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Primeira Edição: Este texto sobre o MST é a tradução brasileira do capítulo 7º do seu livro "Tarefa estratégica: Articular esquerda partidária e esquerda social para construir um grande bloco social antineoliberal" (2001, 79 p.). Conservou-se a numeração, tanto dos parágrafos como das notas de rodapé, que consta no original.
Fonte: http://resistir.info
HTML: Fernando Araújo.
337. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil (MST) que reúne parceiros, arrendatários, meeiros, assalariados rurais, ocupantes e pequenos camponeses(224) é, sem dúvida, o movimento social mais poderoso da América Latina. Foi fundado há já 17 anos(225) e neste momento se calcula que das 400 mil famílias que têm tido acesso à terra desde a ditadura militar até hoje, umas 250 mil estão ligadas ao MST e outras 80 a 100 mil estão acampadas em todo o país pressionando por terra.(226)
338. Nestes anos de resistência e de luta este movimento tem conseguido crescer e se consolidar como o principal referencial nacional de luta contra o neoliberalismo, promovendo a articulação de todos os setores excluídos pelo sistema: os sem terra, os sem teto, os sem trabalho. Atacado pela direita por seu radicalismo é, no entanto, crescentemente respeitado por setores cada vez mais amplos da sociedade, que vêem neste movimento a coerência política e a preocupação com os aspectos ideológicos que com freqüência falta aos partidos políticos de esquerda.
339. Este movimento começa a ser mais conhecido nacional e internacionalmente a partir de 1995 em seguida ao seu II Congresso quando expõe que não haverá reforma agrária no Brasil se não se conseguir mudar o modelo econômico neoliberal, e que só se pode avançar neste terreno se toda a sociedade começar a ver a luta pela terra como uma coisa legítima e necessária.
340. Trata-se de um movimento camponês diferente dos clássicos. Em primeiro lugar, a luta de massas que promove não se limita ao caráter corporativo, associativo ou sindical, próprio de outros movimentos camponeses, porque entende que os objetivos que persegue não só terra, mas instrumentos e créditos para trabalha-la, educação, saúde e outras transformações da vida camponesa somente serão conseguidos mudando o modelo de sociedade. Trata-se, portanto, de um movimento sócio-político que participa da vida política do país, mas que não pretende "se transformar em partido político".(227) Em segundo lugar, envolve em suas atividades e lutas toda a família e não apenas o homem. A participação da mulher, da juventude, das crianças, é muito destacada. De um coletivo de 23 pessoas que formam a direção nacional, 9 são mulheres e têm sido eleitas não por cotas, mas por seus próprios méritos. Em terceiro lugar, reúne em seu seio não somente trabalhadores rurais mas todas as pessoas que estejam dispostas a se dedicar à luta pela reforma agrária. Em quarto lugar, é um movimento que tem como uma de suas preocupações centrais a formação política de seus quadros.
341. As experiências nesse sentido o levaram à convicção de que as conquistas sociais só são alcançadas com luta de massas, quer dizer, com a participação massiva do povo. Aprendeu que se se limita a ser uma organização de fechada, sem poder de mobilização, ou se esperar que as soluções cheguem a partir do governo ou da aplicação de seus direitos, apenas porque estão escritos na lei, não conquistará absolutamente nada. Somente uma forte pressão popular fará com que a lei seja cumprida,(228) já que há poderosos setores das classes dominantes que se opõem a ela. Daí que a ocupação tenha se tornado sua arma estratégica para conseguir a terra. Somente esta forma de pressão social camponesa tem permitido materializar a entrega de terras ociosas a pequenos camponeses ávidos por faze-las produzir.
342. A ocupação é, ao mesmo tempo, o instrumento que permite aglutinar famílias de origem camponesa, fazendo-as sentir na própria carne a importância da organização, sendo também um excelente espaço para começar o árduo trabalho de transformação da consciência individualista, típica do pequeno produtor, por uma consciência cada vez mais solidária.
343. Mas a luta não acaba com a conquista da terra, esse é só o primeiro passo. Os assentados devem continuar lutando para conquistar os recursos para faze-la produzir, daí ser fundamental que se mantenham organizados dentro do Movimento.
344. Os princípios e normas organizativas que regem o MST são: direção coletiva, evitando cargos que personalizem o poder; divisão de tarefas, valorizando a participação de todos e evitando a centralização e o personalismo; profissionalismo, expressado em amor e dedicação de corpo e alma à causa da luta pela terra e esforços para se superar nas tarefas que lhes foram destinadas; disciplina, cuja regra de ouro é respeitar as regras do jogo voluntariamente assumidas; planejamento de todas as atividades que forem empreendidas; espírito de estudo e vinculação com as massas um dirigente distante das massas é como um peixe fora d'água. E por último: exercício da crítica e autocrítica, procurando corrigir os erros presentes para melhorar as atuações futuras.
345. Creio ser importante destacar alguns aspectos da forma em que são aplicados estes princípios:
346. O MST se sente herdeiro de todo um processo histórico de lutas populares e trata de aproveitar os ensinamentos acumulados nessas lutas para construir um mundo melhor. Daí sua disposição de estudar as mais diversas experiências tanto nacionais como de outros países, não para copia-las mecanicamente, mas para extrair delas o que possa ser útil para a organização.(229)
347. O MST considera que os assentamentos devem servir de carta de apresentação para o movimento. Devem demonstrar que podem produzir eficientemente e, ao mesmo tempo, ir gestando a semente da futura sociedade solidária que deseja construir, em que a técnica seja posta a serviço do homem e não o homem a serviço da técnica. Neste sentido, o movimento estimula o estabelecimento das mais diversas e flexíveis formas de cooperação, desde as mais simples como o trabalho de ajuda mútua, passando pelas associações de máquinas, cooperativas de comercialização, de créditos e serviços, até chegar às cooperativas de produção.
348. É neste terreno da produção onde o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra faz sua autocrítica mais forte. Não é possível abordar em detalhes, neste artigo, tema tão complexo, mas pelo menos podemos mencionar algumas delas: muitos assentamentos caíram no erro de implantar o mono-cultivo para o mercado (soja, milho, algodão, mandioca), no lugar de haver diversificado a produção para não ficar tão dependentes das oscilações de preços; por outro lado, muitas vezes se aplicou uma mecanização desajustada à escala de produção : comprava-se um trator para 30 hectares quando este só era rentável se fossem cultivados 100.(230)
349. Quanto à organização interna dos assentamentos,(231) o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra está hoje empenhado em que seja materializada uma orientação que existe há anos: a formação de grupos de famílias neles. Nos acampamentos do MST as famílias se organizam em grupos de vinte a trinta, e a idéia era que, uma vez conquistada a terra, fosse mantido este tipo de organização nos assentamentos, tratando de construir o que eles chamam "agrovilas", quer dizer, núcleos de moradias umas ao lado das outras com espaços destinados aos serviços coletivos: escola, centro de recreação, parque infantil, centro religioso e algum tipo de agroindústria que permita valorizar a produção agrícola e criar fontes de trabalho estáveis para o camponês e sua família.
350. Já há vários assentamentos com agrovilas, mas ainda são minoritários. Na maior parte dos casos a terra foi distribuída de forma individual por orientação do Incra(232) e atendendo o desejo do camponês de estabelecer sua moradia em seu próprio lote: isto deu como resultado que as famílias ficaram muito distantes umas das outras, o que dificultou a convivência entre elas e, pela mesma razão, não se chegou a materializar a orientação de se organizar em grupos de famílias.
351. Hoje o Movimento está pensando em soluções urbanísticas que permitam que as famílias formem pequenos núcleos habitacionais com um espaço para encontros coletivos. Esta é a maneira que o MST tem encontrado para combater a cultura individualista e ir construindo alternativas de cooperação em diferentes níveis. A idéia é que em um mesmo assentamento, nos lugares em que isto seja conveniente, haja vários núcleos habitacionais que permitam ao camponês viver em seu pedaço de terra ou muito próximo dela e, ao mesmo tempo, conviver coletivamente com um grupo de famílias.
352. Há desenhos urbanísticos interessantes que permitem combinar ambas as coisas. Isto funciona melhor no sul e centro do país, porque nas zonas mais áridas a tendência é se concentrar em pequenos povoados, já que é muito pouco o que se pode cultivar de forma individual, bastando uma pequena horta, o resto são terras para alimentação do gado ou produções que exigem um trabalho não individual. Aqui o problema é o inverso: como conseguir a participação real das pessoas em um povoado que reúne de mil a mil e quinhentas famílias.
353. A discussão sobre quais são os espaços ideais para a participação das pessoas é um grande tema para a esquerda. E o outro é como combinar participação na base e eficácia local, porque evidentemente os pequenos grupos são convenientes para conseguir uma maior participação, mas também sabemos que para conseguir um impacto local se requer ir muito mais longe.
354. Daí outra interessante idéia que o MST está desenvolvendo: o que alguns chamam "pólos de assentamento". Um assentamento isolado e rodeado de latifúndios não tem nenhum impacto e todo seu esforço de sair para o mercado com um mínimo de possibilidades tende a fracassar. Para conseguir mudar a lógica do sistema em alguns aspectos, especialmente levando adiante a idéia de criar um mercado popular alternativo com produtos das cooperativas agrícolas do MST, é fundamental reunir em uma zona muitos assentamentos e criar uma articulação entre eles que potencialize seu impacto na região, tanto no aspecto econômico, como educativo, cultural e político. Isto também ajuda a resolver os problemas de infra-estrutura: não é a mesma coisa fazer uma estrada e estender a rede de água para um assentamento de vinte famílias, do que faze-lo para mil e quinhentas.
355. Para conseguir estes objetivos é muito importante que se realize um trabalho político e ideológico na região, que se conquiste para o projeto as direções sindicais e políticas e as administrações locais e, mas importante ainda, que os moradores da região vejam com simpatia as propostas do MST. Uma rádio local, como forma de comunicação direta com os habitantes da região, parece indispensável.
356. Eu sou uma das pessoas convencidas de que, ao invés de dispersar forças em todo o território, é fundamental que as forças de esquerda concentrem sua atuação em determinados espaços geográficos, para tratar de por em prática nesses lugares experiências alternativas mais integrais que por sua vez sirvam para mostrar na prática o que a esquerda poderia fazer se conseguisse ter o poder central em suas mãos.
357. Por outro lado, os assentamentos, ao mesmo tempo em que permitem formar quadros com uma nova mentalidade, permitem liberar quadros para que possam participar das atividades de mobilização do movimento (caminhadas, novas ocupações) ou no trabalho organizativo do MST em nível local ou nacional. O assentamento é a entidade que os financia enquanto dura sua missão.
358. O MST não luta apenas contra o latifúndio mas também contra a ignorância. A seriedade com que tem abordado o problema educacional do campesinato fez com que o governo do Estado do Rio Grande do Sul reconhecesse a metodologia usada e a concepção da "escola nova" do MST como o melhor programa pedagógico para o meio rural.
359. O movimento atende a todos os níveis de educação. Convencido de que uma organização só perdura quando forma seus próprios quadros, tem criado várias escolas de quadros tanto políticas como técnicas e um instituto que prepara técnicos agrícolas em diferentes especialidades (ITERRA). E hoje tem uma brigada médica composta por 45 estudantes se formando em Cuba na Escola Latino-americana de Ciências Médicas.
360. Por outro lado, oito universidades mantêm convênios com o movimento para a formação técnica de seus quadros. Desta maneira, existe um convênio com a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) através do qual mil jovens se formam em cursos intensivos durante as férias. Também na Universidade Federal de Juiz de Fora quinhentos jovens da região sudeste participam nas férias de diferentes cursos sobre a realidade brasileira.(233)
361. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra está sofrendo neste momento uma grande ofensiva por parte do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Este lhe cortou os créditos para as cooperativas. O MST havia conquistado um crédito em 1986, em pleno processo de democratização do país, logo depois de mais de 20 anos de ditadura militar, que favorecia especialmente a quem trabalhava de forma cooperada: as famílias que eram sócias de uma cooperativa recebiam o dobro do que recebia um pequeno camponês independente e tinham, além disso, um subsidio de 50%. Agora não só há menos créditos mas todos provêm de um único fundo: é uma forma de jogar uns camponeses contra outros, fomentando a divisão entre os membros do MST e outros pequenos agricultores.
362. Por outro lado, como o MST tem conseguido assentar muita gente graças ao emprego da ocupação de terras, o que lhe tem dado grande força ao mostrar a suas bases que com organização e luta podem conseguir os objetivos a que se propõem, o governo tem procurado uma fórmula de desestimular a mobilização e as ocupações de terras. Está oferecendo a quem se inscrever pelo correio a entrega de terras em 120 dias.
363. Estas medidas - junto com a crise da pequena agricultura diante do modelo agro-exportador significaram um duro golpe para o MST. A frustração e o desânimo começam a afetar os assentados com menos consciência: a possibilidade de conseguir renda que lhes permita melhorar significativamente suas condições de vida através de uma agricultura alternativa ao modelo oficial, distancia-se do horizonte imediato. Consciente desta situação, a direção do movimento está preparando seus membros para enfrentar um período de resistência. Os assentados não podem viver da esperança de que vão receber créditos e ajuda de fora, mas devem procurar como seguir em frente com os próprios recursos.
364. No entanto, esta ofensiva do governo não tem conseguido curvar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e este não tem deixado de lutar. De fato, em alguns lugares, tem conseguido transformar em um boomerang a oferta do governo de conceder terra via inscrição por correio. Ao invés de lutar contra os camponeses que por falta de consciência vão se inscrever de forma individual o objetivo perseguido pelo governo -, a tática traçada tem sido a de se apresentar em massa nas agências dos correios. É preciso imaginar o que significa para uma agência dos correios o fato de mil a mil e quinhentas pessoas acampadas cheguem a pedir simultaneamente sua inscrição. As agências dos correios não estão preparadas para uma inscrição massiva, não têm essa quantidade de formulários. Além disso, estas ações do MST têm deixado evidente a demagogia do governo já que os prazos terminam e a terra não chega.
365. Por outro lado, tendo claro que a estratégia político-social do neoliberalismo é fragmentar o movimento popular, este movimento se colocou de acordo com outras organizações camponesas importantes no país, como são o Movimento de Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Afetados por Represas (MAR), Pastoral Juvenil Rural (PJR) e Associação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR), para negociar juntos perante o governo, de tal modo que este não possa realizar uma política diferenciada para favorecer um movimento em detrimento de outro.
366. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra compreende, além disso, que sem alianças amplas em nível nacional e internacional não se poderá deter o avanço do neoliberalismo. Por isso é um grande impulsionador de amplas mobilizações como o plebiscito da dívida externa, a luta contra a ALCA e a luta contra os transgênicos, que tem permitido uma aliança com os movimentos camponeses de todo o planeta.
Notas de rodapé:
(224) Donos de menos de 5 hectares de terra no Brasil. (retornar ao texto)
(225) O MST foi fundado em 1984, durante o I Encontro Nacional que reuniu todos os lutadores pela terra em Cascavel, Paraná, entre os dias 21 e 24 de janeiro. (retornar ao texto)
(226) João Pedro Stédile, entrevista de Marta Harnecker, 20 de maio de 2001. O dirigente do MST argumenta que as cifras oficiais falam de 680 mil famílias assentadas e que o governo de Fernando Henrique Cardoso se vangloria de haver assentado delas umas 480 mil. Os cálculos do MST são os que figuram acima. Há umas 150 mil famílias às quais se entregou a terra em projetos de colonização, em terras inóspitas, afastadas das estradas até 500 km.. Muitos desses camponeses tiveram que abandona-las por não poder sobreviver nelas. (retornar ao texto)
(227) João Pedro Stédile e Bernardo Mançano Fernández, Brava Gente, Ed. Madres de Plaza de Mayo--Revista América Libre, Argentina, abril de 2000, p.42. (retornar ao texto)
(228) J. Pedro Stédile e B. Mançano Fernández, Brava Gente, op.cit., p.49. (retornar ao texto)
(229) Marta Harnecker, El Movimiento de los Trabajadores Rurales Sin Tierra: Construyendo fuerza social antineoliberal, en Revista Surda, N° 23, Chile, nov-dic, 1999. (retornar ao texto)
(230) J. Pedro Stédile, entrevista de Marta Harnecker, 20 maio 2001. (retornar ao texto)
(231) Conjunto de famílias que conquistou a terra. (retornar ao texto)
(232) Instituto Nacional da Reforma Agrária. (retornar ao texto)
(233) MST, Balanço das atividades do setor de educação do MST (Dados atualizados até Julho/2000), Brasil. (retornar ao texto)