A Economia Política da Simulação
A realidade da aparência e a aparência da realidade no fim da modernidade

Robert Kurz

3 de setembro de 1995


Primeira Edição: Original Politische Ökonomie der Simulation in www.exit-online.org.  Publicado na Folha de São Paulo de 03.09.1995 com o título A realidade irreal e tradução de José Marcos Macedo 

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Em que medida a realidade é real? Essa pergunta do construtivismo (Paul Watzlawick) parece impor-se cada vez mais à consciência social. A dúvida quanto à realidade da existência subjetiva há muito tornou-se popular na ficção científica, a exemplo dos romances do norte-americano Philip K. Dick e do polonês Stanislaw Lem. Será que jazemos clinicamente mortos numa câmara refrigerada e nosso cérebro é manipulado por meio de estímulos eletrônicos que nos simulam a vida e a experiência? Ou será então que estamos sob o efeito de drogas que nos figuram um mundo repleto de vida, quando na verdade jazemos encolhidos num canto fétido qualquer? A inquietante sensação de que a realidade pode ser interrompida a qualquer momento, como se alguém retirasse o plugue da tomada, penetrou abertamente até mesmo na consciência cotidiana.

A revolução microeletrônica e a nova mídia fortaleceram uma tendência social que apaga as fronteiras entre a existência e a aparência, entre a realidade e a simulação. O que é significado e o que é significante? Ainda é possível traçar essa diferença? Talvez a guerra do Golfo, como supõem alguns teóricos da mídia, tenha ocorrido apenas nas telas de televisão. Há quem pondere a realização de jogos de futebol em estádios vazios, tornando-os assim puros eventos televisivos. A própria política transformou-se há muito num teatro da simulação. Estrelas pornôs, ídolos esportivos e atores de cinema dividem as cadeiras do congresso e do governo com criminosos renomados. Não é mais a propaganda da competência objetiva que determina as eleições nas democracias, mas o personality show de máscaras sorridentes.

A perfeita evasão da realidade concreta em busca do refúgio na "realidade virtual'' parece emergir no horizonte do tecnicamente possível. De fato, existem pessoas que quase desaparecem por trás de seus computadores. A mídia cresce não apenas quantitativamente, mas assume também qualitativamente o poder sobre a consciência humana. Quanto menos os homens se comunicam, maior é o espaço ocupado pelas telas de televisão. Do cinema tridimensional ao preservativo de corpo inteiro representado pela mídia, as fantasias do cybersex prometem a máquina definitiva da auto-satisfação. A finitude do mundo concreto, que impõe limites ao crescimento sem entraves da economia e do consumo, deve ser superada pelos espaços virtuais. Paralelamente a isso, a alma vai sendo aos poucos transmitida à máquina. Elevadores assassinos e insurreições de robôs são fantasmagorias que povoam a literatura fantástica. O homem fez de si mesmo algo supérfluo e agora não passa de um produto simulado pela mídia.

Nos anos 80, a consciência simuladora alastrou-se pelo âmbito profissional e atingiu a estrutura da sociedade. Os yuppies, eles próprios um produto da mídia, começaram a simular os critérios capitalistas de eficiência e sucesso em vez cumpri-los efetivamente. Quanto maiores os investimentos em tecnologia avançada e quanto maior a racionalização da produção e dos serviços, tanto menor é o rendimento do sistema. É como se a bagunça do socialismo tivesse contaminado o capitalismo. Todos fingem profissionalismo, produzem porcarias e dizem de modo habitual: "Pedimos encarecidamente sua compreensão''. É quase chique não ser capaz de concentrar-se em mais nada: "Todos são artistas'' (Joseph Beuys); pintores incapazes de pintar; cantores incapazes de cantar e escritores incapazes de escrever. "Todos têm seus cinco minutos de fama'' (Andy Warhol). O respeito pela própria individualidade restringe-se ao vestuário. Jovens de ambos os sexos, imersos na simulação, consideram a si mesmos como cabides ambulantes: você é o que você veste.

Não foi apenas a revolução tecnológica da nova mídia que ensejou, no final do século 20, uma lastimável cultura da "falsa autenticidade'' ou da "autêntica falsidade''. Numa sociedade em que a economia é a base de tudo, a consciência simuladora também deve ter um fundamento econômico. Mas em que consiste a "economia política da simulação''? Para responder a essa pergunta, devemos saber exatamente aquilo que na economia capitalista não pode mais figurar como "real'' e por isso deve ser simulado. O problema parece estar na relação entre o trabalho  isto é, o trabalho pago para a produção de mercadorias  e o dinheiro. "Trabalho'', nesse sentido, significa o consumo de energia humana abstrata. O processo econômico moderno pode ser definido como a inesgotável transformação desse trabalho em dinheiro: a energia humana que se manifesta em sociedade constitui a substância do dinheiro. Todo dinheiro que não espelha um trabalho precedente é dinheiro sem substância e por isso simulado.

Karl Marx é considerado hoje em dia como o grande perdedor da teoria da história. Mas, para além de antigos conflitos e interpretações, sua teoria sobre o capitalismo ainda tem muito a dizer. O terceiro volume de "O Capital'' é surpreendentemente moderno, pois nele encontramos os fundamentos teóricos para a atual "economia política da simulação''. O conceito básico nesse contexto é o de capital fictício. Marx distingue duas formas ou dois pilares desse capital fictício: o crédito governamental e a especulação. Em ambos os casos, não há qualquer transformação real de trabalho produtivo em dinheiro, mas simula-se o crescimento do dinheiro.

O crédito governamental é um paradoxo econômico. De fato, no sistema da economia de mercado o crédito serve apenas para financiar a produção para o mercado. As despesas do Estado não representam, contudo, nenhuma produção, mas somente consumo social. Por isso, a única fonte das finanças governamentais verdadeiramente sensata e condizente com o sistema é a taxação de lucros e salários: o Estado retira o excedente monetário das receitas do mercado a fim de financiar o consumo social. Quando, por sua vez, o Estado financia a si próprio por meio de créditos, torna-se obrigado ao pagamento de juros. Normalmente, porém, o Estado não desenvolve nenhuma atividade produtiva para o mercado e, por isso, é absolutamente incapaz de obter fundos para o pagamento de juros. O paradoxo está no fato de que, sob a forma de crédito governamental, uma atividade econômica é tratada simuladamente como produção, embora seja na verdade consumo social. O Estado só consegue resolver insatisfatoriamente essa contradição lógica ao empenhar suas receitas futuras com o lançamento de impostos. Em outras palavras, a sociedade capitaliza o trabalho futuro. O consumo social do presente, imprescindível para o sistema, ocorre à custa do futuro; o Estado moderno torna-se um vampiro que suga seu próprio porvir. Por que então os Estados concordaram com esse financiamento cada vez mais insensato?

A razão para tanto não está nem nas "reivindicações sociais exageradas'' nem nas "falsas idéias socialistas'', como afirmam os ideólogos do neoliberalismo. Foi o próprio desenvolvimento do capitalismo que levou ao crescimento improdutivo, em termos capitalistas, do consumo estatal. Quanto mais o sistema de mercado impôs-se historicamente e quanto mais a concorrência forçou o emprego da ciência e da tecnologia, tanto maiores foram os "custos operacionais'' improdutivos da economia de mercado, evidenciados na forma do consumo estatal. Entre eles, os custos com o exército ocupam um lugar de destaque. Já na Primeira Guerra Mundial, a maquinaria industrializada da morte só pôde ser financiada por meio de vultosos investimentos estatais. Esse crescimento dos custos para o consumo social improdutivo prolonga-se até hoje, inclusive nas tarefas civis do Estado. Se este quisesse hoje financiar por meio de impostos todos os custos que se tornaram necessários para sua atividade, fatalmente arruinaria a economia de mercado e destruiria com isso seu próprio fundamento. Pode-se dizer, ironicamente, que os "custos operacionais'' da sociedade numa economia de mercado tornaram-se tão altos que ela, segundo seus próprios critérios, já não é mais rentável historicamente.

Para encobrir tal situação, o sistema capitalista tem de recorrer à simulação monetária e, por meio do crescente capital fictício do crédito governamental, sangrar seu imaginário futuro capitalista. Esse procedimento simulador mostrou-se viável enquanto a economia de mercado deu provas de confiança e assegurou seu crescimento com um verdadeiro consumo de energia humana, sob a forma de trabalho. Até o segundo terço do século 20, o crédito estatal cresceu em conjunto com o trabalho produtivo nas indústrias, o que possibilitou ao Estado recolher mais impostos reais e custear seus créditos cada vez maiores. As novas indústrias "fordistas'', assim denominadas em homenagem ao empresário norte-americano Henry Ford, com sua produção em massa de automóveis, aparelhos domésticos, objetos eletrônicos etc, possibilitaram, somente na Alemanha do pós-guerra, a criação de 10 milhões de novos empregos.

Mas o encanto desse "milagre econômico'' foi quebrado pela revolução microeletrônica do final dos anos 70. A mesma tecnologia que produziu a nova mídia substituiu em grande escala o trabalho humano pelo de robôs e pela racionalização (lean production). É claro que com isso o trabalho produtivo, no sentido capitalista do termo, não desapareceu completamente, mas o crescimento posterior da moeda deixou de corresponder de modo suficiente ao crescimento do trabalho. Depois do Estado, portanto, a própria economia de mercado ingressou no estágio da simulação. Ao lado do capital fictício do crédito governamental surgiu o capital fictício da especulação comercial. Uma vez que a expansão do trabalho produtivo deixou de ser rentável ou tornou-se muito onerosa, os lucros passaram a fluir cada vez mais para a especulação com ações, imóveis, divisas cambiais, contratos a termo etc.

A essência da economia especulativa é obter um aumento fictício do valor sem respaldo em nenhum trabalho produtivo, contando apenas com a negociação de títulos de propriedade. No caso das ações, isso significa que o próprio rendimento, por meio dos dividendos, adquiriu um valor acessório; o mais importante passou a ser o aumento dos índices da Bolsa acima de qualquer crescimento dos lucros obtidos no mercado real. A década de 80 viu nascer assim um capitalismo de casino de dimensões globais, que dura até hoje. É claro que houve também em épocas anteriores fases dominadas pela especulação, porém estas não só terminaram regularmente com um crash financeiro após um breve período de tempo, mas também sempre foram sucedidas por um novo impulso na expansão do trabalho produtivo. Hoje em dia, entretanto, ocorre exatamente o oposto. A era do capitalismo de casino estende-se de modo tão pouco natural porque, graças à racionalização, o trabalho economicamente produtivo continua a derreter como neve ao sol.

O novo lugar-comum definido pelo jobless growth significa que o crescimento do dinheiro tornou-se sem substância e é unicamente simulado por meio de créditos e de maneira especulativa. Não apenas o Estado, mas também o mercado, acha-se agora obrigado a sangrar seu futuro imaginário e empenhar seus fictícios lucros futuros. A economia e os empreendimentos privados têm a mesma parcela de culpa que a administração estatal. Somente nos Estados Unidos, a dívida do Estado chega a cerca de US$ 6,5 trilhões, na forma de empréstimos estatais e títulos da dívida pública; as dívidas privadas, por sua vez, atingem US$ 10 trilhões, na forma de hipotecas, juros de empréstimos, crédito ao consumidor etc. Os custos dessa dívida absurda não estão mais lastreados no trabalho produtivo, mas em grande parte no aumento especulativo dos ativos financeiros. As grandes empresas auferem lucros monumentais não mais pelo sucesso no mercado real, mas pelas manobras engenhosas de seu setor financeiro no mercado especulativo do capital fictício.

Os chamados derivados financeiros, originalmente um instrumento de proteção contra o risco nas negociações com o exterior, sofreu paradoxalmente uma drástica transformação num mercado especulativo que hoje alcança, no âmbito global, o volume aproximado de US$ 50 trilhões. O capitalismo simula a si próprio. O capital fictício do crédito governamental e o capital fictício da especulação comercial estão inextricavelmente entrelaçados, as dívidas de um setor são "pagas'' com as dívidas do outro, e o crescimento simulado alimenta a própria simulação. O índice Dow Jones, o termômetro da Bolsa de Nova York, que atinge atualmente 4.700 pontos, contribuiria somente com cerca de 1.000 pontos numa avaliação realista.

Num balanço real, sem valores fictícios, todos os países do mundo seriam testemunhas do colapso de seus empreendimentos mais vultosos. Partidos políticos, províncias, administrações comunais e instituições culturais aplicam seu dinheiro no mercado financeiro, o que os torna dependentes da criação simulada de moeda. O desmoronamento desse edifício global parece inevitável. A desvalorização da moeda sem substância pode ocorrer com a inflação ou a deflação; no futuro, é possível que a inflação e a deflação corram até mesmo paralelamente em diversos setores. Inúmeros indícios nos revelam a iminência do choque de uma desvalorização mundial. Vários países do Terceiro Mundo e do Leste europeu já passam por ciclos de hiperinflação, cujas porcentagens variam entre 100 (Turquia) e 1 milhão (ex-Iugoslávia). Isso jamais ocorreu em tempos de paz. No Ocidente, as falências se multiplicam nos empreendimentos industriais e imobiliários. Um número cada vez maior de bancos, caixas econômicas e companhias de seguro tropeçam no fracasso, a exemplo do Banco Baring de Londres, impelido à ruína pelas mãos de um corretor de 29 anos de idade. A crise do sistema monetário mundial também indica que a criação de dinheiro sem substância chegou a seu limite.

Uma coisa é certa: os modernos homens do dinheiro, de todas as classes sociais, não querem admitir que, a prazo, uma economia totalmente do dinheiro é uma impossibilidade lógica e prática. A despeito disso, a estranha "cultura da simulação'' nos permite supor que a realidade capitalista tornou-se irreal. Talvez o indício mais forte do fim dessa realidade da aparência seja o fato de certos homens não se levarem mais a sério e nem mesmo saberem se realmente ainda existem.


Inclusão: 20/12/2019