Os Khrushchevistas

Enver Hoxha


1. Conflitos Entre a Direção Soviética


Stálin morre. Divisão de pastas entre a alta direção soviética no dia seguinte. Khrushchev ascende ao poder. Desilusão no primeiro encontro com os “novos” dirigentes soviéticos em junho de 1953. Críticas mal-intencionadas de Mikoyan e Bulganin. O fim do curto reinado de Beria. O encontro com Khrushchev em junho de 1954: “Vocês nos ajudaram a desmascarar Beria”. A lição “teórica” de Khrushchev acerca dos papéis do Primeiro-Secretário do partido e do Primeiro-Ministro. A máfia revisionista tece sua teia de aranha dentro e fora da União Soviética.

A forma que a morte de Stálin foi anunciada e a maneira que o seu funeral foi organizado deu a nós, os comunistas e o povo albanês, e a outros a impressão de que muitos membros do Presidium do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética estavam aguardando impacientemente pela morte dele.

No dia seguinte à morte de Stálin, 6 de março de 1953, o Comitê Central do partido, o Conselho de Ministros e o Presidium do Soviete Supremo da URSS foram convocados para uma reunião conjunta urgente. Nas ocasiões de grandes perdas, como a morte de Stálin, essas reuniões urgentes são indispensáveis. No entanto, as numerosas e importantes mudanças anunciadas na imprensa do dia seguinte demonstraram que essa reunião urgente havia sido convocada com o único propósito de... dividir cargos! Stálin acabara de morrer, seu corpo ainda não havia sido levado ao local onde a homenagem final seria prestada, o programa de organização das homenagens e da cerimônia funeral ainda não havia sido elaborado, os comunistas e o povo soviético choravam por sua grande perda — enquanto isso a alta direção soviética encontrava tempo para dividir as pastas! Malenkov tornou-se Primeiro-Ministro, Beria tornou-se Vice-Primeiro-Ministro e Ministro do Interior, e Bulganin, Kaganovish, Mikoyan e Molotov dividiram os outros cargos. Grandes mudanças foram feitas em todos os órgãos superiores do partido e do Estado naquele dia. O Presidium e o Birô do Presidium do Comitê Central foram fundidos em um só órgão, novos secretários foram eleitos para o Comitê Central do Partido, uma série de ministérios foram dissolvidos ou unificados, mudanças foram feitas no Presidium do Soviete Supremo, etc.

Essas ações não podiam deixar de causar entre nós uma impressão profunda e nada favorável. Questões preocupantes surgiram imediatamente: como é que todas essas grandes mudanças foram feitas tão subitamente em um só dia — e não um dia qualquer, mas o primeiro dia de luto?! Toda lógica nos leva a crer que tudo já havia sido preparado de antemão. As listas de mudanças haviam sido montadas com tempo, secreta e furtivamente, e eles estavam simplesmente aguardando a ocasião para anunciá-las de modo a agradar a este aqui, a aquele lá...

É impossível tomar decisões tão importantes em questão de horas, mesmo que fosse um dia perfeitamente normal.

Se no começo eram somente essas dúvidas que nos inquietavam e surpreendiam, o desenrolar dos acontecimentos, os eventos e os fatos que conheceríamos mais tarde nos convenceriam ainda mais de que mãos ocultas haviam preparado o complô há muito tempo e estavam esperando o momento para dar início ao curso de destruição do Partido Bolchevique e do socialismo na União Soviética.

A falta de unidade do Presidium do Comitê Central também ficou bastante óbvia no funeral de Stálin, onde cada um dos seus membros disputava para tomar a dianteira e ser o primeiro a falar. Em vez de demonstrar unidade em um momento de desgraça para os povos da União Soviética e para todos os comunistas do mundo, que estavam profundamente comovidos e imensamente consternados pela morte repentina de Stálin, os “camaradas” competiam entre si pelos holofotes. Khrushchev abriu a cerimônia do funeral; Malenkov, Beria e Molotov discursaram diante do Mausoléu de Lênin. Khrushchev e seus cúmplices conspiradores se comportaram de maneira hipócrita diante do caixão de Stálin, apressando-se para terminarem a cerimônia o mais rápido possível e novamente se trancarem no Kremlin para continuar o processo de divisão e redivisão de cargos.

Nós, assim como muitos outros, pensávamos que Molotov — o colaborador mais próximo de Stálin, o bolchevique mais velho e mais maduro, com a maior experiência e reconhecimento dentro e fora da União Soviética — seria eleito Primeiro-Secretário do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Mas não foi bem assim. Malenkov foi colocado à frente, com Beria logo depois dele. Naqueles dias, por trás deles estava uma “pantera” que se preparava para devorar e liquidar os dois primeiros. Era Nikita Khrushchev.

A forma como ascendeu era verdadeiramente surpreendente e suspeita: havia sido designado unicamente como Presidente da Comissão Central para a organização do funeral de Stálin e, quando a divisão de cargos veio a público em 7 de março, ele não havia sido indicado para nenhum, sendo somente dispensado da tarefa de Primeiro-Secretário do Comitê do partido de Moscou, dado que agora ele “se concentraria no trabalho do Comitê Central do partido”. Em questão de dias, em 14 de março de 1953, Malenkov foi dispensado “a seu pedido” do cargo de Secretário do Comitê Central do Partido(!), e Nikita Khrushchev passou a ocupar a posição principal do novo Secretariado eleito no mesmo dia.

Esses atos, embora não fossem da nossa conta, não nos agradavam de maneira alguma. Estávamos desiludidos com a ideia que tínhamos sobre a estabilidade da alta direção soviética, embora admitíssemos não estarmos totalmente a par da situação no partido e na direção da União Soviética. Nos contatos que havia tido com o próprio Stálin, com Malenkov, Molotov, Khrushchev, Beria, Mikoyan, Suslov, Voroshilov, Kaganovish e outros dirigentes principais, não havia visto entre eles nem um mínimo de divisão ou discórdia.

Stálin lutou consistentemente pela unidade marxista-leninista do PCUS e foi um dos seus fatores decisivos. Esta unidade no partido pela qual Stálin trabalhava não foi conquistada através do terror — como Khrushchev e os khrushchevistas diriam mais tarde, dando prosseguimento às calúnias dos imperialistas e da burguesia mundial, que tentavam destruir e derrubar a ditadura do proletariado na União Soviética —, e sim com base nas vitórias do socialismo, na linha e na ideologia marxista-leninistas do Partido Bolchevique e na grande e indiscutível personalidade de Stálin. A confiança que todos tinham em Stálin se baseava na justeza e na habilidade que demonstrara ao defender a União Soviética e o leninismo. Stálin conduziu corretamente a luta de classes, golpeando impiedosamente os inimigos do socialismo (e com toda a razão). A prova cabal disto é a luta concreta diária de Stálin, do Partido Bolchevique e de todo o povo soviético, bem como os escritos políticos e ideológicos de Stálin, os documentos e decisões do PCUS e, também, a imprensa e a propaganda massiva daquela época contra os trotskistas, bukharinistas, zinovievistas, tukhachevskis e todos os demais traidores. Era uma luta de classes política e ideológica intransigente em defesa do socialismo, da ditadura do proletariado, do partido e dos princípios do marxismo-leninismo. Grandes são os méritos de Stálin nesse sentido.

Stálin se mostrou um grande marxista-leninista, de princípios claros, de grande coragem e discernimento, de maturidade e perspicácia próprias de um revolucionário marxista. Somente se pensarmos na força dos inimigos externos e internos da União Soviética naquela época, nos esquemas que armaram, na propaganda desenfreada e nas táticas diabólicas que usaram, seremos capazes de apreciar devidamente a atuação de Stálin à frente do Partido Comunista da União Soviética. Se houve alguns excessos no curso desta luta justa e enorme, não foi Stálin quem os cometeu, e sim Khrushchev, Beria e companhia, que, por razões ocultas e sinistras, demonstraram maior zelo nos expurgos em um momento em que ainda não eram tão poderosos. Agiram dessa maneira para serem creditados como “ardentes defensores” da ditadura do proletariado, como “impiedosos com os inimigos”, com o objetivo de subir de nível para usurpar o poder posteriormente. Os fatos mostram que quando Stálin descobriu a atividade hostil de um Yagoda ou um Yezhov, o tribunal revolucionário os condenou sem hesitação. Elementos tais como Khrushchev, Mikoyan, Beria e seus apparatchiks esconderam a verdade de Stálin. De um jeito ou de outro, confundiram e enganaram Stálin. Ele não confiava neles, por isso que disse na cara deles: “quando eu não estiver mais aqui, vocês venderão a União Soviética”. O próprio Khrushchev admitiu isso. E as coisas aconteceram exatamente como Stálin previra. Enquanto ele estava vivo, até mesmo esses inimigos falavam de unidade, mas, depois de sua morte, eles promoveram a divisão. Esse processo aumentava constantemente.

Durante as visitas que realizei periodicamente à União Soviética depois de 1953 — para consultar sobre questões relativas à situação política e econômica ou por alguma questão de política internacional levantada pelos soviéticos, que supostamente buscavam saber da nossa opinião também —, eu vi cada vez mais claramente o agravamento das contradições entre os membros do Presidium do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética.

Em junho de 1953, alguns meses depois da morte de Stálin, fui a Moscou chefiando uma delegação do partido e governo para pedir créditos econômicos e militares.

Era na época em que Malenkov parecia ser o dirigente principal. Era Presidente do Conselho de Ministros da União Soviética. Embora Khrushchev figurasse como o primeiro da lista dos secretários do Comitê Central do partido desde março de 1953, parecia que ele ainda não tinha tomado completamente o poder, ainda não havia preparado o golpe.

Geralmente nossas demandas eram apresentadas primeiro por escrito, para que os membros do Presidium do Comitê Central do partido e do governo soviético as conhecessem de antemão e, como acabou sendo, decidissem quais iriam e quais iriam atender. Receberam-nos no Kremlin. Quando entramos na sala, os líderes soviéticos ficaram de pé e apertamos as suas mãos. Saudamo-nos como de costume.

Conhecia todos da época de Stálin. Malenkov era o mesmo de sempre, corpulento, de cara pálida e sem barba. Havia lhe conhecido anos antes em Moscou, nos encontros que tive com Stálin, quando me causou uma boa impressão. Ele adorava Stálin e me parecia que Stálin também o apreciava. No 19º Congresso, Malenkov foi quem apresentou o informe em nome do Comitê Central do partido. Era um dos quadros relativamente novos que haviam chegado à direção e que mais tarde seriam liquidados pelo revisionista disfarçado Khrushchev e seus comparsas. Mas, naquele momento, era ele quem estava à frente do país, ocupando o cargo de Presidente do Conselho de Ministros da URSS. Ao seu lado, estava Beria, com seus olhos brilhantes por trás dos óculos e com suas mãos inquietas. Depois dele, vinha Molotov, tranquilo, simpático, um dos camaradas mais sérios e honrados para nós, porque era um velho bolchevique da época de Lênin e um amigo íntimo de Stálin. Era assim que o considerávamos mesmo depois da morte de Stálin.

Depois de Molotov, vinha Mikoyan, de rosto moreno e franzido. Este comerciante segurava um daqueles lápis grossos vermelho e azul (coisa que se encontrava em todo escritório da União Soviética), fazendo “contas”. Agora carregava atribuições ainda maiores. Em 6 de março, dia em que foram distribuídos os cargos, decidiram que os ministérios do Comércio Exterior e do Comércio Interior seriam fundidos, cuja pasta de ministro-negociante foi tomada pelo armênio.

Por fim, no canto da mesa, estava o barbado marechal Bulganin, de cabelos brancos e olhos azul-claro, atordoado.

— Estamos ouvindo! — disse Malenkov cautelosamente. Um começo nem um pouco camarada. Esta seria a norma nas conversas com os novos dirigentes soviéticos, e não há dúvida que essa maneira de se comportar deveria refletir a arrogância de superpotência. — Vamos, digam o que tem a dizer, nós os escutaremos e daremos nossa opinião final.

Eu não sabia e nem falava russo muito bem, mas era capaz de compreendê-lo. A conversa acontecia com a ajuda de um tradutor.

Comecei a falar dos problemas que nos perturbavam, sobretudo no âmbito militar e econômico. Primeiro, fiz uma introdução da nossa situação política interna e externa, que nos preocupava. Era indispensável mostrar as razões para as nossas necessidades, de modo a sustentar as nossas demandas nos setores econômico e militar. Sobre este último, o auxílio que os soviéticos concederam para o nosso exército sempre foram insuficientes e mínimos, embora publicamente valorizássemos muito o pouco que nos davam. Além dos argumentos em favor das nossas demandas, também falei da situação do nosso país em relação aos nossos vizinhos iugoslavos, gregos e italianos. Em todo o país, os inimigos, vindos por mar, por ar e por terra, realizavam uma intensa atividade de subversão, espionagem e sabotagem. Enfrentávamos constantemente os grupos armados de subversivos e precisávamos de auxílio em material militar.

Cuidava para ser o mais conciso e concreto possível na minha exposição. Esforçava-me para não me estender, e, não passando de vinte minutos, vi Beria, com seus olhos de víbora, falar para Malenkov, que me escutava apático como uma múmia:

— Podemos dizer o que temos que dizer e encerrar?

Sem mudar de expressão e sem tirar os olhos de mim (é claro, tinha que manter a autoridade na frente dos seus subordinados!), Malenkov disse a Beria:

— Espere!

Senti-me ferver o sangue, mas mantive a serenidade e, para mostrar-lhes que havia ouvido e entendido o que disseram, encurtei minha fala e disse a Malenkov:

— Terminei.

Pravilno!(1) — disse Malenkov e passou a palavra a Mikoyan.

Beria, satisfeito por eu ter terminado, pôs as mãos nos bolsos e me olhava tentando adivinhar a impressão que suas respostas me causavam. É claro, não estava satisfeito com o que haviam decidido nos dar diante das demandas tão modestas que fizemos. Tomei a palavra outra vez e disse que haviam cortado muito das coisas que solicitamos. Mikoyan saltou para “explicar” que a própria União Soviética era pobre, que recém saíra da guerra, que também precisava ajudar outros países, etc.

— Ao elaborarmos estas demandas — disse a Mikoyan —, levamos em conta as razões que vocês nos deram, inclusive fomos bastante parcos em nossas contas, coisa que os seus especialistas que trabalham no nosso país podem testemunhar.

— Nossos especialistas desconhecem as possibilidades da União Soviética. Quem as conhece somos nós, que já demos a nossa opinião — disse Mikoyan.

Molotov estava de cabeça baixa. Disse algo sobre as relações da Albânia com seus vizinhos, mas nunca ergueu o olhar. Malenkov e Beria eram os dois “galos do galinheiro”, enquanto Mikoyan, frio e amargo, falava menos, mas, quando falava, só escorria veneno de sua boca. Pela maneira de falar, interrompendo-se uns aos outros, o tom arrogante nos seus “conselhos”, percebia-se os sinais da discórdia que havia entre eles.

— Se assim decidiram — disse eu —, não prolongarei a discussão.

Pravilno! — repetiu Malenkov e perguntou erguendo a voz — Mais alguém tem algo a acrescentar?

— Eu tenho — disse Bulganin no canto da mesa.

— Diga — disse Malenkov.

Bulganin abriu uma pasta e disse, em resumo:

— Você, camarada Enver, pediu auxílio para o exército. Concordamos em dar-lhes a parte que havíamos separado, mas tenho algumas observações críticas. O exército deve ser uma arma sã da ditadura do proletariado, seus quadros devem ser leais ao partido e de origem proletária, o Partido deve dirigir o exército com mãos firmes...

Bulganin seguiu com uma longa ladainha de “conselhos” e normas “morais”. Escutei atentamente esperando chegarem as críticas, que não vinham. Por fim, disse:

— Camarada Enver, temos a informação de que muitos quadros do seu exército são filhos de beis, de agas, de origem e atuação duvidosa. Devemos nos assegurar de que mãos receberão estas armas que estamos lhes fornecendo, portanto, aconselhamos que estudem a fundo esta questão e realizem expurgos.

O sangue me subiu à cabeça, pois tratava-se de uma acusação caluniosa e um insulto aos quadros do nosso exército. Erguendo a voz, perguntei ao marechal:

— De onde vocês tiraram essa informação que nos dão com tanta certeza? Por que insultam o nosso exército?

Essa pergunta caiu como um balde de água fria. Todos levantaram as cabeças e me olharam, enquanto eu esperava a resposta de Bulganin. Este ficou encurralado, por não estar esperando a afiada pergunta, e olhou para Beria.

Beria tomou a palavra e, com o movimento das mãos e dos olhos revelando a sua vergonha e nervosismo, disse que, de acordo com a informação deles, teríamos elementos inadequados e suspeitos não apenas no exército, mas também no aparato estatal e na economia(!), mencionando, inclusive, uma porcentagem. Bulganin suspirou aliviado e olhou ao seu redor sem esconder sua satisfação, mas Beria tirou-lhe o sorriso do rosto. Opôs-se abertamente ao “conselho” de Bulganin sobre expurgos e enfatizou:

— Os elementos com um passado ruim, mas que enveredaram para o caminho correto, não devem ser expurgados, e sim perdoados.

O rancor e as profundas contradições que existiam entre os dois se manifestavam abertamente. Como visto mais tarde, as contradições entre Bulganin e Beria não eram puramente pessoais, mas sim reflexo das profundas contradições, disputas e oposições que existiam entre o serviço de segurança estatal soviético e os órgãos de inteligência do exército soviético. Mas só saberíamos disso posteriormente. Neste caso concreto, lidávamos com uma acusação grave lançada contra nós. Jamais poderíamos aceitar essa acusação, portanto me levantei e disse:

— Aqueles que lhes deram essa informação são caluniadores, portanto, inimigos. Não há verdade no que disseram. A imensa maioria dos quadros do nosso exército tem sido de camponeses pobres, pastores, operários, artesãos e intelectuais revolucionários. No nosso exército, não há filhos de beis ou agas. Se há dez ou vinte indivíduos, é porque abandonaram sua classe e derramaram sangue na luta, e, quando digo que derramaram sangue, quero dizer que nesta luta eles não apenas pegaram em armas contra os inimigos externos, mas também rejeitaram a sua classe de origem, inclusive até mesmo os seus pais e parentes quando estes se opunham ao Partido e ao povo. Todos os quadros do nosso exército lutaram na guerra, emergiram da guerra, de modo que não somente rejeito estas acusações, como também lhes digo que seus informantes mentem e caluniam. Asseguro que as armas que recebemos e receberemos de vocês sempre estiveram e sempre estarão em mãos confiáveis, que o nosso Exército Popular sempre foi e segue sendo dirigido somente pelo Partido do Trabalho e mais ninguém. É isso que queria dizer-lhes!

Sentei-me. Quando terminei, Malenkov tomou a palavra para encerrar o debate. Depois de enfatizar que concordava com o que as partes anteriores haviam falado, deu-nos uma série de “conselhos e instruções” e, por fim, tratou do debate que tivemos com Bulganin e Beria sobre os “inimigos” nas fileiras do nosso exército.

— Sobre realizar expurgos no exército, penso que o problema não deveria ser apresentado desta maneira — disse Malenkov, opondo-se ao “conselho” que Bulganin nos deu neste sentido. — As pessoas não nascem formadas e podem cometer erros em sua vida. Não devemos ter medo de perdoar aos que cometeram erros no passado. Temos pessoas que pegaram em armas contra nós, mas agora estamos promulgando leis especiais para perdoar-lhes o seu passado e, desta maneira, dar-lhes toda possibilidade de trabalhar no exército e até mesmo de integrar o partido. O termo “expurgo” no exército — repetiu Malenkov — não é adequado — e encerrou a discussão.

Não se podia entender nada: — Vocês têm inimigos, expurguem-nos — dizia um, e — estamos promulgando leis para perdoar-lhes o seu passado — dizia o outro!

Contudo, estas eram as suas opiniões. Ouvimos atentamente e expressamos abertamente a nossa oposição ao que discordávamos. Finalmente, agradeci-lhes pela recepção e, de passada, disse-lhes que o Comitê Central do nosso Partido decidira exonerar-me de muitas das minhas funções e conservar-me unicamente na principal, de Secretário-Geral do partido. (Naquela época, eu era Secretário-Geral, Primeiro-Ministro, Ministro da Defesa e Ministro das Relações Exteriores. Exercia estas funções desde a libertação do país, quando era necessário superar muitas dificuldades causadas pelos inimigos externos e internos.)

Malenkov julgou correta esta decisão e repetiu duas vezes seu pravilno preferido. Nada mais tendo a dizer, apertamos as mãos e partimos.

Amargas foram as conclusões que tirei deste encontro. Vi que a direção da União Soviética estava de má vontade com o nosso país. A arrogância que demonstraram ao longo do encontro, a recusa em conceder-nos o pouco que solicitamos e o ataque calunioso contra os quadros do nosso exército não eram bons sinais.

Este encontro também me permitiu constatar que não havia unidade no Presidium do Partido Comunista da União Soviética: Malenkov e Beria dominavam, Molotov falava pouco, Mikoyan estava nas sombras, vertendo seu veneno, e Bulganin só falava asneiras.

Parecia que entre o conflito havia começado entre os cabeças do Presidium do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética. Em que pesem os esforços que faziam para evitar causar a impressão de que uma “troca de guardas” estava ocorrendo no Kremlin, não conseguiam esconder tudo. Mudanças foram e continuavam sendo feitas no partido e no governo. Após ter desbancado Malenkov, deixando-o somente no cargo de Primeiro-Ministro, Khrushchev fez de si mesmo o Primeiro-Secretário do Comitê Central em setembro de 1953. Está claro que Khrushchev e sua quadrilha de sequazes haviam tramado cuidadosamente a intriga no Presidium, atiçando as desavenças entre seus adversários, eliminando Beria e, ao que parece, “domando” os demais.

Há muitas versões sobre a prisão e execução de Beria. Diz-se, entre outras, que militares, chefiados pelo general Moskalenko, prenderam Beria bem no meio de uma reunião do Comitê Central do partido. Ao que aparenta, Khrushchev e seus comparsas encarregaram o exército desta “missão especial” por não confiarem na segurança estatal, visto que Beria a tinha em suas mãos por anos a fio. O plano havia sido tramado de antemão: durante a reunião do Presidium do Comitê Central do PCUS, Moskalenko e seus homens haviam entrado numa sala próxima sem serem vistos. Em dado momento, Malenkov apertou uma campainha, e Moskalenko logo adentrou a sala em que se realizava a reunião e se aproximou de Beria para prendê-lo. Diz-se que este levou a sua mão para alcançar sua maleta, mas Khrushchev, que se sentava “vigilante” ao seu lado, foi mais “ágil” e pegou-a primeiro. O “pássaro” não tinha por onde escapar e a ação foi coroada com êxito. Exatamente como em um filme de detetives, mas não era um filme qualquer: seus atores eram membros do Presidium do Comitê Central do PCUS!

Diz-se que foi assim e o próprio Khrushchev confirmou. Posteriormente, um general cujo nome creio ser Sergatskov, quando veio a Tirana como conselheiro militar soviético, contou-nos algo sobre o julgamento de Beria. Disse-nos que havia sido chamado como testemunha para declarar no tribunal que Beria supostamente havia sido arrogante com ele. Nesta ocasião, Sergatskov confidenciou aos nossos camaradas: — Beria se defendeu muito bem diante do tribunal, não reconheceu nada e rechaçou todas as acusações feitas contra ele.

Em junho de 1954, alguns meses depois da ascensão de Khrushchev ao cargo de Primeiro-Secretário do Comitê Central da União Soviética, eu e o camarada Hysni Kapo tivemos que ir a Moscou, onde solicitamos uma entrevista com os dirigentes soviéticos para falar dos problemas econômicos que eles ainda não haviam resolvido. Khrushchev e Malenkov, que ainda era Primeiro-Ministro, nos receberam, também presentes estavam Voroshilov, Mikoyan, Suslov e um ou outro de patente menor.

Havia tido a oportunidade de me encontrar com Khrushchev uma ou duas vezes na Ucrânia antes da morte de Stálin. Recém havíamos saído da guerra e era natural que naquela época tivéssemos grande confiança não somente em Stálin, na União Soviética e no Partido Comunista da União Soviética, o que era indiscutível, mas também em todos os dirigentes do Partido Comunista da União Soviética. Desde o primeiro encontro, Khrushchev havia me dado a impressão de ser um “bonachão, cheio de vida e muito falador”, que não deixou de elogiar a nossa luta, embora fosse perceptível que não sabia nada a respeito dela.

Fez uma exposição meio superficial sobre a Ucrânia, ofereceu-me um almoço, do qual me recordo de um tipo de sopa que se chamava “borsch” e de uma taça com um iogurte tão espesso que se podia cortar com uma faca, tanto que não tinha certeza se era um iogurte ou um queijo. Presenteou-me com uma camisa bordada ucraniana e pediu desculpas por ter que partir a Moscou, onde participaria de uma reunião do Birô. Este encontro fôra em Kiev e, durante todo o tempo em que esteve comigo, não poupou elogios a Stálin. É claro, vendo todas essas viagens de avião, de ida e volta a Moscou, dos dirigentes que tão habilmente guiavam esse grande país que tanto amávamos, e ouvindo todas aquelas belas palavras que diziam sobre Stálin, sentia-me muito satisfeito com eles e entusiasmado com os êxitos que haviam obtido.

Mas a ascensão inesperada e rápida de Khrushchev ao poder não nos causou boa impressão. E não era porque tínhamos algo contra ele, mas porque pensávamos que o papel e a figura de Khrushchev não eram tão reconhecidos na União Soviética e no mundo para que ocupasse com tamanha rapidez o lugar do grande Stálin como Primeiro-Secretário do Comitê Central do partido. Khrushchev nunca aparecera em nenhum dos encontros que tivemos por anos com Stálin, embora quase todos os maiores dirigentes do partido e do Estado soviético participassem na maioria deles. No entanto, nunca manifestamos isso nem mencionamos a nossa impressão sobre a promoção de Khrushchev a tão alto nível. Consideramos isso um assunto interno do Partido Comunista da União Soviética, pensamos que sabiam o que estavam fazendo e desejávamos de todo o coração que as coisas sempre dessem certo na União Soviética, assim como nos tempos de Stálin.

E agora havia chegado o dia que nos encontraríamos frente a frente com Khrushchev em nosso primeiro encontro oficial.

Fui o primeiro a falar. Apresentei brevemente a situação econômica, política e organizativa do nosso país, assim como a situação do nosso partido e do nosso poder popular. Sabendo já do encontro do ano passado com Malenkov que os novos dirigentes do partido e do Estado soviético não gostavam de ficar escutando por muito tempo, tentei ser o mais conciso possível em minha exposição e enfatizei os problemas econômicos, acerca dos quais havíamos enviado uma carta à direção soviética dois meses antes. Lembro que Khrushchev só me interrompeu uma vez durante meu discurso. Falava dos excelentes resultados alcançados no nosso país nas últimas eleições para deputados da Assembleia Popular e da inquebrantável unidade partido-povo-poder(2) que havia se manifestado durante as eleições.

— Estes resultados não devem adormecê-los — interveio Khrushchev naquele momento, chamando a atenção para aquilo que sempre tivemos presente, e que eu havia destacado na apresentação que lhes havia feito, enfatizando precisamente o trabalho que realizávamos para consolidar a unidade, aumentar o amor do povo pelo partido e pelo poder, para reforçar a vigilância, etc. De toda forma, estava em seu direito de dar quantos conselhos quisesse, não tínhamos razão para nos ofender com isso.

Assim que acabei, Khrushchev tomou a palavra e demonstrou desde o começo a sua natureza de palhaço no tratamento dos problemas:

— Estamos informados sobre a sua situação e sobre os seus problemas a partir dos materiais que estudamos — começou. — O informe que o camarada Enver apresentou aqui esclareceu mais as coisas e, da minha parte, descrevo-o como um “informe conjunto”, seu e nosso. No entanto — prosseguiu —, sou um mau albanês e não falarei agora nem dos problemas econômicos nem dos problemas políticos que o camarada Enver levantou, já que, da nossa parte, ainda não trocamos opiniões de modo a chegar a uma opinião comum. Portanto, falarei de outra coisa.

E então começou a tratar por muito tempo da importância do papel do partido.

Falava com um tom elevado, mexendo as mãos e a cabeça, olhando em todas as direções sem se concentrar em um ponto específico, interrompia-se vez ou outra para perguntar alguma coisa e continuava sua exposição, muitas vezes sem esperar a resposta, pulando de um galho para outro.

— O partido — teorizava — dirige, organiza, controla. É o iniciador, o inspirador. Mas Beria queria liquidar o papel do partido. — E, depois de uma pausa, perguntou-nos — Vocês receberam a resolução que anuncia a sentença de Beria?

— Sim — respondi.

Abandonou o sermão sobre o partido e começou a falar da atividade de Beria; acusou-o de quase todos os crimes e descreveu-o como o responsável por muitos males. Eram os primeiros passos em direção ao ataque a Stálin. Khrushchev sabia bem que naquele momento ainda não podia erguer-se contra Stálin, sua obra e sua figura, por isso começou com Beria, para preparar o terreno. Neste encontro, inclusive, para nossa surpresa, Khrushchev nos disse:

— Vocês nos ajudaram a descobrir e desmascarar Beria quando estiveram aqui no ano passado.

Surpreso, fixei os olhos nele para ver onde queria chegar. A explicação de Khrushchev foi esta:

— Vocês devem se lembrar do debate que tiveram no ano passado com Bulganin e Beria acerca da acusação que fizeram contra o seu exército. Tal informação nos havia sido dada por Beria, e a enérgica oposição que vocês fizeram na presença dos camaradas do Presidium ajudou-nos a fundamentar as nossas suspeitas e os dados que tínhamos sobre a atividade hostil de Beria. Poucos dias depois da sua partida para a Albânia, condenamos ele.

Contudo, neste primeiro encontro conosco, Khrushchev não se preocupava somente com Beria. O dossiê “Beria” havia sido fechado. Khrushchev havia acertado as contas com este. Tinha que ir mais longe agora. Passou a falar sobre a importância e do papel do Primeiro-Secretário ou Secretário-Geral do partido.

— Para mim, pouco importa se se chama o secretário de “primeiro” ou de “geral” — disse em resumo. — O importante é que esse cargo seja ocupado pela pessoa mais capaz, mais qualificada, com a maior autoridade no país. Temos nossa experiência com isso. — Prosseguiu — Depois da morte de Stálin, tínhamos quatro secretários do Comitê Central, mas não tínhamos um responsável, de modo que não sabíamos quem deveria assinar as atas das reuniões!

Depois de esmiuçar esta questão do ponto de vista dos “princípios”, Khrushchev não deixou de dar algumas alfinetadas em Malenkov, é claro, mas sem dizer nomes.

— Imaginem o que aconteceria — disse astucioso — se o camarada com mais capacidade e autoridade fosse eleito presidente do Conselho de Ministros. Todos ficariam atrás dele, o que traria o risco de que as críticas levantadas pelo partido não fossem levadas em conta, fazendo o partido ficar em segundo plano e se tornar um órgão do Conselho de Ministros.

Enquanto ele falava, olhei de relance para Malenkov várias vezes, cujo rosto parecia acinzentado e que permanecia com a cabeça, o corpo e as mãos imóveis.

Voroshilov, vermelho como um tomate, me observava, esperando Khrushchev acabar seu “discurso”. Depois, tomou a palavra. Apontou-me (como se eu não soubesse) que o cargo de Primeiro-Ministro era importantíssimo por tal e tal razão, etc.

— Acho — disse Voroshilov em um tom de incerteza, como se não soubesse qual lado tomar — que o camarada Khrushchev não quis dizer que o Conselho de Ministros não tenha também a sua importância. Igualmente, o Primeiro-Ministro...

Agora Malenkov ficara lívido. Voroshilov, tentando atenuar a má impressão que Khrushchev causara, acabou por deixar ainda mais clara a situação tensa que existia no Presidium do Comitê Central do partido. Por vários minutos, Klim Voroshilov também nos lecionou sobre o papel e a importância do Primeiro-Ministro!

Malenkov foi o “bode expiatório” que me apresentaram para ver como reagiria. Com estas duas lições, pude compreender claramente que a divisão no Presidium do Comitê Central do PCUS estava se arraigando, que Malenkov e seus apoiadores estavam indo ladeira a baixo. Mais tarde, veríamos aonde isso iria levar.

Neste mesmo encontro, Khrushchev nos contou que a “experiência” soviética sobre quem deveria ser nomeado Primeiro-Secretário do partido e Primeiro-Ministro havia sido repassada para os outros partidos irmãos de modo a ser aplicada nos países de democracia popular.

— Também tratamos dessas questões com os camaradas poloneses antes do congresso do partido deles — disse-nos Khrushchev. — Debatemos muito e chegamos à conclusão de que o camarada Bierut deve continuar como Presidente do Conselho de Ministros e que o camarada Ochab será indicado Primeiro-Secretário do partido...

Isto é, desde o começo, Khrushchev fôra a favor da saída de Bierut da direção do partido (e, mais tarde, da sua eliminação), visto que insistira que Ochab, “um camarada polonês muito bom”, fosse eleito Primeiro-Secretário. Assim, dava sinal verde para todos os elementos revisionistas que até ontem se escondiam, esperando pelos momentos oportunos. Agora era Khrushchev quem criava esses momentos, que, com suas ações, posturas e “novas ideias”, tornava-se a inspiração e o organizador de “mudanças” e “reorganizações”.

No entanto, o congresso do Partido Operário Unificado Polonês não satisfez os desejos de Khrushchev. Bierut, um camarada marxista-leninista resoluto, de quem guardo muito boas memórias, foi eleito Primeiro-Secretário do partido, ao passo que Cyrankiewicz foi eleito Primeiro-Ministro.

Khrushchev “aceitou” essa decisão porque não tinha opção. Contudo, a máfia revisionista, que havia começado a se reanimar, estudava todos os caminhos e alternativas possíveis. E embora Bierut não tenha sido deposto da direção do partido em Varsóvia, como havia ansiado e ditado Khrushchev, mais tarde ele seria eliminado por completo por um súbito “resfriado” contraído em Moscou.