judeus são "sem dúvida [...] um elemento de decomposição nacional", e "certamente há muita verdade subjacente às queixas individuais que são feitas [...]" – nomeadamente no que diz respeito à "actividade perversa de certos elementos judeus"; assim, por exemplo, "a usura judaica [...] não é nenhuma fábula" etc. (op. cit., 217-223).
Se este Mommsen representou a versão mais ampla da resistência liberal alemã contra a delirante ideologia anti-semita, então pode-se imaginar qual deve ter sido o estado de espírito das elites funcionais capitalistas no Estado de descendência alemão como um todo. Quase nenhum filósofo ou escritor alemão, quer tenha entrado no panteão da chamada literatura nacional ou tenha sido apenas um escritor trivial, deixou a síndrome anti-semita fora das suas obras, seja Wilhelm Raabe na sua "Hungerpastor" [O pastor da fome] ou Gustav Freytag na sua obra "Soll und Haben" [Deve e haver]. Uma orientação essencial foi fornecida desde cedo por ninguém menor que Richard Wagner, que não pôde deixar de se expressar como anti-semita. Já em 1850 tinha questionado a emancipação civil dos judeus como uma exigência de 1848, tendo trazido à luz o verdadeiro impulso anti-semita clandestino do democratismo de Paulskirche:
"Mas quando lutámos pela emancipação dos judeus, éramos na verdade mais lutadores por um princípio abstracto do que pelo caso concreto: Tal como todo o nosso liberalismo foi um jogo intelectual luxuoso, no qual defendemos a liberdade do povo sem o seu conhecimento, de facto com aversão a qualquer contacto real com ele, assim também o nosso zelo pela igualdade dos judeus surgiu muito mais do estímulo do mero pensamento do que da verdadeira simpatia; pois em todo o nosso falar e escrever pela emancipação dos judeus, quando tínhamos um contacto real e activo com os judeus, sentimo-nos sempre involuntariamente repelidos por eles. Aqui encontramos o ponto que nos aproxima do nosso projecto particular: temos de explicar a repulsa involuntária que a personalidade e a natureza do judeu tem por nós, a fim de justificar esta antipatia instintiva [...] Mesmo agora só mentimos a nós próprios a este respeito quando declaramos imoral e reprovável tornar pública a nossa aversão natural ao ser judeu [...] O judeu, de acordo com o actual estado dos assuntos mundiais, já é realmente mais do que emancipado: ele governa e governará enquanto o dinheiro permanecer o poder perante o qual todos os nossos actos e movimentos perdem a força [...]" (Wagner 1975/1850, 54s.).
O artífice da obra de arte total da nação alemã utiliza assim o truque psicótico decisivo do mundo capitalista para reinterpretar o poder negativo do dinheiro como poder negativo dos judeus, que transfere imediatamente para a essência da arte e do Estado:
"Não precisamos de confirmar primeiro o aparecimento do judaísmo na arte moderna; ele salta aos olhos e confirma-se aos sentidos por si mesmo [...] O judeu fala a língua da nação em que vive de geração em geração, mas fala-a sempre como um estrangeiro [...] Nesta língua o judeu só pode repetir, recriar, – não realmente fazer poesia com as palavras ou criar obras de arte [...] No início, o nosso ouvido é tocado de modo bastante estranho e desagradável pelo sibilante, estridente, zumbido e murmurado vozeirão do discurso judaico: o uso e a distorção arbitrária das palavras e construções bem peculiares da nossa língua nacional dá a este som o carácter de um balbuciar insuportavelmente confuso, que, quando o ouvimos, involuntariamente nos faz prestar mais atenção a este nojento ‘como’ do que ao ‘quê’ contido no discurso judaico" (op. cit., 56ss.).
Tanto culturalmente como em termos do Estado, o que é suposto ser "alemão" só pode legitimar-se por demarcação negativa do estranho por excelência; a generalidade abstracta do Estado parece tornar-se pseudo-concretamente "nacionalista" apenas ao excluir o (racialmente) "ser contrário judaico" a todos os níveis. Quão sociopatológicas as condições e relações neste clima já devem ter sido, é o que mostra o facto de Wagner ter tido por vezes um maestro judeu, e também dignitários judeus alemães fazerem regularmente uma peregrinação a Bayreuth. A tentativa autodestrutiva das comunidades judaicas (e sobretudo dos membros da elite funcional) de se adaptarem ao nacionalismo assumiu um carácter particularmente macabro na Alemanha, pois aqui o critério "étnico" de descendência constituía uma ameaça permanente à cidadania do judeu.
Esta psicose colectiva de patriotismo constitucional em função do sangue penetrou profundamente na consciência das massas como um tema da cultura alemã. Correspondentemente, os movimentos e partidos anti-semitas eram particularmente populares entre as massas; pelo menos as suas afirmações ideológicas e as peças dos seus mitos tornaram-se as ideias do alemão médio. A reinterpretação anti-semita do capitalismo e ao mesmo tempo a conotação fanaticamente positiva das suas aberrações, como a nação e a concorrência imperial, formaram assim esse laço racista colectivo que, apesar dos antagonismos sociais flagrantes, uniu a comunidade de sangue alemã até às mais elevadas figuras do Estado. Dresden (1882) e Chemnitz (1883) tornaram-se locais de congressos anti-semitas internacionais (Poliakov 1988, VII, 35). E a cultura pop guilhermina também absorveu prontamente o impulso anti-semita. Na sua "Frommen Helene” [Piedosa Helena], o humorista alemão de Estado e caseiro Wilhelm Busch escreveu impassivelmente um poema para o álbum de família da nação:
E o judeu de calcanhar torto
Nariz torto e calças tortas
Serpenteando para a alta bolsa de valores
Profundamente depravado e sem alma
Estes versos da caixinha de tesouros do quotidiano alemão engraçado mostram que o [semanário nazi] "Stürmer" e os assassinos em massa das SS não tiveram de inventar nada, mas puderam beber directamente do património cultural popular. Em 1874, a despretensiosa revista familiar alemã "Die Gartenlaube", chocada com a falência do fundador e interpretando-a imediatamente de forma anti-semita, também discutiu a "questão judaica":
"O judeu [...] não trabalha, explora o trabalho manual ou o trabalho intelectual do seu semelhante [...] Esta tribo estrangeira subjugou o povo alemão e suga a sua medula. A questão social é essencialmente uma questão judaica; tudo o resto é apenas mentira" (citado em: Poliakov, op. cit., 30).
Tal como nos últimos acontecimentos da antiga revolta social dos anos anteriores a 1848, as autoridades alemãs não tinham pressa em tomar medidas contra a agitação social se esta fosse apenas anti-semita; este tipo de "crítica do capitalismo" era sempre bem-vindo na sua função de aliviar e distrair. Em 1881, centenas de milhares de alemães (incluindo sobretudo estudantes e académicos, professores e funcionários públicos) assinaram uma petição anti-semita exigindo que os judeus fossem excluídos de todos os cargos públicos (Röhl 1994). Décadas depois dos motins Hep-Hep e mais de meio século antes da "noite de cristal" nazi, a populaça anti-semita abriu caminho, na esteira de criminosos de secretária como Treitschke:
"Em 1880 e 1881, Berlim (tornou-se) o cenário de cenas violentas [...] Bandos organizados atacaram os judeus nas ruas, perseguiram-nos para fora dos cafés e partiram as janelas das suas lojas. Foram queimadas sinagogas na província. O número de agitadores aumentava constantemente […]" (Poliakov, op. cit., 31s.)
Sendo tais actos perseguidos apenas de forma laxista como habitualmente, as autoridades conheciam a boa vontade dos ominosos "círculos mais elevados" do seu lado. O pastor protestante e pregador da corte imperial Adolf Stoecker (1835-1909), com o seu "Partido dos Trabalhadores Sociais Cristãos" fundado em 1878, fez propaganda anti-semita em massa durante décadas e pôde insultar os judeus na Câmara dos Representantes prussiana como "sanguessugas" (Röhl 1994). O simples facto de Stoecker, como pregador da corte e, portanto, componente do poder mais elevado, ter podido proceder deste modo, mostra a influência anti-semita mesmo no centro do poder guilhermino.
As únicas excepções foram os infelizes pais do último Imperador Guilherme II, o Príncipe Herdeiro alemão Friedrich Wilhelm e a sua esposa Victoria, filha da Rainha de Inglaterra. Quando os tumultos anti-semitas se reacenderam em 1880, "Friedrich Wilhelm apareceu com o uniforme de marechal de campo prussiano num serviço na sinagoga de Berlim" (Röhl 1994) e chamou ao anti-semitismo "uma vergonha para o nosso tempo", enquanto a sua esposa descreveu apropriadamente o baboso professor do nacionalismo de sangue Treitschke como "doente mental" (op. cit.). Este casal provou que uma atitude liberal, pelo menos na alta aristocracia, não tem de conduzir automaticamente ao racismo e ao anti-semitismo, e que sempre e em toda a parte, em todas as classes, estratos, partidos e campos ideológicos, apesar da regular formação de consciência do sistema produtor de mercadorias, é possível uma rebelião humana contra a loucura assassina (assim, também nunca pode ser invocado um "condicionamento temporal" como desculpa para ser um seguidor e desviar o olhar). É relativamente pouco destacado (e muito menos pelos historiadores alemães) o efeito negativo e acelerador da catástrofe que teve para a Alemanha e para o mundo o facto de Frederico Guilherme ter morrido de cancro da laringe em 1888, no "ano dos três imperadores", após apenas 99 dias de reinado como Frederico III, e ter sido sucedido pelo seu filho Guilherme, que odiava os pais e estava empestado com todos os venenos do chauvinismo prussiano-alemão.
Guilherme II (1859-1941), o verdadeiro Kaiser do imperialismo e da guerra mundial do capitalismo alemão, estava cheio até mais não com as ilusões sociais biologistas do darwinismo. Voltado contra a sua própria mãe, amaldiçoou o "maldito sangue inglês" nas suas veias já quando era jovem (Röhl 1994) e mostrou solidariedade até ao seu infeliz fim com uma propaganda que em todo o Império estabeleceu uma ligação entre a "conspiração mundial judaica" e os ingleses como "povo de merceeiros". Em 1905, quando os judeus russos tinham fugido para a Alemanha por causa dos pogroms anti-semitas, o Imperador gritou: "Fora com esses porcos"! (Poliakov, op. cit., 40). Porque a historiografia democrática alemã fez vista grossa até hoje, teve de vir o historiador inglês John C. G. Röhl colocar em perspectiva as fontes inequívocas que provam o anti-semitismo fanático de Guilherme II.
Em 1901, o Imperador encontrou-se com Houston Stewart Chamberlain, a quem foi a partir daí permitido chamar a si próprio filósofo de Estado e ideólogo principal de Guilherme II, e em troca celebrou os Hohenzollern como os "democratas determinantes do século XIX", bem na linha do seu sogro democraticamente anti-semita Richard Wagner (citado em: Claussen 1994, 93). Esta afirmação contém um mau momento de verdade, não só devido ao carácter político superficial de uma "monarquia democrática" de sufrágio universal (que, como nos Estados imperiais ocidentais, ainda excluía as mulheres), mas também devido à sua referência inconsciente ao núcleo essencial do poder de todas as democracias modernas, que, com o abstracto fim-em-si do capital e a consequente concorrência de indivíduos atomizados, inevitavelmente também contém a presença latente do racismo e do anti-semitismo. E foi precisamente desta forma irracional e anti-semita que Guilherme II, o supremo senhor da guerra do capitalismo alemão, foi simultaneamente um democrata e um anti-semita "crítico do capitalismo", como John C. G. Röhl pode facilmente demonstrar através de numerosas cartas, memórias, conferências de imprensa etc. O Imperador sempre explicou a todos os que o quiseram ouvir que os judeus eram a "maldição" do seu império:
"Eles mantêm o meu povo na pobreza e sob o seu controlo. Em cada pequena aldeia da Alemanha há um judeu sujo que, como uma aranha, atrai pessoas para a teia da sua usura [...] Assim, ele vai ganhando gradualmente controlo sobre tudo. Os judeus são os parasitas do meu Reich. A questão judaica é um dos meus maiores problemas [...]"(citado em: Röhl 1994).
O alívio projectivo do capitalismo gerador de pobreza em massa, que é o cliché central da propaganda anti-semita, não poderia ser formulado de forma mais pura e clara. Hitler não disse nada sobre os judeus que Guilherme II e a sua camarilha não tivessem dito repetidamente. Em 1907 o Kaiser disse que esta raça estranha teria de ser "exterminada", e em 1909 lamentou o "estado crepuscular" em que o povo alemão, escravizado pela "goldenen Internationale", seria controlado pela "imprensa judaica" (citado em: Röhl, op. cit.). Após a sua abdicação, no exílio holandês, escalou numa paranóia racista anti-semita cada vez mais abstrusa, suspeitou dos franceses e ingleses de descendência "de facto" negra africana, e da classe alta do país da sua mãe como "pedreiros-livres devastados pelo judaísmo", e finalmente em 1929, quatro anos antes da tomada do poder por Hitler, fez uma proposta original para a "libertação da peste judaica": "Penso que o melhor seria o gás" (ibidem). Tal é a continuidade da história alemã.
Neste ponto é preciso colocar a questão da contribuição do socialismo e do movimento operário para a biologização da teoria social e dos conflitos sociais. Depois de a antiga escola dominical do liberalismo já ter adoptado tão prontamente os conceitos capitalistas de "trabalho" abstracto e de nação ou economia nacional e, pelo menos parcialmente e de modo socialmente amenizado, ter apoiado as concepções de militarismo, colonialismo e imperialismo, teria de ser verdadeiramente um milagre se as teorias e partidos socialistas não tivessem também sido atingidos pela vaga de fundo sócio-biológica e anti-semita.
A intersecção decisiva do socialismo com o racismo/anti-semitismo foi o conceito positivamente conotado de "trabalho". Na medida em que o movimento dos trabalhadores socialistas substituiu o auto-entendimento das velhas revoltas sociais, que estavam relacionadas com os "direitos" tradicionais e neste contexto com o lazer ("ociosidade"!), pela categoria do desempenho do próprio "trabalho", e fez dela o núcleo positivo da sua identidade, assim assumindo a campanha burguesa prosseguida pelo liberalismo desde o início da era moderna ("a ociosidade é a mãe de todos os vícios"), teve de se tornar também susceptível de ressentimento contra os que tinham fraco desempenho, os "incrédulos" em matéria da religião do "trabalho" e os alegados "não-trabalhadores". Isso era assim "permitido" até certo ponto, porque já fundamentalmente inerente ao lançar de uma categoria capitalista contra outra, do "trabalho" contra o dinheiro, não questionando fundamentalmente o universo burguês – e exactamente este ponto fraco tinha de se tornar a porta de entrada para o biologismo, o racismo e o anti-semitismo.
O que pode ser visto a vários níveis. Em primeiro lugar, o "trabalho" foi encenado contra o suposto "não-trabalho", contra o "rendimento sem trabalho" dos capitalistas que "se apropriam da mais-valia". Mas é claro que era fácil provar que os chamados capitalistas também eles "trabalhavam", mesmo que noutras relações funcionais: A actividade de planeamento económico, contabilidade etc. poderia também ser definida como parte do "trabalho abstracto". A este respeito, o capitalista privado que estava "também a trabalhar" de algum modo, e o gerente que era apenas empregado, não podiam ser facilmente incluídos na categoria de "não-trabalho". Uma vez que não se conseguia afinal decifrar o "trabalho abstracto" no seu conjunto como componente do capital, sugeria-se restringir a ideia ao "não-trabalho": ou ao caso do comércio, que "não produz nada" e supostamente apenas se interpõe parasitariamente entre produtores e consumidores, ou ao dos "cortadores de cupões" (como disse Friedrich Engels), os puros capitalistas do dinheiro, que aparentemente recebem realmente "rendimentos sem trabalho" sob a forma de juros, sem mexer uma palha.
Ora também esta argumentação não é coerente em si mesma, pois é claro que o comércio é completamente inevitável num sistema de produção de mercadorias (mesmo sob controlo estatal); e, porque envolve naturalmente uma grande actividade, este sector não é de modo nenhum caracterizado por "não-trabalho". O mesmo se aplica ao puro capital-dinheiro ou capital de empréstimo, que se concentra no sistema bancário; também nos bancos, é claro que há quem "trabalhe", justamente os próprios banqueiros-chefes em exercício. Mesmo o puro especulador, num olhar mais próximo, tem de estar activo de muitas maneiras diferentes, para olhar à volta, processar informação etc. Mas a "consciência do trabalho" positiva não "podia" pensar até este ponto lógico, se nem o intrínseco absurdo de uma crítica do capitalismo nas formas do próprio capital lhe saltava à vista.
Assim, tudo o que restava era referir-se ao carácter "improdutivo" dos trabalhos do comércio e dos bancos etc., o que, no entanto, não representa uma categoria social ou moral, mas uma categoria puramente económica, e de facto mais uma vez como uma contraposição dentro do próprio capital: estas actividades são "improdutivas" na medida em que não "criam valor", mas apenas transmitem socialmente objectos de valor e quantidades de valor (sob a forma de dinheiro); são, por isso, vistas em termos de economia nacional, puros factores de custo e deduções à criação de valor social, mas no entanto necessárias em termos capitalistas. Porque e na medida em que o movimento operário depreciou moralmente o trabalho "improdutivo" do comércio e dos bancos etc., e valorizou moralmente a actividade "produtiva" capitalista da produção industrial de mercadorias, apenas tornou a lógica capitalista ainda mais a sua própria lógica. A actividade directa na transformação da substância natural na produção de mercadorias surgiu como a actividade positivamente "produtiva" e como o lado "bom", concreto, embora nunca passasse da concretização da própria máquina mundial capitalista abstracta; e a função mediadora capitalista do comércio ou dos bancos, como a actividade negativamente "improdutiva" e como o lado "mau", abstracto (porque directamente relacionado com o dinheiro).
Esta crítica moralizante e redutora do capitalismo nas próprias categorias capitalistas não superadas encaixava demasiado bem nos comportamentos atribuídos aos judeus para poder evitar um preconceito anti-semita. Já os primeiros ideólogos e publicitários socialistas procedentes do liberalismo não só tinham afinidade com o anti-semitismo moderno, mas também estavam entre os seus pioneiros históricos. Depois de Auschwitz (como aconteceu também com os partidos e ideologias não socialistas), retocou-se, escondeu-se, falsificou-se e ocultou-se em toda a linha, a fim de encobrir os vestígios. A ligação encoberta pode ser encontrada novamente num livro do historiador de Jerusalém Edmund Silberner, de certo modo apócrifo, pelo menos para a esquerda, e que, sob o título "Os Socialistas e a Questão Judaica", já há mais de trinta anos revelou esta roupa suja do socialismo. Silberner é obviamente um patriota israelita e representante de uma identidade "étnica" judaica, contudo não procede de forma denunciatória, mas essencialmente factual e documental, sem querer simplesmente criticar “a” esquerda.
No que diz respeito ao anti-semitismo, ele já descobriu alguma coisa entre os primeiros socialistas utópicos da primeira metade do século XIX, sobretudo Charles Fourier (1772-1837), que foi sempre a utopia favorita da esquerda radical. Como representante de comunidades pequenas e auto-suficientes, Fourier no entanto era simultaneamente um nacionalista francês e de uma xenofobia estúpida; e, porque acreditava que a exploração capitalista era principalmente causada pelo comércio e pela usura, caiu numa visão do mundo claramente anti-semita com as atribuições correspondentes já em 1808, no seu escrito "Theorie des quatre mouvements":
"Felizmente [...] os judeus ainda não estão espalhados por toda a França, pois, dedicados à usura, esta nação já se teria desfeito da maior parte dos seus bens e da influência que os acompanha; toda a França seria apenas uma única sinagoga gigantesca, pois mesmo se os judeus possuíssem apenas um quarto da riqueza, teriam a maior influência graças à sua indissolúvel sociedade secreta" (citado em: Silberner 1962, 17).
Fourier, por isso, até se bateu contra os direitos civis dos judeus e permaneceu abertamente anti-semita durante toda a vida, ainda que pouco antes da sua morte em 1835 tenha feito a proposta quase pré- ou proto-"sionista" de que os judeus deveriam fundar o seu próprio Estado na Palestina – financiado por "Rothschild"! Não se deve esquecer, contudo, que até os nazis brincaram inicialmente com a ideia de possivelmente deslocar os judeus para Madagáscar ou outro lugar.
Não melhor do que Fourier é Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), um dos fundadores do anarquismo. Proudhon reduziu o conceito de capitalismo ao capital que rende juros aos prestamistas que se limitam a emprestar dinheiro, cuja "condição de possibilidade" via no carácter do dinheiro como uma mercadoria privilegiada, que consequentemente tinha de ser "desprivilegiada"; Proudhon quis, portanto, introduzir o chamado "dinheiro-trabalho", que devia basear-se na compensação directa de quanta de trabalho e tornar impossível o ganho de juros “sem trabalho” aos capitalistas do dinheiro. Esta teoria imagina o capitalismo localizado apenas na circulação e ignora completamente o carácter cibernético do modo de produção capitalista, que se caracteriza precisamente pelo facto de o dinheiro se reacoplar a si próprio "produtivamente". Assim, Proudhon (como todo o movimento operário) não podia reconhecer o "trabalho abstracto" do sistema de produção de mercadorias como o cerne do próprio capital, mas queria livrar-se da sua auto-contradição lógica de um modo paradoxal, através de uma equiparação supostamente directa da forma-dinheiro com o "trabalho", sem perceber a necessária e em si contraditória mudança de forma de "trabalho" e dinheiro no processo de valorização do capital. Também a teoria de Proudhon critica o capitalismo apenas na medida em que a reinterpretação anti-semita das contradições internas desta forma de sociedade o permite; e depressa também ele caiu repetidamente no fundamental na inflamatória linguagem da loucura do homem do dinheiro judeu e conspirador mundial inato, como no seu escrito "Césarisme et christianisme":
"O judeu é na sua predisposição um anti-produtor, nem agricultor nem industrial, nem sequer um verdadeiro comerciante. É um intermediário, sempre falso e parasita, que nos negócios como na filosofia faz uso de falsificações, imitações fraudulentas e vigarices. Conhece apenas a alta e a baixa, o risco de transporte, as perspectivas incertas de colheita, a incerteza da oferta e da procura. A sua política económica é completamente negativa, completamente usurária; o princípio do mal, Satanás, Ahriman, encarnado na raça de Sem [...]" (citado em: Silberner, op. cit., 58).
A linguagem anti-semita de Chamberlain, Treitschke e do "Die Gartenlaube" já era, portanto, a linguagem dos mais importantes ideólogos socialistas primitivos. O ódio exclusivamente contra a chamada "escravidão do juro" de um ponto de vista socialmente heterogéneo, que representa um ethos protestante do "trabalho honesto", e que ainda hoje grassa entre assalariados filisteus, parte da gestão industrial, construtores civis endividados, pequenos produtores de mercadorias e capitalistas de fabriquetas, ocupados com as suas explosões abafadas contra o poder bancário, o dinheiro usurário e "os especuladores", era um campo ideológico abrangente de cor nacionalista em todos os grupos sociais, partidos e correntes disponíveis para as aberrações dos "sentimentos populares saudáveis", do "trabalho local" e dum capitalismo "nacionalista" (ou dum "capitalismo popular" com atributos de socialismo de Estado). A agitação anti-semita inseparavelmente ligada a isso difundiu-se entre o liberalismo, o nacionalismo e o socialismo, ou seja, também profundamente no movimento operário; e, através de várias sociedades racistas de proveniência oculta, como os chamados teosofistas e antroposofistas com o seu guru Rudolph Steiner (1861-1925), ou a seita da reforma monetária do comerciante alemão-argentino Silvio Gesell (1862-1930), constituiu-se entre os blocos ideológicos uma rede amplamente ramificada de referências subterrâneas formadas em torno da intersecção comum de anti-semitismo e crítica do juro, a partir da qual o nacional-socialismo acabaria por disparar.
A teoria de Marx e a corrente marxista principal do movimento operário depois de 1848 já não queriam criticar o capital de empréstimo e comercial que rende juros, mas o capitalismo como modo de produção no seu todo. Contudo, como apesar disso se pretendia manter a noção positiva de "trabalho abstracto" e apenas substituir o regimento industrial capitalista privado por um regimento burocrático estatal, a atitude face à síndrome anti-semita permaneceu necessariamente ambivalente. Mesmo no próprio Marx, embora teoricamente, em contraste com o marxismo do movimento operário, ele tivesse uma relação contraditória e por vezes crítica com a categoria "trabalho", e embora no terceiro volume da sua obra principal descrevesse a fixação no capital que rende juros como um preconceito popular e uma expressão do fetiche do capital, foi sobretudo a linguagem polémica que se esgarçou repetidamente na direcção de uma identificação do "dinheiro em geral" ou do "regateio" e da "usura" com o "ser judeu". Assim diz ele, por exemplo, no contexto da sua argumentação sobre a transformação histórica do dinheiro em capital, que todo o capitalista sabe "que todas as mercadorias, por mais irregulares que sejam, na fé e na verdade do dinheiro são judeus circuncidados interiormente [...]" (Marx 1965/1890, 169). Especialmente a obra inicial de Marx "Sobre a Questão Judaica" foi e é repetidamente (também por Edmund Silberner) classificada como anti-semita, porque contém até uma identificação bastante grosseira de "judeu" com "dinheiro":
"É a partir das próprias entranhas que a sociedade civil gera incessantemente o judeu [...] O dinheiro é o ciumento deus de Israel, a cujo lado mais nenhuma divindade pode existir. O dinheiro rebaixa todos os deuses do ser humano e transforma-os em mercadoria. O dinheiro é o valor universal e auto-suficiente de todas as coisas. Por conseguinte, destituiu todo o mundo, tanto o mundo humano como a natureza, do seu próprio valor. O dinheiro é a essência alienada do trabalho e da existência do ser humano; esta essência domina-o e ele presta-lhe culto e adoração. O deus dos judeus foi secularizado e tornou-se o deus deste mundo. A letra de câmbio é o verdadeiro deus do judeu. O seu deus é apenas a ilusória letra de câmbio [...] Logo que a sociedade conseguir abolir a essência empírica do judaísmo – o regateio e os seus pressupostos – o judeu tornar-se-á impossível, porque a sua consciência deixa de ter objecto, porque a base subjectiva do judaísmo – a necessidade prática – toma uma forma humana e é abolido o conflito entre a existência individual, sensível, do ser humano e a sua existência como género humano. A emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade em relação ao judaísmo." (Marx 1978/1844, 374ss.).
Sem dúvida, torna-se aqui visível uma inclinação anti-semita. No entanto, em contraste com Fourier e Proudhon (ou também Chamberlain e outros), a posição de Marx não fica absorvida nisso, de duas maneiras. Em primeiro lugar, biograficamente, porque o próprio Marx veio de uma velha família rabínica; e quase nenhum dos seus numerosos opositores ou críticos alemães e franceses o conseguiu denunciar como "judeu", em todas as oportunidades adequadas ou inadequadas. Se a demarcação quase anti-semita das suas próprias origens foi incorporada na linguagem polémica de Marx, então voltamos a reconhecer nela a tremenda pressão de adaptação e denúncia por parte da intelligentsia anti-semita alemã e europeia, que levou os judeus a atitudes de autonegação e autodestrutivas. Não pode haver "anti-semitismo judeu" em sentido estrito, porque isso significaria confundir o perpetrador com a vítima (mesmo a nível linguístico e cultural). Isto não quer dizer que tais declarações não devam ser criticadas pelo seu conteúdo, porque naturalmente alimentaram o anti-semitismo social.
Por outro lado, porém, existe também uma diferença decisiva no conteúdo que, à primeira vista, pode facilmente desaparecer por detrás da escolha quase anti-semita das palavras. Pois ao contrário dos Chamberlains e Treitschkes, bem como dos Fouriers e dos Proudhons, Marx toma de facto "o judeu" como metáfora da dominação do dinheiro, mas não lhe atribui isso. Exactamente ao contrário: "a sociedade burguesa produz o judeu", não é "o judeu" que produz a sociedade burguesa (ou mais precisamente: o que é mau nela). Assim, a emancipação social dos judeus consiste no facto de a sociedade abolir a forma da dominação do dinheiro ou a máquina do mundo capitalista, e deste modo libertar os judeus de terem de servir como metáfora ou sinónimo desta dominação da alienação. A sociedade só se torna assim humana quando se libertar da dominação do dinheiro; só se pode emancipar do "judeu" (ou das qualidades a ele atribuídas) emancipando o próprio "judeu". Por outras palavras: só através da abolição do moderno sistema de produção de mercadorias é que o anti-semitismo fica sem razão de ser.
A declaração nua e crua de Chamberlain e a tendência em Fourier e Proudhon, no entanto, é: O sistema moderno de produção de mercadorias seria maravilhoso se não fossem os judeus; não precisa de ser abolido de todo, mas "apenas" o "ser judeu" tem de desaparecer dele – quer sob a forma com ele identificada da "servidão dos juros" e da "fraude comercial" pelos "não trabalhadores", quer imediatamente pela expulsão e assassinato dos judeus como "personagens raciais" negativas. Se Silberner e outros não reconhecem esta séria diferença e sem mais atribuem o escrito de Marx sobre "Sobre a questão judaica" ao anti-semitismo, pelo menos no mesmo comprimento de onda de Fourier e Proudhon, é claro que é porque a ideia de uma verdadeira abolição da máquina do mundo capitalista está completamente para além da sua imaginação. Mas qualquer pessoa que considere o sistema de produção de mercadorias, incluindo as suas restrições absurdas, como "natural" e irrevogável, está também a imortalizar – sem saber ou sem querer – o moderno anti-semitismo.
O que torna a argumentação de Marx tão distorcida e se aproxima do anti-semitismo é obviamente a identificação atributiva da dominação do dinheiro com o judaísmo, uma vez que o dinheiro é "o deus de Israel". Mesmo que ele não considere este "atributo" como biológico ou "racial", mas sim cultural-religioso (e portanto abolível), Marx ainda assim não consegue escapar à estranha ligação da dominação do dinheiro com "os judeus" enquanto tal; e esta é a sua real intersecção com o anti-semitismo, que obscurece a sua verdadeira argumentação. Pois, é claro, nem o capital que rende juros nem a forma do dinheiro enquanto tal é um atributo "judaico"; a atribuição irracional é tão óbvia que requer uma explicação que esclareça o carácter irracional da própria economia.
A fim de decifrar o mecanismo interior da louca projecção, a posterior análise marxiana da forma social de mercadoria e do fetichismo que ela contém poderá ser útil. Pois este fetichismo consiste precisamente no facto de que, aos produtores económicos privados para o mercado anónimo, que não acordam previamente sobre a sensata utilização de recursos comuns, o seu próprio contexto social lhes aparece como uma qualidade material das mercadorias, como o seu chamado valor. Esta qualidade é uma fantasmagoria social que existe apenas na cabeça dos comuns produtores mercadorias e "fazedores de dinheiro" fetichistamente encantados. No entanto, não se trata de modo nenhum de uma mera criação mental ideológica, que poderia ser superada pelo "esclarecimento", mas sim por uma "aparência real" (Marx): nomeadamente, uma forma social objectivada de produção e circulação que se apropriou do processo material da vida e se manifestou institucionalmente. O facto de a socialidade das pessoas aparecer como uma característica das coisas por elas produzidas constitui a essência do próprio capital.
Se, no entanto, o contexto social tomou a estranha forma de uma qualidade (de coisas mortas, de objectos), então o carácter negativo, o momento destrutivo e propício à crise deste modo de produção só pode aparecer imanentemente na forma de uma qualidade – mas necessariamente na forma de uma qualidade de pessoas (negativas, perturbadoras), uma vez que a ominosa qualidade de valor das mercadorias enquanto tal é suposto estar em ordem. A metafísica internalizada do dinheiro transforma-se assim projectivamente na metafísica do racismo e do anti-semitismo: A metafisicamente positiva qualidade de valor positivo das coisas mortas procura a sua contraparte lógica na metafisicamente negativa qualidade de crise de pessoas vivas. Tal como o valor parece estar ligado a mercadorias como uma qualidade socioeconómica natural, também o mal social parece estar ligado aos judeus (ou, noutras partes do mundo no sistema agora globalizado de produção de mercadorias, talvez a outros grupos de pessoas negativamente definidos) como uma qualidade biológica natural ou "racial". Este mecanismo projectivo, que é regularmente invocado durante a crise, só pode ser quebrado se as relações sociais forem viradas do avesso. Só quando as pessoas organizarem conscientemente a sua própria socialidade e determinarem em conjunto a utilização dos seus recursos com antecedência, de modo a que os produtos mortos sejam privados da forma absurda de uma qualidade social, pode desaparecer a pseudoqualidade social negativa projectada fetichisticamente em pessoas. Neste ponto, o verdadeiro núcleo argumentativo do ensaio de 1843 “Sobre a Questão Judaica", que na altura ainda sofre da incompreendida pseudoqualidade "judaica" da dominação do dinheiro, só se torna compreensível no contexto da análise de Marx da forma social de mercadoria.
Contudo, o movimento operário socialista nunca foi capaz de atingir exactamente este nível da crítica marxiana do capitalismo (que inclui secretamente uma crítica do "trabalho"), porque só tinha retomado de Marx as ideias básicas trazidas do liberalismo (especialmente o "leviatânico" constructo do Estado ) e ignorava a crítica aparentemente "obscura" do fetichismo moderno. Assim, em nome do glorificado "trabalho", a atitude do movimento operário socialista capitalistamente domesticado permaneceu laxista e pouco clara em relação à síndrome anti-semita. Os próprios socialistas não foram os verdadeiros portadores políticos do anti-semitismo; para este fim, após a Primeira Guerra Mundial, desenvolveram-se novos partidos e correntes "radicais de direita", que competiam com os conservadores liberais e os socialistas precisamente porque elevavam o biologismo, o racismo e o anti-semitismo, que geralmente se espalhavam como uma corrente intelectual básica por toda a sociedade, a um programa político especial e independente. Mas, tal como os liberais e os velhos conservadores, os socialistas estavam subconscientemente ligados a esta corrente e tinham sempre uma atitude ambígua em relação à propaganda anti-semita.
De acordo com uma palavra do social-democrata austríaco Pernerstorfer, retomada por August Bebel, o anti-semitismo era considerado "o socialismo dos estúpidos". Mas esta designação pretendia significar que os sentimentos anti-semitas, se tomados apenas pelas massas mais baixas, eram, por assim dizer, apenas um passo algo irreflectido na direcção certa, que poderia então ser facilmente levado mais longe pelos socialistas contra os "capitalistas em geral". Em 1881, numa época de "noites de cristal" prussianas, "O social-democrata" escreveu com toda a tranquilidade sobre o fenómeno do anti-semitismo:
"Na via para onde empurra as massas, hoje os judeus são espancados até à morte (!) e amanhã, logicamente, será a vez dos pregadores da corte, chanceleres imperiais, reis, imperadores, incluindo todo o 'improdutivo' séquito" (citado em: Silberner, op. cit., 204).
Doze anos mais tarde, o velho Wilhelm Liebknecht (1826-1900), um dos principais socialistas e durante anos colaborador pessoal de Marx, quase esfregou as mãos perante os sucessos eleitorais dos grupos anti-semitas: "Sim, os anti-semitas estão a semear e a cultivar, e nós, social-democratas, vamos colher. Portanto, os seus sucessos não são de modo nenhum indesejáveis para nós" (citado em: Silberner, loc. cit., 205). Foi neste espírito que o "Vorwärts", o órgão central do Partido Social-Democrata, se expressou um pouco mais tarde sobre o desenfreado anti-semitismo alemão:
"Por mais anticultural que seja, é um promotor cultural contra a sua vontade (!) – no verdadeiro sentido da palavra, fertilizante cultural para as sementes da social-democracia. E assim nos regozijamos com os êxitos do anti-semitismo, que são um duro golpe para todos os outros partidos capitalistas, quase tanto como para nós próprios [...]" (citado em: Silberner, op. cit., 205s.).
Nestas palavras fala uma cegueira tremenda, que deveria ter uma vingança terrível. Os marxistas do movimento operário acreditavam ser intelectualmente superiores aos anti-semitas, porque tinham para oferecer uma crítica racional do capitalismo, com uma perspectiva de transformação socialista de Estado. Mas ignoravam o facto de que o anti-semita "socialismo dos estúpidos" tinha mais a oferecer à consciência sofredora mas capitalistamente domesticada das massas. Poderia não só fazer seus os elementos do socialismo de Estado, mas também tematizar, de modo profundamente irracional, o centro fetichista da causa do sofrimento, a abstracção social da forma do valor e do dinheiro, o que a social-democracia não estava em posição de fazer de modo diferente e racional. Pois a racionalidade da sua crítica do capitalismo era a racionalidade não superada do próprio capitalismo, que só podia ser moderada pela economia estatal. O marxismo do movimento operário só podia, portanto, fazer a promessa fraca de que utilizaria o "Estado operário" para organizar racional e sistematicamente em benefício de todos a produção total de mercadorias e a dominação do dinheiro com as suas abstracções destrutivas. O anti-semitismo, pelo contrário, podia fazer a irracional promessa forte de que eliminaria estas abstracções da dominação do dinheiro, que se tinham tornado reais, eliminando os judeus. Tudo o que era necessário era a situação de crise profunda e sem esperança com que, de uma forma estranhamente superficial, até a social-democracia sonhava, a fim de desencadear a força destrutiva que tocava psicoticamente a raiz do capitalismo, na qual ninguém tinha a capacidade ou a vontade de tocar racionalmente.
Quase o pior, porém, é que uma grande parte da esquerda não aprendeu nada com isto até hoje. Embora já se tenha tornado história a catástrofe que espreita na síndrome anti-semita, ela ainda se agarra aos seus falsos conceitos. Isto inclui não só a afirmação do "trabalho" e, inevitavelmente, de todas as categorias básicas do capitalismo (cuja moderação pela economia estatal está agora irremediavelmente desacreditada), mas também a ideia da "classe trabalhadora", que é "boa" em si mesma, porque criada pelo próprio espírito do mundo para uma qualquer missão histórica. E assim toda a actividade dos trabalhadores das fábricas, camponeses, jovens desempregados e pessoas desfavorecidas, em suma, do "povo" em sentido socialmente enfático, tem de ter algo supostamente correcto em si mesma; talvez ainda numa forma "inconsciente", mas a ser desenvolvida em princípio. O racismo e o anti-semitismo também são, aberta ou secretamente, considerados "não tão maus" quando a ideologia do assassinato pode ser aparentemente explicada por motivos sociais. Presume-se – benevolentemente – que o estupidamente anti-semita jovem trabalhador ou aldeão "apenas" toma medidas contra os inimigos errados e que alegadamente ainda não reconheceu correctamente o capitalismo. Obviamente que esta cegueira, que grotescamente trivializa o anti-semitismo "socialmente motivado" (e não será sempre essa a razão do comportamento anti-semita?), está inseparavelmente ligada à crítica redutora do capitalismo do anterior socialismo, que por sua vez ainda estava ligado ao pensamento burguês do iluminismo.
A afirmação do "trabalho" e da nação, contudo, tornou o movimento operário socialista vulnerável não só a elementos de anti-semitismo ou à sua banalização, mas também ao outro lado da visão do mundo biologista, ou seja, à visão mesquinha dos povos de cor e dos deficientes, delinquentes e geralmente incapazes de trabalhar no seu próprio país como "avessos ao trabalho". Os elementos do racismo colectivo e individual contra os "sub-humanos" encontram-se na ideologia de massas do movimento operário. Os principais socialistas ingleses, como George Bernard Shaw, adoptaram o ponto de vista biologista da "eugenia"; o famoso autor utópico e socialista de coração H. G. Wells apelou mesmo à esterilização forçada de "portadores de material genético inferior", e Sidney Webb, o chefe da socialista Sociedade Fabiana, temeu "uma maior deterioração da substância racial, mesmo (o) suicídio da raça" (citado em: Koch 1973, 134). Não é de admirar que já o Partido Trabalhista primitivo tenha visto a realização dos seus ideais apenas garantida pelo "domínio mundial da raça anglo-saxónica" (op. cit.).
Tanto mais o racismo eugénico tinha de influenciar o movimento socialista na Alemanha contaminada pela ideologia do sangue. Wilhelm Schallmayer, o inventor do termo "higiene racial", que tinha recebido um prémio do rei dos canhões Krupp, declarou a sua simpatia por um socialismo social-darwinistamente purificado e foi mesmo autorizado a fazer a sua propaganda na revista teórica social-democrata "Neue Zeit"; de resto protegido pelo ideólogo chefe marxista Karl Kautsky, que reverencialmente chamou a Schallmayer "homem de ciência", e pelo social-democrata de direita Eduard David, que aplaudiu o "higienista racial" porque tinha alertado para a "atrofia da existência orgânica do corpo do povo" (citado em: Weingart/Kroll/Bayertz 1988, 109). Em 1910, Kautsky publicou a sua obra darwinista "Reprodução e Desenvolvimento na Natureza e na Sociedade", cujo último capítulo se intitula inocentemente "Higiene Racial" e fornece uma correspondente "crítica do capitalismo", bem como a conexa visão do futuro:
"A tecnologia humana destrói [...] o equilíbrio da natureza, reduz as exigências da luta pela vida e assim facilita aos indivíduos física e mentalmente inferiores (!) não só a manutenção mas também a reprodução [...] Tanto as crianças como também os aleijados, e mesmo os doentes mentais, podem agora ser postos a trabalhar e a ganhar o que precisam para não morrerem à fome [...] O próprio desenvolvimento das ciências naturais contribui para a degeneração. A medicina é muito menos a arte de tornar pessoas doentes saudáveis do que a de prolongar a vida das pessoas doentes na doença, e assim aumentar a possibilidade de elas se reproduzirem, de trazerem crianças para o mundo. Este é o significado da diminuição da mortalidade nas últimas décadas, da qual optimistas burgueses e outros estão tão orgulhosos [...] Em primeiro lugar, aqueles que hoje representam a "sabedoria do Estado", os altos e superiores governantes, devem dar o exemplo, porque é entre eles que a degeneração através da preservação e reprodução de indivíduos inferiores tem o maior efeito [...] Nestes círculos, a reprodução, tal como o casamento, é feita para servir os interesses da propriedade familiar, não a melhoria da raça [...] As coisas são bastante diferentes numa sociedade socialista. Ninguém como capitalista é mais escravo do seu capital, que prescreve o casamento com uma mulher talvez não amada, doente, mas de qualquer modo proprietária, e a procriação de um herdeiro. E desaparecem todas as condições de vida que hoje em dia criam doenças e degeneração no proletariado e também nas classes superiores. Aqueles que ainda têm uma disposição saudável em si mesmos irão desenvolvê-la e reforçá-la. A doença deixará de ser um fenómeno de massas do qual não há fuga possível. Quando crianças doentes vierem ao mundo, a sua enfermidade deixará de aparecer como culpa das condições sociais, mas apenas como culpa pessoal dos pais (!) [...] Uma nova geração surgirá, forte e bela e cheia de alegria de viver, como os heróis da era heróica grega, como os guerreiros germânicos da migração dos povos [...]" (Kautsky 1910, 262ss.).
Este racismo individual eugénico, tingido com uma pitada de loucura de racismo colectivo ariano e germânico, é digno do sombrio mundo imaginário de um socialismo de Estado leviatânico. O reino do eterno "trabalho" só poderia ser uma utopia negativa de pessoas de força e “raça” duras como o aço, de corpos nacionais "saudáveis" e de fanáticos monstros do desempenho. É óbvio que estas são imaginações de masculinidade capitalista, surgidas de fantasias patriarcais de total viabilidade e de conquista mundial. E por isso não é de admirar que o movimento operário socialista também tenha adoptado elementos da misoginia biologicamente discriminatória do liberalismo. A aceitação do conceito capitalista de "trabalho" foi inevitavelmente acompanhada pela ideologia burguesa da família, que queria atribuir às mulheres um lugar biologicamente definido como parideiras, mães e donas de casa nas áreas inferiores (porque não rendem dinheiro) da esfera privada. Foi neste sentido que o ramo lassalleano do movimento operário alemão se opôs de início, e até veementemente, ao emprego remunerado das mulheres. É o que diz uma resolução da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães (ADAV) aprovada em 1867:
"O emprego de mulheres nas oficinas das grandes indústrias é um dos abusos mais escandalosos da nossa época. Escandaloso, porque não melhora a situação material da classe trabalhadora, antes a agrava, e a população trabalhadora, especialmente através da destruição da família, é colocada num estado miserável em que perde mesmo o último resto dos bens ideais [...] Mais uma razão para rejeitar hoje o esforço para aumentar o mercado de trabalho feminino [...]" (citado em: Mahaim/Holt/Heinen 1984, 30).
As mulheres devem, portanto, depender dos salários em dinheiro dos seus maridos e permanecer numa posição subordinada, supostamente "natural". Em contraste com isto, o partido socialista unido e posteriormente social-democrata exigiu a completa igualdade das mulheres, tanto no emprego remunerado como na política (sufrágio das mulheres). Mas a atitude mais de liga masculina da ala Lassalle permaneceu subterraneamente vigente até hoje, apesar de todos o palavreado oficial, e pode ser observada a todo o momento no quotidiano dos sindicatos. O biologismo original da degradação social das mulheres, devido à sua responsabilidade postulada pelas áreas da vida que estão dissociadas da produção de mercadorias, simplesmente está estruturalmente enraizado na sociedade capitalista do trabalho e não pode ser abolido por decreto com resoluções formais de igualdade. A redução biologista das relações de género ainda se encontra, portanto, mesmo nas mais abrangentes declarações teóricas do marxismo sobre a "questão da mulher". O famoso livro de August Bebel "A Mulher e o Socialismo", por exemplo, que se tornou um best-seller na viragem do século, exige a libertação completa das mulheres em abstracto, mas na argumentação concreta novamente deixa ver a cada passo as orelhas de burro da ideologia biologista:
"Também nós acreditamos que é uma divisão apropriada do trabalho deixar a defesa do país aos homens, e às mulheres o cuidado da terra natal e do lar [...] A mulher instruída virar-se-á naturalmente (!) para o homem mais instruído (!). Daqui resulta uma troca de ideias e instrução mútua [...] O primeiro objecto da sua preocupação (da sociedade socialista) é [...] a mulher que dá à luz, a mãe [...] Preservar o peito da mãe para a criança enquanto parecer possível e necessário é uma questão natural [...]" (citado em: Burgard/Karsten 1981, 84ss.).
A mulher, portanto, não só deve ser eternamente responsável pelo "coração" e continuar a ser aluna do homem "mais instruído", mas também na sociedade socialista do futuro ela deve ser definida socialmente em primeiro lugar não como um membro da sociedade, mas através da sua função biológica (o papel de mãe). O quão fortemente estas atribuições biologistas estavam ancoradas no movimento operário é demonstrado pelo "debate sobre a greve ao parto" entre os socialistas antes da Primeira Guerra Mundial. O slogan da "greve ao parto" foi bem recebido pelas trabalhadoras, muitas vezes com sete, oito ou mais filhos, que estavam desgastadas por gravidezes intermináveis. Mas o problema foi imediatamente incorporado no discurso biologista. Por um lado, os propagandistas masculinos, como o médico social-democrata Julius Moses (1868-1942), tentaram justificar a possível recusa de darem à luz novamente em termos social-darwinistas e de "higiene racial", com o argumento de que acima de tudo as mulheres doentes e tuberculosas deveriam ser "esterilizadas". Por outro lado, o comité executivo do partido e socialistas proeminentes como Rosa Luxemburgo e Clara Zetkin opuseram-se a qualquer greve ao parto. Apesar de todas as dificuldades das mães sobrecarregadas de trabalho e de exigências com a bênção de uma criança, este slogan estava fundamentalmente errado, descobriu o jornal do partido "Vorwärts": "Não é o baixo número de crianças que é a via para o reconhecimento e a política socialistas" (citado em: Bergmann 1992, 289). Clara Zetkin sabia porque não, e foi capaz de explicar: O movimento socialista precisava de um grande número de "soldados para a revolução", e portanto devia ser exigida às mulheres a (biológica!) "acção de classe", em vez da "cobardia e falta de confiança" (op. cit., 291). Neste debate e não só, tornou-se evidente como as próprias mulheres (justamente também as intelectuais) compartilhavam como "cúmplices" a ideologia biologista juntamente com as atribuições de género nela implícitas.
O biologismo social "veterinário-filosófico", que remonta a Darwin, tinha inundado a consciência capitalista desde a viragem do século, incluindo o movimento operário domesticado, de tal modo que, aparentemente, mesmo os impulsos éticos, críticos ou de algum modo emancipatórios só se conseguiam expressar de uma forma assim contaminada. A interpretação "científica" da sociedade pelos socialistas darwinistas foi complementada e promovida por darwinistas académicos, como o zoólogo Ernst Haeckel (1834-1919) que, apesar da sua rejeição do socialismo, era muito lido no movimento operário. Na sua popular obra "O enigma do universo" deixou a natureza orgânica e a sociedade cair directamente sob "leis" idênticas:
"Os destinos dos ramos da raça humana, que como raças e nações lutaram durante milhares de anos pela sua existência e desenvolvimento futuro, estão sujeitos exactamente às mesmas 'eternas, férreas, grandes leis' que os destinos de todo o mundo orgânico, que há muitos milhões de anos povoa a terra " (Haeckel 1960/1899, 341).
Todas as formas aparentemente específicas da cultura humana, incluindo a ética, só podem, portanto, reivindicar validade na medida em que sejam compatíveis com a natureza humana como componente dos "vertebrados superiores". Em termos de uma crítica "veterinário-filosófica" do capitalismo, isto só poderia significar uma espécie de "socialismo dos vertebrados superiores". Assim também o anarquista russo Pyotr Alexeyevich Kropotkin (1842-1921) tentou de forma absolutamente comovente justificar o socialismo com a "ajuda mútua no mundo animal", uma vez que, como é sabido, os animais não se limitam a comer-se uns aos outros e, em todo o caso, não são utilizados para construir cruzadores blindados. Em 1911, o grande escritor francês André Gide escreveu um artigo em defesa da homossexualidade, no qual não argumentava que o erotismo do mesmo sexo era uma variante simplesmente aceitável da sexualidade humana, mas tentava provar a sua base biológica no reino animal: "Posso assegurar-vos que vi cães que com as suas impertinências perseguiram outros cães comprovadamente virgens" (Gide 1964/1911, 84); "os mesmos hábitos" se encontram "entre os patos", e, por último mas não menos importante, pode ser observada a "ocorrência extraordinariamente frequente de acasalamento entre machos nos besouros" (op. cit, 86).
Por sua vez, Karl Kautsky, aluno da escola de quadros de Marx e Engels, começou no seu enorme livro de dois volumes sobre "materialismo dialéctico" ("Dedico este livro à minha querida Luisa, mãe dos meus filhos, [...] incansável e compreensiva ajudante") a citar com toda a seriedade, página após página, a partir de – "A vida dos animais, de Brehm", entre outras coisas sobre a sociabilidade das aves tecelãs, a fidelidade conjugal das cegonhas e as peculiaridades intelectuais dos perus ("a sua estupidez é assustadora"). A partir desta base segura, Kautsky toma então uma posição estritamente marxista sobre a "questão racial". Claro que ele é contra a ideologia da "guerra racial", pois "porque é que raças diferentes têm de fazer guerra umas contra as outras? (Kautsky 1927 I, 515). No entanto, pertence aos "factos irrefutáveis que os seres humanos se agrupam por raças" (op. cit.), onde surgem todo o tipo de diferenças "naturais", que, contudo, não devem ser sobrevalorizadas e em caso algum devem ser interpretadas discriminatoriamente:
"Certamente algumas raças têm características contrárias a outras [...] O desconhecido parece ligeiramente estranho, mesmo repulsivo. E não só o sentido da vista, mas também o sentido do olfacto é por vezes ofendido por membros de raças estranhas. No entanto, não é certo que o cheiro desagradável seja herdado, que seja uma característica racial e não tenha origem em hábitos e alimentos especiais [...] No Museu Britânico tive muitas vezes a oportunidade de trabalhar durante horas perto de estudantes negros sem notar nem um resquício de odor racial [...] Claro que com isto não se pretende negar a possibilidade de algumas raças terem um cheiro especial [...] Um sabor especial da carne de cada raça também será possível. Os crocodilos em algumas águas do Sudeste Asiático são considerados muito ávidos por chineses, menos por malaios, mas hesitam antes de se atirarem a um europeu [...] Por mais vagas que sejam todas estas observações, não há dúvida de que cada raça tem as suas peculiaridades [...]" (Kautsky, op. cit., 515s.).
O tour de force de tolerância ao suor através da biologia das raças humanas, que não deixa nenhum olho seco, é levado por uma seriedade científica extremamente meticulosa, animalista no mais verdadeiro sentido da palavra. O ideólogo-chefe adiantou pelo menos uma confissão franca com esta obra-prima filosófica da social-democracia alemã:
"Os começos do meu pensamento histórico só se formaram naturalmente uma geração depois de Marx e Engels terem chegado à sua visão da história [...] O darwinismo era então o ensinamento que enchia o mundo inteiro. Ainda não se tinha falado de darwinismo na altura em que Marx e Engels criaram a visão materialista da história. Eles tinham começado em Hegel, eu comecei em Darwin. Darwin interessou-me antes de Marx, o desenvolvimento dos organismos antes da economia, a luta pela vida de espécies e raças antes da luta de classes" (Kautsky 1927 I, 17).
Face a esta bestialidade a quatro patas em termos de teoria geral da sociedade, a aparentemente peculiar exigência contemporânea do filósofo Ernst Bloch quanto a "andar de pé" adquire afinal uma certa concludência.
Original Die Biologisierung der Weltgesellschaft, pags. 154-185 de Schwarzbuch Kapitalismus.
Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft.
Integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf.
Tradução deste capítulo de Boaventura Antunes (10.2020)