Entrevista para a Revista Brasileira de História
(análise sobre a atuação do PCB na década de 1950)

Jacob Gorender

9 de abril de 2002


Primeira Edição: Entrevista concedida a Waldir José Rampinelli na residência de Jacob Gorender, em São Paulo, no dia 9 de abril de 2002. A transcrição e as notas explicativas são do entrevistador. A entrevista foi revista e sua transcrição aprovada pelo entrevistado. O prof. Rampinelli é do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Correio eletrônico: pinelliw @ cfh . ufsc . br

Fonte: Fundação Dinarco Reis - https://fdinarcoreis.org.br/fdr/2013/06/12/entrevista-com-jacob-gorender-sobre-o-pcb-e-sua-atuacao-nos-anos-50/

Transcrição e HTML: Fernando Araújo.


Waldir José Rampinelli – A política de união nacional do PCB(1) nos anos 50, que incluía o apoio ao desenvolvimento do capitalismo no Brasil não foi um equívoco, já que a classe industrial burguesa buscava a associação com o imperialismo estadunidense?

Jacob Gorender: Convém aqui colocar as coisas sob uma perspectiva histórica, ou seja, levar em conta as circunstâncias que atuavam nos anos 50 e a trajetória da própria ação política do PCB. Como o PCB fora posto na ilegalidade em 1947, ele desenvolveu uma política cada vez mais sectária com declarações bombásticas de chamamento à luta armada, a qual estava inteiramente fora do contexto da época. Isso levou o PCB a tomar uma atitude de abstenção nas eleições de 1950, que foram essencialmente uma disputa entre os candidatos Getúlio Vargas, Cristiano Machado e Eduardo Gomes.

Getúlio se elegeu e ficou o tempo todo de seu governo sob o ataque incessante do PCB. Quando a crise chegou ao seu auge em agosto de 1954, e Vargas estava sob o fogo cerrado da direita, o PCB não se deu conta de que a conjuntura sofrera uma mudança radical, permanecendo no ataque a Vargas. Somente alguns dias antes do suicídio de Vargas, Prestes conclamou o PCB, pela imprensa, a apoiar Getúlio. No entanto, isto foi inócuo pois os acontecimentos já estavam dados. Além disso, este apoio era cheio de restrições. Resultado: Getúlio cometeu o suicídio, as massas trabalhistas saíram às ruas e os militantes comunistas não tiveram alternativa senão a de juntar-se, nos mesmos protestos, aos trabalhistas. Esta questão, que deixou o PCB perplexo, influiu na posição com relação a JK.

Com a nominata dos candidatos às eleições presidenciais de 1955, o PCB — já com a experiência traumática da abstenção na eleição anterior e de seu comportamento diante do governo de Getúlio — resolveu respaldar JK. Este apoio se revestiu de muita importância, já que JK se elegeria com uma diferença de meio milhão de votos e eu penso que eles vieram do PCB.

JK tomou posse com dificuldade(2), pois necessitou do apoio do ministro da Guerra, general Teixeira Lott. Começou seu governo com o Plano de Metas, visando ao desenvolvimento do País. Esta visão desenvolvimentista já vinha de Getúlio. No entanto com JK tomou uma posição mais definida.

O governo de JK caracterizou-se pela ausência de presos políticos e pela liberdade de imprensa. Havia, portanto, um clima de descontração. Deste modo, as forças políticas podiam atuar sem constrangimentos. Então o PCB, considerando que o governo de JK apresentava a perspectiva de um desenvolvimento progressista do País, resolveu apoiá-lo condicionalmente. De acordo com a análise da direção do PCB, atuavam no governo de JK duas alas: uma nacionalista, outra entreguista. A ala nacionalista tinha o general Lott como seu representante, ao passo que o representante da entreguista era o ministro Lucas Lopes. Outra figura que já despontara como entreguista, nessa época, era Roberto Campos, então superintendente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE)(3) e já apelidado de Bob Fields. Dizia-se que falava o inglês melhor que o português. De fato, vivera muitos anos nos Estados Unidos e dominava muito bem aquele idioma.

Com este esquema explicativo, o PCB enfrentou os problemas políticos que se apresentavam. Cabe lembrar que já no período de JK apareceram os confrontos com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mais ou menos no estilo existente hoje. JK rompeu com o FMI, apoiado pelo PCB e outras forças políticas. O porta-voz de JK no Congresso, que anunciou a ruptura com o FMI, foi o industrial paulista Horácio Lafer.

WJR: Se o relacionamento do PCB com o governo JK era tão bom, por que o presidente se opôs à legalização do partido? Havia esperança de o PCB ser legalizado ou ele foi traído por JK, já que este, de passagem por Washington (janeiro de 1956), prometera ao Senado estadunidense que não legalizaria o partido?

J. G. Não se pode dizer que JK tenha traído o partido, já que ele não assumira um compromisso expresso com a legalização. Na verdade, a legalização do PCB foi algo muito difícil que só veio a acontecer durante os anos 80, na esteira da anistia. Era um assunto fechado para o establishment conservador brasileiro. E claro, a pressão sempre presente do governo dos Estados Unidos.

É preciso levar em conta que estávamos nos tempos da Guerra Fria(4) e os Estados Unidos eram governados pelo general Eisenhower — republicano — e o secretário de Estado era John Foster Dulles — um dos expoentes reacionários mais arrogantes daquele período. Portanto, legalizar o PCB, naquelas alturas, era algo certamente difícil para o governo.

WJR: A Declaração de Março, de 1958, do PCB, não significou uma estratégia de conciliação de classe com a burguesia, da qual esta tirou vantagens, ao passo que para o partido sobraram apenas desvantagens?

J. G. Sem dúvida que vista hoje, a Declaração de Março é um documento em que a burguesia recebe um tratamento que denuncia uma ilusão, partindo sempre daquele esquema de que falei: uma ala nacionalista e outra entreguista. Segundo o PCB, a burguesia também teria uma parte servil ao imperialismo e outra que queria o desenvolvimento e a independência do País.

WJR: Esta segunda parte (burguesia nacional) era hegemônica?

J. G. Não se dizia isso. O que se falava era que ela devia ser apoiada. Ou seja, a aliança que o PCB tinha em vista incluía esta parte da burguesia. Com a Declaração de Março começou a circular o termo burguesia nacional. A declaração surgiu exatamente desta necessidade de formalizar, em um documento oficial, a política que na prática já estava sendo implementada. Isto porque os documentos oficiais do PCB ainda eram os do início dos anos de 1950, sectários e de uma retórica inteiramente fora de contexto. Por isso, surgiu a idéia de fazer uma declaração prevendo os termos de uma nova política. Como se achava que a elaboração deste documento no Comitê Central seria inviável — isto porque dele participavam o Amazonas, o Grabois e outros ligados a estes (fundadores do PC do B, mais tarde) —, então pensou-se em fazer um documento fora do Comitê Central, assinado pelo Prestes e que seria jogado na mesa como fato consumado. Prestes concordou com isso. Embora estivesse ainda na clandestinidade, já não se encontrava isolado. Vários companheiros, fora da Comissão Executiva, tiveram acesso a ele. Constituiu-se uma comissão que, à margem do Comitê Central, elaborou a declaração. Deste modo, o Comitê não teve alternativa a não ser encampar a idéia. Já era um fato consumado. Logo viria o V Congresso, em 1960, que respaldou tais teses. Este foi o encaminhamento do PCB diante do governo de JK.

WJR: O PCB fez duras críticas ao Getúlio, chegando a chamar o seu governo de traição nacional. Na verdade o Getúlio tinha posições mais contundentes contra o colonialismo e o capital estrangeiro, ao passo que JK fazia exatamente o contrário. Não seria uma incongruência do PCB apoiar JK?

J. G. O governo de JK não era entreguista, mas sim contraditório. Ele apoiava os Estados Unidos, mas ao mesmo tempo tinha um Plano de Metas de desenvolvimento econômico e procurou implementá-lo, recorrendo a empréstimos que geraram uma inflação muito alta. Foram as construções de hidrelétricas, como Furnas, Três Marias e outras. Além disso, a instalação da indústria automobilística e a ampliação da rede rodoviária. Eugênio Gudin, por exemplo, opunha-se a tudo isso, considerando uma miragem onerosa ao País. E as empresas montadoras norteamericanas — GM e Ford — que já tinham instalações no Brasil (não produziam automóveis, apenas montavam) também se opuseram a isso em um primeiro momento, o que obrigou JK a dar andamento ao seu projeto com as firmas européias: a Volkswagen, a DKW, a Simca Chambord e outras. A Volkswagen foi decisiva porque implantou uma grande instalação, e começaram a circular os automóveis produzidos no Brasil já em 1960. Este foi um acontecimento de grande repercussão.

Na verdade, JK teve atritos com o capital e os interesses norte-americanos, que não previam um pólo industrial no Brasil. Só aceitaram quando o fato estava consumado. Eles queriam que nosso país continuasse a ser exportador de matérias-primas e ao mesmo tempo importador de suas manufaturas.

A Declaração de Março, na verdade, foi um reconhecimento do erro cometido em relação a Getúlio, que levou o PCB à impotência completa quando se deu a crise de agosto, em 1954.

WJR: O senhor, no artigo Política Exterior em Crise, na revista Estudos Sociais, faz duras críticas à Operação Pan-americana (OPA). No entanto, a operação não significou um relativo avanço para a política externa de então, já que tentava barganhar um desenvolvimentismo associado diante dos Estados Unidos?

J. G. A OPA não poderia ser um plano em termos marxistas de verdadeira independência. Na verdade, JK buscava dar um peso maior à América Latina, e em particular ao Brasil. Dentro da política externa dos Estados Unidos, a América Latina não tinha peso. Com isso, JK procurava dar relevo às reivindicações brasileiras e latino-americanas.

JK não fez uma mudança radical na política externa do Brasil. Na realidade, ele passou a dar um peso maior à Europa, já que estava interessado na indústria automobilística. Para tanto, fez grandes concessões a tais indústrias. A Volkswagen, por exemplo, recebeu terrenos, créditos subsidiados, isenção de impostos e outras facilidades. Isso tudo foi feito por meio de entendimentos diplomáticos. A política externa de JK valorizou as relações com o continente europeu.

No que toca a Portugal, estava em vigor um dogma da política externa brasileira que só mudou com a Revolução dos Cravos, em 1975. Antes disso, o Brasil apoiava o colonialismo português. Quando a Índia ocupou Goa e Diu, enclaves portugueses na região, a comunidade portuguesa do Rio fez uma grande manifestação defronte do Palácio do Catete, com o apoio de JK.(5)

WJR: Não se pode afirmar que, a partir de 1958, a política externa brasileira enveredou por um lado nacionalista?

J. G. Sem dúvida. JK veio, em primeiro lugar, com o Plano de Metas. Para tanto, cercou-se de economistas que tinham uma perspectiva desenvolvimentista. Os economistas reacionários, como Gudin, oposurem-se a isso publicamente.

Também com JK teve atuação o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)(6), destinado a forjar uma ideologia desenvolvimentista e atuando na área de estudos econômicos, políticos, sociológicos e outros. Os comunistas se aproximaram do ISEB. Eu me relacionei pessoalmente com o Vieira Pinto, o Corbisier e outros. Já o Hélio Jaguaribe era tido como entreguista e sofreu críticas dos comunistas. Eu mesmo fiz um ciclo de quatro conferências no ISEB sobre o marxismo e a realidade brasileira, com grande concorrência.

WJR: O ISEB tinha um alcance sobre a sociedade brasileira ou não era algo mais que um grupo de intelectuais?

J. G. O ISEB tinha influência sobre a sociedade, pois realizava muitas conferências, influía na nomeação de ministros e dispunha de uma política editorial. Tanto que os golpistas de 1964, uma das primeiras coisas que fizeram foi invadir, depredar e acabar com o ISEB.

WJR: FHC várias vezes reivindicou o direito de comparar seu governo ao de JK. Qual é a sua avaliação, em termos comparativos, entre estes dois governos?

J. G. São períodos muito diferentes, obviamente. FHC não tem como ser considerado, por uma historiografia futura, um novo JK. Juscelino colocava em primeiro lugar o desenvolvimento, não dando importância ao aspecto inflacionário. Tanto que gastou muito para fazer as obras de infra-estrutura e, de modo particular, a construção de Brasília. Por isso a inflação disparou. No entanto, isso não o incomodava.

Já FHC, em outro contexto, age de maneira inversa. No futuro, o governo de FHC será lembrado, principalmente, por duas coisas: a) por ter estabilizado a moeda e, b) por ter feito a privatização das estatais.

JK criou várias estatais e desestabilizou a moeda. Se para JK o prioritário foi o desenvolvimento, já para FHC o mais importante é a estabilidade. Por isso, ele se submete às exigências do FMI.

E a política externa de JK tinha uma inserção maior na política internacional que a de FHC.

WJR: O fato de o governo de JK ser olhado com certa simpatia pela esquerda, hoje, se deve ao fato de FHC ter caminhado para a direita?

J. G. JK ficou na memória popular brasileira como uma figura simpática. O período dele é lembrado como uma época em que o Brasil foi pra frente(7), rompeu barreiras, criando grandes coisas como hidrelétricas e a indústria aotomobilística. Não havia desemprego, pelo contrário, grandes massas se deslocavam do Nordeste para trabalhar em São Paulo e para construir Brasília. Além disso, o surgimento de Brasília, com suas características monumentais, enchia de orgulho o povo brasileiro.

Por isso, o período de JK é olhado como um período de auto-estima, de amor próprio e de grande potencialidade do povo brasileiro. Deixou lembrança sua figura sorridente e afável.

Com certeza, JK e Getúlio serão os dois presidentes mais lembrados como estadistas na história do País, no século XX.


Notas de rodapé:

(1) Cabe lembrar que até 1958 chamava-se Partido Comunista do Brasil. A partir de então se denominou Partido Comunista Brasileiro. (retornar ao texto)

(2) Refere-se a todo um movimento golpista — composto de militares, civis e do próprio Café Filho —, destinado a inviabilizar, a qualquer custo, a chegada de JK à presidência da República. Tornara-se célebre a frase de Carlos Lacerda, pronunciada na televisão: “Juscelino não será candidato; se for candidato, não será eleito; se for eleito, não tomará posse; se tomar posse, não governará”. Um dos motivos apresentados pelo partido da União Democrática Nacional (UDN) para impugnar a vitória de JK nas eleições de 1955 foi o da “ilegalidade” dos votos comunistas. (retornar ao texto)

(3) À época, o banco não tinha o S de social e o cargo era o de superintendente superior. (retornar ao texto)

(4) Halliday divide as políticas do pós-guerra em quatro fases, levando em conta as relações dos Estados Unidos com a União Soviética. São elas: fase 1: a primeira Guerra Fria, de 1946 a 1953; fase 2: o período de antagonismo oscilatório, de 1953 a 1969; fase 3: a distensão, de 1969 a 1979; e fase 4: a segunda Guerra Fria, de 1979 em diante [provavelmente até 1989]. HALLIDAY, Fred. Génesis de la Segunda Guerra Fría. México: Fundo de Cultura Econômica, 1989, pp. 23-26. (retornar ao texto)

(5) O apoio à política colonialista portuguesa se deu principalmente em votações nas Nações Unidas. O delegado indiano — R. Jaipal —, depois de escutar a defesa do diplomata brasileiro Donatello Grieco proclamando a missão civilizadora de Portugal no além-mar, disse que “nunca ouvira uma exposição mais fiel ao ponto de vista português do que aquela que acabara de fazer o representante do Brasil”. Diário de Lisboa, 31 de janeiro de 1957. (retornar ao texto)

(6) Criado em 14 de julho de 1955 pelo presidente Café Filho, foi extinto em 13 de abril de 1964 pelo então presidente interino Paschoal Ranieri Mazzili. Costuma-se dividir o ISEB em duas fases: uma de perfil moderado, também chamada de centro-esquerda durante os anos 50, e outra mais radicalizada, nos anos 60. (retornar ao texto)

(7) Se entre 1945/1956 o produto nacional bruto (PNB) cresceu 5,2% e a renda per capita 2,5% por ano, já no período 1957/1961 o PNB atingiu a cifra de 7% ao ano e a renda per capita, por sua vez, 3,8%. Já o crescimento da produção industrial (1955/1961) chegou a 80% (em preços constantes), com as porcentagens mais altas registradas pelas indústrias de aço (100%), indústrias mecânicas (125%), indústrias elétricas e de comunicações (380%) e indústrias de equipamentos de transportes (600%). Para a década de 1950 o crescimento per capitareal do Brasil foi cerca de três vezes maior que o restante da América Latina. Veja-se BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O Governo Kubitschek. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 204. (retornar ao texto)

Inclusão: 09/03/2021