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Primeira Edição: Artigo do livro Der Letze macht das Licht aus, Ed. TIAMAT, 1993. Tradução e notas de Raquel Imanishi Rodrigues
Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Quando o objecto da crítica se modifica, também a própria crítica deve modificar a si mesma. Se, no início do século XX, a transformação do modo de produção capitalista alterou o sistema de referência dos conflitos sociais, conduzindo-o a um novo estágio (imperialismo, economia de guerra, taylorismo, ideologização das massas, etc.), transformando também de maneira controversa o marxismo do movimento operário até então vigente, talvez a ruptura de época, no final do século XX, exija uma transformação ainda mais ampla. É contraproducente, por isso, querer se "apegar" a modelos teóricos supostamente resguardados. Em vez disso, seria necessário levar a sério, de uma vez por todas, a mudança no sistema referencial político-económico.
Só agora, passado o período de incubação dos anos 80, as novas forças produtivas pós-fordistas da microeletrônica e seus conceitos correlatos de racionalização (descritos em seu conjunto, de acordo com o referencial teórico escolhido, como segunda ou terceira revolução industrial) mostram seu verdadeiro potencial de crise: pela primeira vez, a riqueza material (e também ecologicamente destrutiva) é produzida antes pelo emprego tecnológico da ciência que pelo dispêndio de trabalho humano abstracto. O capital começa a perder sua capacidade de valorização absoluta e alcança com isso aquele estágio, extrapolado logicamente por Marx, no qual a forma de socialização do sistema produtor de mercadorias — que "repousa no valor" — esbarra em seus limites históricos.
A crise da forma-mercadoria é, no entanto, filtrada pelo movimento do mercado mundial, ou seja, através da luta global pela parcela decrescente de valor "válido"; luta essa que possibilita (e domina) as próprias forças produtivas que serão responsáveis pela desvalorização da força de trabalho. Os capitais mais produtivos abatem concorrencialmente aqueles que não podem mais acompanhar o elevado padrão de produtividade, mobilizando para tanto vultuosas somas de capital fixo. Os velhos perdedores e os novos retardatários só podem continuar no páreo à custa de baixos salários (ou ainda trabalho forçado ou escravo) e, assim mesmo, em alguns poucos estores com orientação exclusivamente exportadora (como é o caso da Europa Oriental e do Sudeste Asiático). Todavia, com o estabelecimento de um padrão global de produtividade, os baixos salários não podem produzir nenhuma massa adicional de valor "válida ", mas servem apenas para ampliar de modo precário a capacidade de concorrência no interior do processo de retracção da substância-valor "válida ". lnstitui-se, assim, em quase todos os estores, seja através de investimentos de capital, seja através de estruturas exportadoras mantidas por baixos salários, uma competição repressora em âmbito global.
Podia parecer, à primeira vista, que o processo de crise transcorreria de maneira escalonada, acompanhando a situação de cada economia nacional, e deixaria por último as nações mais fortes do ponto de vista do capital, capazes de sustentar por mais tempo o processo de simulação monetária através do endividamento do Estado e do sistema de crédito. Primeiro sucumbiram as economias do Terceiro Mundo e do socialismo de Estado, que passaram a ser exemplo de uma "modernização tardia",. fadada desde então ao fracasso no interior do horizonte burguês. Nos anos 90, porém, a crise parece avançar a passos largos em direcção às economias nacionais estabelecidas.
O limite do modo de produção se expressa na forma de custos de produção continuamente ascendentes, e pressiona, cada vez mais sem o filtro das demarcações nacionais, as contas empresariais. Fornecedores e força de trabalho, bem como mercados consumidores, devem ser buscados directamente a nível global e ser flexivelmente cambiáveis de acordo com a oferta de mercado.
Os índices aparentemente elevados de crescimento do comércio mundial não se baseiam mais, nessas condições, em uma exportação de capital e mercadorias nacionais à moda antiga, mas são antes fruto do progressivo desmonte global do que, até então, eram as economias internas. Um produto vendido por uma empresa "alemã" no mercado alemão pode ser produzido na Inglaterra e em Hong-Kong, montado no Sul da China e expedido da Polónia, conforme sua planilha de custos. A produção das fábricas japonesas de chaves de fenda aparece nos EUA como exportação do México, ou na Espanha como exportação inglesa. O mesmo processo se repete no plano monetário. Exportações alemãs para a China, provenientes na verdade de uma empresa francesa, podem ser facturadas em ienes; créditos em marcos podem ser tomados nos EUA por uma empresa japonesa. Todos os componentes do processo capitalista perambulam pelo globo.
Como consequência desse desenvolvimento, se desfazem os laços entre a esfera estatal, ou seja, a política, e a reprodução capitalista. O Estado e a política, obviamente, não desaparecem, mas se desvinculam de seus próprios fundamentos económicos (gerando a crise da esfera política). Em meio à competição repressora globalizada surge o perfil de um capital que não é mais produzido essencialmente a partir da massa nacional de mais-valia (gerada pela economia interna das nações), mas antes pela distribuição da mais-valia mundial em retracção por meio de estruturas globais de perdas e ganhos, apenas indirectamente vinculadas às velhas economias nacionais. Não é mais possível, sobre essas bases, nem uma "luta de classes" nacional, nem tampouco a defesa ou mobilização, neste plano, de interesses capitalistas coerentes. O Estado não é mais o capitalista ideal que zelava em tempo integral pelo estoque de capital nacional e podia concentrar e representar a vontade capitalista como um todo. No próprio Ocidente, o Estado começa a perder o controle sobre os processos sociais concernentes à sua população e ao seu território e se torna dependente de uma "localização privilegiada". Só de maneira limitada, ele pode garantir condições capitalistas básicas, na medida em que marginaliza uma parcela de sua população que não é mais passível de financiamento. Se, por um lado, são desmontadas estruturas de produção, fornecimento e serviços que haviam durado décadas e desconectadas regiões inteiras, que correm o risco de se transformarem em desertos, por outro, a favelização, a disseminação da barbárie e o domínio de máfias coloca em xeque as funções do Estado.
Numa situação como essa, de dissolução gradativa de sua economia interna, não há nada que o Estado prescinda mais que áreas de influência e domínio imperial. O que eram vantagens fundamentais numa posição de supremacia mundial, a saber, o aproveitamento garantido de determinadas capacitações da força de trabalho, matérias-primas e mercados consumidores, agora são desvantagens. Estruturas fixas se tornam um fardo, porque o que hoje pode ser a vantagem de uma determinada região, amanhã pode se converter em desvantagem, e mesmo porque podem se abrir possibilidades mais atractivas em matéria de custo em uma região do mundo completamente distinta. Os investimentos precisam ser fluidos, flexíveis e facilmente desviáveis e devem, ademais, concorrer pelos melhores juros nos mercados financeiros globais. Em princípio, todos devem estar presentes em toda parte e ser capazes de desaparecer de novo na hora certa. Sob essas condições, um império nacional ou multinacional parece algo antediluviano, seus custos de financiamento ultrapassam em muito seus rendimentos e ameaçam se tornar ruinosos.
O proteccionismo estatal não pode deter esse desenvolvimento como um todo, mas, ao contrário, torna-se ele próprio selvagem, em função de um acordo definido globalmente (GATT), e adquire o aspecto de uma mata cerrada bi- e multilateral, onde são gradativamente eliminados todos os abrigos de protecção para indústrias "nacionais" necessitadas. Nessas condições, não parece ser provável nem mesmo a divisão do mundo em apenas três grandes blocos de poder (Leste Asiático, sob a liderança do Japão; as Américas, sob a liderança dos EUA; e a Europa e a Eurásia, sob a liderança de uma coalizão centro-européia). Até as próprias estruturas de poder continentais perderam sua eficácia em vista dos grandes circuitos para rolagem de déficits, dos fluxos unilaterais de exportação e dos investimentos diversificados globalmente. Todo o Leste Asiático exporta para o resto do mundo, sem importar de maneira correlata, o que, por si só, já impede a formação de um espaço económico autónomo. Os investimentos japoneses se encontram espalhados pelo mundo inteiro e os EUA se vêem não só mais apegados que nunca ao mercado mundial, más dependem há muito, também nos estores aparentemente autárquicos, de sua gigantesca economia interna, da compra de seus títulos estatais por parte do capital especulativo e dos fundos de pensão de firmas japonesas. Também a RFA só pode financiar sua alimentação improdutiva da Alemanha Oriental com o afluxo de capital monetário americano e japonês. A bancarrota iminente da ciranda deficitária e do sistema monetário europeus reforça as forças centrífugas e efectivamente impossibilita a formação de um bloco continental autónomo. As novas crises servirão apenas para reforçar ainda mais esse potencial de diversificação fugidia e global. Os nomes nacionais do capital passam a não ser mais que o manto de uma reprodução globalmente dispersa e em fase de dissolução.
Ao se aferrar a seus velhos pontos de vista, a esquerda interpreta de maneira inteiramente equivocada a situação efectiva e, com isso, classifica como demonstrações de força imperialistas de nações ou blocos económicos fenómenos que, na verdade, marcam oposições pós-imperialistas em meio ao processo de crise. A política estatal de bloqueio contra refugiados da pobreza, por exemplo, não pode de modo algum ser listada dentre os interesses capitalistas que, ao contrário, esperam com a imigração reforçar o dumping social e atenuar a pressão dos custos empresariais. Inversamente, a mudança nos direitos de asilo não pode ser explicada como uma "conquista" capitalista dos países do Leste, pois essa nasce antes da esperança ilusória de edificação de uma "fortaleza europeia ", capaz de fazer face às economias em desagregação. Os empréstimos estatais para a CEI, por sua vez, não representam uma espécie de linha de frente do capital ocidental para liquidações comerciais, mas antes, tomam seu lugar {em vista do temor de evasões descontroladas) e se perdem nos bolsos da máfia, pois não existe nenhum projecto rentável em larga escala, com excepção de algumas joint ventures mantidas à custa de baixos salários.
Tampouco se pode colocar no mesmo saco o novo radicalismo de direita e as acções dos capacetes azuis alemães em regiões de guerra civil. Não deixa de ser irónico que a maioria dos novos radicais de direita, a exemplo da esquerda antiimperialista, seja estritamente contra o derramamento de "sangue alemão" em terras estrangeiras. Isso corresponde ao ideal ilusório de bloqueio e isolamento do neonacionalismo em geral, que não deseja mais subjugar "o outro", mas antes mantê-lo "fora de suas fronteiras". Mesmo na apostila direitista, Junge Freiheit, um futuro geopolítico, teve dificuldades para protestar contra o difundido "pacifismo para fora", e, a despeito do protesto, não pôde mais relacionar sua estratégia a objectivos e interesses imperiais caducos, tendo de se contentar com um esperado "represamento do caos".
Por seu turno, a aço dos capacetes azuis {contando ou não com a participação alemã) não pode nem mais ser enquadrada entre os interesses de aproveitamento de recursos específicos, nem tampouco na linha da "pura" demonstração de força. Se o aproveitamento de ilhas de produtividade, baixos salários e estruturas bancárias isoladas e flexivelmente alargadas não implica mais na delimitação de zonas de influência específicas, com a crise da função política e do carácter estatal, também se torna obsoleto o controle de estados "soberanos" mais poderosos sobre menos poderosos. Ora, para que haja em geral uma relação entre "soberanos", é preciso que um deles se mantenha enquanto tal. No entanto, com o desmoronamento do poder estatal e o estabelecimento de uma economia de saque, o que se vê no Cáucaso, na Somália e na Jugoslávia é o império de clãs, senhores da guerra, bandos e máfias. Esse estado de coisas começa a se alastrar por toda a parte e, junto com o controle imperial sobre o domínio político vigente em outra parte, leva a uma situação absurda.
Por isso, também é inteiramente incerta a definição estratégica das discutidas acções da ONU. A incipiente barbárie pósimperialista faz com que as velhas "potências" disputem menos pela responsabilidade do que pela irresponsabilidade frente ao número crescente de regiões "pós-políticas" devastadas. Nessas regiões, não se promovem mais guerras representativas ao velho estilo, nem mesmo em uma renovada constelação de concorrência imperialista, mas se vê antes a inflamação interna mediada pelo processo global de crise. Nesse contexto, é possível criticar com igual direito tanto a intervenção quanto a não intervenção. O regime de Saddam Hussein não foi obrigado à capitulação, assim como não serão desarmadas as milícias na Somália, nem tampouco será a Bósnia transformada em um protectorado da ONU, como exigem os grupos pacifistas locais contra todos os partidos em guerra. Os estados pós-imperialistas hesitam pois, em virtude de suas próprias crises internas, que colocam em xeque a função da política, temem não só criar precedentes para a supressão(1) da "soberania" estatal (e não, como antes, apenas a perda do controle imperial externo), mas ainda institucionalizar assim uma forma de responsabilidade global e não-estatal pelas regiões desagregadas, deixadas à margem do mercado mundial. E, no entanto, como evitar tal curso se a lógica desse mesmo mercado deve continuar válida daqui para a frente? Sob essas condições, é uma alternativa aparente e inaceitável, tanto o apoio quanto a recusa irrestrita às acções da ONU. Caberia antes desenvolver uma prática emancipatória correlata à nova constelação mundial, capaz de formular uma posição própria e de viés. Tal perspectiva não pode ser obtida a partir da óptica imanente ao horizonte político atual., condicionada a impingir sempre novas obrigações decisórias — falsas e contraproducentes — no beco sem saída da socialização capitalista mundial.
A velha esquerda antiimperialista sucumbe porque seu próprio pensamento continua atrelado à forma-mercadoria e à forma-política burguesa e, logo, não pode mais reagir à barreira histórica do sistema produtor de mercadorias. Se a ex-esquerda realista(2) (com a qual a esquerda radical partilha a crença na eterna capacidade de acumulação do capital), iludida com democracia de mercado, se limita a inverter suas antigas posições e a propagar uma espécie de colonialismo com direitos humanos inteiramente quimérica, o velho antiimperialismo, centrado na luta de classes, se vê sem objecto. A mobilização dos "interesses da classe trabalhadora", repetitiva e orientada para um espaço de referência nacional, se desmoraliza sem a reflexão crítica acerca da forma-mercadoria, ou seja, sem a reflexão acerca da forma-monetária inerente a esses interesses. Em face da realidade efectiva, também se ridiculariza definitivamente a ilusão burguesa ilustrada do Estado como portador de uma vontade geral livre -própria da esquerda radical idêntica à ilusão de que um sujeito mercantil seria capaz de passar por cima das leis cegas da produção de mercadorias e obter poder de definição sobre si próprio.
Uma mesma linha pode traçar o desenvolvimento da ilusão da vontade politicista - que tem por base a reprodução da forma-mercadoria partindo do "primado da política" de Lenin, e passando pela teoria do "capitalismo organizado", formulada com Kautsky e Hilferding, pelo "estatismo integral" da teoria crítica, pelo "estado planificado" dos Operaístas(3) (que acreditavam seriamente na eliminação do fetiche da mercadoria através da "vontade de poder"), pela "teoria da legitimação" habermasiana, até chegar ao "derivacionismo de Estado" do Grupo Marxista(4) e nas "teorias de regulamentação" fordistas, dos socialistas de esquerda. Agora, justamente em meio a sua crise, o fetiche cego do capital passa à frente dos falsos conceitos da esquerda sobre a política, o Estado, a "soberania " e a vontade, e esta, em todas suas facções restantes, reage abertamente com o mote: "tanto pior para a realidade".
Os remanescentes do velho radicalismo chegam a ponto de denunciar os prognósticos de uma transição iminente para a barbárie global como "falsa certeza", pois estão condicionados ao cômputo mecânico de fenómenos de crise inteiramente contraditórios e contrapostos entre si — tais como a unificação alemã, a alteração no direito de asilo, o novo radicalismo de direita e as acções da ONU como "renascimento do imperialismo nacionalista alemão". Os náufragos críticos da sociedade for3:m de tal modo arruinados pela política e imbecilizados pela agitação, que só pode lhes parecer amalucada a tentativa de analisar uma revolução industrial (a microeletrônica), lançando mão de conceitos teóricos de crise. Eles tomam por supérfluas tanto uma definição de época, quanto uma nova historização do desenvolvimento interno do capitalismo, pois este, concebido em conceitos escolares, nunca deixou de ser o mal de sempre, imutável (ou talvez porque tu4° era tão belo no feudalismo?). Eles não ousam mesmo acusar de "objetivismo", precisamente, a análise e a crítica das estruturas (realmente) objetivadas, por terem desde sempre operado com conceitos burgueses irrefletidos de sujeito e vontade. Não chega a espantar, assim, que a demanda por uma supressão da forma-mercadoria e da forma-política -que no atual estágio da crise do sistema mundial plenamente desenvolvido deve ser formulada de maneira muito distinta que no passado -seja vista como reformismo ou fundamentalismo.
Em um ponto, porém, a esquerda radical é de fato insuperável: ainda que sem ter consciência do fato, ela mesma expõe, de maneira ímpar, a crise da política; suas correntes se relacionam entre si de modo tão histérico que seus líderes e divulgadores se desmascaram uns aos outros como alemães nacionalistas, contra-revolucionários, racistas e anti-semitas. Uma forma natural de auto-extermínio? Bem, mas isso já seria recair no biologismo.
Notas de rodapé:
(1) Aufhebung, em alemão (retornar ao texto)
(2) Ex-linken Realos, em alemão (retornar ao texto)
(3) Corrente marxista italiana ligada à Autonomia Operária (movimento extraparlamentar de oposição), que teve entre seus expoentes Antonio Negri, G.P Rawick, M. Gobbini e L. Ferrari Bravo (N. T.). (retornar ao texto)
(4) Marxistische Gruppe (MG), em alemão. Grupo criado nos anos 70 em Munique como dissidência do KPD-ML (Partido Comunista Marxista-Leninista Alemão), actuante nos meios académico e sindical. Até 93, o grupo editava a revista trimestral "Gegenstandpunkt", também nessa cidade (N. T.). (retornar ao texto)