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Primeira Edição: Subjektlose Herrschaft. Zur Aufhebung einer verkürzten Gesellschaftskritik em www.exit-online.org. Publicado na Revista Krisis, nº 13, 1993. Versão portuguesa difundida no Seminário Internacional "A Teoria Crítica Radical, Superação do Capitalismo e a Emancipação Humana", Fortaleza, Ceará, 29.10.2000
Fonte: http://www.obeco-online.org/robertkurz.htm
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Um dos vocábulos mais diletos da crítica social da esquerda, tagarelado com a inadvertência da obviedade, é o conceito de "dominação". Os "dominantes" foram e são tidos em inúmeros tratados e folhas volantes como grandes e universais malvados difusos, a fim de explicar os sofrimentos da sociabilização capitalista. Essa moldura é aplicada retrospectivamente a toda história. No jargão especificamente marxista, esse conceito de dominação amplia-se no de "classe dominante". O entendimento de dominação recebe dessa maneira uma "base econômica". A classe dominante é a consumidora da mais-valia, da qual ela se apropria com astúcia e perfídia e, é claro, com violência.
Salta aos olhos que a maioria das teorias da dominação, inclusive as marxistas, reduzem o problema de modo utilitarista. Se há apropriação de "trabalho alheio", se há repressão social, se há violência aberta, então é para uso e proveito de uma pessoa qualquer. Cui bono — a isto se reduz a problemática. Uma tal consideração não faz jus à realidade. Mesmo a construção das pirâmides dos antigos egípcios, que devorou uma parte não insignificante do mais-produto dessa sociedade, não se deixa remontar à força a uma perspectiva do desfrute (puramente económico) de uma classe ou casta. A matança recíproca dos diversos "dominantes", por razões de "honra", fica notoriamente de fora de todo simples cálculo de utilidade.
A redução da história humana a uma luta infinita por "interesses" e "vantagens", travada por sujeitos imbuídos de um árido egoísmo utilitário,(1) simplesmente abrevia ou distorce muitos dos fenômenos reais para que possa pleitear um decisivo valor explicativo. A idéia de que tudo o que não se resolve no cálculo utilitário subjetivo é mera roupagem de "interesses" sob formas religiosas ou ideológicas, instituições ou tradições, torna-se ridícula quando o gasto real com essa pretensa roupagem supera em muito o núcleo substancial do suposto egoísmo. Muitas vezes se tem antes de dizer o contrário: que os pontos de vista do egoísmo, se é que podem ser reconhecidos, representam uma mera roupagem ou uma mera exterioridade de "algo diverso" que se manifesta nas instituições e tradições sociais.
Ora, poder-se-ia dizer que aqui existe simplesmente um típico anacronismo do pensamento burguês. Uma constituição e um modo de pensar capitalistas, isto é, próprios à sociedade moderna, são impingidos às épocas pré-modernas, cujas verdadeiras relações não são com isso apreendidas. Isto significaria que a redução da dominação ao egoísmo e à luta de interesses seria válida pelo menos para a modernidade burguesa, em cujo solo brotou essa própria forma de pensamento. De fato, não se há-de negar que o aspecto externo das sociedades modernas, inclusivé a psique dos homens "que ganham dinheiro", parece resolver-se no egoísmo abstrato.
Porém justamente o caráter abstrato desse "proveito", para além de todas as necessidades sensíveis, é ao mesmo tempo o que desmente essa superfície. Se o egoísmo moderno é retraduzido para o plano sensível das necessidades, ele ganha com isso algo de fantasmagórico, de puramente irracional. Paradoxamente, o egoísmo, do modo como é posto na forma-dinheiro totalizada, parece ser algo perfeitamente autonomizado em relação aos indivíduos e sua "singularidade". Esse carácter alheio do interesse, que em hipótese é imediatamente egoísta, permaneceu ainda encoberto na fase histórica da ascensão do capital, quando o egoísmo de constituição moderna ainda não se separava por inteiro do conteúdo sensível da riqueza. Poderia parecer então que o egoismo era realmente a simples forma da luta pelo ("escasso") mais-produto material, e como se isso fosse um fundamento comum a toda a história até hoje, que só na modernidade capitalista foi simplificado ao extremo e por fim descoberto como tal.
Essa concepção do marxismo vulgar, a mesma daquela do Manifesto Comunista, torna-se sem dúvida fora de propósito no confronto com a realidade do capitalismo que se tornou maduro. Hoje, o egoísmo constituído emancipou-se definitivamente de todo conteúdo de carência sensível na forma-dinheiro. O mais-produto material não pode mais ser definido como objeto de apropriação para uso e proveito de uma pessoa qualquer: ele se autonomizou à vista de todos como monstruoso fim em si mesmo. A capitalização do mundo e os pululantes projetos abstratos de utilidade ganham uma desesperada semelhança com a construção das pirâmides no limiar da civilização, mesmo que sob relações sociais inteiramente diversas (mercadoria e dinheiro ). Às pessoas que só clamam ainda por "empregos", e não mais pela satisfação das necessidades, terá de ser atestada uma espécie de inimputabilidade que denuncie seu assim chamado egoísmo como mera ratificação de um princípio religioso secularizado. Isso vale igualmente para aqueles que, como proprietários, administradores, políticos, etc., são forçados a manter em curso esse princípio autonomizado. Também seu proveito é meramente secundário, sendo custeado cada vez mais com o próprio prejuízo.
Pode-se depreender portanto que a modernidade possui de fato algo em comum com todas as formações sociais anteriores. Só que isto não é o egoísmo abstrato, que enfim se teria desvelado como tal no capitalismo. Justamente o inverso: esta identidade é antes aquilo que não se resolve em nenhum cálculo econômico ou político de interesses, e o que na modernidade surge paradoxalmente como egoísmo, na verdade não é nada de próprio ao indivíduo, mas algo que os domina. Também os dominantes são dominados; de fato, eles nunca dominam pela própria necessidade ou bem-estar, mas para algo simplesmente transcendente. Nisso eles sempre prejudicam a si próprios e realizam algo que lhes é alheio e aparentemente superficial. Sua suposta apropriação da riqueza transforma-se em automutilação.
A redução utilitarista, numa versão modificada, ocorre também nas modernas teorias da dominação não-marxistas ou não-liberais. O proveito econômico abstrato é substituído aqui apenas por um proveito não menos abstrato do "puro poder". Se o marxismo vulgar pressupõe uma base ontológica do "interesse econômico", as outras teorias burguesas da dominação presumem a base biológica e geneticamente ancorada de um "impulso para o poder" ( ou impulso para a agressão) ou pelo menos constantes antropológicas e a-históricas. Arnold Gehlen, por exemplo, vê a necessidade de poder na existência de instituições sociais em geral, que teriam tomado o lugar do instinto a fim de guiar a conduta. Uma concepção que reaparece diluída naqueles aforismos de botequim de que "o homem" em si é um animal livre de peias, que tem de ser amansado pelo Estado autoritário.
No melhor dos casos, o poder ou a dominação sempre aparecem como domesticáveis para o direito, que caberia então ser definido igualmente como locus ontológico fundamental. De maneira eclética, toda essa espécie de derivações da dominação duplica-se nas fórmulas dualistas de poder e dinheiro como "meios" daquela imaginável sociabilidade. A domesticação pelo direito pode então, de acordo com o temperamento e a situação histórica, ser entendida como desnaturação infamante, que eclipsa a verdadeira imagem humana da luta pela existência (survival of the fittest), ou inversamente como progresso rumo à verdadeira imagem humana de uma dominação escoimada. A própria dominação permanece um princípio eterno e a sua "diferenciação" reformista, até o cúmulo do ocultamento, mantém-se a única forma possível de emancipação, com Habermas, aliás, como seu profeta. Assim se provaria que toda história até hoje foi no fundo a história dos social-democratas.
O marxismo sempre combateu as teorias "reacionárias" da dominação somente de uma outra perspectiva da dominação, a saber, da perspectiva de sua determinação econômica, ao passo que a idéia de uma superação da "dominação do homem pelo homem" permaneceu no estado de uma promessa para um futuro indeterminado — promessa esta débil e abstrata, para além de toda a teoria e práxis. Se contudo a abstração é um princípio ontológico, quer seja por razões econômicas, biológicas ou antropológicas, só restaria ainda a questão de quem afinal domina ou deve dominar, e de que modo se consuma a dominação. "Impulso para o poder", prazer e benefício do puro poder ou cálculo econômico utilitário como padrões explicativos chegam sempre ao mesmo resultado: a existência empírica da dominação, à diferença de sua determinação ontológica, é um produto da vontade subjetiva. O sujeito da dominação domina porque quer dominar, porque disto "tira alguma vantagem".
Essa redução da dominação empírica à simples face subjetiva é manifesta mais fatalmente nos próprios critérios da dominação. Enquanto as teorias biológicas e antropológicas da dominação tendem normalmente a afirmar a ordem existente ou no máximo exigir outra ainda mais autoritária, os marxistas (que querem substituir o tipo existente de dominação por um outro, "em conformidade às classes") e os anarquistas (que sugerem uma abolição imediata e sem sucedâneos da dominação) denunciam empiricamente os dominantes, de preferência como porcos subjetivos. Ocasionalmente, isso pode ser desmentido por asserções teóricas contrárias, ao se trazer espectralmente ao campo de visão a objetividade estrutural da dominação, para além dos sujeitos existentes. Mas o assombro nunca vinga. Os tímidos princípios de uma penetração teórica da sistemática ausência de sujeito da dominação não são conservados. Quanto mais o pensamento se consagra às relações em isolado, à práxis e à agitação para fins sociais, tanto mais ele se torna subjetivo, tanto mais grosseiramente o reducionismo vulgar transfunde-se num mero cálculo de interesses. Os dominantes são "injustos", abocanham todas as vantagens para si, exploram, mandam e desmandam a seu bel-prazer, vivem à tripa forra e no bem-bom à custa da maioria, e, caso quisessem, poderiam emendar-se, pois sempre sabem perfeitamente o que fazem.
Desse modo, a redução rasteira da dominação a um cálculo utilitário requer uma redução rasteira da execução da dominação a um sujeito volitivo autárquico. Essa redução pode ser demonstrada à vontade na literatura marxista e da esquerda. O conceito subjetivo de dominação é pressuposto axiomaticamente, e ante esse pano de fundo ocorrem então as detalhadas análises. A "assimetria entre capital e trabalho no processo produtivo" é evocada sem pressupostos, para então se afirmar de modo superficialmente subjetivo
"que os empresários individuais ou os administradores, na medida em que dispõem sozinhos dos meios de produção, têm também o poder exclusivo ( ! ) de destinar tais meios e os trabalhadores a eles ligados pela organização do trabalho para algumas finalidades de uso e igualmente dispor dos produtos que daí surgem de acordo com seus próprios ( ! ) cálculos de valorização".(2)
A "valorização" reduz-se aqui completamente ao cálculo egoísta, subjetivo e particular dos depositários da dominação, uma concepção que caracteriza de certo modo o tradicional marxismo do movimento operário e a Nova Esquerda, apesar de todos os antagonismos (que hoje se tornaram irrelevantes ). De maneira tanto mais coerente, o "Grupo Marxista" expressa a mesma redução num canto de cisne na data de sua autodissolução. Censura-se nos dominantes o descaro da conduta
"que cada trabalhador que ganha seu dinheiro (!) tenha de lhes agradecer a oferta de um emprego. Que, inversamente, insistem em não poder evitar demissões, pois as coações do mercado, de que eles próprios fazem uso ( ! ), lhes proibiria a tanto ".(3)
Essa declaração dificilmente pode ser mal compreendida, uma vez que o "Grupo Marxista" define seus esforços de agitação junto às "vítimas do capital" como exigência de "não se deixar mais usar pelas coações que outros criaram" (op. cit. p. 5: grifo meu) e reduz de tal modo o trato prático com a coação da forma-mercadoria social a ponto de mais uma vez ver nele somente a ousadia de "repassar os efeitos problemáticos desagradáveis a seus criadores (!)" (idem).
A pressão agitadora esquece claramente todas as percepções rudimentares e pouco claras da natureza da relação do valor, esmaga toda a reflexão referente a ela e exige a interpretação de que subitamente todos os "capitalistas", políticos e administradores "fazem uso" arbitrário das leis do sistema produtor de mercadorias. Desemprego, sugere-nos sistematicamente a tosca declaração agitadora do "Grupo Marxista", não é uma lei estrutural do sistema produtor de mercadorias, mas um ato de vontade negativo dos "dominantes". Este é o conceito de dominação burguês e iluminista de 1789, que apesar das múltiplas categorias do capital inculcadas à força, jamais esteve presente na crítica econômica de Marx.
A valorização do valor, a máquina social de um objetivo em si mesmo sem sujeito, é em Esser -um dos sociólogos sindicais de esquerda dos anos 70, igualmente remontável ao sujeito de uma vontade pura, que através de sua suposta "vontade de exploração" cria toda a organização de nome "capitalismo". Também faz parte do reportório-padrão argumentativo das esquerdas de fundo agitador, entre elas os "realos"(4) devotos do Estado e crentes da economia de mercado, desmentir as coerções da sociabilização pela forma-mercadoria e denunciá-la como pura manobra estratégica daqueles dominantes, que teriam inventado o argumento da coerção apenas em benefício próprio (provavelmente por "sede de lucro").
No nirvana político onde agora jaz pacificamente, pode parecer ao "Grupo Marxista" uma espécie de infâmia equipará-los a um publicista reformista ou até mesmo aos "realos" (poder-se-ia acrescentar obviamente, e com mais razão, também os autônomos). Mas no que respeita à questão decisiva da crítica social, ele não foi um pingo melhor do que os outros. O problema do fim em si mesmo sem sujeito permaneceu-lhe oculto ou não foi mobilizado teoricamente.
A redução do capital e de sua perniciosidade a agentes subjetivos, a sujeitos guiados pela vontade e pelo interesse, não é só um crasso erro teórico, mas tem também conseqüências práticas fatais. Com os veneráveis lemas agitadores sobre a vontade malevolente e o cálculo subjetivo de utilidade dos dominantes, não se apreende mais a realidade em progresso nem são captados os sujeitos constituídos por essa realidade. Como é patente, o caráter tautológico e autodestrutivo da máquina capitalista ultrapassou qualquer egoísmo dos agentes e proprietários. E, por outro lado, as "vítimas e serviçais do capital e do Estado" se encontram arejadas e esclarecidas no que respeita ao conteúdo objetivo da realidade daquelas coerções que os marxistas tão obstinadamente imputam ao interesse subjetivo dos dominantes.
O argumento subjetivista prestava-se para a fase histórica de ascensão do capital, quando os trabalhadores, ainda nesse invólucro social, tinham de se revelar sujeitos da forma-mercadoria. Enquanto os diversos sujeitos-mercadoria se formam e travam a luta por seus interesses monetários no terreno da forma-mercadoria, enquanto eles criam e mobilizam as instituições e os vínculos para tanto, a crítica social pode reduzir-se ao prisma subjetivista. Desde o início, porém, este argumento não se apresentou teoricamente, mas permaneceu oculto, pois todo o movimento prático da crítica podia ainda ser imanente ao capital.
A partir desta imanência são avançadas em forma abstrata as posições pseudo-radicais do marxismo vulgar, como por exemplo a do "Grupo Marxista"; hoje contudo elas estão ultrapassadas e fora de propósito, pois o capital, como relação universal, atingiu seu estágio maduro (de crise) e assim impossibilitou em princípio uma crítica imanente. A coerção da forma-mercadoria é objetiva, não no sentido antropológico, mas no histórico. Ela é superável, mas somente com a superação da própria forma-mercadoria. O fardo da agitação subjetivista e de sua imanência consiste apenas no fato de ela não abordar este problema da superação. Já que os "efeitos desagradáveis" procederam apenas da vontade e do cálculo de utilidade dos dominantes, que supostamente, apesar da forma social sem sujeito, poderiam mudar de atitude, eles devem ser eliminados já nessa forma, com o que as "vítimas e serviçais" poderiam safar-se dos "efeitos" sem ter de tocar em sua própria forma como sujeitos-mercadoria.
A vantagem dessa conclusão redutora para o agitador é porém apenas ilusória, em especial quando ele "não quer ser reformista". O axioma de sua agitação já é per se reformista, na medida em que não define criticamente em sua forma social a necessidade sensível. Nisto ele permanece compatível com a consciência constituída pela forma-mercadoria de seus destinatários "ganhadores de dinheiro', embora com isso, quer queira ou não, caia nas garras da coerção material. Ele incorre na insolúvel contradição de exigir por um lado que os sujeitos façam valer as suas necessidades sensíveis sem levar em consideração as leis estruturais coercitivas da forma-mercadoria, mas por outro lado faz esta exigência dentro da própria forma-mercadoria ou ao menos cala o fato de que só assim ela pode ser compreendida. O "Grupo Marxista", por exemplo, ocasionalmente deixa transparecer em seus tratados que a "correta economia planificada" não poderia mesmo funcionar com "dinheiro", mas isto se torna letra morta e incompreensível quando, anteriormente, ele próprio fizera causa comum com a noção monetária do cotidiano capitalista, à qual apela a todo momento em nome do "interesse" das senhoras e senhores da classe trabalhadora.
A partir desse dilema explica-se também por que a teoria estreitamente ligada à agitação é incapaz de fundar sistematicamente a crítica da relação dinheiro-mercadoria nos escritos de Marx. Uma reciclagem teórica do marxismo histórico do movimento operário e de seu conceito de socialismo é tão impossível como uma mediação social da crítica indispensável da economia. Com a crítica radical do dinheiro não se pode, de imediato, fazer a agitação proletária — e vice-versa: quem faz sem mediação a panfletagem de massas não pode elaborar a crítica radical do dinheiro. A suposta "tapeação" das "vítimas serviçais" tem sempre de ser atacada em sua própria forma sem sujeito, que é o verdadeiro "autor" social. A agitação fracassou portanto devido a si mesma, e não por causa da tolice das massas ou das pressões do Tribunal de Defesa Constitucional.(5) O esforço em vão dos agitadores passou ao largo dos ativistas e dos movimentos sociais, censurados apenas por "pensamento equivocado", "inconseqüência" etc., embora o mais importante ainda não tenha sido dito nem elaborado; de fato, foi a própria inconseqüência dos marxistas que manteve incólume o abismo entre o cálculo de interesses constituído pela forma-mercadoria e a crítica do capital.
A mobilização per se sempre imanente da "assimetria entre capital e trabalho", que podia mover apenas uma contradição no interior do próprio capital, chegou historicamente a seu término. Os momentos da teoria de Marx nela contidos caem por terra, tornam-se documentos históricos, e com isso morre o marxismo em todas suas variantes. Mas a teoria de Marx contém, no conceito de crítica do fetichismo, um acesso inteiramente diverso à realidade, até agora mantido encoberto. O marxismo nada pôde fazer com ele, sobretudo nada de prático. Para o "Grupo Marxista" (a fim de estender um pouco seu necrológio ), o problema do fetichismo nas análises do "capital" contidas em seu documento originário de fundação não é apreendido sistematicamente. O Grupo, porém, julgou oportuno denunciar o "palavrório sobre a reificação e a alienação"(6) e repudiar expressamente uma infiltração fetichista da vida burguesa nas "esferas derivadas" (formas de pensamento, sexualidade, arte etc.). Em vez de livrar o problema da pecha de "palavrório" e assimilá-lo teoricamente, não se tomou nenhum conhecimento de seu alcance para, em troca, investir de forma pseudopositivista contra as categorias econômicas. A crítica simultânea — bastante vaga — das concepções do capital como uma "relação pessoal de dependência" e das "teorias vulgares dos agentes" (Resultate /.../, ibidem) estava assim fadada a permanecer sem eficácia. O próprio "Grupo Marxista" não se ateve a isso, na medida em que, na sua imagem teórica redutora, recaía constantemente num conceito de dominação subjetivista.
De fato, toda a teoria da dominação que remonta a um cálculo de utilidade econômico ou político tem dificuldades de livrar-se exceto de maneira superficial de um conceito de "dependência pessoal". O problema da coisificação das relações sociais e da dominação é apreendido de forma muito redutora quando ele se limita ao fato de, na forma da mercadoria, "os homens se utilizarem reciprocamente como meio para seus objetivos individuais" (Resultate /.../, ibidem). O apego à subjetividade dada e constituída, incompreendida em sua constituição sem sujeito, permanece com isso insuperada. Essa concepção redutora sugere um salto lépido e imediato entre a constituição dos sujeitos pautada pela forma-mercadoria e a "exploração capitalista". A coisificação e a "utilização recíproca" reduzem-se então bem rápido ao fato de que, na dependência do trabalhador, só não se trata de um vínculo "pessoal" na medida em que ele não permanece por toda a vida dependente do capitalista Fulano de Tal, mas antes da "classe capitalista" em geral e de "suas" instituições. O conceito subjetivista de dominação é criticado aqui como "pessoal" no sentido mais tosco, embora não seja resolvido, mas apenas deslocado para um sujeito coletivo da dominação.
O "Grupo Marxista", de fato, relativiza a sua própria crítica das teorias de dominação "vulgares" e de fundo pessoal moralizador ao infletirem a referência de Marx sobre a coisificação (fetichista) no sentido de que, "por outro lado", na "mesma declaração esconde-se a referência de que, com a abstração que constitui o conteúdo social de sua atividade, os indivíduos produtores de mercadorias submetem-se a outros indivíduos" (Resultate /.../, ibidem, grifos meus). Desse modo, a argumentação esquiva-se do problema do fetiche e volta a falar em resolver a relação coisificada num ambiente subjetivo. O conceito de "sujeito automático" (Marx), o verdadeiro plano sem sujeito da relação fetichista, é assim fundamentalmente perdido.
O fato de indivíduos produtores de mercadorias se "submeterem a outros indivíduos" por meio da abstração da forma-mercadoria é simplesmente falso como afirmação isolada. Semelhante concepção poderia valer no máximo enquanto a forma-mercadoria dos sujeitos ainda não estivesse totalmente desenvolvida, enquanto portanto o restante das demais tradições pré-modernas fossem ainda ineficazes. Enquanto restava dúvida de quem trataria quem por "senhor", a própria abstração da mercadoria ainda não constituía em pleno sentido para os indivíduos "o conteúdo social de sua atividade". Hoje em dia o mestre-de-obras diz com toda a cordialidade para seu ajudante: "Senhor X, traga-me por favor do depósito o cavalete e 20 paletas com os prospectos". Uma conversa com o pronome "você" (du), por outro lado, não significa uma diminuição, mas a confiança igualitária (pense-se também na hierarquia francamente absurda do aperto de mãos em muitas empresas ). Os mais recentes programas de administração operam de caso pensado com tais formas de interação igualitária.
Isso não é simplesmente uma formalidade superficial, por trás da qual se ocultaria a antiga "submissão guilhermina a outros indivíduos". Nenhum sujeito-mercadoria plenamente modernizado tem mais a sensação de se "submeter" a um outro indivíduo como tal. E essa avaliação espontânea não engana. O que os indivíduos percebem hoje como sua heteronomia é sempre um funcionalismo abstrato do sistema que não se resolve mais em nenhuma subjetividade. Todos os funcionários das hierarquias funcionais são tomados pelo que são: executores subalternos de processos sem sujeito a que as pessoas não somente não se "submetem", mas que são até julgados pela sua "capacidade funcional".
Um superior odiado é avaliado em seu irracionalismo menos por padrões satisfatórios de relacionamento humano do que antes pelo fato de em que medida sua conduta é disfuncional para o funcionamento da empresa, isto é, em que medida ele desempenha mal "seu trabalho". Um "sujeito durão", pelo contrário, com comportamento correto, igualitário e norteado pelo "sucesso", pode ser aceite justamente porque "realiza seu trabalho" ("eu faria exatamente o mesmo"). Por isso não se pode cogitar aqui de "submissão" a um indivíduo, pois, primeiro, em sua função o executor não é uma resistência individual nem é apreendido como tal, e, segundo, porque a própria identidade individual mantém-se intocada como sujeito-mercadoria monadizado. Segundo a hora e a situação, é plenamente aceitável fazer executar com sobriedade comercial as funções empregatícias sobre os indivíduos e, depois, se possível, sair com eles para tomar uma cerveja.
O discurso da "submissão a outros indivíduos", que deve ser levada a cabo pelos homens produtores de mercadorias justamente por meio da "abstração que constitui o conteúdo social de sua atividade", passa evidentemente ao largo do problema. Trata-se de uma linguagem confinada às categorias de um conceito de dominação superficial e subjetivo, ligado ecleticamente em curto circuito ao problema ainda por elaborar da ausência fetichista de sujeito. Com tal sorte de agitação não se pode mais apreender a verdadeira heteronomia dos indivíduos produtores de mercadorias nem a consciência que eles têm do assunto.
Ora, com isso a própria base do sistema é concebida erroneamente. O fato de os sujeitos-mercadoria "utilizarem-se reciprocamente para os seus objetivos individuais" não é o X da questão e muito menos a sua explicação. Antes, é a mera forma fenomênica de "algo diverso" — a saber, de fetiche sem sujeito que se manifesta nos sujeitos que agem. Seus "objetivos individuais" não são o que parecem ser: segundo a sua forma, não são objetivos individuais ou voluntários, e por isso também o conteúdo é distorcido e desemboca na autodestruição. O essencial não é os indivíduos se utilizarem mutuamente para seus objetivos individuais, mas sim, na medida em que parecem assim fazer, executarem em si mesmos um objetivo totalmente diverso, supra-individual e sem sujeito: o movimento autônomo (valorização) do capital.
A diferença não poderia ser mais precisa: para o marxismo vulgar, o movimento autônomo do capital, a valorização do valor, é justamente aquela aparência que deve ser remontada aos objetivos, à vontade e à atitude subjetiva das pessoas, resolvendo-se, portanto, na subjetividade (de cunho autoritário e "errado"). Uma crítica radical e coerente do fetichismo, pelo contrário, teria de denunciar como aparência a própria subjetividade empírica, ou seja, teria de dissolver os objetivos, a vontade e a ação subjetiva das pessoas produtoras de mercadoria em sua verdadeira ausência de sujeito, como simples execução de uma forma-fetiche pressuposta a todos os sujeitos — não para se submeter ao "sujeito automático", mas para poder apreendê-lo como tal e superá-lo.
Só esta inversão possibilita reconhecer em geral o escândalo da total falta de consciência no plano da determinação social da forma, que é o pressuposto para superá-la. Quando afirma que a ausência de sujeito no sujeito burguês e constituído pela forma-mercadoria é mera aparência ou simples ilusão, o marxismo vulgar e as teorias tradicionais da dominação tornam-se cúmplices do fetiche e se vêem impossibilitadas de criticá-lo em sua objetividade. A contradição do pseudo-radicalismo da agitação tem profundas raízes no conceito de sujeito. Ironicamente, a evocação direta do sujeito pressuposto e apriórico não é outra coisa senão a forma teórica da submissão à ausência fetichista de sujeito.
O eterno anátema lançado aos dominantes e a eterna suposição de que nas próprias formas modernas do dinheiro e da mercadoria seria possível uma organização inteiramente diversa e mais humanitária, bastando apenas uma vontade diversa e melhor que a guiasse, sem dúvida tornaram-se com o tempo uma terapia ocupacional para os mais parvos entre os críticos sociais. Este insigne círculo abarca hoje tanto o restante dos marxistas ortodoxos e pseudo-radicais quanto os realos. À parte estes incorrigíveis não-pensadores, porém, há muito se desenvolve a teoria da dominação. Já desde a virada do século, ou no mais tardar desde os anos 20, os mais inteligentes entre os críticos sociais do Ocidente se batem cada vez mais com os fenômenos da ausência de sujeito.
Um produto destes esforços foi a tese da burocratização. Nas análises burguesas, que, ao contrário do breviário da literatura marxista, não se fixavam tão fortemente num malévolo grupo personificado chamado "burguesia", desde cedo pairou no ar o emblema do "mundo administrativo". Na famosa sociologia das associações partidárias de Robert Michels(7) e sobretudo na teoria de Max Weber começou a se formar um conceito estrutural da verdadeira ausência de sujeito da dominação moderna. Weber fixa o conceito geral da burocracia aos "interesses" dos poderes sociais, embora ainda superficialmente, ao chamá-la de "instrumento de precisão"
"que se pode pôr a serviço dos interesses dominantes tanto puramente políticos quando puramente econômicos ou quaisquer outros".(8)
Ao mesmo tempo, contudo, ele também faz referência à dinâmica "material" e sem sujeito do processo moderno de burocratização, que se afasta das tradicionais teorias da dominação:
"O funcionário de carreira é [...] somente um membro isolado, incumbido de tarefas especializadas, num mecanismo [...] de progressão infatigável, que lhe prescreve, na essência, a marcha forçada [...]. Os dominados, além do mais, não podem por sua vez prescindir nem substituir o existente aparato burocrático de dominação [...]. O vínculo do destino material das massas ao funcionamento sempre correto das organizações de capital privado cada vez mais burocráticas cresce constantemente, e a possibilidade de sua desvinculação torna-se assim cada vez mais utópica [...]. A burocracia tem caráter racional: regra, objetivo, meios e impessoalidade material regem sua conduta." (Weber, ibidem, p. 570 ss.).
Na retórica da luta de classes da esquerda, a tese da burocratização insinuou-se primeiro e sobretudo nos trotskistas, que se tinham como defensores do Graal das respectivas advertências de Lênin e viam-se às voltas com o problema de explicar uma suposta dominação não-capitalista sobre a "classe trabalhadora" num Estado com "fundamentos econômicos socialistas" por eles defendidos. Por isso veio a calhar a fórmula da dominação burocrática. Com ela, sem dúvida, não se avançava um conceito de dominação sem sujeito. Antes, tratava-se unicamente de substituir sem rodeios, especialmente para a União Soviética, o antigo sujeito explorador e dominante da "classe capitalista" pelo sujeito dominante supostamente transitório da "casta burocrática". O conceito subjetivo de dominação não foi posto teoricamente em xeque, embora tenha sido involuntariamente enfraquecido. O conceito de burocracia foi antes um sucedâneo teórico; ele foi utilizado com desculpas e zelosamente separado do conceito de "classe dominante" no sentido próprio. Mesmo Trotski força este hesitante conceito de burocracia no antigo esquema, que em Weber soa apenas surdamente:
"Na sociedade burguesa, a burocracia representa os interesses dos proprietários e da classe cultivada, que dispõe de inúmeros meios de controlar a sua administração. A burocracia soviética, entretanto, ergueu-se sobre uma classe que acaba de se livrar da miséria e da escuridão e não possui nenhuma tradição de domínio ou comando ( ! ). Se os fascistas, após alcançarem as sinecuras, conluiaram-se à alta burguesia por meio de interesses comuns, amizades e laços matrimoniais, a burocracia da União Soviética tomou para si os costumes burgueses, sem ter ao seu lado uma burguesia nacional."(9)
Pelo que se vê, Trotski não abandona sequer vagamente o conceito de dominação subjetivo e coletivamente pessoal do marxismo vulgar. A burocracia é introduzida como uma espécie de ajudante de xerife sócio-econômico que perdeu casualmente o seu chefe e agora governa por sua própria conta, sem dispor da "particularidade" da dominação (de classes). Esse pensamento — preso a meras categorias sociais (classe trabalhadora, alta burguesia, burocracia), cuja constituição pela forma social sem sujeito não entra no campo de visão e que só são apreendidas como tais de modo acrítico, em sua reciprocidade subjetiva de ações — não pôde render teoricamente nada de novo à tese da burocratização. O conceito trotskista de burocracia manteve-se empiricamente redutor e foi somente instrumentalizado para poder representar o desenvolvimento incompreendido da União Soviética com uma aparência de plausibilidade própria ao marxismo vulgar.(10) Um passo além foi dado pela Teoria Crítica, cujos representantes vislumbraram as mudanças com muito mais clareza do que o marxismo vulgar de partido. Os teóricos da Escola de Frankfurt afastaram-se da mera retórica da luta de classes, cuja palidez foram os primeiros a notar (sem no entanto poder superá-la teoricamente), lançaram mão da tese de burocratização da sociologia ocidental e buscaram aclimatá-la num projeto de critica social (cada vez mais pessimista). Mas Horkheimer esboçou para tanto uma imagem peculiar da dominação, na qual os conceitos do marxismo vulgar e das teorias sociológicas de burocracia são ecleticamente fundidas:
"A burguesia está dizimada, a maioria dos burgueses perdeu a sua autonomia; quando não se rebaixam ao nível do proletariado ou da massa de desempregados, eles caem na dependência de grandes empresas ou do Estado. […] O que resta como caput mortuum do processo de transformação da burguesia é a burocracia industrial e estatal de alto escalão."(11)
Se Weber ainda formula o problema de modo ambivalente, se para Trotski e seus pupilos ocidentais domina ainda inequivocamente o conceito subjetivo e classista de dominação em face do conceito de burocracia, Horkheimer (que obviamente está mais próximo de Weber que de Trotski) já tematiza a dissolução do conceito de dominação de classes através do desenvolvimento real das próprias sociedades ocidentais. Mas a expressão "caput mortuum" mostra que ele não se livrara da obstinada idéia subjetivo-sociológica da dominação. Esta se encontra profundamente lastreada no pensamento iluminista ocidental, que a princípio fixa a "subjetividade" como abstrata e apriórica. Todas as relações sociais devem e têm de ser deduzidas de algum modo desse sujeito francamente quimérico, que permanece o alfa e ômega de todas as análises.
A tese da burocratização, em todas as suas variantes, parece aproximar-se de um conceito de dominação sem sujeito. Contudo, ela revela ao mesmo tempo a resistência da idéia iluminista de sujeito, propensa ao melindre quando perde as suas prerrogativas. O fato de tanto Weber quanto Horkheimer e Adorno, e aliás também como Freud, resvalarem para um pessimismo antropológico os alinha involuntariamente àqueles pessimistas culturais reacionários que eles sempre criticaram. Tal afinidade impura não é devida apenas às experiências catastróficas das Guerras Mundiais, mas também às contradições da ideologia iluminista do sujeito e do marxismo como seu apêndice.
O conceito de burocracia reflete apenas negativamente o despropósito tanto das teorias de dominação burguesas quanto das marxistas. No tocante à manifesta ausência de sujeito dominante, porém, ela permanece inexplicada e simplesmente descritiva. O confinamento à ideologia burguesa do sujeito e com isso a um conceito subjetivo de dominação permite pouco mais que a constatação de um fenômeno sociológico que não pode ser deduzido senão de acordo com padrões "técnicos" e de "organização". O conceito de tecnocracia é o eco deste desamparo até hoje insuperado. A dominação da burocracia ainda é discutida em termos teóricos subjetivos, embora a sua verdadeira dependência (em contraste aos grupos dominantes facilmente apreensíveis, como a nobreza ou a burguesia) aponte para aquele "Outro" sombrio, já incapaz de ser captado pelo espírito iluminista. Assim, pouco espanta que a própria Teoria Crítica não tenha assimilado sistematicamente a crítica do fetichismo de Marx. Esta incapacidade não é fruto de uma debilidade analítica, mas indica antes uma limitação básica da racionalidade ocidental, que não se dá a conhecer nem mesmo nas variantes críticas de seu próprio caráter fetichista
A dissolução das antigas teorias subjetivas da dominação estendeu-se, com base na tese da burocratização, pelas mais modernas concepções de estruturalismo, do estrutural-funcionalismo e da teoria dos sistemas. A sistemática ausência de sujeito é aqui enfim abertamente tematizada, não apenas como resultado histórico (lamentável) da modernidade, mas pela primeira vez como princípio próprio da sociabilização humana. A partir das análises estruturais da lingüística firmou-se a idéia de que constitutivo não são o sujeito nem a práxis dos sujeitos, mas antes as "estruturas" sem sujeito nas quais e por meio das quais se constitui a respectiva ação. Não é o homem (o sujeito humano) quem fala, é "a língua que fala". Ou, em termos sarcásticos: o homem "é falado".
Este projeto teórico, desbravado por Ferdinand de Saussure ("lingüística estrutural"), estendeu-se rapidamente à etnologia (Claude Lévi-Strauss) e à psicologia (Jacques Lacan), para de lá alcançar a história, a sociologia e a filosofia. Segundo tal projeto, por toda parte o que está em jogo não são, em última instância, indivíduos e sujeitos humanos, mas estruturas sem sujeito como pseudo-sujeitos ( embora não conscientes e ativos, e sim "determinantes"). Se o homem não fala, mas "é falado", então ele também não pensa, mas "é pensado"; então ele não atua de forma social, política ou economicamente, mas "é atuado" etc. Preconizou-se assim nada menos do que a morte do sujeito.(12)
Ninguém expressou tal resultado de modo filosoficamente mais conseqüente do que Michel Foucault, cuja obra extremamente contraditória é tratada, ora como pós-estruturalista, ora como pós-moderna:
"No instante em que se toma consciência de que todo o conhecimento humano, toda a existência humana, toda a vida humana e talvez todo o legado do homem repousa em estruturas, ou seja, num conjunto formal de elementos que estão submetidos a relações passíveis de descrição, o homem como que pára de ser o sujeito de si próprio para ser ao mesmo tempo sujeito e objeto. Descobre-se que aquilo que torna o homem possível é um conjunto de estruturas que ele pode pensar e descrever, mas da qual ele não é o sujeito nem a consciência soberana. Essa redução do homem às estruturas que o circundam, parece-me característica de todo pensamento contemporâneo; dessa forma, hoje a ambigüidade do homem como sujeito e objeto não é mais uma hipótese frutífera nem um tema frutífero de pesquisa."(13)
Como porém o verdadeiro tema de Foucault é o "poder" de corte nietzschiano (e ele tem a proeza de ser um nietzschiano estruturalista ou um estruturalista nietzcchiano ), o conceito de dominação sem sujeito parece assim totalmente liberto da antiga tese de burocratização. Onde tudo é "poder" e nada mais é "sujeito", esgotam-se também as antigas teorias subjetivas da dominação, para as quais o "poder" é impensável sem um sujeito-poder, em cuja vontade o "poder" pode ser assimilado. Foucault obviamente não se mostra contente com isso, por mais que admire Nietzsche e a "vontade" mantenha-se relevante para ele. Contudo, a vontade é ao mesmo tempo um camarada perdido que, ao exprimir-se, só pode executar "funções" da "estrutura", quer esta seja ou não a sua "vontade". Da mesma maneira que a vontade, expressa em "desejos", está por toda parte, assim também o "poder" está por toda parte como estrutura sem sujeito, em cujas formas pode expressar-se exclusivamente a vontade. Foucault tenta rastrear esta inevitável constelação até os mais ínfimos poros da psique na "microfísica do poder" — este é também o título de uma de suas coletâneas de ensaios.
Com isso, sem dúvida, a práxis emancipatória entra definitivamente em desespero. Ou melhor: o vínculo entre práxis e fundamentação teórica rompe-se aparentemente em definitivo. Agir apesar da teoria — eis o lema explícito ou implícito. O próprio Foucault ligou-se apaixonadamente ao grupo de informação penitenciária (GIP) e envolveu-se com as revoltas dos presos. Ele levava por assim dizer uma vida dupla como "professor de história dos sistemas de idéias" no College de France em Paris e como "inimigo da normalidade" (por meio também de sua própria situação como homossexual). O dilema de Foucault não é entretanto nem unicamente pessoal nem puramente o mesmo do estruturalismo, mas antes assemelha-se ironicamente ao do adversário "humanista" e existencialista tão duramente criticado. Aqui inclui-se também a Teoria Crítica. Ao fim e ao cabo, Foucault expressou-se de forma positiva até mesmo com relação a Adorno.
A práxis sem esperança, sem mediação e incapaz de ser fundamentada é uma conseqüência universal desse sistema de idéias, sem falar do resto dos antagonismos. Os estruturalistas haviam freqüentado juntos a escola das teorias ocidentais do sujeito (marxismo, existencialismo, fenomenologia, Teoria Crítica). Seus ataques ao humanismo ideológico foram sempre também uma discussão interna. Nesse sentido, o próprio estruturalismo é uma forma decadente do pensamento iluminista que destrói a si mesmo até a conseqüência última da completa dessubjetivação. Se para a Teoria Crítica esse processo de dessubjetivação ainda é histórico — a extinção de uma promessa ou o colapso de uma realidade — os estruturalistas por sua vez reconhecem que jamais existiu um sujeito no sentido iluminista.
Se mesmo os chamados povos selvagens agem em estruturas sem sujeito, como a etnologia de Claude Lévi-Strauss tenta mostrar, então a "estrutura" é integral e ontológica, então pode haver "processos diacrônicos" mas não propriamente história. O conceito final alcançado de dominação sem sujeito, por ser idêntico à "morte do sujeito" em geral, destrói também o adversário hipotético da dominação, o contra-sujeito emancipatório. A idéia de dominação sem sujeito é portanto forçosamente idêntica à separação definitiva entre teoria e práxis. O estruturalismo apenas levou às últimas conseqüências o pensamento iluminista. Por isso a grita raivosa de Sartre e dos marxistas ortodoxos na França mereceram tão pouco crédito quanto a dos gestores do espólio da Teoria Crítica na Alemanha. E por isso foi possível aos industriosos bacharelotes acadêmicos, a exemplo dos artiodáctilos e ruminantes, regurgitar como uma grande massa unitária de pensamento todas as teorias ocidentais de dominação e do sujeito desde a virada do século e vertê-la na tolerante folha em branco.
Ao conceito de "estrutura" corresponde o de "sistema", seja como sinônimo, seja como princípio do "conjunto de relações [...] que se conservam e modificam independentemente dos conteúdos por elas unificados".(14)
Aqui o estruturalismo entra em contato com a teoria dos sistemas, que se desenvolveu a partir da sociologia positivista anglo-saxã, sobretudo a de Talcott Parsons.(15) Em conformidade ao atalho anglo-saxão, a teoria dos sistemas tem poucos pruridos e absolutamente nenhum escrúpulo teórico-subjetivo de dissolver o sujeito dominante e portanto o sujeito em geral nas leis cibernéticas do movimento dos "sistemas". O funcionário público alemão Niklas Luhmann, alçado à estatura de grande teórico, aluno de Parsons e um dos mais destacados teóricos contemporâneos da teoria dos sistemas, parece mesmo divertir-se furtivamente ao descrever em linguagem protocolar o mundo social como uma máquina de relações sem sujeito e afirmar o ponto de partida do Iluminismo como uma ideologia ultrapassada e pré-científica:
"A teoria dos sistemas rompe com este ponto de partida e não tem portanto nenhuma utilidade para o conceito de sujeito. Ela pode formular, então, que cada unidade usada neste sistema [...1 tem de ser constituída por este próprio sistema e não pode manter relações com seu ambiente."(16)
O impacto desta declaração só se tornará claro ao se compreender que sob "ambiente" deste sistema não se entende outra coisa senão os atuais "sujeitos", ou seja, os homens reais com sua consciência real, suas necessidades, seus desejos, suas idéias etc.:
"Obviamente não afirmamos que pode existir sistema social sem consciência presente. Mas a subjetividade, a presença da consciência, a radicação da consciência é concebida como ambiente do sistema social, e não como sua auto-referência."(17)
Não carece de (involuntário) humor negro os sujeitos humanos serem degradados a mero "ambiente" de seu próprio "sistema" social. O sistema nada mais é do que o sistema das relações entre os homens que se tornou estruturalmente autônomo destes últimos. A história pode então ser entendida, no máximo, como a "diferenciação" cada vez mais progressiva dos subsistemas do "sistema" ontológico chamado sociedade. A sociedade torna-se cada vez mais um "sistema de sistemas", com o que no entanto a autonomização das "auto-referências" sistêmicas, em oposição à consciência humana e subjetiva, impõe-se de forma tanto mais inevitável. Como os sujeitos podem somente pensar e agir em relação a este "sistema dos sistemas" e no interior de seus respectivos subsistemas, eles permanecem desde o início reduzidos funcionalmente, sob o plano das relações "como tais", pensáveis apenas como sem sujeito. A "auto-referência" do sistema é portanto o processo — vazio de sujeito — de marcha, diferenciação e desenvolvimento sobre o plano das relações sociais, que têm de ser consideradas estruturalmente com independência dos homens reais que lhe servem de base apenas como "ambiente". Este árido funcionalismo não se espanta mais diante da cabeça de Medusa da ausência de sujeito: ele próprio já é uma.(18)
O "sistema" sempre preexiste, não apenas no macroplano, mas também no microplano do relacionamento humano em geral:
"Todo contato social é concebido como sistema, inclusive a sociedade, na condição de conjunto das considerações de todos os contatos possíveis. A teoria geral dos sistemas sociais tem a pretensão, em outras palavras, de apreender toda a esfera de objetos da sociologia e, nesse sentido, ser uma teoria sociológica universal."(19)
Deste prisma, o próprio casal é um "sistema", a exemplo aliás do indivíduo solteiro (como sistema para si próprio na robinsonada de sua auto-relação social). Como o tormento das dores do sujeito desaparecem com a total amputação deste membro gracioso mas ressequido, pode-se com toda inocência avançar um sistema indutivo de abstrações a partir da descrição banal de relações "sistêmicas" no micro e macroplano da sociedade — uma espécie de oráculo da sociologia vazia de conceitos, em que todas as relações imagináveis ocorrem sob tipos ideais e podem ser diferenciadas ou "calculadas". Além do sujeito, extingue-se todo conceito do conjunto da sociedade.
Dessa perspectiva, ou a "dominação" desaparece por completo ou adquire um significado inteiramente novo. Se para Foucault ela ainda é um adversário, embora sem sujeito, inapreensível e incontrastável, Luhmann por sua vez nem sequer chega a perguntar "e daí?" Para a teoria dos sistemas, toda crítica da dominação é tão absurda quanto uma crítica da circulação sangüínea ou da evolução. Como todo tipo de relação sempre acarreta, com necessidade lógica, um sistema de relações transcendente aos que se relacionam e inacessível em sua autonormatividade, aquilo que até agora parecia "dominação" pode também ser apenas uma função indispensável dos sistemas. E como os sujeitos são sempre mero "ambiente" de sistemas, a dominação não pode ser mais que um tipo de campo de forças de sistemas, comparável talvez a relações gravitacionais num sistema solar.
O marxismo mostrou-se incapaz não apenas de permanecer imune aos desenvolvimentos do estruturalismo e da teoria dos sistemas, com exceção é claro dos ignorantes dos movimentos de agitação, mas também fez nascer quase ao mesmo tempo em seu próprio solo uma variante teórica pseudo-estruturalista, que por sua vez influenciou projetos não-marxistas (Foucault, por exemplo ). Como se sabe, foram os trabalhos de Louis Althusser que produziram tal avanço. Althusser foi e permanece, em muitos aspectos, um marxista tradicional (e também, aliás, um marxista de partido no PCF, ainda que inconformado e oposicionista). Com ajuda das idéias "estruturalistas", porém, ele tentou fundar uma nova leitura de Marx.
Esta não constou apenas de um flerte com a terminologia estruturalista, como Althusser tentou mais tarde fazer crer,(20) mas de um elemento plenamente genuíno do "processo" estruturalista e da teoria dos sistemas voltados "contra o sujeito". O próprio Althusser, já no texto "Pour Marx" escrito em 1965, indica como seu objetivo
"traçar uma linha demarcatória entre a teoria marxista e as formas do subjetivismo filosófico (e político) nas quais ela se embrenhou ou que a põem em perigo."(21)
O verdadeiro objetivo mostra-se aqui ainda velado pelo conceito de "subjetivismo", muitas vezes instrumentalizado pelo vocabulário marxista mediano — conceito este que em si não implica nenhuma reflexão sistemática sobre o conceito de sujeito em geral. Mas Althusser logo se tornou mais explícito, como indicam exemplos pinçados quase aleatoriamente em sua obra:
"O processo (ou a dialética) sem sujeito da alienação é o único sujeito reconhecido por Hegel. No próprio processo não há sujeito: o processo mesmo é o sujeito, justamente pelo fato de não ter sujeito. [...] Elimina-se, quando possível, a teleologia, e resta a categoria filosófica de um processo sem sujeito assimilada por Marx. Este é o mais importante legado positivo incorporado por Marx e Hegel: o conceito de um processo sem sujeito. Tal conceito dá sustentação a O Capital. [...] Falar de um processo sem sujeito implica porém que a expressão "sujeito" é uma expressão ideológica."(22)
As conseqüências inferidas por Althusser para a "nova leitura" da principal obra de Marx (Lire le capital, 1965, em colaboração com J. Ranciére, R. Balibar et alii), contêm todos os principais momentos do estruturalismo e até mesmo da teoria dos sistemas, como nos esclarece o resumo de modo algum inadequado de Günther Schiwy. Segundo ele, o marxismo teria de assimilar um conhecimento essencial, o de que:
"O homem não está no centro do mundo e nem sequer no centro de si mesmo, pois um tal centro não existe. Ora, isto confirma a desconfiança marxista ante toda concepção humanista do homem e ante o conceito de homo oeconomicus, como se o homem fosse sujeito e alvo da economia, e o conceito de homo historicus: o homem como sujeito e objeto da história mundial. Na verdade, os verdadeiros sujeitos da atividade econômica não são os homens que possuem empregos, e tampouco os funcionários que distribuem cargos, e muito menos os consumidores, mas as condições de consumo, distribuição e produção. Tais condições formam um sistema complexo, a cujas estruturas o homem é estranho, mas que o determinam até nos menores detalhes. Só o equívoco ideológico e humanista converte tal conhecimento científico na ilusão da indispensável interioridade do homem, que determina o curso da coisas."(23)
Resta saber como Althusser harmoniza essa interpretação com posições "revolucionárias". De fato, com a exclusão do sujeito, Althusser aliviou o marxismo da velha crítica da dominação. O que ele desejava mais? O estruturalismo não exclui de maneira alguma "processos diacrônicos", e a teoria dos sistemas permite perfeitamente mudanças, crises e até mesmo transformações sistêmicas. Só que estas, de acordo com suas essências, são tão desprovidas de sujeito quanto o "funcionamento" e o movimento dos próprios sistemas. É exatamente neste sentido que Althusser compreende a sua reinterpretação do marxismo. Ele supera o marxismo não com um passo adiante, isto é, através de uma assimilação sistemática da crítica ao fetichismo, e tampouco enfrenta o suposto adversário, mas antes absorve em seu núcleo, sem modificações, todo o marxismo do movimento operário, se bem que agora plasmado na nova forma "normativa" de movimento estruturalista e sem sujeito.(24) Tudo está lá, como antes: a burguesia, o proletariado, a luta de classes, os intelectuais flutuantes. Só que agora não se trata mais de sujeitos autônomos sobre o ringue histórico, mas justamente do "funcionamento" de um processo contraditório sem sujeito. Todos agem como devem agir segundo a sua "função sistêmica". Althusser não ousa sequer uma vez tocar inocentemente no famigerado "instinto de classes" do proletariado. A burguesia executa as funções sem sujeito da conservação do sistema, o proletariado executa (já que se trata de um processo sistêmico contraditório) a função contrária e sem sujeito da crítica ao sistema, e assim desenvolve-se a luta de classes igualmente sem sujeito como resultante sistêmica. O saldo final deste "processo sem sujeito" só pode ser a transformação sistêmica — obviamente sem sujeito — no socialismo, que por sua vez constará então, pasmem só, de um (outro) sistema sem sujeito.
Feitas as contas, a construção de Althusser parece extremamente insatisfatória. O fato de ela não ter sido uma inovação no marxismo, mas antes um sepultamento teórico, foi prontamente reconhecido. Na verdade, o marxismo viveu sempre da ideologia iluminista do sujeito autônomo e a priori. Amputá-lo e continuar a desfiar o antigo novelo era uma empreitada fadada ao insucesso. O aleijão desdentado que restou não pôde ser a noiva radiante da renovação humana. Porém não só a ênfase revolucionária do marxismo tinha de escapulir com a interpretação estruturalista como o ar de um balão furado, mas também toda a justiticativa prática lhe foi arrebatada contra a própria intenção de Althusser. De fato, se tanto a luta de classes quanto o próprio socialismo almejado são simples "processos sem sujeito", quem poderá garantir um conteúdo humanitário e os resultados norteados pelas necessidades humanas? Os comunicados da "frente de construção socialista" no leste e da práxis dos "movimentos de libertação" no sul tornavam-se cada dia piores e mais alarmantes. Althusser foi somente um entre os muitos coveiros do marxismo que, na França, logo poriam mãos à obra de maneira muito mais aberta e menos contrita.
Como já ocorrera com os estruturalistas em geral, a antiga ideologia do sujeito ergueu-se também, em todas as suas variantes, contra sua destruição na interpretação de Althusser. Mas nem as reprimendas do Partido, que temia um "enterro do engajamento revolucionário", nem as polêmicas de Sartre ou Alfred Schmidt puderam mais conter, uma vez iniciado, o processo teórico de destruição do sujeito iluminista. Tais tentativas eram tão impotentes quanto a discussão análoga entre Jürgen Habermas e Niklas Luhmann, por exemplo.(25) Como foi dito, as teorias ocidentais do sujeito há muito tinham-se destruído e revelado a si mesmas as aporias do conceito de sujeito como "Dialética do Esclarecimento". O estruturalismo e a teoria dos sistemas não fizeram mais do que deduzir as conseqüências que estavam no ar. Assim foi que a longa história teórica do sujeito ocidental chegou a seu definitivo fim.
De fato, dificilmente se contesta o profundo conteúdo de verdade dos conceitos "sistema", "estrutura" e "processo" sem sujeito com relação à empiria observável das relações burguesas da modernidade tardia ou "pós-modernas". O estruturalismo e a teoria dos sistemas dizem somente o que de fato é o caso, ou seja, o que aparece como realidade. Os ideólogos humanistas e iluministas do sujeito, inclusive o marxismo, não contestam o "caso" superficialmente, mas querem criticá-lo. Seu ponto de vista é porém bastante precário, pois eles têm de aceitar um sujeito apriórico que "se esqueceu" de que assim é e daquilo que fez. A lira desse conceito de sujeito entoa sempre a mesma canção: há de se restabelecer uma consciência que se perdeu da fatura subjetiva dos processos sociais. Isto é na verdade o mais rasteiro rousseauismo, puro século XVIII, mal-e-mal enriquecido em sua superfície com os resultados das ciências modernas e os saldos da crítica da economia de Marx. O pensamento iluminista é fundamentalmente incapaz de imaginar a "fatura" de "algo" sem um sujeito preexistente desta ação; uma ação sem sujeito não lhe parece apenas monstruoso, mas também uma impossibilidade lógica. O fato de que aqui, na sociedade existente, algo gira em falso, lhe é de algum modo consciente (sobretudo na sua variante marxista); mas por certo há de se tratar de um "erro", que por sua vez foi causado subjetivamente, ou seja, pela "vontade de exploração" ou pela "vontade de poder" dos dominantes. Os sólidos argumentos do estruturalismo e da teoria dos sistemas concluem que a aceitação desse sujeito apriórico é "metafísica" inconsistente, que esse sujeito jamais existiu nem poderá existir de acordo com a lógica.
Essa posição é sólida, mas também irremediavelmente afirmativa. Ela põe água na fervura de toda a crítica social. Contra ela nada podem a desesperada "práxis apesar da teoria" de Foucault nem o vaporoso projeto "secundário" da luta de classes de Althusser. Esta também já era há muito a posição da Teoria Crítica. De outro lado, a práxis social do "sistema" moderno, que se tornou um sistema mundial direto, é mais do que nunca digna de crítica ou, para dizer tudo, insustentável. É patente que esse "todo sistêmico" — a par, ironicamente, da ideologia crítica do sujeito — chega a seu fim histórico cada vez mais catastrófico.
A práxis crítica e revolucionária tem de ser porém fundamentável e portanto fundamentada novamente. Os movimentos práticos, os partidos e as seitas marxistas (como por exemplo o acima citado "Grupo Marxista") "pensaram por inércia", anos a fio, numa forma teoricamente ignorante. Eles não compreendem nem superam o desenvolvimento teórico e seus resultados, mas ou não os tomaram em conhecimento ou simplesmente os descartaram como "falsos" ou "absurdos". Tudo parecia tão "simples": os homens tinham apenas de seguir seus "interesses" ou serem levados a tal; a "práxis" parecia antes de tudo fundamentável a partir de si mesma. A pena para essa ignorância infundada é justamente o fracasso prático — e isso de forma definitiva. O fato de todos os antigos marxistas e as suas organizações, revistas etc., abalados pelos colapso do leste europeu, morrerem como moscas no outono tem em si algo de libertário. A mais recente "crise do marxismo", proclamada já em meados dos anos 60 por Althusser, foi na verdade a sua última.
Se hoje ainda há a possibilidade do pensamento de crítica social e da práxis transcendente (não a partir de reações ideológicas obstinadas, mas porque a práxis clama por isso ), e se isto tem de ser efetuado lançando mão da incontornável teoria de Marx, o único caminho viável é o que se embrenha pelo "continente sombrio" da crítica do fetichismo, que foi encoberto pelo marxismo de corte subjetivo-ideológico. Não por acaso Althusser tachou expressamente o conceito de fetichismo como "ideologia" a ser descartada.(26) Resta provar em que medida a readmissão sistemática do conceito de fetichismo possibilita, para além do marxismo, a metacrítica da modernidade burguesa, ou seja, se se pode formular um conceito fundamentalmente diverso de consciência social, capaz de romper efetivamente os grilhões técnicos do estruturalismo e da teoria dos sistemas, e não somente fornecer uma nova infusão, diluída até a insipidez, da metafísica rousseauista e iluminista da subjetividade a priori. Só então a crítica da dominação seria novamente fundamentável, só então seria possível uma re-historicização do movimento estrutural sem sujeito de base aparentemente a-histórica.
A rigor, isto é, sem as reduções do marxismo iluminista e subjetivo-ideológico, o conceito de fetichismo de Marx contém uma crítica ao menos tão forte da metafísica humanística e a priori do sujeito quanto a iniciativa estruturalista e da teoria dos sistemas. Uma crítica inteiramente diversa, sem dúvida, que antes de afirmativa é revolucionária. Na medida que Althusser não leva isso em conta e atribui justamente o conceito de fetichismo à interpretação humanista e subjetivo-apriórica do marxismo, rejeitando-o de uma penada, ele destrói para si mesmo qualquer esboço de solução crítica e acaba forçosamente no beco sem saída do estruturalismo.
O conceito de fetiche da mercadoria não por acaso é avançado a partir da analogia com as relações pré-modernas, e tampouco se trata de uma simples analogia. Nomeia-se com ele aquela identidade da história humana que une a pré-modernidade e a modernidade burguesa no continuum da "pré-história" (Marx), sendo que só para além dela começa a "verdadeira" história do homem. Essa declaração de Marx, tão obscura quanto surpreendente, pode ser esclarecida apenas diante do pano de fundo da crítica do fetichismo, que é incompatível com a metafísica iluminista do sujeito. Se a própria modernidade consta da "pré-história", então ela faz parte, juntamente com as suas formas subjetivas, de um processo que se mantém de fato inconsciente no plano da determinação social da forma — porém não como impossibilidade lógica da consciência em geral nesse plano, mas como um processo de devir no qual só se pode constituir a autoconsciência social após uma longa e dolorosa história evolutiva. Essa constituição está à nossa frente e manifestar-se-á na superfície social como revolução contra a forma-mercadoria, ou seja, contra a última e a mais elevada constituição do fetiche da pré-história humana, cuja insuficiência prática rompe o horizonte do fetichismo em geral.
A partir dessa idéia básica caberia desenvolver uma nova estratégia teórica de ação dupla, tanto contra o estruturalismo ou a teoria dos sistemas quanto contra o pensamento iluminista de cunho humanista e subjetivo-apriórico; nesse sentido, seria possível também elaborar a identidade interna destes dois opositores como formas de ascensão e declínio do pensamento teórico na modernidade burguesa. Ambos são igualmente incapazes de uma crítica da forma-mercadoria fetichista como tal, ou seja, em última instância de sua manifestação como dinheiro. O humanismo iluminista do sujeito permanece cego para a verdadeira constituição fetichista sem sujeito de seu sujeito metafísico e supostamente "esquecido", que deve ser "reconstruído" eternamente em vão. O estruturalismo e a teoria dos sistemas abrem mão deste propósito, sem no entanto compreender as respectivas premissas, quanto menos alterá-las. Elas percebem a constituição sem sujeito da "pré-história" atual, embora simplesmente como lógica a-histórica da sociabilidade, ou até mesmo como identidade humana e constituição não-humana de sistemas (sem sujeito) vivos. Como, por exemplo, na afirmação de que os
"Processos complexos são caracterizados pelo acaso, não-linearidade e contradição; e o nexo entre mutação e evolução, entre desvio e inovação é o fundamento da vida (ou seja, do desenvolvimento da célula até a sociedade (!) [...]"(27)
A redução da história a história natural cega, a uma ausência de sujeito e mutante, "da célula até a sociedade" remonta de certo modo aos primórdios da sociologia moderna de Comte e Spencer, ou seja, a uma consideração pseudo-biológica na qual as relações naturais e sociais "da vida" são tratadas como estruturalmente idênticas, de sorte que cada diferença fundamental entre a sociedade (homem) e a natureza pode ser denunciada como "estreitamento humanista" (Luhmann). A diferença é que o estruturalismo e a teoria dos sistemas incluem o processo de desenvolvimento das sociedades modernas e seus sistemas de conhecimento, e por isso são muito mais elaborados.(28) Ora, também Marx fala da "história natural" das atuais formações sociais históricas sob influência da modernidade, porém não numa acepção afirmativa, mas num sentido crítico-revolucionário: a saber, como uma condição superável e a ser superada praticamente, com cuja superação aquele "fim da pré-história" é alcançado.
Essa perspectiva só é possível porque Marx, apesar da ausência de sujeito comprovável no plano da determinação social da forma, não cai na equiparação rasteira de leis sistêmicas absurdas "da célula até a sociedade", mas antes propõe uma distinção entre "primeira" e "segunda natureza". Tal distinção é decisiva para a historicização crítica, com base num metaplano, de "leis naturais da sociedade" aparentemente a-históricas. O conceito de fetichismo é a chave para a compreensão deste nexo.
A "segunda natureza" significa que a sociabilidade dos homens, elemento de sua essência, constitui-se e apresenta-se, de maneira análoga à primeira natureza, como uma essência que lhes é externa, alheia e subjetivamente não integrada. De fato, trata-se de uma constituição sem sujeito posta em movimento pela ação e atividade dos homens, embora atue simplesmente como função de um processo sem sujeito -exatamente como exige o jargão da teoria dos sistemas. A comparação com outros sistemas vitais é natural, já que praticamente todas as populações biológicas possíveis comportam-se, diferenciam-se e desenvolvem-se "sistematicamente" (por exemplo, sociedades de animais ou plantas, sistemas celulares etc.), sem que se suponha um sujeito no sentido iluminista.
Ora, aqui já existe uma ignorância fundamental da teoria dos sistemas, pois a analogia não é uma identidade, isto é, primeira e segunda natureza não podem de forma alguma ser equiparadas. O fato da constituição sem sujeito, de processos sem sujeitos e formações sistêmicas no plano da segunda natureza não é simplesmente história natural, mas uma história de segunda ordem, uma história elevada à potência. Seu pressuposto é que o homem se liberta da mera história biológica e natural de primeira ordem. Ao mesmo tempo, a constituição sem sujeito da segunda ordem é antes de tudo a condição de possibilidade para tal libertação.
O homem liberta-se da primeira natureza (e assim opõe se a ela, embora permaneça como uma das suas partes integrantes) ao desvencilhar-se do instinto dos animais. Ele é o animal sem instintos (eis aqui, em todo caso, o momento de verdade da teoria de Arnold Gehlen). Com isso, no entanto, impõe-se a necessidade de consciência como subjetividade em face da primeira natureza. O que diferencia o pior mestre-de-obras da melhor abelha, diz Marx numa passagem famosa, é o fato de a construção do primeiro ter antes de atravessar por sua cabeça. Assim, o homem opõe-se à primeira natureza como sujeito, mas ele só é capaz disso como homem, ou seja, como ser social. Como este ser social, porém, ele é constituído na ausência de sujeito, justamente como constituição de segunda ordem sem sujeito. Isso quer dizer apenas que o homem não se criou diretamente como sujeito social nem foi criado por um deus-sujeito, mas pôde surgir apenas sem sujeito como animal liberto. Ele surge como sujeito em face da primeira natureza, mas necessariamente não sabe quem é; só sabe e tem consciência do que se tornou, isto é, um ser ou organismo de segunda ordem.
A diferenciação ante a primeira natureza, a formação do homem como sujeito em oposição a ela, é por si mesma necessariamente sem sujeito. O ser social "surgido" e não criado só pode vir à luz como sistema de segunda ordem sem sujeito. Essa ausência de sujeito de segunda ordem é o preço inevitável para o devir do sujeito diante da ausência de sujeito de primeira ordem, -ausência esta absolutamente natural e biológica. "Surgem" portanto sistemas de segunda ordem sem sujeito, sistema simbólicos (códigos) do ser humano surgido e a surgir. É isso precisamente, em essência, a constituição do fetiche. Mesmo os primeiros degraus do desenvolvimento não têm mais nada a ver com os sistemas da primeira natureza. Numa consideração superficial, os sistemas totêmicos, através do critério da "consangüinidade", podem parecer estreitamente ligados à primeira natureza. Mas os animais, quando muito, não formam mais que pares ou bandos guiados pelo instinto (e não simbolicamente regulados); mesmo o jovem sexualmente maduro (ou nubente) corta relações com os seus progenitores. O sistema de consangüinidade já é um sistema simbólico de segunda ordem, incapaz de ser fundamentado biologicamente. Ao que tudo indica, ele é a mais antiga constituição do fetiche humano.
Constaria de uma tarefa em separado investigar a seqüência e diferenciação históricas dos sistemas de fetiche. A história, sob este aspecto, não é mais definida de modo abrangente como "a história das lutas de classes" ( como corresponde ainda ao estágio de conhecimento do Manifesto Comunista), mas como "a história das relações fetichistas". As lutas de classes (e outras formas de confronto social) obviamente não desaparecem, mas são rebaixadas a uma categoria interna de algo hierarquicamente superior, a saber, a constituição sem sujeito do fetiche e os seus respectivos códigos ou leis funcionais. A forma-mercadoria, transformada em forma social de reprodução na figura do capital, é assim a última e a mais elevada forma-fetiche, capaz de ampliar ao extremo o espaço da subjetividade em relação à primeira natureza. Só no terreno dessa constituição-fetiche secularizada,(29) — depurada de toda religiosidade, que assume um caráter sistêmico abrangente e se desenvolve até chegar a verdadeiro "sistema mundial" (Immanuel Wallerstein) — puderam surgir os conceitos de "estrutura" e "sistema".
Como segundo Marx a anatomia do macaco tem de ser explicada a partir da do homem, e não o contrário, a natureza da constituição do fetiche só pode ser inferida a partir do seu mais alto grau de desenvolvimento, do fetiche da mercadoria como fetiche do capital; só nesse grau ela se torna reconhecível e ao mesmo tempo obsoleta. Pode-se reconstruir, a partir da constituição e crise do fetiche secularizado, o modo pelo qual se criou um nexo por trás das costas dos sujeitos ativos com base em efeitos involuntários de ações isoladas, nexo este que se consolida "em sistema" e cria tanto códigos quanto regularidades que ninguém jamais "imaginara", e que portanto não nascem de nenhum acordo consciente. Com isso também destrói-se definitivamente o projeto rousseauísta do "contrato social", que no debate contemporâneo sobre a contenção da crise da forma-mercadoria goza de uma sobrevida fantasmagórica e ainda serve de pasto à proliferação conceitual imanente e ilusória (sobretudo das esquerdas decrépitas).
À primeira vista, poderia parecer que, com o conceito de constituição do fetiche não só o antigo conceito subjetivo-iluminista de dominação tornar-se-ia obsoleto, mas o próprio conceito de dominação em geral. A destruição do sujeito teria então de ser apreendida no conceito de simples marionete. Um tal abandono imediato do conceito de dominação seria por assim dizer taticamente inaceitável. Primeiro, ele pareceria dissuadir os homens das coerções experimentadas na realidade (e sentidas em todo o seu peso), que se insinuam até nos poros do cotidiano das sociedades-fetiche secularizadas do mercado total e do Estado democrático de direito. Em nada altera o caráter dessa repressão o fato de ela não poder ser remontada a um sujeito determinado, de ela ser "estrutural" e ainda digna de ódio.
Segundo, esse conceito de marionete desculparia de certa maneira a "dominação do homem pelo homem". Assim que se percebe o caráter sem sujeito das determinações sociais, assim que os conceitos de "papel" e "estrutura" descem do Olimpo científico para a consciência diária, eles são instrumentalizados de forma mais ou menos ingênua para a justificar e apaziguar os detentores de certas funções de dominação. Alguém "apenas" faz seu trabalho, cumpre seu "dever", age segundo seu "papel" e expõe-se, quanto ao resto, às próprias "estruturas" — tais afirmações há muito fazem parte do repertório da falsa e equivocada legitimação do exercício do poder dominante. Assim, o conhecimento crítico é transformado em afirmação banal.
Isso é particularmente desagradável quando as funções de dominação não se acham rigidamente formalizadas como nas relações econômicas e burocráticas, mas são antes executadas informalmente e se manifestam em atribuições estruturais de papel, como na relação entre os sexos ou na relação de ensino (e também em preconceitos e discriminações raciais). A autocomplacência do homem compulsoriamente heterossexual e não verdadeiramente interessado, apesar das corteses reverências ao feminismo, em superar a si mesmo é notória quando se afirma que, no fundo, não é ele próprio como pessoa o veículo de certas manifestações autoritárias na relação entre os sexos, mas que ele "apenas" executa, forçado e a contragosto, uma estrutura socialmente prevalecente e historicamente sem sujeito. Isto é evidente em diversos graus e em expressões implícitas ("mudas") ou explícitas de um pseudo-refletido trabalho de repressão masculino. Da mesma maneira que o sistema produtor de mercadorias pode aparentemente transformar em mercadoria todas as formas de crítica e tomá-las com tal "estruturalmente" inofensivas, assim também a consciência masculina e compulsoriamente heterossexual da dominação, com suas exigências obsoletas de independência e soberania, parece dobrar todo o conteúdo cognitivo da crítica da estrutura dos sexos para uma forma superior e mais elaborada de auto-afirmação. Precisamente a fim de não ter de largar o seu "altivo" ponto de vista dominante, cada vez mais inconfessado, e não deixar a crítica estender-se até a "identidade" compulsória ou mesmo até o seu próprio corpo, o sexo masculino remonta por assim dizer aliviado à ausência de sujeito e a seu conceito. Esta é quase a forma de consciência do criminoso psicótico, que se convence da própria inocência já que "nada pode contra o ato", embora tenha pleno conhecimento de si mesmo e de suas ações. Para permanecer o que é e poder continuar exercendo a dominação, o homem compulsoriamente heterossexual, soberano e idêntico a si mesmo está disposto a declarar-se inimputável e transferir o status de sujeito à "estrutura" ou ao "sistema" — ao poder esmagador da ausência de sujeito que não lhe faz nenhum mal concreto (este é talvez o sentido psicológico da teoria de Niklas Luhmann e de seu considerável sucesso ).
Obviamente, contudo, o abandono do conceito de dominação e da metáfora das marionetes não deve ser simplesmente repudiado por razões pseudo-táticas, a fim de poder firmar uma posição negativa no tocante às relações como odiosas e insuportáveis. O problema tem de ser destrinchado também teoricamente. Em seu paradoxo, de fato, a astúcia quase "feminina" da autoafirmação masculina "estruturalmente" pseudo-refletida aponta para um problema teórico, a saber, a questão da relação entre a constituição do fetiche e a subjetividade. O reconhecimento de que a estrutura e o sistema não são de natureza ontológica nem descem até a natureza orgânica, mas de que antes "surgiram" em sua alteridade no plano da segunda natureza e tornam-se tão manifestos quanto obsoletos no estágio de desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias, ainda não é capaz de solucionar a relação interna entre sujeito e ausência de sujeito. Se o conceito de fetiche conduz espontaneamente à reprodução do ponto de vista estruturalista e da teoria dos sistemas (e à proximidade com seu conteúdo afirmativo) respaldada em concepções simplesmente modificadas e numa ampliação historicista, se a metáfora das marionetes e a negação do conceito de dominação impõem-se espontaneamente, então fica claro que existe ainda um "elo perdido " na reflexão teórica.
O sujeito não desaparece meramente como simples erro, mas continua a existir, se bem que agora como mero sujeito interno da constituição do fetiche, ela própria sem sujeito. O problema é que o fetiche não é todavia um "ser" autônomo e provido de consciência própria, a quem se pode por assim dizer dotar de endereço e caixa postal. A ausência de sujeito não é, por sua vez, um sujeito que pode "dominar", mas constitui dominação e é paradoxalmente definida como algo simultaneamente próprio e alheio, interno e externo. Marx captou metaforicamente essa questão no conceito de "sujeito automático", na figura do qual o "valor" invisível, onipresente e objetivado da reprodução capitalista do fetiche reina cegamente. No contexto da crítica da economia política e da determinação econômica da forma do capital em termos gerais, essa definição metafórica pode ser suficiente, embora para a compreensão da constituição do fetiche e do problema do sujeito como tal ela seja insatisfatória. Marx expressou assim apenas o paradoxo e o contra-senso dessa relação, pois o "automatismo" e a subjetividade excluem-se mutuamente.
Obviamente, é difícil pensar a meta-reflexão da relação dentro das formas de pensamento dessa própria relação, que se acham pressupostas. A consciência constituída pelo fetiche toma a decisão espontânea de explicitar o "ser" codificador e legiferante para então, como sujeito, bancar a marionete. O "externo", porém, é "nada". O sujeito é uma marionete que maneja os próprios fios. Isso é entretanto um absurdo, ou melhor, é a metáfora de algo impensável no interior das formas de pensamento pressupostas. Para o sujeito existem, como grandezas relativas, o objeto inconsciente (natureza) ou outros sujeitos. O fetiche pode então ser ou objeto (natureza), e portanto inevitável,(30) ou justamente um sujeito exterior.(31) Os conceitos de fetiche e segunda natureza apontam para o fato (e esta é a diferença em relação à teoria dos sistemas, que não conhece nenhum contraste entre primeira e segunda natureza) de que existe "algo" que não se resolve no dualismo sujeito-objeto e que não é nem sujeito nem objeto, embora constitua essa relação.
No fundo, o estruturalismo, a teoria dos sistemas e outros programas teóricos possuem um caráter teórico transitório, assim como o sistema capitalista produtor de mercadorias possui um caráter transitório como formação social.(32) A destruição unilateral do sujeito não pode sustentar-se por si mesma, o sujeito não pode ser abandonado como mero erro ou marionete, já que não se pode afastar a pergunta pelo "sujeito do sujeito" na forma de pensamento pressuposta. Um retorno à consciência religiosa é tão pouco provável quanto a simples operacionalização do sujeito rebaixado nas estruturas internas da ausência de sujeito assimilada ou em vias de assimilação, como parece sugerir o lado toscamente pragmático da teoria dos sistemas. A própria hipótese de Rousseau sobre o contrato social "esquecido", que tenta ainda solucionar a problemática pelo caminho inverso, viu-se severamente abalada e indigna de crédito. Nem a dissolução da segunda natureza no sujeito, nos primórdio da modernidade ainda orgulhosa e ávida de iniciativas, nem a sua dissolução no objeto, no final da modernidade frustrada e sem autoconfiança, pode explicar a constituição do fetiche ou o problema da dominação.
O ponto decisivo é que tem de haver um plano no interior da constituição humana e social, e portanto também no interior de cada homem isolado, plano este situado além do dualismo entre sujeito e objeto.(33) Para a consciência iluminista, existe apenas sujeito (consciência) ou objeto, mas nunca um tertium genus. O conceito-chave para a compreensão deste "tertium genus " verdadeiramente constitutivo só pode ser o conceito de inconsciente. Sem dúvida, cabe a Freud o mérito teórico de ter introduzido sistematicamente este conceito. Contudo, aqui não se tratará (ou pelo menos não em específico ou de modo exclusivo) do inconsciente na concepção particular de Freud. Não por acaso o retorno a Freud consta de um dos momentos constitutivos do próprio estruturalismo. Para a idéia iluminista do sujeito, a teoria freudiana foi desde o princípio um tormento, uma vez que o conceito de inconsciente — não sem razão — foi sentido como um ataque frontal a seus próprios fundamentos; a destruição do sujeito radiante e maduro da modernidade como um ser auto-inconsciente, guiado por impulsos inconscientes ( e ainda por cima sexuais), tinha de lhe parecer insuportável. Porém com isso passaram despercebidos aqueles momentos afirmativos da teoria freudiana que só puderam ser aproveitados no declínio histórico da teoria iluminista do sujeito e que por assim dizer caíram do céu para os estruturalistas.
O inconsciente freudiano ainda não representa uma superação do sujeito iluminista, mas é um divisor de águas que pode ser desenvolvido tanto na direção das toscas concepções da ausência de sujeito (estruturalismo) quanto na direção da metacrítica da constituição do fetiche. De fato, Freud elaborou em primeiro lugar o conceito de inconsciente sobretudo e unilateralmente no aspecto individual e psicológico, ainda que as relações sociais sejam imensas e também discutidas em seus escritos sobre a teoria da cultura. Entretanto, o verdadeiro problema da constituição social do inconsciente não é abordado sistematicamente por Freud.
Sob as suas premissas teóricas, isto é também absolutamente impossível, pois, em segundo lugar, e nisso ele continua um pensador iluminista, Freud de pronto ontologizou seu conhecimento. Ele desenvolve as categorias do inconsciente, em última instância, de maneira a-histórica como estrutura de um inconsciente em geral, razão pela qual ele ontologiza o problema no horizonte da própria teoria da cultura e o define como a relação de um inconsciente em geral (mais sua estrutura) com a cultura em geral.(34) Daí se explica também sua dedução pessimista em relação à cultura, pois as contradições ontologizadas de impulsos inconscientes e produtos culturais parecem insuperáveis e afinal de contas desastrosas (O mal-estar na cultura).
Em terceiro lugar, Freud — e nisso o seu pensamento prende-se ao positivismo biológico do século 19 — atrelou elementos essenciais do inconsciente diretamente à primeira natureza, sobretudo com base num impulso sexual concebido de modo a-histórico. A definição de Marx de uma relação entre a primeira natureza (biológica) e a segunda natureza (constituída pelo fetichismo e codificada simbolicamente ) falta por completo em Freud, o que naturalmente facilita a ontologização. Sob o signo da instância básica do "id" e dos chamados impulsos, a primeira natureza alcança direta e imediatamente a sociedade e as suas produções culturais:
"A mais antiga das províncias ou instâncias psíquicas chamamos de id: seu conteúdo é tudo o que foi herdado, trazido pelo nascimento, fixado constitucionalmente, sobretudo os impulsos que provêm da organização corporal [...] As forças que supomos por trás das tensões de necessidade do id chamamos impulsos. Elas representam as exigências corporais à vida anímica [...]."(35)
Nem a diferenciação da "estrutura de impulsos" nem a análise dos "produtos sublimados" na cultura modifica algo nesse vínculo imediato, já que a mediação histórico-social daquilo que se manifesta como puro "impulso" (natural e biológico) simplesmente não ocorre. Isto obviamente não significa que não exista o substrato da primeira natureza no homem e que não haja relação alguma com a consciência ou nenhum influxo sobre a vida anímica do homem. Todavia, quando entre este substrato (que também deve conter, além da natureza biológica no sentido fisiológico, alguns restos atrofiados do instinto animalesco) e a consciência superficial do homem concebido historicamente ergue-se a natureza diversa da constituição do fetiche, com a sua gigantesca história, então a base natural determinada (e determinante ) biologicamente apreende com muito menos profundidade a constituição do homem do que Freud o supõe.(36)
Em quarto lugar, por fim, Freud relaciona o conceito de inconsciente primordialmente aos planos "inferiores" da consciência aparente do ego, procedendo a uma diferenciação entre o simples "inconsciente", por um lado, e o iceberg anímico do inconsciente profundo e estrutural, por outro. Além disso, ele supõe na figura do superego uma outra instância e por assim dizer "superior" do ego consciente, condicionada por influxos externos, cuja determinação entretanto não alcança a constituição social do fetiche, mas antes permanece restrita de forma fenomenológica e por assim dizer técnica à condição de simples "influência" (especialmente durante a infância) sobre o aparato psíquico individual:
"Como resíduo do longo período da infância, durante o qual a pessoa em desenvolvimento vive na dependência de seus pais, forma-se em seu ego uma instância peculiar na qual persiste este influxo paterno. Tal instância recebeu o nome de superego. Na medido em que se separa do ego e a ela se opõe, este superego constitui um terceiro poder que tem de levar em conta o ego […]. No influxo paterno, é claro, não age apenas o ser pessoal dos pais, mas também a influência de tradições de família, da raça e do povo por eles promovida, assim como as exigências por eles representada do respectivo meio social. De forma análoga, no curso do desenvolvimento individual o superego aceita contribuições de avatares e substitutos dos pais, como professores, exemplos públicos e ideais venerados na sociedade."(37)
A absorção das instâncias sociais e históricas mostra-se aqui claramente insatisfatória. O inconsciente parece apenas na figura daquelas instâncias ou "províncias" do aparato psíquico sobre as quais o ego não tem nenhum controle. Porém inconsciente não é apenas o reino anímico acima ou abaixo da consciência do ego. Se compreendermos o conceito de inconsciente em termos bem simples e gerais, independentemente do rumo de investigação específico de Freud, surge um fato bastante diferente. Inconsciente não é só o conteúdo anímico para além da consciência fenomênica do ego, inconsciente é também a própria forma da consciência. Pois a forma da consciência não é de modo algum equiparável à própria consciência ou a seus conteúdos e "províncias". E na forma de si mesmo inconsciente à consciência deve-se buscar o segredo do tertium que não é nem sujeito nem objeto, mas que plasma a subjetividade, a objetividade e a dominação como cega constituição formal. A forma histórico-social da consciência é o mais profundamente próprio e ao mesmo tempo o mais profundamente estranho e inconsciente; por isso, tão logo ele seja sistematizado, terá de ser compreendido e vivenciado como "poder" externo e alheio.
A questão da forma (universal) da consciência e das ações sociais humanas fora esboçada antes de Freud -independentemente de seu conceito inconsciente — por Kant e mesmo por Marx. Bastaria apenas reunir estas concepções aparentemente esparsas e unificá-las de modo histórico e crítico. Kant foi o primeiro a investigar de modo sistemático e "crítico" a forma geral (inconsciente à própria consciência) da consciência — crítico apenas no sentido de uma conscientização afirmativa dessa forma.(38)
O caráter afirmativo de sua investigação impõe-se pelo fato de ele ontologizar de imediato, como bom iluminista, os conceitos descobertos das formas gerais da consciência e tomá-los como formas humanas de consciência em geral (de maneira análoga, quanto a isso, à ontologização do conhecimento por Freud). Kant qualifica assim as formas universais da sensibilidade (espaço e tempo) e as formas universais do entendimento como as célebres"formas a priori" da capacidade cognitiva, independente de seusobjectos, eo "imperativo categórico" como a "simples forma de uma lei universal", ou seja, como princípio ético para toda ação humana. Estas formas de consciência a priori se manifestam contudo de modo a-histórico e estigmatizadas "no homem"; Kant não discute o locus deste estigma nem sua relação com a natureza fisiológica.
Marx, que mal parece ter-se ocupado com Kant e o seu problema formal da consciência, chega por meio de Hegel a uma historicização da história da forma, exposta num primeiro momento como história das formações (político-econômicas) da sociedade; e nisso ele topa obviamente com o problema da forma universal da consciência, por ele abordada historicamente como constituição do fetiche e exposta brevemente em seus principais elementos no capítulo introdutório de O Capital, para então ser desenvolvida, com base em suas determinações sociais objetivadas, na figura das categorias econômicas da relação capitalista. Ele não deixa dúvidas, contudo, que se trata aqui de formas de consciência universais e "invertidas". Se Marx não se estende sobre a forma universal de consciência do sistema produtor de mercadorias constituído pelo fetiche, isto ocorre porque seu pensamento defronta-se aqui com um limite: a referência ao trabalho ( ontologia do trabalho) e o ponto de vista de classes e do operariado exige uma abordagem dualista e antagônica e faz a questão da consciência recuar à respectiva "consciência de classe", de sorte que a questão da forma universal da consciência não pode ainda ser posta claramente "antes" do antagonismo de classes".(39)
Hoje, sob as condições da crise já madura do sistema produtor de mercadorias, a crítica do fetiche de Marx só pode ser reformulada e desenvolvida adequadamente como crítica da forma universal da consciência que inclui todas as categorias de classe e interesse (e vai muito além das meras determinações sócio-econômicas em sentido estrito ). Só agora as concepções de Kant, Marx e Freud podem ser assim unificadas sistematicamente, só agora se pode ousar a reformulação da "história das lutas de classes" como "história das relações fetichistas" (e com isso, para além das "lutas de classes", remontar à origem da transformação humana).
A forma universal da consciência e as suas categorias não devem ser apreendidas de modo ontológico, mas sim histórico-genético. Para cada degrau de formação corresponde uma específica forma inconsciente de consciência com "regularidades" e códigos específicos. A (respectiva) forma de consciência constitui uma grade universal de percepção assim como de relação social e entre os sexos; a percepção do mundo ou percepção da natureza e a percepção das relações sociais entre os homens são portanto apreendidas na mesma e inconsciente matriz formal, que é sempre ao mesmo tempo forma universal do sujeito e forma universal de reprodução da vida humana. Essa forma surge inconscientemente no processo histórico com a acumulação de efeitos colaterais imprevistos e sua concentração — e isso desde que o ser humano deixou o reino animal.
Essa concepção pode ser ampliada tanto "para cima" quanto "para baixo". Pois, em primeiro lugar, desse modo podem ser avançadas definições universais da "constituição do fetiche em geral" para toda a história humana até hoje, como há pouco foi sugerido; a ruptura estaria situada provavelmente na transição para a chamada cultura elevada, que corresponderia por exemplo à separação marxista entre sociedade primitiva ou "comunismo primitivo" e início da sociedade de classes. O problema básico então não seria mais a questão sociológica e utilitarista da "distribuição desigual de proveitos", mas antes a questão de como a constituição social do fetiche se modifica sob as condições de um mais-produto social (novos objetivos fetichistas, como por exemplo a construção de pirâmides, ou seja, "surtos de desenvolvimento" cegamente guiados). Em segundo lugar, porém, as respectivas constituições do fetiche devem ser representadas dentro dos próprios termos históricos, isto é, em sua história de formação e ascensão, por um lado, e em sua história de declínio e decomposição, por outro.
Em todos os planos, as definições — constituídas pelo fetiche — de "verdadeiro" e "falso", "moral" e "imoral", "justo" e "injusto" deveriam ser decifradas (e também relativizadas, é claro) em seu respectivo condicionamento. Isso vale também para o inconsciente freudiano, ou seja, aquelas "províncias" psíquicas situadas para além da consciência aparente do ego. O problema formal não tematizado de modo histórico-social por Freud estender-se-á também a estas "províncias" remotas, isto é, a matriz da respectiva forma universal de reprodução e consciência inclui também o id e o superego. A forma de consciência da respectiva constituição do fetiche abarca todos os aspectos da vida humana. Estamos às voltas, portanto, com uma estrutura ou canalização tanto da reprodução social (sócio-econômica) quanto as relações sociais e sexuais, tanto da consciência do ego e da percepção externa quanto das camadas psíquicas profundas (id) e do superego. E como este processo já dura ao menos uns cem mil anos, as mais diversas formações históricas sedimentaram-se de certa forma "geologicamente" em diversos graus de decomposição e assentamento. "Sobre" o original substrato biológico e animalesco jazem inúmeras camadas de constituições passadas do fetiche em todos planos da vida social(40), que são porém dominados e determinados pela respectiva constituição do fetiche mais recente e "válida".
A decifração da constituição do fetiche em geral pode ser efetuada, de acordo com a frase de Marx já aludida sobre a reconstrução da anatomia do macaco com base na do homem, a partir de sua forma mais recente e elevada, e esta é, como foi dito, a nossa própria, ou seja, a do sistema produtor de mercadorias da modernidade. O que Marx, ainda com a inflexão sociologista de seu próprio princípio de conhecimento, disse das "relações de classe" pode ser agora relacionado às relações de fetiche: só a modernidade secularizou e simplificou tais relações a ponto de torná-las transparentes e lhes revelar o princípio subjacente. Em todos os planos da teoria social, da teoria do conhecimento, da teoria da consciência, da teoria sexual e da psicoterápica pode-se agora empreender a viagem de volta pela história humana das formações, pois um novo estágio da historicização parece possível; o pressuposto para tanto é sem dúvida o conhecimento e a crítica de nossa própria formação, cuja crise constitui o pretexto derradeiro. Somente sobre este metaplano pode-se realizar a unificação entre práxis e história.
As conseqüências para os conceitos de dominação e subjetividade encontram-se à mão. O homem torna-se sujeito no processo de sua formação em face da primeira natureza; a forma do sujeito, contudo, é a princípio fraca e embrionária até que o sujeito, após uma longa e contraditória história de desenvolvimento através de muitas formações, revele-se em forma pura (ante a primeira natureza) no sistema produtor de mercadorias da modernidade e dê voz à pretensão iluminista. Mas o Iluminismo, a ciência natural e a industrialização não passam de momentos de forma-mercadoria universal e de sua constituição do fetiche, que encerra em si toda a história da humanidade até hoje e pela primeira vez o generaliza globalmente. O sujeito da modernidade, que superou em si todas as formas de sujeito até agora, possui tão pouco consciência de sua própria forma quanto todas as configurações anteriores; ele representa, por assim dizer, a forma mais elevada da inconsciência da forma.
Com isso se formula a definição universal: um sujeito é um ator consciente que não tem consciência de sua própria forma. Ora, é justamente essa inconsciência da forma que impõe às ações conscientes em relação à primeira natureza e aos outros sujeitos um caráter objetivo e opaco: a objetivação obtida através da cadeia de ações passadas já é cegamente pressuposta pelo sujeito. A consciência restringe-se portanto a uma ação isolada que, a diferença dos animais, não é guiada cegamente pelos instintos, mas antes "tem de atravessar pela cabeça". Por outro lado, a consciência não apreende o quadro de ações social e universal, que "surge" historicamente e é cegamente pressuposto. A consciência é assim uma simples consciência interna a uma constituição do fetiche que entretanto — e isso marca a diferença decisiva para com o estruturalismo e a teoria dos sistemas ou as concepções redutoras do problema do fetiche — não é algo externo, porém a forma da própria consciência.
Isto acarreta como conseqüência a constante mescla de um fator desconhecido nas ações conscientes, fator este que não acede à consciência. Uma tal estranheza do que é próprio aparece novamente como estranheza do vínculo com a primeira natureza e com os demais sujeitos. Por outro lado, uma tal estranheza — que é condicionada pela inconsciência da forma — cinde de maneira necessariamente dicotômica o conjunto das ações e percepções. O sujeito, por não ter consciência de sua forma e portanto de si mesmo, tem de experimentar a natureza e os outros sujeitos como mero mundo exterior(41). A limitação da consciência ativa e perceptiva não permite galgar a um metaplano nem perceber a si mesmo (o sujeito) em sua relação com o mundo exterior e portanto compreender todo o complexo em que o sujeito e os seus objetos de ação e percepção se acham encerrados. A inconsciência da forma pelo sujeito, a qual constitui uma simples dicotomia entre sujeito e mundo externo, rebaixa assim os objetos (Gegenstände) de ação e percepção (natureza e demais sujeitos) a puros e simples objetos (Objekten). O dualismo sujeito-objeto é resultado do fato de que o metaplano — a partir do qual o ator e seus objetos aparecem como um todo comum — não está, por assim dizer, "ocupado"; este metaplano assume justamente a forma sem sujeito do sujeito(42), com o que se produz o dualismo aparentemente inevitável e intransponível. Daí ser possível uma segunda definição complementar do sujeito: um sujeito é um ator que tem de rebaixar os seus objetos (Gegenstände ) a meros objetos (Objekten) externos. É claro que também tal definição há-de ser encarada historicamente, ou seja, também a dicotomia sujeito-objeto teve de desenvolver-se a partir de rudimentos embrionários através da longa história das formações, até que encontrou no sistema produtor de mercadorias da modernidade sua expressão mais pura e elevada.(43)
Aliás, tal problema da dicotomia sujeito-objeto reluz de certa forma em Niklas Luhmann, embora irremediavelmente infletido para a franca afirmação. Em entrevista a uma revista italiana, ele se declarou de modo expressamente crítico sobre a exteriorização do sujeito em relação a seus objetos:
"Acredito que esta figura da auto-referência, ou seja, a inclusão do observador e dos instrumentos de observação nos próprios objetos de observação é uma qualidade específica das teorias universais não percebida pela antiga tradição européia. Trata-se sempre, em última instância, de uma descrição de fora, ab extra, através por exemplo da mediação de um sujeito. Quero dizer é que a lógica clássica ou a ontologia clássica sempre supuseram um observador externo em condições de observar de maneira falsa ou correta, ou seja, com valores bipartidos; mas elas não pensaram que tal observador, para poder observar a realidade, tem de observar a si mesmo"(44).
Luhmann encontra-se aqui bem próximo do problema, mas não o reconhece. De fato, ele age de forma ontológica, isto é, iluminista, no próprio metaplano da auto-referência do observador. A auto-observação do observador, em Luhmann, não pode observar senão a própria imanência. A contradição não existe na realidade, mas no máximo como erro na cabeça do observador, ou seja, ela se reduziria ao fato de que o observador não observa a si mesmo, mas restringe-se a objetos externos que ele "avalia", sem dar-se conta de sua própria participação. Com isso escapa também todo protesto contra as relações, que para Luhmann só pode vir da posição "ab extra". Luhmann reproduz portanto a concepção iluminista da crítica social, e precisamente por isso a ascensão ao metaplano da auto-referência parece-lhe idêntica à eliminação da crítica fundamental da sociedade.(45)
A auto-observação luhmanniana do observador permanece todavia incompleta na medida em que ele é incapaz de reconhecer a imanência sistêmica objetiva da dicotomia sujeito-objeto. No metaplano da suposta auto-referência, ele volta a ser iluminista (e este é o outro aspecto da ontologização) ao cair por sua vez no esquema do "certo e errado" e ter de qualificar o "ponto de vista ab extra" como simples "erro" ideológico ou imanente à teoria. Seria preciso, em oposição a Luhmann, ocupar de modo mais conseqüente um metaplano ( ou manter de forma mais conseqüente o metaplano da auto-referência), para então poder compreender a dicotomia sujeito-objeto ou o próprio "ponto de vista ab extra" como elemento genuíno da estrutura sistêmica e como funcionalidade sistêmica das modernas sociedades (ocidentais), em vez de como simples erro do observador. Só então não haverá mais uma simples duplicidade valorativa de "certo" e "errado", e o supostamente "errado" será reconhecido em seu próprio condicionamento sistêmico. Isso, é claro, não vale apenas para a ideologia do sujeito iluminista, mas também para seu crítico Luhmann, cuja teoria, por sua vez, pode ser decifrada como produzida pelo sistema e funcional ao sistema (e, neste sentido, não simplesmente "errada").
Esse ataque insuficiente da "auto-reflexidade" luhmanniana (como auto-referência) ao eu na auto-observação do observador procede da obtusidade desta observação, que se contenta com a afirmação banal de que também o observador ou o sistema observador (sob a figura da sociologia, por exemplo) tem de ser considerado e refletido como sistema ou subsistema dentro de um sistema, ou ainda como ambiente de um sistema. A auto-reflexão se dá sempre em relação a um determinado sistema ou "sistema em geral", mas não com referência a uma certa forma histórica do sistema, na qual se pode avançar um conceito de sistema, e tampouco com referência à "forma em geral" (que é algo diverso do sistema em geral). Justamente, a própria forma da consciência não consta dos objetos auto-referenciais do observador luhamanniano, que tem antes de partir de uma "consciência em geral". A deshistoricização e ontologização aderem a essa cegueira sistemática da forma, como a expõe Luhmann de modo exemplar (insistindo assim na cegueira formal do pensamento iluminista e de certa maneira aperfeiçoando-o ).
Ora, o desenvolvimento teórico (o de Luhmann, inclusive) e a destruição teórica do pensamento iluminista aponta para uma crescente autocontradição do sistema, que assim se vê impelido não só à manifestação e portanto à simples reflexão teórica, mas também à superação prática. Luhmann crê que tanto o "ponto de vista ab extra" como a crítica prática e superadora do sistema estão extintos. Mas justamente com uma auto-referência dilatada do observador, que inclui também a própria forma da consciência e portanto o caráter sistêmico objetivado da dicotomia sujeito-objeto ou a autocontradição objetiva do sistema (produtor de mercadorias), será possível reformular — a partir de um metaplano — não só a história, mas também a práxis radical.
A superação prática então não será mais uma superação do "ponto de vista ab extra", pelo qual o "sujeito avalista" não é compreendido, como o supõem a ideologia iluminista da razão e do sujeito e o seu apêndice marxista com o "ponto de vista de classe" calcado no trabalho ontológico. Mas se o autoconhecimento do observador, que abarca a si mesmo na observação, inclui também a observação da autocontradição do sistema e portanto do próprio observador (de sua própria forma), um outro conceito de superação prática é avançado, a saber, a identidade entre a auto-superação prática e a auto-superação do observador, que por esse mesmo fato deixa de ser mero observador, e com isso abandona pela primeira vez, de fato, o "ponto de vista ab extra ". Enquanto ele permanece mero observador, a própria descrição permanece também, em última instância, "de fora". O momento contemplativo afirmado tanto por Luhmann quanto por Hegel revela na verdade não um "excesso", mas uma falta de imanência (crítico-superadora), ou seja, é um resto ou refugo do "ponto de vista ab extra ", no qual a autocontradição prática entre sistema e observador não vem refletida.(46) A própria autoreflexidade mantida de forma conseqüente conduz assim, em oposição a Luhmann, à crítica radical do sistema, embora com inclusão do observador/crítico, que não parte mais de um "ponto de vista ab extra", quer seja ele uma ontologia do "trabalho", uma ontologia do "sujeito" ou (muito menos) uma ontologia dos "sistemas sem sujeito". Antes, a própria dicotomia sujeito-objeto será sistematicamente historicizada em vez de apenas descartada.
Em semelhante historicização "auto-referencial" também não pode permanecer oculto que a dicotomia sujeito-objeto (constituída pelo fetiche) de um determinado estágio evolutivo refere-se a uma ocupação em termos sexuais. Se nas sociedades não-europeias ( e também nas sociedades agrárias da antigüidade européia) a estrutura sexual da relação sujeito-objeto ainda é difusa, nos surtos desiguais de desenvolvimento da sociedade de mercadorias ocidental ela é elaborada desde a antigüidade grega com crescente nitidez, para então vir à luz com máxima precisão no sistema produtor de mercadorias da modernidade. Pode-se formular a seguinte regra de ouro: quanto menos desenvolvida a dicotomia sujeito-objeto, menos clara é sua ocupação em termos sexuais, e quanto mais precisa avulta essa dicotomia, mais inequivocadamente ela é determinada pelo sexo masculino. Na constituição ocidental do fetiche presente na forma-mercadoria, o sexo masculino desempenhou o papel histórico de sujeito, ao passo que os momentos da sensibilidade que não se resolviam na forma-mercadoria (criação dos filhos, dádiva emocional, atividade doméstica, etc. ) foram cada vez mais delegados à mulher como "ser doméstico"(47). A mulher em si é portanto degradada a objeto de maneira estrutural pelo homem em si. Tal objetivação deve ser diferenciada do mecanismo em que, para o sujeito masculino, a primeira natureza e os demais sujeitos masculinos surgem como relação objetiva. A terceira definição do sujeito, só plenamente revelada na sociedade mercantil ocidental, seria a seguinte: Um sujeito é um ator determinado estruturalmente pelo sexo masculino.(48)
A partir das definições avançadas até agora, é possível reformular o próprio conceito de dominação. A ausência de sujeito da dominação é a ausência de sujeito da forma do sujeito, que constitui uma relação de ação e percepção objetivada e compulsória. Nessa relação, a natureza e os outros sujeitos (e especialmente a mulher como pseudo-natureza) são rebaixados a objetos, porém não a partir da subjetividade volitiva da consciência aparente do ego, mas da inconsciência de sua própria forma. Este caráter compulsório que se sedimenta na dominação, ou seja, em ações repressivas, não abrange somente a relação externa do sujeito, mas necessariamente também sua auto-relação. Pois como a estranheza da relação de ação e percepção é a estranheza daquilo que é próprio, isto é, a estranheza da forma própria, o sujeito também é incapaz de perceber a si mesmo em sua totalidade, mas permanece restrito à consciência aparente do ego constituída pelofetiche. Uma parte considerável de si próprio tem de se lhe tornar portanto "mundo externo": a auto-relação torna-se uma forma fenomênica da relação com o exterior. Ou melhor, o ditado da percepção que parte da forma de consciência inconscientemente constituída só abarca o "eu" do sujeito na medida em que este se comporta consigo mesmo como possibilidade de reprodução formal(como objeto da forma mercadoria) e objetiva as próprias capacidades sob este aspecto. O sujeito tem portanto de objetivar a si mesmo e "autodominar-se" em nome de sua forma própria inconsciente, a ponto de ajustar maquinalmente seu próprio corpo, que é literalmente rebaixado a máquina corporal na mais pura e excluída forma-fetiche do sistema produtor de mercadorias. Podemos então formular uma quarta definição do sujeito: um sujeito é um ator que se torna mundo externo para si mesmo e assim objetiva a si próprio.
O conceito de dominação recobra desse modo a sua dimensão crítica. Em suas elaboradas configurações, as teorias subjetivas da dominação, entre elas também o marxismo e o feminismo, há muito descreveram em termos fenomenológicos os diversos planos e as formas fenomênicas da dominação e tentaram captá-las em seu contexto, sem no entanto poder avançar um conceito de tais manifestações. Se as antigas teorias subjetivas da dominação permaneciam aferradas a uma brusca separação dicotômica entre "dominantes" e "dominados", sendo que, do ponto de vista dos "dominados" (povo, classe trabalhadora, nações oprimidas, mulheres, etc. ), a "dominação" parecia como algo externo e palpável, os projetos mais recentes e elaborados levam em conta o fato de que os próprios "dominados" contribuem para a dominação, exercendo até funções de dominação para consigo próprios.
A tentativa mais primitiva de explicação consiste nas diversas variantes da "teoria da manipulação", segundo a qual os "dominantes", por intermédio do controle externo da consciência através da religião (cf. para tanto a velha idéia iluminista do "embuste clerical") e hoje através da rnídia, da publicidade, da "propaganda enganosa", etc., manipulam a consciência dos "dominados" e os forçam a agir contra seus "verdadeiros" interesses. Nesse meio tempo, projetos mais refletidos passaram até a falar, com respaldo na psicanálise, de uma internalização psíquica da dominação nos dominados. Como aqui não se trata mais de um super-sujeito manipulador, que supostamente exerce o controle último, tais projetos se avizinham mais do problema da dominação sem sujeito, na medida em que o inconsciente em geral é inserido no contexto da teoria da dominação. Essa reflexão restringe-se em boa parte porém a mecanismos psíquicos de autosubmissão, sem que o conceito subjetivo e sociológico de dominação seja fundamentalmente superado ou suplantado. Ele ameaça resvalar, portanto, para a afirmação estruturalista e da teoria dos sistemas.
Só quando o conceito de inconsciente for alçado ao nível reflexivo da forma comum a todos os membros da sociedade, e portanto da constituição do fetiche, o conceito de dominação sem sujeito poderá ser avançado, sem cair num novo déficit explicativo. O inconsciente como forma universal da consciência, como forma universal do sujeito (com a ressalva sexual descrita acima) e como a forma universal de reprodução da sociedade objetiva-se na figura de categorias sociais (mercadoria, dinheiro) sem excetuar nenhum dos membros da sociedade, mas por este fato mesmo é uma particularidade inconsciente do próprio sujeito. No interior dessa constituição social inconsciente, resultam dessas categorias " funções", códigos, condutas, etc., por intermédio das quais surgem tanto a "dominação alheia" quanto a "autodominação" em diversos graus e diversos planos.
A "dominação do homem pelo homem" não deve portanto ser entendida em seu tosco sentido externo e subjetivo, mas como constituição abrangente de uma forma compulsória da própria consciência humana. Repressão interna e externa se acham no mesmo plano de codificação inconsciente. Dominação das tradições, poder militar e policial, repressão burocrática, "coerção muda das relações", reificação, auto-reificação, autoviolação e autodisciplina, opressão sexual e racial, auto-opressão, etc. são apenas formas fenomênicas de uma única e mesma constituição da consciência fetichista, que lança uma rede de "poder" e portanto de dominação sobre a sociedade. O "poder" nada mais é do que o fluído universal e penetrante da constituição do fetiche, a forma fenomênica tanto interna quanto externa — presente desde sempre — da própria inconsciência formal.
O conceito de dominação não deve assim ser meramente descartado para em seu lugar se erguer o conceito de constituição do fetiche, que rebaixaria o sujeito e suas declarações a simples marionete. Antes, o conceito de dominação e seu conceito mediador "poder" devem ser deduzidos como conceitos da forma fenomênica universal das constituições do fetiche, que por sua vez se manifestam tanto prática como sensivelmente como espectro da repressão ou auto-repressão em diversas formas e em diversos planos. A forma de si mesmo inconsciente à consciência manifesta-se como dominação em todos os planos. Na figura da dominação, o sujeito como ser constituído pelo fetiche trava contato real consigo mesmo e com os outros. As categorias objetivadas da constituição formam assim o (respectivo) padrão ou a matriz da dominação.
O sistema produtor de mercadorias ingressa hoje em seu estágio maduro de crise, e a autocontradição da constituição do fetiche agrava-se até às raias do insuportável. A conseqüência não é a dissolução aprazível no metaconhecimento, mas o assombro perante tal metaconhecimento, o temor ante a dissolução do sujeito e o apego (que beira o desvario ululante) a códigos da forma inconsciente da consciência. Sob tais condições, o "poder" concentra-se novamente ao extremo. A repressão externa da força estatal e da administração burocrática e misantrópica da crise cristaliza-se, a exemplo da concorrência mutuamente exclusiva e da força bruta, nos planos da criminalidade, do ódio político, pseudo-político, racista ou etnicista e das relações pedagógicas e entre os sexos: a "coerção muda" dos critérios fetichistas de êxito cristaliza-se como auto-repressão dos indivíduos, que a eles obedecem cegamente.
Quais são então as conseqüências universais do conceito de dominação sem sujeito? Em primeiro lugar, há-de se compreender o alcance do conceito de emancipação a ser agora formulado. Não se trata apenas de uma superação da relação capitalista como tal, mas ao mesmo tempo da superação da "pré-história" em geral, isto é, da "pré-história" no sentido marxista, que inclui todas as formações sociais até hoje, inclusive a nossa. O marxismo já tivera certa noção disso com base nesta declaração de Marx, porém resvalou para um conceito subjetivo e sociologista de dominação, com o que a formulação do problema permaneceu forçada e insatisfatória.
A "classe trabalhadora" deveria superar não só a dominação da "burguesia", mas também a dominação em geral do homem sobre o homem. A autonegação deste programa mostrou-se por um lado no fato de a superação da pré-história ter de se dar sob o ditame do "trabalho" abstrato, ou seja, do "ponto de vista do trabalho" e de sua universalização — um programa que ainda não excede o horizonte do sistema produtor de mercadorias. De outro lado, porém, a superação da dominação (em conformidade com o ditame do "trabalho" abstrato) devia ser executada através justamente da "dominação da classe trabalhadora", o que conduziria no leste e no sul, sob os pressupostos da modernização tardia, à ditadura sobre a classe trabalhadora por uma burocracia representativa. No Ocidente, bem como em outras regiões do mundo, o desenvolvimento ainda não se achava maduro para a superação da constituição do fetiche, da forma-mercadoria, do "poder" e da dominação. Tal situação correspondia à redução teórica do conceito de dominação e ao apego a ilusões iluministas.
Somente sob as condições atuais de uma crise objetivamente madura do sistema produtor de mercadorias globalizado, que fez da transição para um segundo barbarismo uma ameaça direta, o conceito de dominação pode (e deve, sob pena de colapso) não apenas ser avançado, mas também efetivamente posto na ordem do dia como objeto de superação, o que implica ao mesmo tempo a superação da pré-história. Ironicamente, isso significa a superação do próprio marxismo, ao passo que agora só os momentos renegados da teoria de Marx (e não desenvolvidos coerentemente pelo próprio Marx) podem tornar-se relevantes em termos práticos e portanto teóricos.(49)
Isto significa também que a superação da pré-história deve ser teoricamente concretizada. Desse ponto de vista, podem ser destrinchadas algumas dificuldades não somente da filosofia da história, mas também da maioria das concepções teóricas modernas. O problema central está na ontologização. Em todos os projetos sociológicos, o momento a-histórico que se repete com grande obstinação e, como foi mostrado, comparece tanto em Rousseau e Kant quanto na psicanálise e nas concepções mais recentes do estruturalismo e da teoria dos sistemas ( e que também está contido na ontologia do trabalho de Marx), obtém sua justificação relativa através do enorme quadro histórico da "história das relações fetichistas" comum a todas as formações sociais até hoje. Num plano teórico e elevado de abstração, sempre voltam a aparecer necessariamente determinados problemas que se ligam em parte à atual história humana (e sob influxo portanto das formações pré-históricas dificilmente reconstituíveis, que de maneira alguma podem ser equiparadas aos "povos selvagens" ainda existentes na modernidade ), e em parte à história das culturas elevadas (criadoras do mais-produto ), do reino egípcio ou formas análogas até o sistema capitalista mundial de hoje.
Enquanto o horizonte da pré-história no sentido marxista não for ultrapassado, persistirá neste contexto do desenvolvimento humano a formulação de ontologias ou pseudo-ontologias. Tal é por exemplo a "relação sujeito-objeto" em face da natureza — ainda que ela se manifeste em graus e formações extremamente diversos — para toda a transformação humana. Tal é também o "trabalho", ao menos para a história das civilizações produtoras de mais-produto.(50) A predisposição ontológica das categorias básicas da existência humana extingue-se porém quando (e na medida em que) o horizonte da constituição do fetiche é ultrapassado. Dito de modo enfático: estaríamos às voltas com um segundo "despertar da humanidade", comparável apenas à diferenciação do homem em relação à mera constituição biológica (animalesca). A superação da segunda natureza possui o mesmo alcance que a superação da primeira natureza. "Superação" refere-se obviamente ao plano da ação e da consciência, e não ao vínculo biológico e fisiológico do homem à natureza. Do mesmo modo que a história da pré-história iniciou com a marcha extremamente longa após a diferenciação em face do mundo animal, assim também inicia com o colapso do sistema produtor de mercadorias e da diferenciação em face da constituição do fetiche a longa marcha de uma "segunda história". Da mesma maneira que o substrato animal na "primeira história" (a história da primeira natureza) não desaparece simplesmente, e aliás jamais desaparecerá por completo, assim também o substrato secundário da constituição do fetiche na "segunda história" não desaparece sem deixar traços, mas continuará a atuar como momento sedimentado, a exemplo da primeira natureza. Mas superação significa também eliminação e supressão, um "libertar-se" — e nesse sentido a ontologia atual será superada. Esta idéia tem de tomar a dianteira na vanguarda da superação.
Mas é bom lembrar: a diferenciação em face da segunda natureza contém uma diversidade fundamental em relação à diferenciação em face da primeira natureza. De fato, ela não pode mais ocorrer pelas costas dos homens como concentração reguladora de efeitos secundários imprevistos. O segundo homem, ao contrário do primeiro, não pode "surgir", porém tem de criar a si mesmo de forma consciente. Ele tem de ganhar consciência de sua própria sociabilidade, da mesma maneira que na primeira história constitutiva ganhara crescente consciência em face da primeira natureza. Consciência, é claro, de uma ordem diversa e mais elevada, pois consciência como autoconsciência é algo fundamentalmente diverso do simples controle ou "dominação" em face de coisas naturais. Como a relativa consciência em face da primeira natureza fora comprada com a constituição do fetiche da segunda natureza, a sua inconsciência retroagiu também sobre a relação consciente do sujeito em face da natureza-objeto. Hoje a própria relação social "tem de atravessar pela cabeça", e é impossível que isso seja a repetição mecânica da transformação do sujeito em face da primeira natureza. A autoconsciência social modificará portanto fundamentalmente a própria relação com a natureza, sendo que "cabeça" aqui não deve ser entendido como oposto de "barriga" ou sentimento, mas como consciência em que se inclui o plano dos sentidos.
Será mesmo possível a segunda constituição do homem? Na abstração histórico-filosófica, a tarefa parece gigantesca e quase insolúvel. Mas do mesmo modo que, com toda verossimilhança, a diferenciação em face da primeira natureza seria representável com base nos primeiros passos isolados e talvez pareça mesmo espantosamente fácil (por exemplo como o jogo "imitativo", prenhe de símbolos e abstração, com os elementos comunicativos, como supõe Lewis Mumford)(51), assim também a diferenciação em face da segunda natureza será representável em passos ou em tarefas realizáveis no plano da vida social. Serão as próprias e tangíveis potencialidades humanas e sociais (conhecimento natural e social, reflexão, comunicação em rede ), sob o manto da última e mais elevada constituição do fetiche do sistema produtor de mercadorias, que possibilitará e até mesmo sugerirá o passo para além da segunda natureza.
Esse passo não é porém uma simples possibilidade de escolha que pode ser abandonada. A crise criada inconscientemente pela segunda natureza exerce uma pressão cada vez maior para que se ouse dar um salto aparentemente arriscado. De fato, o risco de continuar a viver sob o ditame formal da segunda natureza já começa a exceder, sob nossos olhos, o risco do salto para além da segunda natureza. Eis a ironia da constituição humana: o problema da segunda transformação do homem ainda se cruza forçosamente com as relações coativas da primeira. O homem inconsciente de si próprio, pela própria forma de consciência e reprodução inconscientemente constituída, força a si mesmo a abandonar e superar sua própria inconsciência. Talvez essa constatação seja melhor compreendida como a decifração daquilo que Hegel denominou ainda cripticamente de "astúcia da razão".
Mas obviamente não há garantia alguma de que a superação tenha sucesso. O salto pode não ocorrer, vir muito tarde, ser muito curto, errar o alvo. O ser humano pode também destruir a si próprio, e o sistema produtor de mercadorias e a relação capitalista dispõe em seu arsenal de todos os meios para tanto e desenvolve todas as tendências nessa direção. Os chamados conservadores, cujas fileiras são cada vez mais engrossadas por velhos críticos sociais (apegados a velhos padrões de conflito), são hoje conservadores justamente em relação ao caráter absurdo e autodestrutivo da sociedade de mercado total, e por isso não são mais "mantenedores", mas enfermos sacerdotes da aniquilação. Talvez esta aniquilação não seja necessariamente tão absoluta e física como ainda se evocava nos apocalipses atômicos, embora também esta versão não deva ser de todo descartada. Mas ainda mais perverso e cruel seria transitar do sistema produtor de mercadorias para a segunda barbárie, como hoje já se pode observar em muitos fenômenos.
Barbárie é obviamente uma metáfora para um acontecimento que ainda não dispõe de um conceito. O termo é de origem eurocêntrica e foi reiteradamente utilizado no contexto de denúncias européias de sociedades não-européias e pré-modernas. Tratava-se, nesse sentido, da destruição de outras culturas. Agora porém esse conceito deve ser aplicado à própria formação — nascida em solo europeu — do sistema produtor de mercadorias, e nesse contexto sua aplicação pode ser justificada. Apesar de sua aparente superioridade, a sociedade ocidental liberou desde seus surtos históricos de afirmação potenciais inéditos de barbarismo: da Guerra dos Trinta Anos, passando pela história do colonialismo e da acumulação primitiva até chegar à época das Grandes Guerras e às destruições atuais no terreno social e ecológico, estende-se pela modernização um vestígio de barbárie, sempre compensado ou mesmo temporalmente alternado por conquistas civilizatórias. Esse caráter bifronte da modernidade ocidental chega hoje a seu fim. Os próprios momentos civilizatórios transformam-se em seu contrário e tornam-se momentos da segunda barbárie. Liberdade e igualdade, democracia e direitos humanos começam a acusar os mesmos traços de desumanização do sistema de mercado que lhe serve de base.
O motivo para tanto está na qualidade peculiar e insidiosa da constituição secularizada do fetiche da forma-mercadoria. A forma-mercadoria como forma universal da consciência, do sujeito e da reprodução realmente ampliou, por um lado, o espaço da subjetividade para além de todas as formas pré-modernas, mas, por outro, incutiu precisamente por isso em seu caráter inquebrantável como forma-fetiche inconsciente uma liberação cultural que agora, com sua totalização espacial e social no globo, libertou definitivamente o momento monstruoso sempre latente nessa constituição e temporariamente manifesto em suas crises de afirmação. Tal monstruosidade reside na abstração sem conteúdo do fetiche da forma-mercadoria, manifesta como total indiferença da reprodução por todo conteúdo sensível e como igual indiferença mútua de homens abstratamente individualizados. Ao termo de seu desenvolvimento e de sua história de afirmação, a forma-mercadoria total produz seres desumanizados e abstratos, que ameaçam regredir a um estágio pré-animalesco. A liberação em face da primeira natureza persiste, porém a constituição última e superior do fetiche da forma-mercadoria universal ameaça produzir em seu colapso objetivado um desprezo às regras, ao mundo e ao homem sem norte. A liberação em face da segunda natureza pode ocorrer também em termos negativos, como libertação cega e suicida, que resulta da crescente capacidade de reprodução do regimento da sociedade mercantil. O ser duplamente liberado e sem as correntes da primeira e da segunda natureza, embora permaneça cego em sua inconsciência própria, assumirá forçosamente traços perversos e repugnantes, para os quais não servirá mais a comparação com o mundo animal. Os prenúncios desse colapso cultural já são mundialmente visíveis, e não por acaso se manifestam sobretudo como negligência moral e cultural de um número crescente de jovens. A consciência conservadora do fetiche, inclusive a chamada "esquerda", não quer admitir tal potencialidade social destrutiva de sua própria forma de consciência e reprodução, e fracassa em sua débil e hipócrita campanha ética, que visa a manter intocado o momento constitutivo central da barbárie, ou seja, a própria forma social da mercadoria. Com isso, a questão decisiva ainda resta em aberto ao final da modernidade, mas as constrições próprias à crise e ao colapso crescem constantemente.
A crítica fundamental da dominação aparece também como "radical" em sua nova figura meta-reflexiva de uma crítica da dominação sem sujeito. E isso com razão, pois, como se sabe, a radicalidade denota um procedimento que desce "às raízes". Não se confundindo tal procedimento com uma ideologia militante raivosa (ou heróico-existencialista), que precisamente não alcança as raízes das relações, a crítica radical deverá ser exigida com maior razão sob as novas premissas. No entanto, essa nova radicalidade não há-de ser apartada criticamente apenas das idéias sobre um procedimento "radical" que se prendem à lógica imanente (e constituída pelo fetiche) do "ponto de vista do trabalho" e da "luta de classes", mas igualmente também das idéias sobre o objetivo social do radicalismo crítico até hoje.
A meta transcendente tanto das concepções utópicas quanto das marxistas foi sempre a (suposta) superação da moderna relação capitalista por intermédio de uma outra forma universal e abstrata de reprodução social. Ou melhor, isso foi um axioma bastante óbvio da crítica social, uma suposição implícita que não era tematizada explicitamente, pois o problema essencial da forma da constituição universal do fetiche ainda não fora alçado ao contexto reflexivo do pensamento crítico. Muito se especulou sobre a forma almejada de uma sociedade solidária, "justa", etc. para além do capitalismo; todas as tentativas, porém, reproduziam de algum modo a universalidade abstrata da forma-mercadoria, seja como relações de troca e produção "empresariais" ou análogas ao mercado — relações estas pensadas como "naturais" — , seja explicitamente como a produção alternativa (ou alternativamente regulada) de mercadorias. A meta de uma forma alternativa, abstrata e universal (além de supostamente superadora) que vigoraria então — em aparente oposição à forma capitalista.- para todos os membros da sociedade e para todos os momentos da reprodução social, implicava logicamente a ameaça de ditadura, não importa com que fundamentos ou justificativas.(52)
Sob as premissas da crítica do fetichismo e da superação da segunda natureza, o problema tem de ser formulado de modo totalmente diverso e surpreendente para o pensamento imanente. De fato, agora não se trata mais da "instalação" de uma nova forma abstrata e universal, mas antes da superação da forma social abstrata em geral. Isso não significa obviamente que não haja mais instituições sociais e que a sociedade se reproduza arbitrariamente no sentido de uma contingência caótica. A consciência moderna constituída pela forma imagina espontaneamente a superação da "forma em geral". Deve-se lamentar porém que a "forma", no interior da segunda natureza, é a (respectiva) forma de consciência e reprodução universal inconsciente de si mesma, sobre a qual a consciência aparente do ego e portanto todas as instituições sociais não têm poder algum. Nesse sentido, a forma codifica todas as ações e impõe a cega "normatividade" da (respectiva) segunda natureza. A superação da segunda natureza é com isso necessariamente a superação dessa forma ou, nos termos da abstração teórica, a superação da "forma social em geral".
Pois quando a consciência e a ação prática e social não se submetem mais a uma forma inconsciente à consciência e à sua normatividade objetivada, não poderá mais surgir nesse plano uma nova determinação formal.(53) O que até então seguia um cego mecanismo normativo deve ser transposto à "consciência consciente" dos homens — à autoconsciência. Essa transformação é talvez mais facilmente imaginável com base naqueles momentos da reprodução social que até agora receberam o nome de "economia".(54) A crise sócio-ecológica no campo negativo e o pensamento em rede no campo positivo sugerem que não se dê mais livre curso às intervenções na natureza e na sociedade segundo um princípio universalmente válido (forma-dinheiro, "rentabilidade"), mas que antes elas sejam selecionadas de acordo com critérios sociais e ecológicos, em vista do conteúdo sensível da intervenção e de seu alcance. Uma tal diferenciação, que se tomou inevitável sob pena da crescente ameaça de catástrofe, só pode contudo ser efetuada praticamente por meio de uma vinculação direta entre os processos de decisão social e o conteúdo sensível da reprodução, e não mais codificados e filtrados por uma forma inconsciente. Para um tal processo de decisão é preciso naturalmente instituições ("conselhos", "mesas redondas" ou seja lá o nome que for), organizados como um conjunto em rede e (pelo menos na época do processo social de transformação para além da forma-mercadoria) responsáveis por certos critérios de decisão. No futuro, só cum grano salis se poderia falar assim de um "contrato social", embora o próprio conceito de "contrato" faça parte da forma jurídica(55), e portanto do mundo da mercadoria.
É interessante notar que as condições globais de desenvolvimento no final do século XX simplesmente não permitem mais submeter todos os ramos de reprodução e todas as regiões, todos os vínculos e todas as relações a um único e mesmo princípio cegamente formal. "Imaginar" e pôr dogmaticamente em prática social, segundo um único critério formal (como o exige a constituição universal do fetiche), o turismo e a produção de maçãs, a construção civil e a enfermagem, o destino do lixo e auto-estima pessoal, a pintura de quadros e o jogo de futebol é uma loucura consumada. No lugar da forma de consciência e reprodução universal (válida para todos e para cada um), pela qual o homem "é socialmente feito" mas que se situa fora do alcance de sua consciência e portanto de seu controle, tem de surgir uma "deliberação" consciente e uma conduta organizada, tratadas de acordo com as necessidades materiais e sensíveis do turismo, da enfermagem, da produção de maçãs, etc. Não haverá mais um "princípio" universal (rentabilidade, "capacidade de exposição" na forma-fetiche dinheiro) que guiará de maneira independente da consciência o emprego dos recursos sociais.
De modo geral, pode-se dizer que o que até agora foi forma inconsciente da sociabilidade terá de ser extinto e substituído pela comunicação direta entre os homens, numa forma muito mais organizada e ligada em rede. A "forma" inconscientemente reguladora será substituída pela "ação comunicativa" (Habermas) dos homens, que refletirão conscientemente sua própria sociabilidade e as suas ações sociais, organizando-as com base nisso. Se nos valermos mais uma vez da analogia da primeira e segunda natureza, a transformação seria idêntica à superação do "instinto" no plano da segunda natureza. Na "pré-história" que dura até hoje, a liberação em face dos instintos animais foi comprada com a formação de instintos secundários (não menos inconscientes) que pairam sobre o código simbólico da segunda natureza. A ação social não é assim primariamente comunicativa, mas segue os pseudo-instintos produzidos pela constituição do fetiche. Porém a subjetividade, em relação à primeira natureza, desencadeou nesse meio tempo potencialidades que, com o posterior governo dos quase-instintos da segunda natureza, ameaçam conduzir a humanidade ao conhecido destino dos lemingues. A "autopoiesis" do sistema produtor de mercadorias é o programa letal da humanidade globalizada. O que parece suicídio coletivo nada mais é do que o cego império dos instintos reguladores, que sob condições diversas conduzem à perdição.
Há muito se acham presentes os comportamentos, as concepções, percepções e idéias, do sistema de transportes ao acondicionamento do lixo, que nos ramos sociais de produção levam em conta as exigências materiais e sensíveis do atual nível de sociabilização e desenvolvimento produtivo. Ora, de modo aparentemente incompreensível, as percepções compartilhadas por quase todos não podem ser convertidas em ações, uma vez que a forma universal inconsciente, ao impor a "autopoiesis" do sistema, prolonga a sua sobrevida fantasmagórica e impede os homens de agirem conforme suas percepções. A própria forma de consciência cai em contradição com os conteúdos da consciência.
Mas a completude da constituição do fetiche não é de modo algum absoluta. Os conteúdos e as percepções de todas as esferas do pensamento e da ação estão muito próximos dos limites da inconsciência formal para que a contradição entre forma e conteúdo da consciência possa continuar ofuscada para a própria consciência. Isso não se revela apenas na consciência sócio-ecológica da crise. Também no tocante às "províncias freudianas" ocorreu uma alteração. Os mecanismos do inconsciente e de sua reflexão (por exemplo os conceitos de "repressão" e de "projeção") passam da ciência à consciência geral, ainda que muitas vezes numa forma diluída e vulgarizada. O homem mediano atual não pode comportar-se para consigo mesmo de modo tão ingênuo e imediato como há algumas gerações. Esboça-se assim uma perspectiva na qual o "inconsciente" é extinto pouco a pouco (embora de modo contraditório e hoje ainda instrumental) e tem início um processo em que as "províncias" psíquicas ocultas do id são trazidas à luz da consciência aparente. Inversamente, o próprio superego começa a perder sua autonomia. Também para a consciência cotidiana toma-se cada vez menos aceitável a cega orientação segundo padrões preconcebidos e inculcados desde a infância. As normas morais, políticas e culturais têm de ser provadas e analisadas em seu alcance e plausibilidade. Some tendencialmente o antigo superego automático(56). Até mesmo a língua como sistema regulador não está mais imune à reflexão. A crítica da linguagem realizada por feministas e a implementação consciente de novas regras lingüísticas, com as quais os códigos "masculinos" serão desativados, não é de modo algum tão tolo quanto gostariam de supor alguns monopolistas (masculinos) da língua e da teoria. Antes, esse processo indica o início de um processo no qual "o homem não será mais falado", mas tomará iniciativa consciente em seu desenvolvimento lingüístico (e não simplesmente assentirá aprés coup e de modo inconsciente às alterações executadas ). O mesmo vale para a crítica das demais regras lingüísticas (as racistas, por exemplo ).
Contudo, por mais que a reflexão esteja perto da constituição do fetiche, a transformação necessária, com a qual a segunda natureza será superada, ainda não encontrou nenhum princípio decisivo. A questão de um "movimento de superação" ainda não está clara, pois as forças sociais ainda não estão formadas para tanto; em vez disso, as soluções continuam a ser buscadas dentro da forma-mercadoria (do sistema Estado-mercado ), e portanto no mesmo caminho dos lemingues. Na antiga constelação, este problema teria suscitado a questão do "sujeito revolucionário". A crítica do aforismo do sujeito iluminista é incontornável. Como não há um sujeito (social) a priori da forma-fetiche social e a essência da segunda natureza consiste justamente em sua constituição sem sujeito, a própria superação dessa constituição não pode ser sustentada por um sujeito a priori socialmente definido, no estilo da antiga concepção do sujeito "classes trabalhadoras". Todos os sujeitos sociais do sistema produtor de mercadorias são como tais "máscaras de caracteres" da forma-fetiche. Um momento de superação não pode portanto utilizar como rastilho um mau "interesse" imanente e a priori constituído pela forma, mas antes uma crítica da forma pressuposta de um interesse cego. Isso vale para "todos", e assim todos podem em princípio constituir e portar "todo" este movimento de superação. Um tal movimento não corre por pistas traçadas imanentemente, mas por brechas do sistema produtor de mercadorias e na resistência contra o processo de barbarismo. Seus portadores não podem remeter-se a um apriorismo ontológico (ao "trabalho", por exemplo), mas somente a percepções parciais embora inevitáveis, nas quais a consciência rompe seu próprio cárcere formal. Desse modo, o conflito social não desaparece, mas é reformulado num outro plano. De fato, não se trata agora de um antagonismo cegamente constituído, no qual todo membro da sociedade já tem sua parcela designada pela constituição do fetiche antes mesmo de poder tomar uma decisão. Trata-se antes de um antagonismo no qual a crítica prática da forma-fetiche, de um lado, e o apego caturra à sua "normatividade" cada vez mais absurda, de outro (a consciência social superior, de um lado, e a consciência codificada do lemingue, de outro) encontram-se frente a frente.
A tentação é grande de chamar de "sujeito" o portador consciente de um movimento futuro de superação, mesmo que ele não possa mais ser um sujeito em "em si" preexistente e altivo diante de sua tarefa. Tratar-se-ia então de um sujeito não-apriórico e autoconstitutivo naquele plano até agora ocupado pela forma sem sujeito e inconsciente. Mas o sujeito a priori (ou seja, constituído inconscientemente) a ser descartado é o sujeito em geral. Se o sujeito for desmascarado como um ator inconsciente de sua própria forma e que, na tarefa de pôr o mundo externo como objeto, objetiva-se a si mesmo e define-se estruturalmente como "masculino" e "branco", então a consciência da ação e percepção para além da segunda natureza não pode mais tomar a forma da subjetividade no sentido atual, perdendo assim sua conotação positiva e enfática. A metaconsciência para além da segunda natureza não é mais uma "subjetividade". Para a consciência imanente, de um modo paradoxal e provocativo, a tarefa histórica resume-se à seguinte fórmula lapidar: a revolução contra a constituição do fetiche é idêntica à superação do sujeito.
Notas de rodapé:
(1) Não deixa de ser interessante que o egoísmo utilitário seja afirmado com sinais trocados também pelos adversários do marxismo. Especialmente os ideólogos liberais e neoliberais voltados radicalmente ao mercado tomam como evidente que, a "nós homens", seja "congênito" um egoísmo axiomático: e desde a "fábula das abelhas" (1705) de Bernard de Mandeville e da .'invisible hand" na teoria de Adam Smith (1776), a soma social do egoísmo de utilidade privada equivale ao bem-estar público ou "bem geral". (retornar ao texto)
(2) Josef Esser, Gewerkschaften in der Krise, Frankfurt, 1982, p. 226. (retornar ao texto)
(3) MSZ4/91 (última edição), "Der Fall MG", p. 8. (retornar ao texto)
(4) Facção do Partido Verde alemão [N. do T.] (retornar ao texto)
(5) Verfassungsschutz, no original. Repartição federal subordinada ao Ministério do Interior e incumbida de evitar ou pôr cobro às assim julgadas ofensas à Constituição da República. [N. doT.] (retornar ao texto)
(6) "Der Aufbau des Kapital" (I). In: Resultate der Arbeitskonferenz, n° 1, Munique, 1974, p. 73. (retornar ao texto)
(7) Robert Michels, Zur Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie, 1911. (retornar ao texto)
(8) Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen, 1972, p. 571 (1ª edição de 1922). (retornar ao texto)
(9) Leon Trotski. Die verratene Revolution, 1936, p. 242. (retornar ao texto)
(10) Isso vale também para todos os esforços posteriores, como por exemplo as análises de Ernst Mandel, que jamais se livrou da limitações teóricas de seu "mestre". (retornar ao texto)
(11) Max Horkheimer, Autoritärer Staat, escrito no início de 1940, Frankfurt, 1968, p. 35. (retornar ao texto)
(12) Uma sinopse da gênese e da irradiação teóricas é oferecida por Günther Schiwy, Der franzosische Strukturalismus, Reinbek, 1969. (retornar ao texto)
(13) Michel Foucault, Von der Subversion des Wissens, Frankfurt, 1987, p. 14s, (trata-se de uma citação de uma entrevista concedida a Paolo Caruso em 1969). (retornar ao texto)
(14) Foucault numa entrevista de maio de 1966, citado por Schiwy, op. cit., p. 204. (retornar ao texto)
(15) O fato de Parsons ter sido aluno de Max Weber e ter desenvolvido a teoria deste último no meio positivista e pragmático do pensamento anglo-saxão revela as mediações e os vínculos subcutâneos no processo imanente de destruição do ideário iluminista ocidental e aponta para o conceito de dominação sem sujeito. (retornar ao texto)
(16) Niklas Luhmann, Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie, Frankfurt, 1991, 4ª edição, p. 51. (retornar ao texto)
(17) Luhmann. op. cit. p. 234. (retornar ao texto)
(18) "Enquanto a teoria, no que se refere a conceitos e declarações de conteúdo, escreveu-se como por si mesma, problemas de construção custaram-me muito tempo e reflexão", revela Luhmann no prefácio a seu livro Soziale Systeme (op. cit., p. 14). (retornar ao texto)
(19) Luhmann, op. cit, p. 33. (retornar ao texto)
(20) Cf. Louis Althusser, Elemente der Selbstkritik, Berlim, 1975. (retornar ao texto)
(21) Louis Althusser, Für Marx, Frankfurt, 1974, p. 11. (retornar ao texto)
(22) Louis Althusser, Lenin und die Philosophie,. Reinbck, 1974, p. 65 ss. (grifos de Althusser). (retornar ao texto)
(23) Günther Schiwy, op. cit, p. 76 s (retornar ao texto)
(24) Valeria pesquisar em que medida semelhante concepção em última instância plenamente "determinista" do Capital já se achava (embora sem a formulação metódica ou metateórica) na velha social-democracia; em que medida, portanto, Althusser não teria apenas elevado a umconceito sistemático a concepção marxista do antigo movimento operário. (retornar ao texto)
(25) Cf. Jürgen Habermas /Niklas Luhmann, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Was leistet die Systemforschung, Frankfurt, 1971. (retornar ao texto)
(26) Cf. Louis Althusser, Elemente der Selbstkritik, op. cit., p. 63 (retornar ao texto)
(27) Helmut Willke, Systemtheorie, Stuttgart/Nova Iorque, 1982, p. 10. (retornar ao texto)
(28) No entanto, também Comte — que considera a biologia como "ciência básica", da qual a ciência social terá de "crescer" — fala que a tarefa da biologia das relações do órgão ativo num determinado ambiente (cf. Auguste Comte. Die Soziologie. Die positive Philosophie im Auszug, Leipzig, 1933, p. 31). (retornar ao texto)
(29) Que a secularização do fetiche não deva ser necessariamente equiparada a uma forma "mais elevada" de consciência revela-se como notável ironia. Pois na mesma medida em que a suposta "crença religiosa" dá lugar ao Iluminismo, que aliás não se ilumina a si mesmo, desaparece também a consciência da sujeição externa do homem. Se de um lado o sujeito do Iluminismo imagina que suas ações são decompostas em termos teóricos subjetivos e voluntaristas (e portanto não percebe sequer indiretamente ou fantasticamente transfigurada a sua própria determinação fetichista da forma), os homens pré-modernos, por sua vez, pelo menos sabiam que suas ações como caudilhos, príncipes e reis não era "autodeterminada", mas antes cego instrumento de "poderes celestes". (retornar ao texto)
(30) Os axiomas e códigos sociais são então definidos como natureza, isto é, a primeira e a segunda natureza são equiparadas, a exemplo do que aparece como ontologização na teoria dos sistemas. Porém a natureza é justamente objeto pelo fato de ser reconhecida em sua insuperável "normalidade natural" sem sujeito. O que se vê rebaixado a objeto é inapreensível também como não-sujeito, já que a sua "normatividade" como tal não é instrumentável, mas permanece pressuposta a toda instrumentalização. O pensamento instrumental pressupõe portanto a não instrumentalidade no plano do ser-objeto. (retornar ao texto)
(31) A consciência religiosa da pré-modernidade ainda não tem problemas com isso. O sujeito exterior como deus ou mundo divino, como mundo espiritual, e animação da natureza é uma obviedade. Mas exatamente por isso a própria subjetividade do homem é apenas embrionária e ainda não pode haver um conceito de sujeito no verdadeiro sentido, pois a própria natureza ainda não é objeto, ainda não é uma ausência de sujeito regular e calculável, mas se acha guiada por sujeitos ou é ela própria sujeito (expresso em termos modernos: no plano em que ele ainda não é formulável). A dissociação entre sujeito e objeto ainda não ocorreu de modo conseqüente ou apenas em esboço, e a natureza se manifesta como tão incerta quanto os homens. (retornar ao texto)
(32) A relação capitalista é o primeiro e único modo de produção dinâmico que se dinamiza a si mesmo e se transforma a partir de dentro. Nesse sentido, ele aponta para além de si mesmo e impele à auto-superação, além de conter em si toda a "pré-história" e ao mesmo tempo superá-la. Sociedades pré-modernas e não-européias, por sua vez, embora se desenvolvam, não dão ensejo a nenhuma dinâmica autodestrutiva nesse sentido. (retornar ao texto)
(33) Desde modo, o problema é idêntico ao da modernidade e vem formulado nas categorias da modernidade. O moderno sistema produtor de mercadorias foi o primeiro a elaborar em forma pura o dualismo sujeito-objeto. Nas formações pré-modernas, o problema seria, como foi dito, informulável. Mas lá ele se encontra "latente", mesmo que não diferenciado. Talvez se possa dizer que o dualismo sujeito-objeto representa a determinação universal e abstrata do modo funcional da "segunda natureza" como um todo, mas que só na história da "segunda natureza" seria diferenciado, para então ganhar status de conhecimento na modernidade e assim ser formulado. (retornar ao texto)
(34) O momento histórico aparece então paenas como pré-histórico, isto é, como história da formação do homem em geral e da cultura em geral. No interior do ser humano completamente formado, entretanto, tem de ser suposta uma estrutura básica ontológica e a-histórica como relação entre "a estrutura do impulso e a sociedade" (Marcuse). Essa concepção não foi superada pelos seguidores de Freud, e em última instância tão-pouco pela teoria crítica, já que a "base natural" da "estrutura do impulso" permanece intocada como suposto ponto de partida inevitável. (retornar ao texto)
(35) Sigmund Freud, Abriss der Psychoanalyse, Frankfurt, 1972, p. 9 ss. (retornar ao texto)
(36) A total negação da base biológica é sem dúvida uma burrice teórica. A ampliação ideológica do alcance das determinações biológico-genéticas no campo social, pelo contrário, não é somente burra, mas também sangrenta em suas conseqüências. Desde o século XIX, infletir fenômenos sociais a fim de tomá-los como determinações biológicas para a legitimação de massacres segregacionistas foi um instrumentro do nacionalismo, do racismo e do machismo. Estas pseudo-explicações biológicas vieram à luz de forma mais ou menos grosseira, sobretudo no contexto das crises de afirmação do sistema produtor de mercadorias. Hoje também se pode prever essa conjuntura ideológica na crise mundial do sistema fetichista da forma-mercadoria. O sujeito-mercadoria não quer tomar conhecimento de sua própria crise formal, não quer tocar em sua "segunda natureza", e por isso tem novamente de lançar mão do regresso "científico" à base biológica. A reflexão crítica da sociedade nos anos 70, ainda que sociologicamente redutora, há-de ser assimilada à ciência natural e à tecnologia social. Cientistas americanos dizem por exemplo ter descoberto que as pessoas de côr são de fato geneticamente mais propensas à criminalidade do que os brancos. Uma tal concepção, que anos atrás não teria suscitado mais que risos de escárnio, é posta novamente em debate com toda seriedade. E se Freud vincula esse conceito de inconsciente de modo relativamente imediato à estrutura biologicamente determinada, nesse meio tempo o próprio inconsciente foi negado como reino intermediário estruturado entre a base natural e a consciência superficial. O jornalista Dieter E. Zimmer é por exemplo na Alemanha um representante dessa regressão teórica que pretende infletir o problema da consciência diretamente para as ciências naturais (neurologia etc.) e seus métodos positivistas (cf. Dieter E. Zimmer, Tiefenschwindel. Die endlose und die beendbare Psychoanalyse, Reinbek, 1986). (retornar ao texto)
(37) Sigmund Freud, Abriss der Psychoanalyse, Frankfurt, 1972, p. 10 ss. (retornar ao texto)
(38) Mais tarde, Hegel reproduziu o princípio deste procedimento, embora lhe tenha historicizado a evolução, com o que perdeu parcialmente o ponto de partida crítico. Ou seja, ele expõe, na esteira crítica de Kant, a história e a fenomenologia da consciência, mas perde em boa parte a consciência problemática no tocante à forma. (retornar ao texto)
(39) O problema está em que Marx, sem ainda dar-se conta, embaralha dois planos e concepções teóricas historicamente imiscíveis: ora a luta de interesses interna ao capitalismo (alias luta de classes), que pode ser concebida como o motor da modernização pela forma-mercadoria, ora a crise e a crítica da própria forma-mercadoria (isto é, da constituição do fetiche), que só hoje ingressa no campo de visão como algo "além da luta de classes". Os marxistas dos movimentos operários e suas formas tardias, como o citado "Grupo Marxista", sempre puderam referir-se ao "primeiro Marx", mas por isso mesmo a problemática do "segundo Marx" teve de permanecer um livro fechado a sete chaves. (retornar ao texto)
(40) Assim, só para citar um exemplo, na formação do moderno sistema produtor de mercadorias a reprodução e o convívio há muito não são regrados pelos códigos da consagüinidade; contudo, este código não desapareceu simplesmente sem deixar vestígio, mas atua desde o desvelo próprio ao moderno núcleo familiar até às formas jurídicas. Também nesse sentido podem ser constatados sedimentos arcaicos em diversos graus e deformações, o que sempre acarreta falsas ontologizações ou mesmo naturalismos. (retornar ao texto)
(41) Para sociedades pré-modemas isso só vale na medida em que uma estrutura geral de sujeito-objeto esteja desenvolvida. (retornar ao texto)
(42) Os conceitos (próprios à teoria dos sistemas) de "autopoiesis" (autocriação ou autoprodução) e de "auto-referência" não assumem o ponto de vista do metaplano, pois, de acordo com este jargão, "autopoiético" e "auto-referente" não é o sujeito que é compreendido como simples erro, mas o sistema sem sujeito. Com isso a teoria dos sistemas só faz reproduzir a lógica dos sistemas sem sujeito, sem poder criticá-los. O fato de a própria consciência humana galgar este metaplano da "autopoiesis" e da "auto-referência" e poder assim superar a cegueira do sistema parece impossível aos teóricos afirmativos do sistema ou nem mesmo chega a ser tomado em consideração. Aliás, é sintomático que o conceito de "autopoiesis" tenha sido introduzido pelo biólogo Humberto Maturana no plano das ciências naturais e reinterpretado sem modificações por (entre outros) Niklas Luhmann no campo das ciências sociais. (retornar ao texto)
(43) A "impureza" da imaturidade do dualismo sujeito-objeto no passado pré-modemo é uma eterna fonte sedutora para que se resolvam as dores e a crise desta cisão em termos passadistas e se suponham nas sociedades pré-modernas (em especial nos chamados povos selvagens) uma almejada relação puramente simpática com a natureza. Esse romantismo não vê que a dicotomia sujeito-objeto não estava inteiramente ausente nas formações primitivas, embora fosse muito menos diferenciada. O homem primitivo era menos capaz de perceber-se separado de seu ambiente do que o homem moderno, e por isso era incapaz de perceber seus objetos como separados de determinadas situações ou constelações, ou seja, sua capacidade de abstração era (e hoje ainda é em muitas regiões do mundo e em certas populações) menos desenvolvida. Essa deficiência na capacidade de diferenciação é entretanto absolutamente o inverso da capacidade de galgar àquele metaplano a partir do qual a dicotomia sujeito-objeto pode ser superada e todo o complexo, percebido conscientemente. Estamos portanto menos às voltas com um crescente "não-mais" do que antes com um descrescente "ainda-não" (Bloch), até que se atinja o limiar cuja transposição significa a superação da constituição em geral do fetiche. O menor grau de desenvolvimento da dicotomia sujeito-objeto implica obviamente porém mais inconsciência nas relações natural e social. O que parece uma relação simpática é na verdade uma ação constituída pelo fetiche. Com isso, de modo algum está excluído o fato de que, com o desenvolvimento da capacidade de abstração, se percam também os marcos e as habilidades do saber. (retornar ao texto)
(44) Niklas Luhmann, Archimedes und wir, (Coletânea de entrevistas), Berlim, 1987, p.164. (retornar ao texto)
(45) De certo modo, pode-se até dizer que neste ponto Luhmann volta a ser hegeliano. Para Hegel, de fato, a "superação" não ocorre na prática, mas simplesmente na cabeça do observador cognitivo. A história como o tornar-a-si do espírito universal tem portanto de acabar no conceito imanente, de modo que Hegel, com toda inocência, pode dizer que o conjunto da filosofia termina com ele e a práxis, com o Estado prussiano. Implicitamente, também Luhmann ergue esta pretensão (ainda que de modo aparentemente mais modesto) para um determinado plano cognitivo da funcionalidade sistêmica. À diferença de Hegel e na esteira da tradição positivista, o "sentido" e a história se acham eliminados para Luhmann (ou rebaixados a meros objetos de uma meta-reflexão funcionalista). Ele se compatibiliza assim com o Fim da história de Fukuyama,justamente pelo fato de que ele, na teoria, não insiste de forma enfática e "plena de sentido" na democracia e na economia de mercado, mas antes aceita com fina ironia o vazio funcionalista de sentido nas instituições ocidentais. (retornar ao texto)
(46) Não por acaso Luhmann tenta redefinir o conceito de contradição sistêmica na sociedade para torná-lo inofensivo, ao referir-se por exemplo à contradição entre o conceito lógico e o tradicional (ou sociológico) de contradição e dizer que, no sentido lógico, nem a concorrência nem o antagonismo entre "capital" e "trabalho" é uma contradição ( cf. Niklas Luhmann), Soziale Systeme. Grnndriss einer allgemeinen Theorie, Frankfurt, 1987, p. 488 ss.). Mas com isso ele apenas destrói a ideologia imanente do sujeito, sem contudo libertar-se dela. De fato, no metaplano da "autoreferência sistêmica" (à diferença da contradição de classes imanente e funcional ao sistema) pode-se perfeitamente formular uma autocontradição lógica e prática não mais "diferenciada" da relação capitalista, a saber, a autodestruição do "valor" pelo cego processo sistêmico da concorrência e da cientificização — processo este que, sem sujeito usurpador ou justamente como "sujeito automático", conduz ao colapso histórico e à necessidade da auto-superação prática do sistema (refletida fenomenologicamente em termos redutores no discurso da "crise da sociedade do trabalho"). Toda a força de Luhmnann reside apenas no fato de utilizar a contradição social imanente ao capital como saco de pancada e querer com isso torcer o conceito de contradição sistêmica para o plano da sociabilidade em geral como simples "forma de auto-referência especifica e imanente" na funcionalidade do sistema. (retornar ao texto)
(47) Faço referência aqui, em forma resumida, ao "teorema da cisão" de Roswitha Scholz. Cf. em pormenores Roswitha Scholz, Der Wert ist der Mann. Thesen zu Wertvergesellschaftung und Geschlechterverhältnis. In: Krisis, 12, Beiträge zur Kritik der Warengesellschaft, Bad Honnef, 1992, pp. 19-52). Tradução portuguesa de José Marcos Macedo, O Valor é o Homem. Teses Sobre a Socialização pelo Valor e a Relação entre os Sexos, publicada em S. Paulo, NOVOS ESTUDOS — CEBRAP, Nº. 45 — Julho de 1996, pp. 15-36 (retornar ao texto)
(48) Isso não significa de modo algum que as mulheres empíricas não possam ocupar a posição de sujeito: no entanto, elas têm de assumir traços estruturalmente "masculinos", o que por sua vez leva a conflitos com o papel atribuído às mulheres. Tal contradição agrava-se hoje de maneira particularmente explosiva — junto com a relação sujeito-objeto em geral — na crise do evoluidíssimo sistema fetichista da moderna produção de mercadorias. (retornar ao texto)
(49) Isso pode perfeitamente ser entendido como uma nova "revisão" da teoria de Marx, embora como uma revisão diametralmente oposta àquela do início do século XX. Se então o revisionismo bernsteiniano e o reformismo sindical refletem ainda a imanência capitalista do movimento operário e suas tarefas dentro de um campo de forças ascendente na produção de mercadorias, hoje a crítica da forma-mercadoria tornada insustentável tem não apenas de ser formulada de forma mais concreta do que em Marx, mas também ser desvinculada como crítica da dominação sem sujeito, ao paradigma do "ponto de vista do trabalhador" ou "da classe". Ambas as "revisões" espelham tanto o nível diferenciado de desenvolvimento do sistema produtor de mercadorias quanto a contradição e o patamar duplo da teoria de Marx, que em conformidade à sua posição história contém em si um e outro momento: de um lado a tarefa imanente de modernização e de outro lado a crise e a crítica ao término do processo de modernização. (retornar ao texto)
(50) À diferença de uma relação sujeito-objeto sempre embrionária com os objetos naturais, o "trabalho" não deve ser tido como conceito ontológico para todo o processo de transformação humana até hoje. Só nas culturas elevadas o "trabalho" foi diferenciado como esfera particular (na figura de uma "abstração real" sustentada pelos escravos), e só no sistema produtor de mercadorias da modernidade essa abstração real ganha uma universalização e torna-se o momento central da constituição do fetiche. (retornar ao texto)
(51) A concentração do jogo em ritual poderia assim ter cumprido um papel decisivo na constituição da segunda natureza. Cf. Lewis Mumford, Mythos der Maschine, Frankfurt, 1977. Embora o projeto de Murnford seja criticável em muitos aspectos, esta idéia tem mais fôlego sob o aspecto (não tematizado pelo próprio Mumford) da constituição do fetiche e da segunda natureza que o projeto "materialista" e calcado na ontologia do trabalho do marxismo, ao qual (por exemplo em Engels) escapa totalmente o problema do fetiche e da forma da consciência. (retornar ao texto)
(52) O pensamento utópico manteve-se sempre compatível com a história de afirmação da forma-mercadoria total e com suas formas ditatoriais, ainda que não fosse por elas absorvido. Assim, o marxismo tornou-se a ideologia de legitimação das formas de uma modernização tardia no horizonte de uma sociabilização pela forma-mercadoria. Da mesma maneira que o problema da forma abstrata e universal gerou sempre novas roupagens do sistema produtor de mercadorias, assim também o problema de sua implementação forçada gerou sempre novas alusões à ditadura, que apontam para o caráter compulsório da constituição irrefletida do fetiche. O liberalismo e a sua crítica da dominação referem-se a uma total internalização das exigências da forma-mercadoria, isto é, à dominação sem sujeito (hoje empreendida e realizada) da forma-mercadoria total, que é pressuposta cegamente como "sistema de regras do jogo" e — num tipo ideal — não necessita mais de nenhum poder coativo externo. Nesse sentido, o liberalismo representa a mais abjeta legitimação da chamada "ditadura das necessidades", que sempre contém o momento da dominação sem sujeito e faz parte do mesmo continuum histórico que o utopismo e o marxismo. (retornar ao texto)
(53) Foi Rosa Luxemburgo quem, depois de Marx, formulou e postulou pela primeira vez para no âmbito da economia política a idéia de que uma sociedade pós-capitalista não poderia mais ter "uma economia política". Obviamente, ela logo foi espinafrada pelos marxistas oficiais, pois o marxismo sempre pensou "no interior" das categorias da economia política do moderno capitalismo e nunca "contra" elas. (retornar ao texto)
(54) A superação da forma-mercadoria não é um simples procedimento interno à "economia", mas antes a superação da forma universal de consciência e reprodução. A concretização da idéia de Rosa Luxemburgo significaria assim que, junto com a "economia política", seria superada também a separação social entre as esferas. De fato, o sistema produtor de mercadorias foi o primeiro a diferenciar a sociedade em esferas opostas e autônomas entre si ou em "subsistemas" (no jargão da teoria dos sistemas) do tipo política e economia, trabalho e tempo livre, ciência e arte, etc., reunidos pela totalidade da forma fetiche na figura da consciência constituída pela forma-mercadoria. (retornar ao texto)
(55) A forma jurídica é um momento derivado da forma-mercadoria e faz parte do contexto geral funcional da constituição do fetiche. Na forma do direito (ou em suas formas básicas e embrionárias nas sociedades pré-modernas), os homens relacionam-se diretamente entre si apenas de modo secundário, ou seja, em relações internas ao contexto já constituído pelo fetiche, que são meras relações interativas e conflituosas de "máscaras de caráter" (Marx) cegamente confeccionadas. As leis e decretos isolados são "feitos" por sujeitos humanos (instituições), mas não a forma jurídica como tal, que se impõe inapelavelmente como momento da forma-mercadoria e situa-se "para além" do "livre arbítrio" por ela constituído, como Kant foi o primeiro a notar. Isso já basta para mostrar que o lema dos "direitos humanos" não tem mais nada de libertário, pois só serve para obscurecer o verdadeiro problema (da própria constituição do fetiche). (retornar ao texto)
(56) Sem dúvida, tal desenvolvimento é particularmente perigoso na crise da insuperada sociedade mercantil e ameaça tornar-se um momento de barbárie. De fato, enquanto a progressiva extinção do superego não for acompanhada pela simultânea construção de uma estrutura de ação e reprodução comunicativa, não pautada pela forma-mercadoria, ela conduzirá apenas à liberação do sujeito-mercadoria e dos potenciais destrutivos. Essa tendência já ensejou uma crítica retrógrada que deseja reviver novamente (e talvez pela última vez) os "valores" conservadores da velha burguesia (do "amor à pátria" e da "obediência aos pais e professores" até à ética dos trabalho) e portanto a antiga estrutura do superego — um esforço tão inútil quanto absurdo e reacionário. (retornar ao texto)