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Nunca houve tanto fim. Com o colapso do socialismo real, toda uma época desaparece e vira história. A constelação familiar da sociedade mundial da época pós-guerra está se dissolvendo diante de nossos olhos com rapidez incrível. Acabou-se toda uma era; mas levanta-se a premente pergunta: que era foi essa? Da perspectiva do conflito, agora desprivilegiado, entre o Oeste e o Leste, pode parecer, à primeira vista, que venceu o Oeste, que seu sistema confirmou-se como o melhor.
Entendendo-se ao pé da letra o conceito de conflito de sistemas, pode-se, de fato, observar uma capitulação social e económica, teórica e prática, de enorme extensão, tal como ninguém a teria imaginado (e ainda por cima, em tão pouco tempo). "Um fantasma que anda de bengala" (Sueddeutsche Zeitung). Não apenas na própria União Soviética passou-se a "condenar a ideia de uma ditadura do proletariado", a propagar a propriedade individual e a anunciar a mudança para a economia de mercado baseada na concorrência. Junto com o colosso central, também suas zonas de dependência e seus porta-estandartes ideais, as sociedades periféricas, estão se rendendo. A RDA terminou com um suicídio e na Hungria "o capitalista passa a ser uma figura positiva", O PC italiano, que já se tornou social-democrata há muito tempo, afirma: "Martelo e foice vão para o ferro-velho", enquanto a classe intelectual da Itália, com sua despedida do marxismo, comete "parricídio por falta de interesse", A Líbia de Kadhafi "tenta o abandono cuidadoso do socialismo restrito da revolução"; Mengistu, da Etiópia, "renuncia ao marxismo", Moçambique e Angola "viram, empobrecidos, as costas ao marxismo" e o governo em Hanói "aposta em John Maynard Keynes".
Essa selecção de citações da imprensa desde 1989 poderia prosseguir infinitamente. Não é de admirar que alguns ideólogos do aparente vencedor histórico fiquem um tanto arrogantes. No verão de 1989, o americano Francis Fukuyama, vice-diretor da equipe de planejamento do Ministério do Exterior dos Estados Unidos, proclamou um tanto precipitado, num artigo para o magazine trimestral National lnterest, "o fim da história", sentença que se espalhou tão rapidamente quanto um raio e desde então é citada com muita frequência. Como se isso não bastasse, o autor fundamenta sua tese na ideia de Hegel de uma "forma definitiva, racional, da sociedade e do Estado", que ele acredita tenha sido alcançada justamente na forma um pouco estranha do american way of life. E um colunista do lnternational Herald Tribune, com o belo nome de Charles Krauthammer, acredita poder também responder nesse sentido, talvez um pouco constrangedor, "a pergunta de Platão sobre a melhor forma de governo".
Sem dúvida, é difícil negar a evidência de uma vitória relativa do mundo ocidental, quando continuamos aplicando os critérios do conflito de sistemas precedente e quando uma metacrítica parece estar fora de cogitação. Mas precisamente isso é duvidoso. Pois será mesmo que o Ocidente agiu com plena consciência e autoconsciência naquele terreno em que agora presume pisar como vencedor? Se a esquerda chorosa do Ocidente se limita a comentar de forma negativa os gritos de triunfo oficiais, estranhamente abafados, dos partidários da economia de mercado, deplorando as absurdas gerontocracias de uma economia estatal potemkiana como vítimas "da prepotência e agressão permanente do imperialismo",1 ela poderia com isso ficar tão distante da realidade quanto aqueles heróis da guerra fria, também já decrépitos e caducos, que de repente acreditam sentir em seus ossos uma segunda primavera, sem saber o que fazer com a noiva que lhes foi dada de presente. O aspecto fantasmagórico das formas em que reage a ideologia tanto de proveniência da esquerda quanto da direita ao colapso do Leste indica não apenas que essas formas fazem ainda, elas mesmas, parte da era em declínio, mas também, através de um véu, a estranha ausência de sujeitos nos processos sociais básicos.
Os protagonistas da constelação até então existente da sociedade mundial, ao desaparecer esta, revelam-se, não apenas em ambas as margens do rio Elba, como meras vítimas de um desenvolvimento histórico evidente mente cego e objetivado que se deu atrás de suas costas. Pois o Ocidente foi tão surpreendido pelo colapso do sistema socialista real, seu inimigo íntimo, quanto os representantes gerontocráticos deste. É um estranho vencedor aquele que tanto se surpreende com sua superioridade e os resultados de seu triunfo. Mas se não foram as actividades das classes políticas ocidentais no conflito de sistemas que conduziram ao colapso do socialismo real, mas sim a falha dramática de seus mecanismos de funcionamento internos, então a falta total de conhecimento dessa potência de crise e catástrofe, por parte das elites de ambas as esferas político-económicas que dispõem de todas as informações, deixa relampejar a verdade de que, tanto aqui quanto ali, os que aparentemente governam devem estar sofrendo da mesma cegueira. Mas se ambas as partes combatentes são vencidas por processos sociais que quase têm o carácter de fenómenos naturais, pode-se supor que os sistemas em conflito tenham traços fundamentais em comum. O próprio solo, que serviu de campo de batalha, pode ter perdido sua firmeza. E já começam a misturar-se, na imprensa burguesa, vozes de advertência e dúvida quanto aos gritos de triunfo um tanto ingénuos dos ideólogos imediatistas: "Será mesmo esta a sociedade perfeita que para todos os tempos triunfará sobre o socialismo? (Graefin Doenhoff no jornal Die Zeit, 22.9.1989). A sociedade do sistema ocidental não tem realmente essa aparência. Mas alguns maus pressentimentos daqueles que, não obstante, consideram esse sistema como o seu e o defendem, poderiam ser interpretados como triunfo apenas moderado, que esconde atrás da autocrítica sua profunda satisfação.
A questão é, portanto, se não foi na verdade deflagrada — independentemente da auto-restrição, transbordante de sabedoria, da consciência ocidental da vitória, que somente quer evitar provocar com sua soberba a ira dos deuses -, com a crise particular do sistema perdedor, uma crise global que também ameaça o pretenso vencedor e indica a existência de fundamentos comuns dos sistemas, que poderiam servir de base para uma metacrítica. Sem dúvida, a ideologia burguesa moderna produz, há muito tempo, elementos de uma metacrítica desse tipo, mas sem poder alcançar, com estes, os fundamentos sociais que permanecem obscuros. Desde os anos 50, teorias ocidentais de convergência têm prognosticado uma assimilação, seja por bem ou por mal, das formações sociais que apenas superficialmente excluem uma à outra.
Por um lado, explicou-se esse parentesco interno com as condições prévias comuns da modernidade, na área da técnica e das ciências naturais; assim, sobretudo por parte de todos os representantes do pessimismo cultural, que imputam todos os fenómenos de crise do século XX à base constituída pela sociedade industrial como tal (veja, por exemplo, Freyer, 1955), querendo reconhecer uma força de superação, se é que a reconhecem, somente na referência insuprível a um potencial de alienação ontológico.2
Por outro lado, a ideia de convergência alimentou-se daquelas teorias económicas fundamentadas em Keynes que sustentam a necessidade inevitável tanto de mecanismos de mercado como de regulamentação estatal. Tal como o Leste deveria instituir o mercado em seus direitos, o Oeste deveria fazê-lo com o Estado. Mas essa ideia limita-se a pôr em movimento aquele dualismo ecléctico que marca em muitos aspectos a moderna consciência burguesa: mercado e Estado aparecem como matrimonio conf1itante entre realidade e conceito, tão indissolúvel quanto o entre indivíduo e sociedade ou produção e circulação, economia e política etc. Também aqui, de maneira conciliadora, é interpretado um elemento especificamente histórico das sociedades modernas, com pessimismo moderado, em um sentido ontológico.
No entanto, o que se deu não foi nem uma conciliação assimiladora de mercado e Estado nem um processo de transformação ontológico das sociedades industriais marcadas pelas ciências naturais, mas sim um colapso histórico. Se este não significa o simples triunfo do sistema da economia de mercado ocidental, como formação apenas externamente oposta ao socialismo real, que faleceu sem cerimonias, mas sim, indica a existência de uma base comum ameaçada e que se torna obsoleta, esta deve ser procurada tanto além do paradigma da sociedade industrial como além da relação de mercado e Estado. Mercado e Estado, bem como os agentes da tecnologia e das ciências naturais, uma vez postos em movimento, seguem uma lógica básica social mais profunda; a identificação desta como sociedade de trabalho não denomina, de modo algum, um estado fundamental ontológico da humanidade.
Se a desorientação daqueles mais ponderados entre os "vencedores" é algo mais do que a autocrítica um tanto hipócrita de um, apesar de tudo, convencido number one da história, se uma crise global continua objectivamente amadurecendo, dando razão aos maus pressentimentos dos advertentes e cépticos num sentido mais sério que talvez o intencionado, essa crise deve ser procurada naquele nível em que se encontram todos os sistemas sociais até agora conhecidos da modernidade. O termo, há algum tempo em circulação, da crise da sociedade de trabalho, mesmo que apareça por enquanto apenas como problemática particular e não se refira às formas sociais básicas, pode ter nascido do pressentimento dessa metacrise, que está amadurecendo.
Falar de uma crise da sociedade de trabalho tem que parecer mais do que estranho, tendo em vista que não apenas a ideologia burguesa, como também o marxismo do movimento operário, com uma convicção muito maior, declara sempre aquele "trabalho" a essência supra-histórica do homem como tal, fazendo desse suposto fato fundamental até a alavanca de sua crítica à sociedade burguesa. A controvérsia social e histórica que até agora dominou a modernidade, compreendida pelo marxismo como luta de classes, apoiou-se em um fundamento comum, a sociedade de trabalho, fundamento que deixa agora transparecer sua limitação e, caído em crise, aguarda sua dissolução.
Pois o trabalho como tal, considerado dessa forma seca e abstracta, não é nada supra-histórico. Em sua forma especificamente histórica o trabalho nada mais é do que a exploração económica abstracta, em empresas, da força de trabalho humana e das matérias-primas. Nesse sentido só faz parte da modernidade, e como tal foi aceito como pressuposto não questionado por ambos os sistemas conflitantes do pós-guerra, sem distinção. Mas o trabalho, nessa estranha forma abstracta, pode ser definido também como actividade que, de maneira igualmente estranha, traz sua finalidade em si mesma. É precisamente esse carácter, de finalidade inerente, que igualmente caracteriza o sistema burguês do Ocidente e o movimento operário moderno: revela-se no "ponto de vista do trabalhador" e no ethos de trabalho abstracto aquela idolatria fetichista do maior e mais intenso dispêndio possível de força de trabalho, além das necessidades concretas subjectivamente perceptíveis.
Em nenhum outro lugar, esse ethos protestante do homem abstracto de trabalho dentro de uma sociedade transformada numa máquina de trabalho, declarado por Max Weber como característica constitutiva ideológica e histórica do capitalismo, foi posto em prática com mais fervor e rigor do que no movimento operário e nas formações sociais do socialismo real.
Essa situação em nada se modifica pelo fato de que a motivação da subordinação do homem à máquina de trabalho transferiu-se dos indivíduos ao Estado e a seus meta-objetivos económicos; a submissão à abstracção do trabalho manifesta-se nela até de forma mais óbvia e rígida, por não estar disfarçada nem pela mera ilusão de uma finalidade individual. Ainda mais, aplica-se aqui, mutatis mutandis, o dito de Max Weber:
Mas é sobretudo o summum bonum dessa "ética": a aquisição de dinheiro e mais dinheiro, com negação rigorosa de todo prazer despreocupado, tão completamente despida de todos os aspectos eudemonísticos ou até hedonísticos, tão puramente concebida como actividade que traz em si a própria finalidade, que, frente à "felicidade" ou ao "proveito" do indivíduo, parece ser algo totalmente transcendente e absolutamente irracional. O homem está referido à aquisição como finalidade de sua vida; e a aquisição deixou de estar referida ao homem, como meio para a finalidade de satisfazer-lhe as necessidades materiais da vida. [Weber, 1984 (1920), p. 44]
Mas essa inversão no contexto do "sentido" subjectivo, forma pela qual Max Weber descreve uma inversão, que evidentemente não é claramente percebida por ele, no processo de reprodução da sociedade,3 pôde brotar historicamente apenas no clima religioso ideológico do protestantismo; as novas virtudes (burguesas) nele criadas, porém, não precisam limitar-se necessariamente a esse específico lugar histórico e às vestimentas ideais ali encontradas:
Tanto a capacidade de concentração do pensamento quanto a atitude absolutamente central de sentir-se "obrigado frente ao trabalho" podem ser encontradas aqui, com frequência extraordinária, em união com um pensamento económico rigoroso, que calcula com o ganho e seu valor, e com um autodomínio e uma sobriedade que aumentam extraordinariamente o rendimento. Para aquela concepção do trabalho como actividade que traz em si sua própria finalidade, como "profissão", tal como a exige o capitalismo, este fundamento é o mais propício, sendo também maior a chance, "em consequência" da educação religiosa, de superar o desleixo tradicionalista. [...] A repugnância e a perseguição que, por exemplo, os trabalhadores metodistas do século XVIII encontravam por parte de seus colegas de trabalho, não se referiam [...], de modo algum, apenas, ou de maneira predominante, a suas excentricidades religiosas [...], mas sim, a sua específica "disposição ao trabalho", como se diria hoje em dia. [Weber, l.c., p. 53]
O socialismo do movimento operário nunca esteve muito distante desta criação fetichista da motivação do antigo protestantismo. Enquanto este colocou o trabalho abstracto a serviço da religião, aquele transformou o trabalho abstracto numa religião, da riqueza nacional endeusada, transcendendo dos fins vinculados às necessidades humanas; precisamente para a Rússia, à beira da modernidade burguesa, o socialismo era um substituto mais ou menos adequado dos elementos constitutivos religiosos do modo de produção capitalista na Europa ocidental, desde a Reforma.
Se Alexej Stachanov, aquele homem a respeito do qual se afirma ter extraído, na noite de 31 de agosto de 1935, na região do rio Donez, 102 toneladas de carvão num turno de cinco horas e 45 minutos, tornou-se o modelo soviético e um mito do trabalho, ele personifica com isso precisamente o princípio capitalista de um dispêndio abstracto de força de trabalho, em cuja esfera de influência existe o trabalho como actividade que, de forma tautológica, traz sua finalidade em si mesma. Só que o carácter naturalista da "ideologia de toneladas" expressa esse princípio em quantidades abstractas de matérias e produtos que são privados de suas qualidades sensíveis. Portanto, é lúcida a observação de Thomas Mann, que em junho de 1919, ao reflectir sobre a composição de seu romance A montanha mágica, escreve:
Fiquei pensando, a esse respeito, que a diferença ética entre o capitalismo e o socialismo é insignificante, porque ambos consideram o trabalho o princípio supremo, o absoluto. Não é justo fingir que o capitalismo seja uma forma de vida parasitária e improdutiva. Ao contrário, o mundo burguês não tem conhecido nenhum conceito e valor mais elevado do que o do trabalho, e este princípio ético, que torna-se oficial somente no socialismo, vem a ser princípio económico e critério político e humano, diante do qual somos aprovados ou não, e isto de maneira que ninguém pergunta por que o trabalho possuiria esta dignidade e Santidade absoluta. Ou será que o socialismo traz um novo sentido e uma nova finalidade ao trabalho? Pelo que eu saiba não. O trabalho é uma fé, é algo absoluto? Não é. O socialismo não se encontra num nível intelectual, moral, humano e religioso mais alto do que a ideologia burguesa capitalista, sendo apenas um prolongamento desta. É tão ateu quanto ela, pois o trabalho não é divino. [Mann, 1979, p. 268]
Essa citação sobre o trabalho abstracto não perde seu valor por ser formulado na linguagem do artista e não do crítico da economia política. É uma bofetada, nascida de pressentimentos, no rosto daquela divinização do trabalho que de fato fez do socialismo do movimento operário um simples "prolongamento" do princípio capitalista, que não se propôs à supressão deste e, na realidade social da União Soviética, fez dele até o executor histórico desse princípio capitalista na própria carne.
Sem dúvida, o princípio protestante do esforço abstracto e desvinculado de conteúdos sensíveis não é apenas um princípio ético, uma vez que sua ética específica provém daquele conjunto de formas sociais em que o trabalho se transforma numa actividade que traz em si sua própria finalidade, e a sociedade, numa máquina destinada ao dispêndio de força de trabalho. Mas é precisamente essa forma social que escapa a Max Weber, e não só a ele, por ser adoptada como axioma. E é somente a partir dessa forma, cuja determinação parece ser tão difícil, que o trabalho da modernidade pode ser reconhecido como fenómeno especificamente histórico, que se encontra além dos estados fundamentais ontológicos.
Essa forma específica do trabalho e o conceito de trabalho correspondente são de fato incompatíveis com todas as formações sociais anteriores da história humana, porque nestas o trabalho, seu produto e a apropriação deste ainda aparecem essencialmente em sua forma concreta, directa, sensível: como "valores de uso", na linguagem da economia política. Ainda que o trabalho, como labor no sentido antigo, como estafa e moléstia, ocupasse completamente o horizonte da vida da maioria das pessoas, isso acontecia devido ao grau de desenvolvimento relativamente baixo das forças produtivas, no "metabolismo entre os homens e a natureza" (Marx); o trabalho era, portanto, uma necessidade imposta pela natureza, porém precisamente por isso nenhum dispêndio abstracto de força de trabalho e nenhuma actividade social que traz em si sua própria finalidade.
No sistema produtor de mercadorias da modernidade, ao contrário, a lógica da necessidade foi invertida: à medida que as forças produtivas, mediante a industrialização e penetração das ciências, rompem a coacção e a prisão da "primeira natureza ", passam a ser presas numa coacção social secundária, inconscientemente produzida. A forma de reprodução social da mercadoria toma-se uma "segunda natureza ", cuja necessidade apresenta-se aos indivíduos igualmente insensível e exigente como a da "primeira natureza", apesar de sua origem puramente social.
A sociedade de trabalho como conceito ontológico seria uma tautologia, pois, na história até agora transcorrida, a vida social, quaisquer que sejam suas formas modificadas, apenas podia ser uma vida que incluísse o trabalho. Somente as ideias ingénuas do paraíso e o conto do país das maravilhas fantasiavam uma sociedade sem trabalho. Mas, desde a Renascença, a conexão natural entre estafa e riqueza de produtos veio a ser rompida pelo dinheiro.
O fato de que o trabalho vivo, ao produzir mercadorias, se transforma em trabalho morto, "representado" (expressão de Marx) na forma encarnada do dinheiro, parece óbvio à consciência moderna. De fato, o dinheiro é uma categoria real que atravessa muitas formações históricas, apesar de que a categoria económica básica do valor, que se esconde atrás dele, foi somente sistematicamente reflectida, tipicamente, pelas teorias económicas modernas. Como mercadorias, os produtos são coisas de valor abstracto, privadas de suas qualidades sensíveis, manifestando-se somente nessa forma estranha a mediação da sociedade. No contexto da crítica da economia política de Marx, esse valor económico determina-se de modo puramente negativo, como forma objectivada, fetichista, desprendida de todo conteúdo concreto sensível, abstracta e morta, em que se apresenta nos produtos um trabalho social que pertence ao passado, fenómeno que se desenvolve, num movimento imanente às relações de troca, até alcançar a forma de dinheiro, a "coisa abstracta". Esse valor é a qualidade distintiva de uma sociedade que não é dona de si mesma.4
Em oposição total a essa concepção, a teoria burguesa, desde seus clássicos, compreendeu essa forma como fenómeno existente a priori, desistindo por fim da tentativa de explicá-lo. Precisamente sua existência óbvia parecia ser a prova de seu carácter ontológico, que nem precisava mais de explicações teóricas. Mas esse ponto de vista esconde a inversão em que a "primeira" natureza é substituída pela "segunda", inversão que é o fundamento da constituição de todas as sociedades da modernidade. E precisamente nessa inversão origina-se o carácter do trabalho moderno, de actividade que traz em si sua própria finalidade.
A mercadoria pré-moderna distingue-se essencialmente da moderna. A primeira não podia constituir nenhuma forma de reprodução social, permanecendo sempre como uma mera "forma marginal" (Marx) nas relações de produção e apropriação baseadas numa economia não monetária; assim sendo, a sociedade como um todo não era nenhum sistema produtor de mercadorias. O trabalho que produzia mercadorias (por exemplo, o dos artesãos urbanos) permanecia dentro do horizonte social do valor de uso: era uma produção destinada à troca de produtos concretos. Nesse sentido, pode-se dizer que ela "extingue-se no valor de uso" (Marx), apesar de passar pelas abstracções do processo de troca no mercado.
Mas justamente este não é, de maneira alguma, o processo de produção da mercadoria moderna. O valor, na forma da mais-valia, que nunca antes constituíra uma relação de produção, não aparece aqui simplesmente como forma socialmente mediada dos valores de uso concretos; porém, ao contrário, passa a referir-se de forma tautológica a si mesmo: o fetichismo tornou-se auto-reflexivo, estabelecendo assim o trabalho abstracto como máquina que traz em si sua própria finalidade. O processo de produção deixou de "extinguir-se" no valor de uso, apresentando-se como automovimento do dinheiro, como transformação de certa quantidade de trabalho morto e abstracto em outra quantidade maior de trabalho morto e abstracto (mais-valia) e, com isso, como movimento de reprodução e auto-reflexão tautológico do dinheiro, que somente nessa forma se torna capital, e, portanto, um fenómeno moderno. Nessa forma de existência do dinheiro, como capital, o dispêndio de trabalho desprende-se do contexto da criação de valores de uso sensíveis e transforma-se naquela actividade abstracta que traz em si sua própria finalidade. O trabalho vivo aparece apenas como expressão do trabalho morto que tornou-se independente, e o produto concreto, sensível, como expressão da abstracção inerente ao dinheiro.
Os recursos humanos e materiais (força de trabalho, instrumentos, máquinas, matérias-primas e materiais) deixam de ser simples componentes do "metabolismo entre os homens e a natureza ", que serve para a satisfação das necessidades. Passaram a servir apenas para a auto-reflexão tautológica do dinheiro como "mais dinheiro". Necessidades sensíveis somente podem ser satisfeitas, portanto, pela produção não sensível de mais-valia, que se impõe cegamente como produção abstracta, em empreendimentos industriais, de lucro. A troca no mercado deixa de servir para a mediação social de bens de uso, servindo, ao contrário, para a realização de lucro, isto é, para a transformação de trabalho morto em dinheiro, e a mediação dos bens de uso passou a constituir somente um fenómeno secundário desse processo essencial que se realiza na esfera monetária.
Todo o processo vital social e individual é assim submetido à banalidade terrível do dinheiro e de seu automovimento tautológico, cuja superfície apresenta-se, em diversas variações históricas, como a famosa economia de mercado moderna. Atrás da ligeira subjectividade da troca no mercado esconde-se o pesado homem trabalhador, que apenas em sua forma mais grosseira aparece como um Stachanov; mesmo atrás da fachada mais brilhante da embalagem colorida dos valores de uso oculta-se a qualidade de capital fetichista dos produtos que faz deles "coágulos de trabalho" fantasmagóricos (Marx). Sua forma de existência sensível torna-se algo secundário, e um mal necessário para o processo do trabalho abstracto e do dinheiro.
A submissão do conteúdo sensível do trabalho e das necessidades à auto-reflexão cega do dinheiro é de carácter monstruoso. Essa monstruosidade manifesta-se, durante a evolução da modernidade, em escala historicamente crescente, nas crises em que enormes quantidades de recursos humanos e materiais ficaram paralisadas por não poderem mais cumprir, por motivos incompreensíveis, aquela finalidade absoluta de transformar trabalho vivo em dinheiro.
Por outro lado, foi precisamente esse desenvolvimento que, num processo contraditório em si mesmo, fez nascer as forças produtivas modernas e criou uma ampliação enorme das necessidades e possibilidades dos indivíduos. Os efeitos colaterais não intencionais do moderno sistema produtor de mercadorias ocultaram, durante muito tempo, em sua fase de ascensão histórica, o conteúdo negativo com elementos positivos. Enquanto cumpria essa "missão civilizatória" (Marx), esse sistema funcionava perfeitamente, vencendo todas as relações de reprodução estamentais, estáticas, pré-modernas. As crises eram apenas interrupções em seu processo de ascensão e pareciam, a princípio, superáveis.
Também o moderno movimento operário faz parte dessa constelação do sistema produtor de mercadorias, em sua fase de enorme ascensão, bem como o marxismo, como reflexo teórico correspondente e, por fim, a génese da versão real-socialista da moderna sociedade de trabalho, cujo colapso está acontecendo diante de nossos olhos. Por estar preso dentro do horizonte histórico da ascensão do trabalho abstracto, não podia ser superado, nem ideal nem materialmente, o carácter tautológico desse trabalho, de actividade que traz em si sua própria finalidade.
O "mercado planejado" do Leste, como já revela essa designação, não eliminou as categorias do mercado. Consequentemente aparecem no socialismo real todas as categorias fundamentais do capitalismo: salário, preço e lucro (ganho da empresa). E quanto ao princípio básico do trabalho abstracto, este não se limitou a adoptá-lo, como também levou-o ao extremo.
Mas no que consistia então aquela diferença entre os sistemas que agora começa a dissolver-se? Desde o princípio, o socialismo real não podia suprimir a sociedade capitalista da modernidade. Faz parte, ele próprio, do sistema produtor de mercadorias burguês e não substitui essa forma social histórica por outra, mas sim representa somente outra fase de desenvolvimento dentro da mesma formação de época. Aquilo que prometia uma sociedade futura, pós-burguesa, revela-se como regime transitório pré-burguês, estagnado, a caminho da modernidade, como dinossauro fossilizado originado no passado heróico do capital.