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Fonte: Revista Estudos Sociais, nº 3-4, set-dez/1958, pág: 335-352.
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Ao abordar a realidade social, não pode aquele, que se dedica ao seu estudo, prescindir de um aparelho conceituai previamente elaborado, isto é, de uma teoria da vida social, com as suas categorias básicas, os seus pontos de vista, os seus princípios e processos metodológicos daí decorrentes. Mesmo o pesquisador de espírito mais empírico já parte para o trabalho com uni estoque qualquer de conceitos e julgamentos, ainda que somente para justificar o seu empirismo. A necessidade de instrumentos teóricos previamente elaborados para o estudo da realidade social não significa, entretanto — cumpre adverti-lo —, subordinação obrigatória a sistemas apriorísticos de qualquer ordem ou fixação das categorias teóricas em moldes imutáveis. Compreende-se que, refletindo a natureza dos fatos objetivos e aplicado a eles, o aparelho conceituai de mais elevado nível científico, precisamente porque o conhecimento atinge essências sempre mais profundas, não resiste à imposição de incorporar novas categorias ou de aplicar diferentes processos metodológicos. É o que nos dirá a história das ciências, se a ela recorrermos.
Coloquemos, então, a seguinte questão: pode a realidade social brasileira ser estudada através das categorias, dos princípios e dos pontos de vista inerentes a teorias, que se constituíram à base do conhecimento da realidade social de outros países?
A questão seria considerada absurda, não resta dúvida, se se tratasse das ciências naturais. No que se refere, porém, às ciências sociais, a sua postulação, ao menos para fins polêmicos, é justificável. E, no caso brasileiro, ela tem demasiado cabimento se considerarmos a ausência de suficiente espírito crítico mesmo de alguns dos melhores entre os nossos pensadores do passado diante de teorias importadas. Frequentemente, essas teorias já eram falsas no próprio meio de origem, mas o seu aparecimento ali obedecia a qualquer motivação social intrínseca, correspondia a certo condicionamento histórico direto, o que não acontecia, senão talvez de modo muito indireto, com a sua transplantação literal, ao meio brasileiro. Um exemplo típico, parece-nos, foi o de homens como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e João Ribeiro. Deles não se pode dizer que tivessem inclinação para o obscurantismo. Bem ao contrário, foram inovadores dos estudos históricos e sociais em nosso país. Apesar disto, na busca de orientação teórica, receberam influências diversas (determinismo geográfico, culturalismo histórico alemão), mas o que fere, em especial, a atenção, é a influência, identificável em todos três, de teorias antropológicas e sociológicas reacionárias de fundo racista, prestigiadas, em sua época, nos meios universitários europeus. Homens de tendência sob muitos aspectos progressista, a sua própria obra, na medida em que se aprofunda nos fatos, desmente aquelas teorias, a que entretanto prestaram tributo. Mas a aceitação não crítica delas devia prejudicar, e em certos passos completamente, o esforço de interpretação e generalização que há em “Os Africanos no Brasil”, em “Os Sertões” ou nos estudos históricos de João Ribeiro. As concepções derivadas do determinismo racial não podiam deixar de contribuir para afastá-los das verdadeiras causas dos fatos que estudavam e de levá-los, aqui e ali, a construções despropositadas pelo seu caráter artificioso e chocantes pelo seu sentido reacionário.
Se nos voltarmos presentemente para a sociologia, como disciplina universitária de difusão já considerável e objeto de múltiplos estudos no Brasil, encontraremos com facilidade a influência da sociologia oficial norte-americana, não somente com as suas concepções gerais e processos de pesquisa, mas até mesmo com a sua temática. Será legítima esta influência, pode ela produzir resultados benéficos para o desenvolvimento dos estudos sociológicos brasileiros num plano científico?
A este problema, como a toda a questão da aplicação das diversas teorias sociológicas à realidade brasileira, pretende responder o sr. Guerreiro Ramos, com uma obra recente.(1) Precisamente por ter dado ao assunto um tratamento bastante sistemático, que se centraliza em torno de uma série de afirmações conclusivas, tomaremos essa obra para ponto de referência inicial no exame da questão que levantamos acima.
Desde logo, concordaremos com o sr. Guerreiro Ramos quando afirma:
“Um estado de espírito generalizado não surge arbitrariamente. Reflete sempre condições objetivas que variam de coletividade para coletividade”.(2)
Estas condições objetivas são os fatos materiais, os fatos da vida econômica, como a industrialização, a urbanização e as alterações do consumo popular que caracterizam, segundo aquele autor, a nova etapa do processo histórico-social do povo brasileiro. Daí a sua afirmativa:
”No Brasil, essas condições objetivas, que estão suscitando um esforço correlato de criação intelectual, consistem principalmente no conjunto de transformações da infraestrutura que levam o país à superação do caráter reflexo de sua economia. Desde que nele se configurou um processo de industrialização em alto nível capitalista, converteu-se o espaço nacional num âmbito em que se verifica um processo mediante o qual o povo brasileiro se esforça em apropriar-se de sua circunstância, combinando racionalmente os fatores de que dispõe. O imperativo do desenvolvimento suscitou a consciência crítica.”(3)
A consciência crítica lembra a velha autoconsciência hegeliana e é empregada pelo sociólogo patrício no sentido de tomada de consciência coletiva dos fatores e da problemática do desenvolvimento nacional, no sentido de aspiração explícita da nação brasileira à sua completa autodeterminação.
Como apreender, em termos científicos, o que há de essencial nesta realidade, isto é, o seu processo de transformarão encaminhado para um desenvolvimento nacional independente, aplicando-lhe, sem qualquer adaptação, critérios teóricos e metodológicos que surgiram de condições sociais inteiramente diversas?
As melhores páginas de “A Redução Sociológica” são, segundo pensamos, aquelas em que o seu autor expõe à crítica este vício tão constante em nossa história intelectual e que consiste em submeter-se servilmente à produção intelectual estrangeira e copiá-la de modo mecânico É certo que esta constante não deve ser exagerada ao ponto de deixar de perceber que, nos pensadores de verdadeiro espírito criador como Euclides da Cunha, as más teorias estrangeiras se combinaram a profundas observações e apreciações da vida social do país. Além disto, o julgamento dos pensadores do nosso passado não pode ser feito sob o critério exclusivo da originalidade de sua contribuição no plano da teoria, tão difícil, aliás, em esferas elevadas da cultura, como a filosofia e a sociologia. Aqueles que lutaram contra preconceitos obscurantistas, geralmente clericais, nas condições de uma sociedade muito atrasada como era a do Brasil no século XIX e mesmo em princípios do atual buscando na produção estrangeira, embora sem assimilá-la criticamente, novos caminhos de orientação progressista para a investigação histórica, social e filosófica, prepararam o terreno — e nisto está um grande mérito — para o esforço original que devia vir mais tarde. Feita esta ressalva, cabível porque não acreditamos se inicie somente agora, com o ISEB, a legitima cultura nacional, parece-nos, porém, indiscutível, que a fraqueza teórica, a reduzida altitude filosófica, por assim dizer, que assinala a história intelectual brasileira foi, ao mesmo tempo, causa e efeito de uma receptividade pouco provida de criticismo às ideias produzidas nos chamados grandes centros da cultura.
O esforço crítico do sr. Guerreiro Ramos se valoriza especialmente ao considerar o panorama atual da sociologia universitária no Brasil, com o predomínio que sobre ela exercem os critérios sociológicos de origem norte-americana. Tais critérios se explicam nos Estados Unidos, em virtude dos interesses de classe de uma poderosa burguesia, que “controlam” a vida social norte-americana. O seu objetivo não é senão o de “... anular as tensões, conservando a estrutura jã estabelecida..”(4), sendo justo, pois, concluir com o sr. Guerreiro Ramos:
“A ‘conservação social’ é, grasso modo, a essência da ideologia em que se fundamentam as ciências sociais nos Estados Unidos”.(5)
Em nosso país, porém, a sociologia, deve estar voltada para direção oposta, pois “... a solução dos antagonismos fundamentais da atual sociedade brasileira requer antes a mudança na qualidade de sua estrutura.” O modo de especulação sociológica, que justifica a preocupação do especialista norte-americano com noções como “conflito”, “acomodação”, “assimilação”, “controle social”, se literalmente adotado pelo sociólogo brasileiro, o leva a distrair-se das questões que têm mais interesse para a coletividade nacional. Os antagonismos essenciais da sociedade brasileira são atualmente os que se exprimem na polaridade “estagnação” e “desenvolvimento”, representados por classes sociais de interesses conflitantes, e ainda “nação” e “antinação”, isto é, um processo coletivo de personalização histórica contra um processo de alienação. Outras contradições que não se enquadram nestes termos são, no momento, secundárias.”(6)
O sr. Guerreiro Ramos alcança, desta maneira, uma contradição essencial inerente ao atual processo histórico brasileiro. Nós, comunistas, consideramos, e já o dissemos numa Declaração, que esta contradição se tornou a principal, a dominante da sociedade brasileira, no atual período de sua vida. Trata-se de uma contradição que polariza a nação em desenvolvimento, com as suas forças progressistas e revolucionárias em expansão (dentro de marcos capitalistas, únicos possíveis no momento), em oposição ao imperialismo norte-americano e aos círculos econômicos e sociais, que o apoiam internamente. Este antagonismo, que ainda deverá atingir mais elevados graus de tensão, estende a sua influência sobre todas as esferas da vida econômico-social brasileira e é parte integrante do antagonismo mais vasto, que está liquidando o colonialismo e o semicolonialismo no mundo inteiro. O sr. Guerreiro Ramos chegou à essência do processo histórico, porém, como veremos adiante, não o fez sem padecer de estreiteza específica.
Disto resulta claro que a sociologia no Brasil não pode se subordinar aos critérios orientadores nem à temática da grande maioria dos sociólogos norte-americanos. Estes não se propõem transformar a estrutura social existente no seu país, mas conservá-la e, no melhor dos casos, submetê-la a algumas reformas. Consciente ou inconscientemente, o seu propósito não é superar contradições, o que significa atingir um estádio mais alto do desenvolvimento, mas atenuá-las, anular ou limitar, tanto quanto possível, os seus efeitos, é perfeitamente compreensível, por isto, que esses sociólogos norte-americanos evitem ascender a planos teóricos mais elevados, onde possa ser posta em causa a estrutura da sociedade, que é objeto dos seus estudos. Garantem as suas carreiras universitárias, manejando um aparelho conceituai de tipo empírico e pragmático, que fragmenta ao máximo a vida social e focaliza isoladamente aqueles aspectos e problemas, cujo exame, superficialmente empírico e para fins pragmáticos de curto alcance, a burguesia norte-americana pode admitir. É certo que também existem nos Estados Unidos os sociólogos não conformistas, que submetem à crítica, com maior ou menor profundidade, inclusive do ponto-de-vista do marxismo, a sociedade do seu país. Mas estes constituem minoria, à qual o sr. Guerreiro Ramos não deixa de fazer referência.
Já diante dos sociólogos brasileiros, que desejem dar “funcionalidade”, como se expressa aquele professor do ISEB, à sua ciência, se apresenta o imperativo de ascender audaciosamente no plano teórico, a fim de captar os processos fundamentais e as necessidades históricas de nossa sociedade. Ascender no plano teórico significa elaborar os critérios, na esfera das categorias, dos princípios metodológicos e da temática, que conduzam à interpretação da realidade social brasileira com o objetivo de transformá-la.
Esta tarefa, para ser cumprida, exige o que o sr. Guerreiro Ramos denomina, por motivos filosóficos que deveremos analisar, de “redução sociológica.” Visa esta, segundo o seu autor, dar às ciências sociais no Brasil um ponto-de-vista nacional, substituindo a “assimilação literal e passiva dos produtos científicos importados” por um “procedimento metódico que procura tornar sistemática a assimilação crítica”.(7) Não se trata, frisa o autor, de isolar os estudos sociológicos brasileiros de tudo o que, neste terreno, se faz fora de nosso país. O caráter universal da ciência não é negado e o sr. Guerreiro Ramos se refere a uma “instância de enunciados gerais que constituem o núcleo central do raciocínio sociológico.”(8)
O que é necessário é que a sociedade brasileira tenha, nos estudos sociais, uma função “centrípeta” e não “reflexa”, de acordo com as exigências do novo processo histórico. Por este motivo, ao invés de simplesmente transplantada, através da cópia ou da imitação, a produção, sociológica estrangeira deverá ser “reduzida” aos critérios nacionais, isto é, submetida ao procedimento da depuração crítica, do qual poderão resultar categorias e conceitos adequados ao estudo em profundidade da realidade social do nosso país.
A “redução sociológica” só pode ser praticada, frisa a obra que estamos comentando, por aqueles que assumem um “compromisso” com a sociedade em que vivem, que se põem numa atitude de “engajamento” sistemático para com as necessidades geradas pelo seu meio nacional. Aquele que prefere ser “neutro” diante dessas necessidades, não poderá, pelo menos de modo sistemático e consciente, “reduzir” a elas, às particularidades de sua sociedade, as categorias e os princípios metodológicos das ciências sociais. O autor tocou aqui num preconceito muito difundido pela sociologia universitária: o preconceito do “desinteresse”, da “imparcialidade” das ciências sociais. Sucumbir diante dele, num país que luta para se emancipar, é aceitar a “servidão intelectual”, é não transcender da “condição de copista e repetidor.”
O sr. Guerreiro Ramos formula na sua obra o que considera as “leis da redução sociológica”. Mais apropriado, segundo pensamos, seria falar de princípios metodológicos. Enumeremos, porém, aquelas “leis”: lei do comprometimento (adoção sistemática de uma posição de engajamento ou de compromisso consciente com o seu contexto); lei do caráter subsidiário da produção científica estrangeira; lei da universalidade dos princípios gerais da ciência; e lei das fases (a razão dos problemas de uma sociedade particular é sempre dada pela fase em que tal sociedade se encontra).
Até aqui nos detivemos no comentário do que chamaríamos de “núcleo racional” de uma obra, que nos parece típica da atual produção ideológica do ISEB. Serão, no entanto, suficientes estas ideias para dar solução ao problema proposto? Veremos que elas apenas se aproximam da solução, sem atingi-la. Ficam a meio caminho e por isto contêm a possibilidade de desvios e recuos inaceitáveis, que anulariam o avanço já conseguido. Daí porque a própria “A Redução Sociológica” não se “reduza” somente àquele “núcleo racional”, nem este se apresenta em estado puro, de fácil identificação. Ao racional se mistura o irracional e a este último também é indispensável referir-se para a indispensável crítica.
Uma determinante do pensamento do sr. Guerreiro Ramos é a realidade social objetiva, onde consegue apreender os processos de desenvolvimento capitalista e de luta pela emancipação nacional. Outra determinante, de caráter puramente intelectual, é a filosofia existencialista. A interpretação de dados estatísticos sobre o crescimento da indústria nacional se associa, sem transição, às categorias elaboradas pelo subjetivismo exacerbado de Husserl, Heidegger e Jaspers. Pode ser considerada legítima tão estranha simbiose?
Esta é também a contradição de todo um grupo de professores do ISEB. Enquanto não se decidem a superar a contradição, preferem acomodá-la em construções ecléticas, que não se recomendam por especial mérito teórico.
Já vimos que a “redução sociológica” resulta de considerações bastante objetivas, que se referem a problemas concretos da vida do país, e, em particular, à linha de desenvolvimento da sua cultura. Ainda que se possa discordar de certas afirmações ou da esquematização que o sr. Guerreiro Ramos deu à questão, cumpre reconhecer que ela tem oportunidade, que é uma questão fecunda. Ao mesmo tempo, porém, a “redução sociológica” se inspira diretamente na "redução fenomenológica” de Husserl. Qual o significado que isto pode ter?
Com a sua “redução”, (Husserl, que não foi propriamente existencialista, mas precursor desta corrente, pretendeu superar a oposição entre o mate- rialismo e o idealismo na esfera da gnoseologia. A realidade objetiva não é negada, como o faz o idealismo subjetivo consequente. Apenas o filósofo abstrai do caráter exterior ao sujeito desta realidade, “suspende” ou “põe entre parêntesis”, como dizem os fenomenólogos, a questão de um mundo material independente do sujeito consciente. As coisas objetivas passam a ser focalizadas exclusivamente no fluxo da atividade consciente, que as apreende e incorpora a si mesma, “reduzidas” a fenômenos da consciência Esta, por sua vez, deixa de ser estudada como substância que se basta a si mesma, à maneira do velho idealismo, sendo substituída pelos “estados” ou "atos” de consciência, que se sucedem sem descontinuidade como consciência disto ou daquilo. Não se trata simplesmente da influência recíproca entre sujeito e objeto, fato que o sr. Guerreiro Ramos(9) julga não ter sido “visto pelas antigas teorias gnoseológicas” e, entretanto, muito antes de Husserl, foi uma questão dialeticamente tratada por Hegel e Marx. A fenomenologia pretende evitar todos os relativismos possíveis na distinção entre sujeito e objeto para atingir a certeza filosófica absoluta através da fusão Integral entre o sujeito, que só é “consciência do objeto”, e o objeto, que não pode ser descrito senão como objeto da consciência” Esta fusão ou confusão é carregada de “intencionalidade”, tanto por parte do ato consciente para com o seu objeto como deste para com aquele. Ambos são possíveis somente coexistindo. O filósofo desiste de analisar, abandona os processos discursivos de raciocínio, os conceitos e as categorias, tudo enfim que leva o pensamento a distinguir sujeito de objeto, a seccionar conceitualmente a realidade e pretender atingir a sua essência de modo mediato. O pensamento não deve se voltar mais do que para os dados imediatos da consciência, visando não mais do que descrevê-los intuitivamente no seu fluxo subjetivo unitário e total. A essência absoluta seria atingida nesta simples descrição do imediato da experiência subjetiva, ou seja, dos fenômenos da consciência (vale observar que estes são considerados muito além dos simples dados empíricos, sensoriais).
Teremos aí, de fato, a superação do materialismo e do idealismo na gnoseologia?
Na verdade, Husserl não fez mais do que adaptar o idealismo subjetivo a certas circunstâncias contemporâneas decorrentes do progresso científico em nossa época: em 1º lugar, a impossibilidade do idealismo objetivo, exceto em sua forma expressamente religiosa; em 2º lugar, a impossibilidade de um idealismo subjetivo consequente até o fim, isto é, até o solipsismo. Daí porque Husserl e outros tentem procurado “completar” o idealismo subjetivo com uma espécie de “pseudo-objetividade”, como diz Georges Lukacs.
O ponto de partida de Husserl é o mesmo de Descartes: Ego cogito. Mas enquanto Descartes, mesmo por uma via racionalista, partiu desta primeira evidência existencial para as evidências do mundo objetivo, Husserl segue em direção oposta e se enclausura na subjetividade, pois somente dentro dela, “reduzindo-a” o mais que pode, concebe a possibilidade legítima de apreender o objeto do conhecimento. O mundo objetivo se transforma assim no “mundo da consciência.” Ás coisas não são vistas fora de nós, mas dentro de nós, introspectivamente.
Este é o “terceiro caminho” filosófico, que não conduz a algo propriamente original, mas ao mesmo velho idealismo. Daí afirmar com razão Lukacs, tratando precisamente de ‘Husserl:
“Existirá um ‘terceiro caminho’, fora do idealismo e do materialismo? Para aquele que considere a questão de modo sério, no espírito dos grandes filósofos do passado, desdenhando as frases vazias de certos pensadores modernos, a resposta não pode ser senão negativa. Não há, com efeito, senão duas possibilidades: primado da existência sobre a consciência ou inversamente primado da consciência sobre a existência. Os sistemas filosóficos em voga, que se orientam para o ‘terceiro caminho’, põem habitualmente a correlação da existência e da consciência, proclamando que uma não poderia existir sem a outra. Com esta afirmação, chega-se a expulsar o idealismo pela porta para fazê-lo voltar pela janela, uma vez que, admitindo que a existência não pode existir sem a consciência, abandona-se o materialismo, segundo o qual a existência é independente da consciência.”(10)
O sr. Guerreiro Ramos se apoia, por conseguinte, num péssimo suporte filosófico, que, no plano dos princípios, tira a legitimidade da sua especulação sobre a atividade sociológica no Brasil. É verdade que o sr. Guerreiro Ramos tenta estabelecer uma distinção:
“É preciso — afirma — distinguir a intencionalidade do eu puro da intencionalidade do eu concreto, episódico, historicamente configurado. O eu puro só é sujeito do ponto de vista da redução transcendental. Para a redução sociológica, o sujeito é, porém, o eu concreto, inserido na comunidade.”(11)
Esta ressalva não é suficiente, porém, para resolver a questão. Continuamos no plano da subjetividade, sobre o qual é impossível lançar as bases de uma sociologia científica. Substituído o “eu puro” de Husserl pelo “eu concreto”, isto nos permitirá talvez apreender certos fatores sociais, ampliar relativamente o campo de observação, mas a premissa fundamental continua a ser a consciência individual sob cuja perspectiva “intencional” são colocados os fatos sociais. E, embora o sr. Guerreiro Ramos faça também passageira objeção a respeito do relativismo, é inevitável que este se torne o seu princípio gnoseológico superior, desde quando fundamenta a pesquisa sociológica no eu individual, por mais conteúdo histórico concreto lhe atribua. Não é casual, por isto, que considere Karl Mannheim, com a sua “sociologia do saber”, um precursor do método de “redução”. Preocupado legitimamente em combater o espírito dogmático na sociologia, que impede o estudo da sociedade brasileira nas suas ricas particularidades, o sr. Guerreiro Ramos acaba aceitando, do ponto de vista de princípios, um relativismo extremado demais para ser compatível com a ciência. E, assim, enquanto Husserl, com a sua “redução fenomenológica”, pretendia salvar alguns valores filosóficos absolutos, a mesma noção, transferida para o campo da sociologia, produz um relativismo sem limites. O que não é senão a dialética da transformação no próprio contrário.
Poderão dizer-nos que a relatividade já penetrou todas as ciências, mesmo as mais exatas. Mas isto demonstra somente a superioridade do pensamento dialético, indispensável às ciências modernas. Uma coisa é a relatividade como elemento dialético necessário ao processo do conhecimento — o que não é concebido pelos dogmáticos — e outra coisa é o relativismo constituído em princípio gnoseológico supremo. Eis o que a respeito afirmou Lenin:
“A dialética, como já o explicava Hegel, inclui, como um dos seus elementos, o relativismo, a negação, o ceticismo, mas não se reduz a isto; ela admite a relatividade de todos os nossos conhecimentos, nunca no sentido da negação da verdade objetiva, mas no sentido da relatividade histórica dos limites da aproximação de nossos conhecimentos em relação a esta verdade.”(12)
Que a transição do “eu puro” para o “eu concreto” não altera substancialmente a situação se comprova com o largo emprego que o sr. Guerreiro Ramos faz das noções heideggerianas de “ser-no-mundo” (in-der-Welt-sdn) a “ser-com-outro” (miteinandersein). Aqui já estamos em plena filosofia existencialista. Retomando temas de Kierkegaard e aplicando o método da fenomenologia, Heidegger “reduz” a existência ao imediatamente vivido pela consciência absolutamente pessoal, despojada de tudo o que lhe é estranho (o social, o racional). Mas esta “redução” deve ser praticada no “mundo” em que o ser (individual) se encontra. Qual é, porém, o caráter deste “mundo”? Novamente nos defrontamos com aquela espécie de “pseudo-objetividade” tão procurada pelo idealismo subjetivo atual. O sr. Guerreiro Ramos se encarrega de nos informar: “O mundo — eis o que pensa Heidegger — não é mais o que se tem admitido na tradição filosófica, um conjunto de coisas ou realidades subsistentes, um dado externo ao homem”.
Assim, pois, quando se diz que o homem é um “ser-no-mundo” de modo algum se afirma que a essência do homem, como dizia Marx, é o conjunto das relações sociais, que o ser humano está na dependência de meio social que o cerca a no qual ele se integra objetivamente, Ao contrário, continuamos por inteiro no plano da subjetividade. O “mundo” é a trama não-objetiva da consciência individual com os “outros”, isto é, com ps outros indivíduos. Mais uma vez, sujeito e objeto se confundem e só existem coexistindo. Além disto, o “mundo” é um a priori do conhecimento, um “sistema de referências” que predetermina para o indivíduo a perspectiva intencional da sua percepção da vida social. Por isto, os mesmos fatos não poderiam ser vistos da mesma maneira, com igual “intencionalidade”, por um francês e um alemão, por um brasileiro e um americano. E por isto também Spencer tem sentido para os ingleses, Comte para os franceses, Marx Weber para os alemães, e assim por diante.
Se as palavras não são para tergiversar, aí temos o puro idealismo a que, afinal, se reduzem todas as chamadas filosofias da “existência”. O resultado de sua aplicação à sociologia não será outro: subjetivização radical das relações sociais (em cuja crítica não devemos passar à objetivização absoluta tentada por Durkheim) e relativismo à outrance. A verdade objetiva se torna uma impossibilidade, o que nos impõe substituir a ciência por um qualquer sucedâneo especulativo e pragmático. Mas isto absolutamente não nos levará àquele iluminado conhecimento da realidade social brasileira, que tantos buscam, inclusive o sr. Guerreiro Ramos. A partir de tais premissas filosóficas, se formos coerentes com elas, o esforço para assimilar categorias cientificamente, aplicáveis à vida social em nosso país se desviará pelos caminhos mais contraditórios, podendo chegar ao absurdo.
Na verdade, o que salva o sr. Guerreiro Ramos e os demais existencialistas do ISEB é que, sob a influência de uma “determinante objetiva” no trato das questões nacionais, não são e não podem ser coerentes com as suas premissas filosóficas. Mas esta é apenas uma salvação pela metade.
Não estenderemos a análise a outras noções da filosofia existencialista — como a de “projeto” — a que se recorre fartamente em “A Redução Sociológica.” Limitamo-nos a assinalar este fenômeno bem brasileiro: ideólogos da burguesia de um país subdesenvolvido, a qual ainda tem um papel progressista a desempenhar, aceitam como padrão espiritual a filosofia decadente da burguesia imperialista. O existencialismo constitui, precisamente, o ponto culminante da linhagem irracionalista e niilista, que prevalece na filosofia burguesa da época do imperialismo. Não foi de maneira alguma casual a receptividade que encontrou na Alemanha de Hitler.
Não teremos aí, porventura, mais uma manifestação daquela “mentalidade colonial” que o sr. Guerreiro Ramos com tanta razão combate?
Os intelectuais da burguesia republicana do século passado transplantaram da Europa para o Brasil o positivismo, filosofia característica de uma burguesia que passara já de revolucionária a conservadora. É desnecessário insistir aqui no que isto encerrava de “servidão intelectual”. Nos meados do nosso século, a burguesia brasileira é mais forte e tem à sua frente, ao lado de outras forças sociais, tarefas mais elevadas, mais amadurecidas do que no século passado. Por sua vez, a burguesia da Europa Ocidental, com o imperialismo, atingiu o máximo da degradação reacionária. E é justamente o produto ideológico dessa degradação — o existencialismo — que certa parte dos intelectuais burgueses do presente transplanta para o nosso país. Novamente — e em proporções muito mais graves — a mesma “servidão intelectual.”
O sr. Guerreiro Ramos poderá dizer que não se trata de simples transplantação, mas de assimilação através da “redução sociológica.” Somos de opinião, porém, que nada tão estéril no terreno da teoria do que este esforço para acondicionar os autores existencialistas e deles extrair a superestrutura ideológica de um movimento que, mesmo dentro de marcos burgueses, se volta para a emancipação nacional e o progresso social.
Não há, por isto, porque aceitar como benfazejo para a cultura brasileira o fato de que o ISEB tenha iniciado a sua coleção de textos de filosofia contemporânea com a tradução de uma obra de Karl Jaspers: “Razão e Anti-Razão em nosso tempo.” Ao contrário de "genuína obra de filosofia”, como afirma o sr. Vieira Pinto, nela temos o exemplo, se é possível dizer, integral do mau filosofar. Os grandes idealistas alemães da época clássica, sobretudo Kant e Hegel, nem sempre foram coerentes, mas possuíam dignidade intelectual para respeitar a verdade dos conceitos. Os seus sistemas são por isto marcos elevados na história do pensamento e não frutos pêcos da arte de sofismar. Esta dignidade intelectual não existe em muitos idealistas modernos como Jaspers. Com espantosa sem-cerimônia, que somente um sofista se permitiria, apropria-se do imenso prestígio que é inerente à Razão em nosso tempo e o transfere, qual mágico de circo, para o irracionalismo ansioso de salvação metafísica. A Razão não é a Razão da ciência moderna, pois se encontra acima e além da ciência (esta deve ser aceita e mesmo respeitada, porém conformada com a sua limitação, com a sua impotência). A Razão é o inapreensível, o não-conceitual, adquire-se por uma decisão misteriosa, voltada para o Ser absoluto e supra-histórico. E assim julga Jaspers possível convencer-nos que, ao contrário d0 geralmente admitido, o irracional é que é a verdadeira Razão, o grau mais alto do conhecimento. Não surpreende, por isto, que, inversamente, considere o marxismo uma espécie de magia.
Tão absurda inversão de conceitos o próprio existencialismo não havia atingido.
Que proveito poderá haver em infiltrar no pensamento progressista brasileiro uma componente irracional?
Esta é a responsabilidade que assumem os ideólogos do ISEB.
Voltamos à questão original: onde encontrar a teoria sociológica adequada ao estudo científico do devenir essencial da sociedade brasileira, com tudo o que ela tem de próprio, de particular?
O sr. Guerreiro Ramos se refere à “instância de enunciados gerais que constituem o núcleo central do raciocínio sociológico.” Mas eis os autores dos quais julga deva ser extraído esse núcleo de enunciados gerais: Karl Marx, Comte, Spencer, Georg Simmel, F. Tonnies, Max Weber, Max Scheler, Durkheim, Gabriel Tarde, Vilfredo Pareto e outros...(13) A isto se acrescentam esforços especiais para combinar o existencialismo com o marxismo. O ecletismo não se detém aí diante de qualquer limite. Seria este um dos piores pontos de partida para chegar a uma teoria sociológica íntegra e correta.
Certo, também seria muito mau optar pelo dogmatismo, como ponta oposta de um dilema. Pensadores de diferente orientação teórica podem contribuir, embora em grau desigual, para o acervo das verdades científicas. Este ou aquele aspecto da realidade objetiva pode se refletir com relativa fidelidade, com maior ou menor refração, mesmo numa teoria falsa no seu conjunto ou por seus princípios. Se bem que em proporções mais limitadas do que nas ciências naturais, isto não deixa de ocorrer no campo das ciências sociais. Daí não se segue, todavia, qualquer justificação da indiferença teórica. Muito mais do que os empíricos e os ecléticos, contribuíram para a história do pensamento os sábios que aspiraram à coerência teórica e souberam realizá-la no plano superior dos conhecimentos de sua época. Engels muitas vezes ridicularizou a estreiteza empírica das ciências naturais do seu tempo, demonstrando como ao avanço delas era indispensável o pensamento teórico. E dizia ainda que os cientistas que desprezam a filosofia (entendida como teoria do pensamento) não estavam menos escravizados a ela, “mas infelizmente na maioria dos casos à pior filosofia”...(14)
Para atingir a coerência teórica no terreno da sociologia, é preciso abandonar duas ideias caras ao sr. Guerreiro Ramos e a outros professores do ISEB: as ideias da ideologia do desenvolvimento e da sociologia nacional.
Elaborar a “ideologia do desenvolvimento”, a "ideologia do progresso nacional” e até mesmo a “filosofia do desenvolvimento” — esta a aspiração anunciada há dois anos atrás pelo sr. Álvaro Vieira Pinto.
“Não se trata aqui — dizia então — de defender nenhum interesse particular ou de grupo mas de exprimir o interesse geral da sociedade brasileira, o interesse nacional.”(15)
O sr. Guerreiro Ramos, por sua vez, tem se referido à “ideologia global da nação” e o sr. Roland Corbisier, numa conferência, afirmando que o nacionalismo devia ser esta ideologia global, explicava que a ela cabia “traduzir os interesses e as expectativas da burguesia industrial, da lavoura de base tecnológica (ou seja, dos agricultores capitalistas — J.G.), do proletariado e da classe média esclarecida”.
Nas sociedades divididas em classes, as ideologias são sistemas de ideias que refletem a realidade social do ponto-de-vista dos interesses de determinadas classes. Podem classes socialmente contrapostas aceitar uma ideologia única, global?
A sociedade brasileira possui, na verdade, na atual etapa do seu processo histórico, um interesse geral: o de se emancipar nacionalmente da opressão imperialista norte-americana. Este interesse geral desperta, estimula e fortalece a autoconsciência nacional, que é comum a todo o povo brasileiro. Deste interesse geral surgiu o movimento nacionalista, ou seja, uma aliança política, que abrange o proletariado, os camponeses, a burguesia e outras forças sociais. É utópico, porém, como fazem alguns professores do ISEB, extrapolar a aliança política para o plano da ideologia. Se o interesse geral é a questão principal desta fase, entretanto não elimina as contradições de classe e estas se refletem inevitavelmente nas contradições ideológicas. A aspiração a formular, pretensamente acima das classes, a ideologia global para uma nação dividida em classes, constitui, consciente ou inconscientemente, genuína aspiração burguesa. O seu objetivo social consiste em ganhar para a ideologia da burguesia aquelas massas, cuja ação o sr. Vieira Pinto, como nacionalista e como democrata, sabe e proclama indispensável ao desenvolvimento nacional. O este objetivo não pode deixar de se opor o proletariado consciente, que possui a sua ideologia própria, muito mais avançada, voltada, além da emancipação nacional, para o socialismo e a sociedade sem classes. Daí porque o proletariado, aliando-se à burguesia na luta pela emancipação nacional, não só deverá permanentemente defender-se do agravamento da exploração capitalista, como empenhar-se, no seu papel de força de vanguarda, por um curso consequente da revolução anti-imperialista e antifeudal.
As mesmas considerações são válidas para a ideia de uma sociologia nacional, Ao ponto-de-vista teórico, parte das premissas idealistas e relativistas, que já examinamos acima. Do ponto-de-vista do seu conteúdo de classe, é também uma ideia burguesa.
O sr. Guerreiro Ramos reclama do sociólogo uma atitude engagé para com a sua sociedade nacional. Esta posição se encontra, sem dúvida, acima da falsa imparcialidade pretendida principalmente pelos seguidores da sociologia norte-americana. Apesar, porém, das possibilidades que encerra, aquela tese do sociólogo isebiano é falsa, em virtude da estreiteza específica (de classe) que o leva a focalizar, com bastante acuidade, a contradição nacional e ao mesmo tempo a subestimar as contradições entre as classes sociais. Mas é no terreno destas que o sociólogo deve tomar partidocom o máximo de consciência. A objetividade científica — que a pseudo-imparcialidade não consegue salvaguardar — não depende aí diretamente do partidarismo como tal, mas do caráter social do partidarismo, ou seja, do caráter da força social cujo ponto-de-vista é adotado pelo sociólogo. O papel desta força social na etapa histórica dada condicionará decisivamente, embora sem determinar em toda a linha (o que seria impossível), o grau de objetividade do trabalho sociológico. Naturalmente, não cabe esquecer como o faz o raciocínio mecanicista vulgarizador do marxismo, que o processo do conhecimento tem suas características específicas, o seu movimento relativamente autônomo. O norte-americano Lewis Morgan chegou a descobrir e esboçar o materialismo histórico independente de Marx e por um caminho bem diverso.(16) Nem por isto deixaremos de reconhecer as grandes linhas de classe quando comparamos Marx a Comte e Spencer e verificamos a imensa superioridade científica do ponto-de-vista proletário do primeiro.
Cumpre dizer que hoje no Brasil há campo para uma sociologia e uma economia política desenvolvidas de um ponto-de-vista burguês nacionalista. Esta sociologia e esta economia politica já produziram contribuições para o estudo do processo capitalista brasileiro, que nenhum marxista pode desconhecer e deixar de valorizar. É de esperar que contribuam ainda mais na medida em que consigam se libertar da influência de teorias procedentes da burguesia norte-americana e europeia em decadência, sofrendo os males tremendamente agravados da época do imperialismo. O pensamento teórico da burguesia imperialista não pode convir aos setores mais avançados de uma burguesia, com o a brasileira, que ainda vive num estádio historicamente progressista (à influência do existencialismo, já comentada acima, acrescente-se, por exemplo, a de Keynes entre os economistas). Dirigidos contra aquele pensamento teórico, os princípios metodológicos formulados pelo sr. Guerreiro Ramos poderão desempenhar um papel profícuo.
Seriamos, porém, unilaterais se não levássemos em conta a estreiteza e a inconsequência de toda a orientação intelectual burguesa. A sua superação foi realizada pelo pensamento marxista. Em nosso país, o próprio processo capitalista, desenvolvendo o proletariado e incrementando a sua importância política, torna uma necessidade (no sentido filosófico do termo) as ciências sociais de orientação marxista. O fato de que o pensamento burguês ainda se encontra em condições de produzir certos frutos de modo algum torna o marxismo menos necessário.
Não iremos aqui esmiuçar as causas que até agora frearam o desenvolvimento do marxismo no Brasil. Na ordem de considerações que estamos fazendo, apenas queremos assinalar que os marxistas brasileiros não escaparam à limitação que marca, no seu conjunto, a história do pensamento teórico em nosso país. O marxismo foi transplantado para cá em sua generalidade. Faltava e ainda falta a assimilação crítica, ou seja, dialética, desta generalidade a fim da concretizá-la nas particularidades nacionais. As causas de ordem interna que influíram para isto acrescentaram-se outras de ordem externa, porque o marxismo se difundiu no Brasil numa fase em que a ele aderiram – apenas aderiram, porque lhe são substancialmente estranhas — componentes deformadoras de natureza dogmática e até mesmo mística, relacionadas, como se sabe, ao culto da personalidade de Stalin. O fenômeno, está claro, se manifestou de modo muito variado em cada país. Entre nós, chegou a atingir proporções inflacionadas.
No processo autocrítico que tanto vem enriquecendo o pensamento marxista nos últimos anos, não faltou em nosso país, como em outros quem enveredasse pela revisão dos princípios do marxismo para deformá-lo em definitivo, ou simplesmente o rejeitasse como inadequado para o estudo da realidade nacional. Atitude marcada pela fraqueza e até pelo ridículo, porque de muitos que se fizeram portadores do pior espírito dogmático e abandonam o marxismo precisamente quando, desembaraçado desse espírito, pode ser restituído a toda a sua formidável potência criadora. E ainda sem refletir — o que é primordial — sobre a ação prática do marxismo na história mundial, sobre o seu grandioso triunfo numa área habitada por um terço da humanidade.
O materialismo histórico é a teoria sociológica do marxismo. Representa uma teoria geral sobre a sociedade humana. As suas categorias fundamentais têm caráter universal. As categorias analisadas e sintetizadas em “O Capital” são válidas para todos os países, como o é o desenvolvimento que lhe deu Lenin, ao estudar a fase imperialista do capitalismo. Nenhum relativismo pode impedir, por exemplo, que um conceito como o de imperialismo seja compreendido, no sentido mais concreto possível, exatamente da mesma maneira pelos comunistas franceses e argelinos ou pelos norte-americanos e brasileiros. Esta universalidade teórica reflete corretamente a realidade objetiva e tem a sua base ideológica de classe no caráter internacionalista do proletariado.
Mas à concepção marxista da vida social é inerente a dialética entre o geral, o particular e o singular. Esta dialética, que já existia em Hegel, tornou-se materialista com Marx e Engels, Ela está presente, desde o início, na obra de Lenin, que, por isto, pôde superar criadoramente o dilema revisionismo — dogmatismo. A sua polêmica contra o primeiro foi sempre acompanhada, ou melhor, penetrada da mais severa refutação do segundo.
“Em absoluto, não consideramos — dizia Lenin em 1899 — a teoria de Marx como algo acabado e imutável: estamos convencidos, pelo contrário, de que esta teoria não fez senão colocar as pedras angulares da ciência que os socialistas devem impulsionar em todos os sentidos, sempre que não queiram ficar atrasados com relação à vida. Pensamos que para os socialistas russos é particularmente necessário impulsionar independentemente a teoria de Marx, porque esta teoria dá somente os princípios diretivos gerais, que se aplicam em particular à Inglaterra de modo diferente do que à França; à França de modo diferente do que à Alemanha; à Alemanha de modo diferente do que à Rússia”(17) (os grifos são de Lenin).
Lenin soube aplicar ao particular da Rússia o que é geral na teoria de Marx e Engels, extraindo daquele particular todo um acervo de novos elementos para o geral da teoria marxista. Esta dialética foi seriamente violada por Stalin, apestar de ter sido importante marxista. Não é preciso insistir em que ficou, durante muito tempo, praticamente desconhecida para os marxistas brasileiros. Desvinculado das particularidades e das singularidades em que deve se manifestar e concretizar, o geral se afasta da realidade objetiva em devenir, tende a se transformar e acaba se transformando em pura abstração, adquirindo afinal um caráter de entidade metafísica. Este desvio gnoseológico se fez acompanhar de outro ainda: a arbitrária elevação a categoria de generalidade do que não representava senão particularidade e, às vezes, apenas singularidade. Perdeu-se de vista que entre geral, particular e singular não bá somente unidade, mas também contradição. A preocupação se concentrava em encontrar os exemplos brasileiros das teses marxistas, os quais se agregassem mecanicamente aos exemplos de outros países, e não o modo particular de manifestação de leis universais na realidade social de nosso país.
Era inevitável que tudo isto conduzisse a certas fixações dogmáticas, que afastavam os marxistas do estudo concreto da realidade concreta, freando o desenvolvimento da teoria e repercutindo nocivamente, em consequência, na ação prática. A dialética deixava de sê-lo, tornava-se o seu contrário — a metafísica. Aqui se encontram, segundo nos parece, alguns dos principais aspectos gnoseológicos do dogmatismo que impregnou o pensamento marxista no Brasil.
Compreende-se que não deve ser negligenciado o mal contrário: a absolutização das particularidades, que passariam a constituir o grau máximo do conhecimento. Ficaria vedado, desta maneira, o caminho para descobrir o geral que se contém em todo o particular. Teríamos uma forma bastante característica de impotência teórica, própria do revisionismo.
As categorias de geral e particular estiveram, por assim dizer, no centro das discussões que se travaram recentemente no movimento comunista mundial. O tema é inesgotável, como o próprio devenir da realidade objetiva, mas o esclarecimento que já se alcançou a respeito trouxe nova riqueza para a filosofia e a sociologia marxistas. Surgiram sobretudo melhores condições teóricas para o desenvolvimento do pensamento marxista no maior número de países, ao contacto com as mais variadas particularidades de realidades nacionais extremamente diversas.
Há, sem dúvida, o que aprender com os resultados parciais alcançados por outras correntes de pensamento. Isto não nos afasta, porém, da convicção de que somente o materialismo dialético e histórico fornece o instrumental verdadeiramente científico de leis gerais, categorias e princípios metodológicos para a investigação e o conhecimento da vida social brasileira. A questão é aprender a manejar este instrumental na pesquisa concreta dã realidade concreta. Pois, como dizia Hegel„ com ironia, são os indivíduos inteiramente ignorantes que raciocinam de modo abstrato...
Notas de rodapé:
(1) «A Redução Sociológica», edição do Instituto Superior de Estudos Brasileiros — Rio, 1958. NOTA: O presente artigo já estava escrito e composto, quando se verificaram no ISEB os fatos relacionados com a publicação de uma obra do sr. Hélio Jaguaribe. Dai porque não fazemos referência a estes fatos nem à posição que diante deles assumiu o sr. Guerreiro Ramos. Pensamos porém, que isto não afeta a validade das opiniões aqui expendidas (J.G.). (retornar ao texto)
(2) Idem, pág. 19. (retornar ao texto)
(3) Idem, pág. 20. (retornar ao texto)
(4) Idem, pág. 52. (retornar ao texto)
(5) Idem, pág. 89. (retornar ao texto)
(6) Idem, págs. 52 e 53. (retornar ao texto)
(7) Idem, pág. 43. (retornar ao texto)
(8) Idem, pág. 95. (retornar ao texto)
(9) Idem, pág. 77. (retornar ao texto)
(10) Georges Lukacs — «Existentialisme ou marxisme?» pág. 76-7 — Editions Nagel, Paris — 1948. (retornar ao texto)
(11) Guerreiro Ramos, op. cit., pág. 83-4. (retornar ao texto)
(12) Lenin, «Matérialisme et Enpiriocriticisme», pág. 149 — «Êditions en langues etrangéres», Moscou — 1952. (retornar ao texto)
(13) Guerreiro Ramos, op. cit., pág. 95. (retornar ao texto)
(14) F. Engels, «Dialectics of Nature», págs. 58, 273, 279 e outras — Foreign Languages Rublishing House, Moscow — 1954. (retornar ao texto)
(15) Alvaro Vieira Pinto, «Ideologia e Desenvolvimento Nacional», pág. 43 — Edição do ISEB, Rio — 1956. (retornar ao texto)
(16) V. Engels, in «Obras Escogidas» de Marx y Engels, tomo II, págs. 157 e 475 — Ediciones en Lenguas Extranjeras, Moscú — 1952. (retornar ao texto)
(17) V. I. Lenin, «Marx, Engels y el marxismo», pág. 117 — «Ediciones em Lenguas Extranjeras», Moscú — 1947. (retornar ao texto)
Inclusão | 05/10/2019 |