One World e Nacionalismo Terciário
Por que o mercado mundial totalizado não pode impedir a barbárie étnica?

Robert Kurz

4 de janeiro de 1992


Primeira Edição: Texto publicado inicialmente no jornal diário "Frankfurter Rundschau", em 4 de janeiro de 1992, sob o título de "One World und jüngster Nationalismus".

Fonte: http://obeco-online.org/robertkurz.htm

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Sem sombra de dúvida, o quadro atual do mundo é definido por dois fenômenos igualmente reais que parecem, no entanto, se excluir reciprocamente do ponto de vista lógico. Se, por um lado, o moderno sistema de mercado cumpriu seu "objetivo" e produziu uma rede social cuja trama abarca sem lacunas a terra inteira, por outro lado, esse One World parece desmentir a si mesmo, pois, justamente no instante de sua consolidação, uma onda nunca vista de nacionalismo, separatismo e guerras civis, inunda o globo. Nas salas de estar alemãs, nas favelas africanas e mesmo entre os índios das florestas tropicais, idênticos rádios japoneses ressoam monotonamente a mesma música pop internacionalizada e as imagens de satélite mostram, pela primeira vez, a unidade do mundo humano a partir daquela sonhada perspectiva "divina", capaz de compreender a esfera terrestre como uma totalidade imediata. Será que, apesar disso tudo, devemos presenciar, no limiar do século XXI, o retorno do século XIX, a época de uma "nacionalização das massas" (George L. Mosse)?

Algo deve andar errado para que nossos antepassados históricos pareçam emergir de suas tumbas. A era burguesa, que produziu a nação propriamente dita, foi sempre essencialmente economicista, e esse enigma talvez só possa ser desvendado a partir do processo de socialização mercantil.

O sistema produtor de mercadorias, que se desenvolveu a partir do corpo da sociedade feudal e, por fim, a destruiu, era em germe, desde o início, um sistema mundial. Indiferente a qualquer conteúdo, a lógica de valorização do dinheiro não conhece tampouco qualquer lealdade que a restrinja. No entanto, em seu processo de formação, as teias do mercado mundial ainda possuíam urdi dura muito débil para que ele pudesse ter se tornado o espaço funcional imediato da economia mundial emergente. Assim, aquela estrutura misteriosa que dava forma à nação, produzida a partir de vários elementos disparatados — tais como a língua, a geografia, as tradições culturais e jurídicas e as ligações de tráfego — foi quem primeiro alargou o horizonte restrito do campanário feudal, fundando, enquanto espaço social e histórico inicial dos sistemas mercantis, uma forma nova e despersonalizada de lealdade.

A consagração da bandeira das nações se opunha, porém, à razão do mundo iluminista, que ainda no século XVIII havia cunhado o conceito enfático de cosmopolitismo, desde logo já levando em conta o sentido secreto da lógica mercantil sem fronteiras. É por esse motivo que Kant e Fichte procuravam ainda derivar a própria forma particular da nação de princípios universais da razão, conciliando com isso a contradição gritante. O estado nacional, enquanto "Estado da razão", deveria continuar sendo um "estado mercantil fechado em si mesmo" (Fichte) e, concomitantemente, conduzir à "paz perpétua" (Kant), ratificando assim os princípios universais da razão. Todavia, durante muito tempo a lógica cega da concorrência, inerente aos sistemas mercantis, só permitiu o avanço da forma universal da mercadoria nos quadros de uma luta sangrenta das nações emergentes pelo predomínio regional ou global. Essa luta marcou todo o século XIX e a primeira metade do século XX. Nessa época, o mercado mundial, propriamente dito, permaneceu uma esfera secundária e subordinada às economias nacionais, encoberto pelas formas 'militares e políticas de auto-afirmação recíproca das mesmas.

Já com as lutas de libertação contra Napoleão, a abstrata razão iluminista, que nunca tivera em vista a humanidade como um todo, precisara lançar a nuvem negra do irracionalismo sobre a autolegitimação nacional. Quanto mais as jovens nações e os movimentos nacionais emergentes se projetavam anacronicamente no passado e começavam a reivindicar para si tradições historicamente desfiguradas, quanto menos estavam aptos a conceber a si próprios como fenômeno histórico, tanto mais se tornavam ideológicos, quase a ponto de se converterem em constantes antropológicas. A formação nacional não era mais fundada em princípios universais da razão, mas, cada vez mais, em bases "etnicistas", racistas e biologistas. Como se isso não bastasse, o darwinismo social forneceu ao princípio de concorrência do sistema produtor de mercadorias uma pretensa fundamentação natural. Surgiram assim aquelas letais ideologias de legitimação da época imperialista, que desembocaram de maneira catastrófica nas duas guerras mundiais e no holocausto fascista. Na luta por zonas de influência e supremacia mundial, as economias nacionais que haviam rompido suas antigas costuras tentaram se alçar irracionalmente a "economias nacionais de alcance mundial"(1) — grandes áreas econômicas sob controle nacional -, uma contradição nos próprios termos.

A época imperialista só é deixada para trás com a Pax Americana do pós-guerra, por mais paradoxal que isso possa parecer ao "antiimperialismo" de esquerda. E verdade que os Estados Unidos zelavam pelos princípios universais da razão ocidental, há muito rebaixados a seu núcleo mercadológico banal de "fazer dinheiro", mas com isso não tinham em vista mais que sua própria glória e poder, que ao fim da II Guerra Mundial resplandecia de maneira sedutora a partir de Fort Knox (onde estavam armazenadas, em 1945, cerca de 80% das reservas globais de ouro). No entanto, a americanização do mundo não era mais um imperialismo à moda antiga. A polícia mundial não fazia mais anexações territoriais, mas apenas garantia a observância das regras mercantis e concorrenciais de seu paradigmático sistema de mercadorias, que não trazia mais consigo a escória européia do século XIX.

A razão do mundo kantiana pode parecer um pouco vulgar em sua feição ianque, mas é apenas nesta forma que ela pôde de fato descer à terra. A despeito de todas as contendas da guerra fria, sob o teto da americanização global, foi possível um boom fordista sem igual e uma série de milagres econômicos. Livre de entraves, e não mais sob o jugo do "primado da política" que caracterizava o velho imperialismo, a concorrência mundial pôs em marcha forças produtivas até então inconcebíveis, sob a forma da microeletrônica, da computação e da automação. Sobre essa base tecnocientífica surgiram mercados inteiramente novos — de pronto globalizados — que paulatinamente empalideceram até mesmo o invólucro político da Pax Americana. Os processos de produção passaram a ser tão secionáveis que em muitos ramos tornaram possível, pela primeira vez, a internacionalização da própria produção de bens. Ao mesmo tempo, os custos de comunicação e transporte foram barateados a tal ponto que acabaram por envolver até mesmo pequenas e médias empresas na internacionalização. Com as multis, grandes corporações multinacionais dos anos 70, o mercado mundial se converteu em espaço funcional imediato dos sujeitos econômicos. O sistema total de produção de mercadorias passa então a dissolver as envelhecidas economias nacionais.

Esse processo de internacionalização da economia de mercado fez com que também a crítica tradicional ao capitalismo parecesse envelhecida. O saudoso "internacionalismo proletário" não era de fato menos abstrato que a razão burguesa do mundo iluminista. Era, antes, seu descendente legítimo. O movimento operário marxista trilhou, na realidade, a mesma via nacionalista que a sociedade burguesa supostamente combatia. A social-democracia ocidental foi a primeira a revelar seu caráter nacional nos surtos de desenvolvimento da virada do século, e é este caráter que lhe confere hoje, particularmente na Alemanha, o inimitável ar de museu da respeitabilidade guilhermina. Depois disso, a modernização tardia do Leste criou o "patriotismo soviético" stalinista, que se manteve ilhado atrás da cortina de ferro. Por fim, o movimento anticolonialista no Hemisfério Sul produziu aquele nacionalismo libertador que, durante algum tempo, ao invés de refletir seu próprio estágio de socialização, escondeu sob um manto romântico a juventude rebelde do Ocidente.

Contrastando com essas figuras decadentes da modernização, que permaneceram claramente atreladas ao paradigma nacionalista do século XIX, hoje o triunfo da internacionalização e da globalização capitalista da economia de mercado parece ser completo. No entanto, esse triunfo deixa na boca um gosto amargo. Os estados autárquicos, limitados à esfera nacional, e os nacionalismos libertadores dos países do Leste e do Sul não eram simplesmente o resultado de ideologias que haviam se tornado reacionárias, mas antes o fruto da própria pressão concorrencial do mercado mundial. Se, no século XIX, o processo primário de nacionalização ocidental havia se dirigido principalmente contra as estruturas feudais, a nacionalização secundária do século XX, tanto no Leste quanto no Sul, era o produto de um mundo modernizado, constituído por Estados nacionais, e se dirigia contra a supremacia das nações ocidentais.

Até meados do século, ou mesmo depois disso, essa luta ainda podia ser conduzida na mesma forma política e militar em que haviam sido travados os conflitos internos pela supremacia no Ocidente. O patriotismo soviético do Leste e os movimentos de libertação dos países do Hemisfério Sul sobrepunham-se à concorrência interna do Ocidente, produzindo novas linhas de conflito globais que, mais uma vez, prolongavam artificialmente a vida útil daquele "primado da política", que já havia sido esvaziado pela globalização econômica dos mercados. Os Estados planificados, autárquicos e subvencionados das economias nacionais secundárias (e retardatárias), não percebiam que lutavam, cada vez mais, com as 'armas do passado contra o inimigo invisível da internacionalização econômica mercantil.

Por mais terríveis e ditatoriais que tenham sido os regimes do Segundo e do Terceiro Mundos, certamente eles mantiveram o que se poderia chamar dignidade da auto-afirmação face à pressão ocidental pela abertura de mercado — e isso não apenas em nome do interesse de suas elites empedernidas e autoritárias. Era, pois, previsível que esses países seriam forçosamente massacrados no campo de batalha da concorrência global aberta, qualquer que fosse a ideologia legitimadora que de início os guiasse. A globalização microeletrônica conseguiu levar a cabo em menos de uma década o que o policiamento norte-americano não conseguira em mais de 30 anos de intervenções militares: a cortina de ferro veio abaixo sob a pressão de déficits não mais sustentáveis na balança comercial e nos fluxos de capital das economias retardatárias. Estas foram liberadas à livre concorrência, justamente para que através desta malograssem. Pois, sem atingir os níveis necessários de rentabilidade, essas economias caem fora das relações globalizadas de mercado.

O velho sonho da humanidade só pôde ser realizado de maneira negativa e catastrófica. O motivo para tanto pode ser encontrado na maneira extremamente unilateral com que o One World foi formado. O conceito iluminista do cosmopolitismo, em sua natureza furta-cor, ocultava o fato do cidadão dos sistemas mercantis ser essencialmente uma figura esquizofrênica, na medida em que se apresenta sempre em dupla feição: por um lado, como homo oeconomicus e, por outro, como homo politicus. O sujeito mercantil só pode sobreviver se possuir um alter-ego como sujeito-cidadão. O estado moderno deve não apenas reunir os sujeitos econômicos forjados pela forma-mercadoria e lhes garantir o estatuto de pessoa jurídica, mas precisa ainda engrená-los ativamente e pelo maior tempo possível nos processos de mercado, além de regular e distribuir o fluxo monetário. Em princípio, este está de acordo com o monetarismo de um Milton Friedman; Keynes, como é sabido, desejava mesmo reprimir o comércio mundial, pois acreditava que sua teoria só era exequível na moldura dos Estados nacionais.

Um Estado mundial não pode de fato existir. Cada Estado é, segundo sua própria natureza.' uma forma particular que deve estar delimitada por fronteiras externas. Hoje isso vale mais do que nunca, pois os Estados procuram exportar os custos operacionais do sistema produtor de mercadorias, tanto do ponto de vista social quanto ecológico, através da demarcação recíproca de suas fronteiras. É por isso que o próprio mundo ocidental dos estados nacionais não se diluiu em uma unidade global. Mais do que nunca, os grandes blocos econômicos (CCE, EUA, Japão) estabelecem barreiras recíprocas tanto entre si quanto frente aos países historicamente retardatários do Leste e do Sul, por meio de estruturas de subvenção e conflitos comerciais permanentes. Além disso, só existem redes sociais, infra-estrutura constituída e tarifas de importação na esfera dos estados nacionais, ou seja, só se pode falar em políticas distributivas para determinados fins, tais como serviço sanitário, justiça, ciência, educação, etc., num mundo constituído por estados.

Portanto, o que constitui o One World, o que propriamente foi internacionalizado e globalizado, foram única e exclusivamente as formas econômicas de circulação do dinheiro e do mercado. Na medida, contudo, em que o nível civilizatório da modernidade está associado ao Estado, esse padrão permaneceu limitado aos Estados nacionais, ou melhor, aos blocos económicos. Só o "burguês" (o sujeito econômico ou mercantil puro) se tornou um cidadão do mundo, ao passo que o "cidadão" (o sujeito estatal ou jurídico) se ateve à esfera nacional dos Estados e, por sua própria natureza, não pode se globalizar. A modernidade deve passar, assim, por uma prova de fogo: a forma-mercadoria, essencialmente ilimitada, e o Estado nacional, essencialmente particular, não podem mais viver em harmonia. A divisão globalizada de trabalho e a intercomunicação do sistema mercantil passam por cima das infra-estruturas básicas e das políticas distributivas, limitadas ao plano estatal; o sistema financeiro e creditício globalizado — como os mercados do eurodólar — extrapola os mecanismos de controle dos bancos centrais nacionais.

No entanto, o fato de que os custos operacionais do sistema, tanto sociais quanto ecológicos, só podem ser distribuídos e externalizados passando pela instância particularizada do Estado, faz com que o processo mercantil e monetário globalizado produza catástrofes nacionais para seus perdedores. Se na dinâmica interna de uma economia nacional podiam ser criadas estruturas compensatórias através de regulamentações estatais -por mais limitadas e insatisfatórias que fossem -a esfera mundial carece inteiramente de uma instância que cumpra este papel. Se existem "problemas sociais" a nível nacional é possível recorrer a organismos estatais com maior ou menor grau de desenvolvimento, mas se, no processo mercantil globalizado, um estado nacional como um todo se converte em "problema social", este perde o chão sob seus pés. Os mercados financeiros internacionais só fornecem solicitamente acesso ao capital sob condições de mercado, ou seja, estes não funcionam, por sua essência, como instâncias sociais distributivas a nível mundial, mas sim em função do montante a ser recebido em juros. Foi dessa maneira que se produziu a crise internacional de endividamento, que cresce de maneira acelerada e se alastra a cada dia que passa. Os estados nacionais e blocos econômicos, por sua parte, também só podem fornecer ajuda técnica e monetária a partir de seus próprios interesses. Não existe uma instância jurídica mundial; o tribunal internacional de justiça não é mais que uma farsa, além de ser menosprezado de maneira "soberana", justamente pela "superdemocracia" norte-americana.

Assim, o processo de globalização dos mercados e do capital não desfaz simplesmente as velhas economias nacionais, formando uma unidade maior, mas, pelo contrário, as asfixia em número cada vez maior. Se uma economia nacional vai parar sob as rodas do mercado mundial totalizado, destrói-se também, por sua vez, sua capacidade interna de regulamentação e distribuição. Com efeito, hoje, a quase totalidade dos estados incluindo aí os pretensos "vencedores" -foi atingida pela crise gerada pela fenda aberta entre mercados globalizados e regulamentação estatal. A diferença está apenas no grau com que esta se exterioriza.

Nas economias em franca desagregação do Hemisfério Sul e do Leste Europeu, os estados nacionais perderam a tal ponto sua capacidade regulamentadora e distributiva, que sua autoridade estatal sucumbe junto com sua capacidade de integração ao mercado. Porém, das ruínas deixadas pelo mercado mundial, brota o fungo venenoso de um nacionalismo terciário, que não tem mais parentesco algum nem com o nacionalismo europeu primário, do século XIX, nem com o nacionalismo libertador secundário do século XX. Trata-se muito mais de uma "onda de agitação étnica (ou parcialmente étnica)" (Eric J. Hobsbawn), que não diz mais respeito ao surgimento, mas antes ao desmoronamento das economias nacionais. Nessa medida, não se trata de modo algum de um nacionalismo em sentido estrito. Pois os Estados nacionais dos séculos XIX e XX, a despeito de todas as ideologias legitimadoras "etnicistas" e racistas, não se baseavam em parte alguma em lealdades étnicas. Pelo contrário, estas eram deixadas para trás. Mesmo no remoto e paradigmático processo de nacionalização europeu, os mais diversos componentes étnicos confluíram para a formação nacional. Fora da Europa, de uma maneira ou de outra, a maioria das nações eram formações sintéticas, compostas pelas mais distintas tradições, constituindo frequentemente nações pluriétnicas.

O nacionalismo terciário é, portanto, um pseudonacionalismo étnico que nada na contracorrente de seus predecessores; ele é um produto do desespero que assola a população das economias em desagregação do mercado mundial totalizado. A globalização economicista do One World e o nacionalismo terciário mantêm entre si uma relação de implicação recíproca. Onde são rompidas as estruturas de regulamentação estatal e nada mais pode ser distribuído, rompe-se também a estrutura de lealdade. A Eslovênia e a Croácia pensam que podem voltar a ser competitivas com mais facilidade, ou mesmo ser aceitas pela Comunidade Européia, se desfazendo das regiões pobres da Sérvia e da Macedônia. Esperanças igualmente filantrópicas são nutridas pelas repúblicas bálticas, que desejam se desligar da central de distribuição soviética, e pelos azerbaijanos, que preferem competir por conta própria no mercado mundial, vendendo seu petróleo ao Ocidente a preço de banana, ao invés de, por exemplo, fornecer aquecimento aos uzbequistaneses. É claro que, inversamente, o desatrelamento face às estruturas distributivas semeia a discórdia nas regiões de pobreza relativa ou absoluta, que, por sua vez, abandonam inteiramente a velha lealdade e se convertem em áreas potenciais de violência.

A guerra civil já se encontra, portanto, pré-programada e, na conturbada situação atual, precisa lançar mão de um construto qualquer, capaz de fundar um caráter comunitário delimitador e excludente. Na falta de outros marcos referenciais, foram mobilizadas, assim, em muitas regiões, ao lado do fundamentalismo religioso do mundo islâmico, lealdades étnicas que se supunham há muito superadas, como reação agressiva à desintegração do nível civilizatório. Desenterra-se novamente o conjunto de injustiças e conflitos, reais ou imaginários, desde Moisés. O Ocidente não tem como zombar desse irracionalismo inculto. Não só porque este foi gerado justamente pelo desencadeamento do sistema global de mercado, mas também porque o próprio Ocidente não está livre do mesmo.

Também na Itália, a "Liga Lombarda" quer se ver livre do Sul empobrecido e subdesenvolvido. O mezzogiorno ameaça extravasar as fronteiras italianas e se tornar um conceito paradigmático para as novas zonas de pobreza em todos os países do próprio Ocidente. Na Alemanha, arde em brasa o conflito entre "Ossis" e "Wessis"(2); nos EUA, é visível uma nova linha de força que ultrapassa o antigo conflito racial entre negros e brancos, contrapondo agora anglo-saxões e latinos, enquanto, no Canadá, cresce o separatismo francófono. Não falta muito para que até mesmo os suíços caiam uns sobre os outros, se declarando, reciprocamente, alemães, italianos, ciganos ou extraterrestres. Em todas as partes do globo, o novo nacionalismo terciário remobiliza oposições étnicas ou nacionais que, cunhadas em menor ou maior grau em épocas de nacionalização passadas, agora se avolumam no One World do mercado total. E, por toda parte, a força motriz é a reduzida ou exaurida capacidade distributiva do Estado.

Na verdade, a nacionalização étnica terciária não passa de um fenômeno de decadência desprovido de qualquer perspectiva histórica. Em oposição flagrante aos antigos movimentos nacionalistas, esta não possui qualquer estrutura econômica que possa sustentá-la e levá-la à frente. Também não podem mais ser levados a cabo de maneira consequente os processos malogrados de libertação nacional secundária ainda existentes. Os palestinos, por exemplo, não têm a mínima chance de formar uma economia nacional autônoma e competitiva. Um Estado palestino não poderia ser mais que um Estado de opereta, alimentado por recursos externos. O mesmo vale também, a despeito da forte legitimação pós-holocausto, para o Estado nacional israelense, que ainda não é sequer capaz de produzir a metade de seu PIB. E, se nem mesmo os eslovenos conseguem o montante necessário em divisas para cobrir sua planejada moeda própria -o "tolar" -, então também não o lograrão os croatas, os lituanos, os armênios e os curdos, e muito menos os sardos ou bascos, para não falar nos tchetchênios e gagauzios. As lealdades étnicas do desespero são em seu conjunto insustentáveis. Elas não são capazes nem de substituir o velho Estado nacional em frangalhos, nem de produzir novas estruturas sociais reprodutivas. Essas lealdades apenas se constituem em meio a por meio de guerras civis abertas ou latentes, e subsistem apenas enquanto estas não tenham se exaurido. Nessa medida, o nacionalismo terciário é apenas uma forma transitória de aniquilamento.

Não tem sentido querer deter a barbárie étnica e pseudoreligiosa provocada pelo caractere economicista do One World, moldado pela forma-mercadoria, através de "debt-management" e ações policialescas de legitimidade duvidosa como se fez até agora -tendo em vista exclusivamente os interesses estratégicos ocidentais. Se a ONU deve ser legitimada como instância mundial, então os próprios estados ocidentais e blocos econômicos devem ser os primeiros a lhe conferir "soberania". Ademais, as ações policiais dos capacetes azuis deveriam se voltar em primeiro lugar contra os obscuros clãs de latifundiários na América Latina, na Ásia e na Arábia, a fim de afastar, ao menos, a miséria mais primária através da desapropriação de suas terras e de reformas agrárias há muito prementes. Uma ONU, assim legitimada, deveria então passar a organizar transferências internacionais de recursos que não estivessem atreladas aos princípios de concorrência e rentabilidade da lógica mercantil. Se a generalização do grau ocidental de industrialização e do padrão de produtividade poderia significar o imediato colapso ecológico da Terra, e se, no entanto, ficam aquém de qualquer reprodução viável os países que não conseguem alcançar esse padrão, então a "troca de equivalentes" do sistema produtor de mercadorias conduz, ela mesma, a uma situação absurda. A ONU, enquanto instância mundial efetiva, deveria zelar pela manutenção de uma produção de gêneros vitais em todos os países e se esforçar para que nas relações internacionais cada país só precisasse fornecer o que pudesse fornecer a baixo custo, sem levar em consideração o padrão fixado pelo sistema de mercado. Não teríamos, assim, como consequência, um "Estado mundial", o qual, segundo a lógica mercantil global, precisaria de uma segunda Terra e uma segunda humanidade para se realizar, a fim de delimitar e externalizar seus custos de produção. A Comunidade Européia, enquanto burocracia supra-estatal, também não faz mais que dar continuidade ao mesmo processo destrutivo, dessa vez em esfera continental, em nome dos mesmos mandamentos de rentabilidade. Seria necessário, sobretudo, um rompimento social da própria lógica mercantil a nível mundial.

Essa proposta é talvez menos utópica do que possa parecer à primeira vista. Se os estados que competem no mercado mundial(3) e os blocos econômicos não querem legitimar a ONU de maneira efetiva, então mais cedo ou mais tarde sua pretensa "soberania" lhes será tomada de maneira muito mais dolorosa pelos mercados financeiros autonomizados. As catástrofes ecológicas, que atravessam fronteiras, exigem, ademais, não apenas medidas "não rentáveis", mas supranacionais. Segundo a opinião unânime de especialistas, faltará por exemplo, num futuro bem próximo, aos combatentes fundamentalistas de ambos os campos do conflito árabe-israelense, algo bem fundamental: a água. E se, a despeito de sua insolvência, os búlgaros não tiverem garantido seu fornecimento de energia no próximo inverno, eles colocarão de novo para funcionar suas defeituosas usinas atômicas que, mais dia ou menos dia, voarão pelos ares de toda Europa.

De qualquer modo, a ONU, enquanto instância mundial efetiva (o que hoje não é nem pode ser, tendo em vista a contínua e obstinada ficção de uma "soberania" mantida no âmbito dos estados nacionais) pressuporia uma mudança fundamental nas relações sociais de lealdade. Seria também necessário que essa mudança viesse "de baixo" e se situasse ao alcance da ação dos indivíduos. Um movimento social que lutasse por uma ONU modificada, em favor da renúncia à soberania por parte dos estados que competem no mercado mundial, romperia também com a falsa alternativa entre lealdade nacional e agitação étnica no interior da sociedade. Já existe, em âmbito regional, um grande número de alternativas, de movimentos de resistência e desobediência civil contra as desoladoras tentativas de regulamentação e os projetos faraônicos do mercado mundial constituído como estado(4). Os protestos contra a paralisação e sucateamento de regiões inteiras, contra o assolamento social e a esterilização cultural, contra abusivos gastos militares, grandes aeroportos, usinas atômicas e, monstruosas estações de tratamento nuclear, contra a tara automotiva, o trânsito intensivo e a destruição da paisagem, constituem um poderoso arsenal social. E mesmo nas economias em desagregação pode ser sentida uma considerável resistência, não apenas ao estado de sítio da administração estatal, mas igualmente ao etnonacionalismo belicista.

Todavia, para que essas iniciativas regionais possam efetivamente mobilizar seu potencial transformador, é preciso que elas superem à obtusidade expressa pelo princípio de São Floriano ("Poupe minha morada, incendeie outras"), tomando consciência de sua própria dimensão social a nível mundial. Só um regionalismo aberto para o mundo, emancipatório, multicultural e sócio-ecológico (e hoje quase todas as regiões do mundo estão estruturadas de maneira multiétnica e multicultural) poderia fundar uma nova reciprocidade entre lealdade global e regional, capaz de assumir uma posição de desconfiança frente às tradicionais instituições européias. A crise global do sistema de troca de mercadorias não pode mais ser resolvida através da tradicional transformação democrática de interesses mercantis nas formas limitadas do mundo de estados parlamentares ocidental.


Notas de rodapé:

(1) Nationale Weltokonomien, em alemão. Literalmente: economias mundiais nacionais (N. T.). (retornar ao texto)

(2) Respectivamente, habitantes da ex-RDA ("Ost-Deutschland") e habitantes da RFA, pré-unificação ("West-Deutschland") (N. T.). (retornar ao texto)

(3) Weltmarktstaaten, em alemão. Literalmente: estados do mercado mundial (N. T.). (retornar ao texto)

(4) Weltmarktstaat, em alemão. Literalmente: estado do mercado mundial (N. T.). (retornar ao texto)

Inclusão: 28/12/2019